Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5872/2004-9
Relator: JOÃO CARROLA
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
QUEIXA
MINISTÉRIO PÚBLICO
LEGITIMIDADE
PRISÃO PREVENTIVA
FUNDAMENTOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/08/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I.
(P), arguido nos autos de inquérito n.º 1193/04.3 TDLSB do 5º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, preso preventivamente, veio interpor recurso para este Tribunal da Relação de Lisboa, do douto despacho proferido pela M.ma Juiz de Turno junto do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, de 24 de Abril de 2004, o qual determinou a medida de coacção de prisão preventiva, o que faz concluindo que:
“1. Nenhum dos menores identificados nos autos apresentou queixa contra o arguido, pela prática dos crimes p. e p. pelos artigos 172° n° 1 e 2, n° 3 als a) e b) e 175° do Código Penal.
2. O Ministério Público também não consignou no processo que os interesses das vítimas o legitimavam a desencadear o procedimento criminal.
3. Estando em causa a legitimidade para o Ministério Público agir, desencadeando o processo criminal, entende-se que as condições para tal têm de estar reunidas, logo à partida.
4. A não ser assim, podem conceber-se hipóteses e situações aberrantes, correndo-se por exemplo o risco de alguém ser constituído arguido e sujeito à mais gravosa das medidas de coacção - a prisão preventiva - e, no momento do encerramento do inquérito, o Ministério Público vir a entender que os interesses da vítima menor de 16 anos, afinal, não impunham o desencadeamento do processo, ordenando o seu arquivamento em conformidade.
5. Pelo exposto, entende-se que o Ministério Público estava obrigado a fazer consignar nos autos na fase inicial do inquérito, logo após o conhecimento das condições pessoais das vítimas, que os interesses destas justificavam o desencadeamento do processo.
6. Não o tendo feito, a sua falta de legitimidade para desencadear os presentes autos, determinou a inexistência de todos os actos processuais praticados neste inquérito.
7. Não reconhecendo essa falta de legitimidade do Ministério Público para desencadear este processo e as gravosas consequências daí decorrentes, a Mma Juíza do tribunal a quo violou o disposto no artigo 178° n° 4 do Código Penal.
8. O arguido (P) assumiu uma consciência crítica face aos actos sexuais que praticou com menores, avaliou a censurabilidade desses comportamentos e, em face da dificuldade de se autodeterminar sozinho perante essa avaliação, procurou apoio clínico para conseguir pôr termo à sua prática.
9. Passou então a ser seguido pelo Dr. (A), subscritor do relatório que acompanha a presente motivação e, sob a sua orientação e o acompanhamento psicológico da Dr. (C), iniciou a terapêutica adequada ao seu tratamento: deixou imediatamente de contactar os jovens que conheceu no Parque Eduardo VII e com quem havia mantido contactos sexuais (as vítimas nestes autos); não voltou a frequentar essa zona de Lisboa; destruiu as fotografias que havia tirado aos menores que aí conhecera e que guardava em sua casa; iniciou uma medicação com Zoloft, anti depressivo redutor do apetite sexual.
10. Apesar desse louvável projecto de recuperação que prosseguia, da impressionante consciência crítica com que encarava o seu comportamento anterior e da sua sincera e total confissão dos factos pelos quais estava indiciado, a Mma Juíza de Instrução Criminal que o ouviu, proferiu uma decisão reveladora de um profundo descrédito na regeneração da pessoa humana, na qual, em clara antecipação condenatória, concluiu que a única medida de coacção adequada era a prisão preventiva.
12. E, ao fundamentar a sua decisão, a Magistrada teceu considerações que se reputam de extrema gravidade e que colidem, manifestamente, com os princípios basilares que informam o nosso Direito Penal e Processual Penal, designadamente a aposta na regeneração do agente evidenciada por normas como o artigo 30° n° 1 da Constituição (que proíbe a prisão perpétua) e a imperiosa necessidade de encarar a prisão preventiva como uma medida excepcional e uma ultima ratio, tutelada dessa forma pelo artigo 28° n° 2 da Constituição da República Portuguesa e também pelo artigo 202° no 1 do CPP que apenas tolera a sua aplicação, nos casos em que as outras medidas de coacção se revelarem insuficientes.
