Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1056/13.1TBPDL.L1-2
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: INCAPACIDADE
FALTA DE CONSCIÊNCIA
FALTA DA VONTADE
ANULAÇÃO DA VENDA
ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/12/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Tendo o juiz realizado uma apreciação criteriosa da prova, no âmbito da sua livre apreciação, e não se surpreendendo qualquer erro na formação da sua convicção, improcede a impugnação da decisão relativa à matéria de facto.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:



I – RELATÓRIO:



JH... instaurou, em 24 de maio de 2013, no então 5.º Juízo Cível da Comarca de Ponta Delgada (Instância Local de Ponta Delgada, Secção Cível, Comarca dos Açores), contra AS... e mulher, …, ação declarativa, sob a forma de processo sumário, pedindo que fosse declarada a anulabilidade do contrato de compra e venda, celebrado no dia 22 de abril de 2008, tendo por objeto o prédio urbano, sito ..., freguesia da Fajã de Cima, e descrito, sob o n.º 507, na Conservatória do Registo Predial de Ponta Delgada (Fajã de Cima), e dados sem efeitos os correspondentes registos.

Para tanto, alegou em síntese, ter celebrado, com os RR., o referido contrato, apenas porque estes exploraram a sua situação de doença e fraqueza, sendo o preço inferior ao valor real do prédio, e sem que tenha recebido qualquer importância do preço.

Contaram os RR., por exceção, invocando a prescrição, e por impugnação, alegando, designadamente, que foi o A. a propor-lhes o negócio. Em reconvenção, os RR. pediram que o A. fosse condenado a pagar-lhes a quantia de € 2 500,00, acrescida de juros a contar da “citação”, pelas obras efetuadas no prédio mencionado.

Respondeu o A., pugnando pela improcedência da exceção e da reconvenção.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, com gravação, foi proferida, em 1 de junho de 2015, a sentença que, julgando a ação e a reconvenção improcedentes, absolveu os Réus e o Autor dos respetivos pedidos.

Inconformado com a sentença, recorreu o Autor e, tendo alegado, formulou essencialmente as seguintes conclusões:

a) O contrato foi celebrado sob condições contrárias à lei e aos bons costumes.
b) O contrato foi celebrado em erro, que o conduz à sua anulabilidade.
c) Deverão ser os RR. condenados por litigância de má, pois violaram de modo doloso o dever de boa fé processual.
d) Existe erro notório na apreciação da prova quanto ao valor real do imóvel e quanto à falta de prova de que os RR. exploraram a situação de doença e fraqueza do A.
e) Deveria o Tribunal a quo ter considerado o negócio anulável, por ser usurário.
f) Mesmo que assim não se entendesse, deveria o Tribunal a quo dar como provado que o negócio estava sujeito à incapacidade acidental do A.
g) Não se fez prova segura e verosímil do pedido reconvencional, devendo o A. ser absolvido do pedido reconvencional.
h) A sentença recorrida violou o disposto nos arts. 252.º, n.º 2, 282.º e 257.º do CC e 542.º do CPC

Pretende o Autor, com o provimento do recurso, a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que julgue procedente o pedido formulado na ação.

Contra-alegaram os Réus, no sentido da improcedência do recurso interposto pelo Autor.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

Neste recurso, para além da impugnação da decisão relativa à matéria de facto, está essencialmente em discussão a anulação do contrato de compra e venda de imóvel e a litigância de má fé.

II – FUNDAMENTAÇÃO:

2.1. Na sentença recorrida, foram dados como provados os seguintes factos:

1. No dia 22 de abril de 2008, no 2.º Cartório da Secretaria Notarial de Ponta Delgada, foi efetuada a escritura de compra e venda, em que o A. consta como vendedor e os RR. como compradores do imóvel, que era a residência do A., sito ..., Fajã de Cima, e descrito, sob o n.º 507, na Conservatória do Registo Predial de Ponta Delgada (Fajã de Cima).
2. O valor declarado e constante da escritura foi de € 5 000,00, sendo o valor tributário, à data, de € 2 207,60.
3. À data da escritura, o A. encontrava-se incapaz de compreender o negócio que fazia ou até evitar fazê-lo.
4. Os RR. realizaram obras no imóvel no valor de, pelo menos, € 520,00.

***

2.2. Descrita a matéria de facto provada, importa então conhecer do objeto do recurso, delimitado pelas suas conclusões, e cujas questões jurídicas emergentes foram antes especificadas.
Tendo a sentença recorrida sido proferida em 1 de junho de 2015, ao recurso, é aplicável o regime previsto no Código de Processo Civil (CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho (art. 7.º, n.º 1).

O Apelante impugnou a decisão negativa relativa à matéria de facto, assim como o facto positivo descrito sob o n.º 4.
Ouvida a gravação – difícil de perceber por deficiente recolha de alguns depoimentos – interessa reapreciar as provas em que a assentou a parte impugnada da decisão sobre a matéria de facto, de harmonia com o disposto no art. 662.º, n.º 1, do CPC.
Na sentença, foram declarados como não provados os seguintes factos:

a) O Autor nunca recebeu qualquer importância pela venda do imóvel.
b) O valor real do imóvel é de cerca de € 120 000,00.
c) Os Réus exploraram a situação de doença e fraqueza do Autor, sendo que o fizeram convencendo-o e pressionando-o a proceder à venda do imóvel.
d) Os Réus bem sabiam da situação de inferioridade do Réu.

Da fundamentação da decisão da matéria de facto, constante de fls. 256 a 258, consta, nomeadamente que:

A convicção do Tribunal sobre o facto 4º assentou no exame crítico dos depoimentos das testemunhas João …, Fernando … e Fernando …, uma vez que o Réu admitiu não se lembrar de quanto dinheiro gastou, pois quando estava a fazer as obras nunca pensou que tal chegasse a Tribunal, motivo pelo qual não tem qualquer documentação. Contudo João …, Fernando ... e Fernando … prestaram depoimentos espontâneos, onde até negaram a realização de algumas obras. Assim, atentos os valores que aqueles declararam receber (João … e colega Serôdio - € 320,00 e Fernando … e Fernando … - € 200,00), o Tribunal ficou convencido que os Réus despenderam, pelo menos, € 520,00, com as obras.

*

Quanto aos factos não provados, os mesmos resultaram de uma total falta de demonstração da sua realidade.

Desde logo, e quanto ao facto a), o Réu explicou, num depoimento espontâneo e genuíno, onde não mostrou qualquer rancor pelo Autor, que até novembro de 2013 dava     € 300,00 por ano ao Autor por conta do valor da casa. Aliás, se o Réu quisesse mentir bastava dizer que tinha pago o valor que consta da escritura, mas não, nunca tentou esconder o não pagamento da totalidade do valor.
No que diz respeito ao facto b), e não tendo sido produzido qualquer meio de prova que permitisse atestar a realidade do mesmo, o Tribunal apenas o poderia considerar como não provado.
Por fim, não foi produzida qualquer prova que permitisse atestar da veracidade dos fatos c) e d). Pelo contrário, resultou das declarações de parte do Réu, bem como dos depoimentos de Ambrosina … e Ana … que o Autor não tinha ninguém e que se não fosse os Réus não teria quem o alimentasse, vestisse e cuidasse da sua higiene. Assim, por tudo o que fez, o Réu encarou tal gesto do Autor como gratidão (o que até nem é de estranhar uma vez que o Autor não tem qualquer familiar ou pessoa amiga a quem possa deixar a casa). É certo que os Réus conheciam das fragilidades do Autor (embora não conhecessem a extensão da doença, aliás, só na audiência final é que se percebeu bem qual a doença psiquiátrica de que o Autor padece), até porque eram eles que cuidavam, e ao que tudo indica, muito bem, do Réu. No entanto, não houve uma única testemunha, um único elemento de prova, que permita concluir que os Réus pressionaram aquele a vender o imóvel (aliás, como explicou João …, o Autor pode estar a vender um imóvel, a declarar que sim, mas não percebe o que está a fazer e as pessoas à sua volta também não) ou que bem sabiam da sua situação de inferioridade. Não obstante os Réus saberem que o Autor sofria de algumas limitações (até porque o Réu acompanhou aquele ao hospital e até marcou uma consulta), nada indica que estes tinham conhecimento da demência e que se tenham aproveitado da mesma, sendo os comportamentos do Autor identificados como próprios do envelhecimento (não saber fazer refeições, o desleixo na higiene). Aliás, o Autor fazia uma vida minimamente normal, pois consultava advogados (conforme explicou o seu arrendatário João …), chamava o serviço de táxis e pagava (como (…) disse o taxista Rui …), tinha conversas normais com a sua farmacêutica (confirmado por Maria …) e, aquando da escritura, não teve nenhum comportamento que causasse estranheza à ajudante de notário Angelina …(conforme esta (…) explicou). Tais comportamentos encaixam-se no perfil da demência de que Marta … e João … tão pormenorizadamente descreveram: para qualquer pessoa ele pode parecer “normal”, mas, na verdade, não tem crítica sobre aquilo que faz.”