13. Com efeito, na sua decisão a Mma Juíza de Instrução Criminal assume claramente estar convicta da impossibilidade de regeneração de um agente de crimes de abuso sexual de menores, ao afirmar que "a pedofilia como parece ser aceite medicamente tem uma natureza predominante de comportamento compulsivo, o que leva a recear que o arguido em liberdade prossiga na sua actividade criminosa" (cfr. decisão recorrida, sublinhado nosso).
14. Tal convicção radica num preconceito face ao agente abusador de menores, claramente revelado nesta passagem da decisão recorrida, onde não se concebe a possibilidade de recuperação nos chamados casos de pedofilia.
15. E essa oportunidade de permitir a regeneração terapêutica do arguido, era não só merecida por ele, como ao contrário do afirmado no douto despacho recorrido, comportava e ainda comporta uma boa probabilidade de sucesso, como comprova aliás o relatório clinico do Dr. (A) e da Dr. (C), conceituados especialistas que vinham, sob orientação daquele, acompanhando medicamente o arguido, e que se encontra junto aos autos.
16. Sendo aliás esta uma patologia do foro psicológico e comportamental, o acompanhamento médico especializado, bem como a série de exames e estudos que lhe estão associados, são indispensáveis ao bom prosseguimento da terapêutica adequada e entretanto prescrita e já iniciada. Também neste aspecto o relatório referido é elucidativo e permite colocar esta problemática devida e correctamente centrada.
17. Acresce ainda a opinião do também conceituado estudioso deste fenómeno, Dr. (R), do Departamento de psicologia da Universidade do ..., relativamente à absoluta necessidade de para além de punir, se tratar os indivíduos que padecem desta parafilia, conforme recentes declarações transcritas em artigo de 08/05/2004 no jornal "Público", em que se afirma: Punição de agressores sexuais sem tratamento " é a mesma coisa que nada" ".

18. E também aí se cita a opinião do escutado especialista, conforme reproduz documento entretanto junto aos autos, quando afirma: " ...não se pode meter no mesmo saco diferentes tipos de agressores sexuais, nem tratar da mesma forma delinquentes, violadores ou agressores de crianças".
19. Ora o arguido teve já desde há alguns meses uma atitude credora de confiança e merecedora de oportunidade, ainda que naturalmente vigiada.
20. A prisão preventiva é uma medida de coacção e não uma pena, por isso não prossegue quaisquer finalidades punitivas.
21. Consequentemente, a sua aplicação não pode reger-se por objectivos de prevenção penal - neste caso, a prevenção da prática de crimes de abuso sexual de menores por pedófilos, dada a natureza compulsiva do seu comportamento -, como se verifica na decisão recorrida.
22. Tal como estabelece o artigo 193° do CPP, a aplicação da prisão preventiva, como de qualquer medida de coacção, rege-se por critérios de adequação e de proporcionalidade, apreciados em face do caso concreto.
23. Determina também a Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 28° n° 2, a natureza excepcional e subsidiária da prisão preventiva, impondo-se a aplicação de uma outra medida de coacção mais favorável, sempre que tal se afigure possível. Por seu turno, o artigo 18° n° 2 da Lei Fundamental determina que as restrições legais aos direitos, liberdades e garantias só podem limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
24. No caso sub judice, é manifesta a adequação de outras medidas de coacção, que não a prisão preventiva, afigurando-se a sua gravosidade desnecessária.
25. A inédita assunção dos factos pelo arguido, quer na fase anterior ao conhecimento dos autos, quer perante a Mma juíza de Instrução Criminal, durante o seu interrogatório, bem como o seu meritório esforço de recuperação, atenuam claramente as exigências cautelares que, no presente caso, possam existir.
26. Tal comportamento revela a forte determinação do arguido em manter uma conduta lícita, o que atenua fortemente o receio do mesmo prosseguir numa actividade criminosa que, tal como o arguido explicou no seu interrogatório, cessara desde o início do seu tratamento e, repita-se, por vontade própria do recorrente.
27. Existiam, assim, fortes razões para a Mma Juíza que proferiu a decisão sub judice ter optado pela aplicação, ao