Em relação ao facto identificado na alínea a), o Apelante refere o depoimento do Apelado.

Embora não contrariando abertamente o fundamento especificado pelo Tribunal, o Apelante, misturando o direito com os factos, retira a conclusão jurídica de que houve erro no negócio (art. 252.º, n.º 2, do CC).

Ora, do depoimento do Apelado, não se pode extrair uma prova diversa daquela a que chegou a decisão recorrida, sendo certo que o mesmo declarou a entrega anual, até novembro de 2013, da quantia de € 300,00, “para não se dizer que era dada” (a casa).

Por isso, a resposta negativa está em conformidade com a prova produzida.

No tocante ao facto identificado sob a alínea b), o Apelante indicou o documento de fls. 12 e ainda o depoimento do Apelado.

O documento de fls. 12, correspondente à caderneta predial urbana, refere-se ao valor patrimonial determinado em 2012, quando o que está em causa é o valor do imóvel à data da escritura (2008), sendo certo ainda que, entretanto, os Apelados realizaram algumas benfeitorias.

Por outro lado, o Apelante declarou que a casa “valia pouco mais de cinco mil euros”, independentemente da declaração do documento de fls. 12.

Assim sendo, não há motivo para modificar a resposta negativa.

No respeitante aos factos identificados sob as alíneas c) e d), o Apelante especificou o depoimento das testemunhas João Paulo …, Rui Manuel …, Maria da Luz …, Angelina Maria … e do Apelado, assim como o documento de fls. 141.

JP …, médico psiquiátrico, autor da informação clínica de fls. 141, produziu um longo depoimento, ainda que nem sempre muito concreto, porquanto acompanhou, clinicamente o Apelante, nomeadamente na Casa de Saúde S. Miguel. Conquanto a testemunha tenha afirmado, aparentemente convicto, que o Apelado “de forma alguma podia estar em condições de celebrar a escritura”, também declarou, nomeadamente na referida informação clínica, de 12 de dezembro de 2013, que “nos últimos internamentos denotava igualmente sintomas de declínio cognitivo compatíveis com demência em evolução”, depois de ter informado que o Apelante teve sete internamentos na Casa de Saúde S. Miguel, no período compreendido entre maio de 1998 e março de 2012, por episódios de depressão e de mania, no contexto da doença bipolar.

A declaração oral e a declaração escrita não são coincidentes, divergindo no diagnóstico da doença do Apelante, sendo certo que ambas distam vários anos em relação ao ano da celebração do negócio jurídico dos autos e a doença ser progressiva.

Por outro lado, a testemunha Angelina Maria, Ajudante Principal que outorgou a escritura, deu conta dos “diversos cuidados tomados” na celebração dos atos notariais, tendo afirmado que “nada foi mostrado”, ainda que reconhecesse não se lembrar da escritura, a qual, porém, “nunca foi posta em causa”, vindo só, em Tribunal, a conhecer da sua impugnação. Deste depoimento, isento e objetivo, resulta que a doença do Apelante, aparentemente, não o incapacitava de celebrar a escritura.

Já o depoimento da testemunha Rui Manuel …, taxista, embora aludindo a certos comportamentos “esquisitos”do Apelante,não foi esclarecedor quanto ao possível conhecimento da sua doença por terceiros.

O depoimento do Apelado, confirmando o auxílio que dava ao Apelante, acompanhando-o, designadamente, às urgências e à clínica, declarou que aquele não tinha “problemas de cabeça” e que “não era maluco”. Declarou ainda também que, não tendo ninguém que cuidasse do Apelante, lhe prestou ajuda, assim como a sua mulher. Deste depoimento não resulta que os Apelados conhecessem, verdadeiramente, a situação clínica do Apelante, sendo certo que o Apelado também declarou que aquele, antes da escritura, pedira “um papel”, que atestasse as suas faculdades mentais, referindo-se à “declaração médica” de fls. 77, subscrita pela Dra. Raquel …, médica psiquiatra, onde, com a data de 20 de dezembro de 2007, se declara que o Apelante “encontra-se na posse plena das suas faculdades mentais, pelo que é totalmente capaz de se autodeterminar, ou seja, de gerir a sua pessoa e bens”.

Perante estes depoimentos e os documentos especificados, não é possível afirmar, com certeza, que os Apelados conhecessem, com rigor, a situação clínica do Apelante, não se surpreendendo qualquer comportamento daqueles no sentido de levar o Apelante a realizar o ato notarial descrito nos autos, apesar de serem seus vizinhos e de lhe virem prestando diverso auxílio. De resto, não deixa de ser também relevante o documento de fls. 77, segundo o qual, conforme nele consta, foi o próprio Apelante a solicitar a declaração médica.

Neste contexto, compreende-se e aceita-se a resposta negativa aos factos em questão, não se justificando a sua modificação.

Também quanto ao facto positivo descrito sob o n.º 4, não se justifica qualquer alteração.

Com efeito, as obras e os pagamentos efetuados foram confirmados pelas três testemunhas que realizaram tais obras, conforme consta da fundamentação da decisão recorrida, sendo certo que, aparentemente, prestaram depoimentos sérios e objetivos.

Acresce ainda que o próprio Apelado, ao contrário do que se sugere na alegação do Apelante, especificou obras e pagamentos, não cuidando, no entanto, de ficar com recibos, por não suspeitar que viesse a gerar-se a controvérsia emergente deste processo, para além de ser corrente não solicitar tais documentos em obras consideradas pequenas.

Por fim, importa realçar que a produção da prova foi acompanhada, pelo julgador, com muita atenção e cuidado, tendo realizado, depois, uma apreciação criteriosa, no âmbito da livre apreciação da prova, não se surpreendendo qualquer erro na formação da sua convicção.

Nestes termos, improcede a impugnação da decisão relativa à matéria de facto.

2.3. Mantendo-se delimitada a matéria de facto, sem qualquer alteração, fica totalmente prejudicada a apreciação da questão de direito, incluindo a questão da litigância de má fé, porquanto aquela tinha, com pressuposto, a modificação da decisão relativa à matéria de facto, que foi julgada improcedente.

Sendo certo que o Apelante não impugnou a subsunção jurídica, constante da sentença recorrida, mais não resta senão confirmá-la inteiramente, porque em conformidade com o direito aplicável, e negar provimento ao recurso.  

2.4. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante:
Tendo o juiz realizado uma apreciação criteriosa da prova, no âmbito da sua livre apreciação, e não se surpreendendo qualquer erro na formação da sua convicção, improcede a impugnação da decisão relativa à matéria de facto.

2.5. O Apelante, ao ficar vencido por decaimento, é responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a consagrada regra da causalidade (art. 527.º, n.º s 1 e 2, do CPC), sem prejuízo da sua inexigibilidade, por efeito do benefício do apoio judiciário concedido.

III – DECISÃO

Pelo exposto, decide-se:

1) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
2) Condenar o Apelante (Autor) no pagamento das custas, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.


Lisboa, 12 de novembro de 2015


(Olindo dos Santos Geraldes)
(Lúcia Sousa)
(Magda Geraldes)
Decisão Texto Integral: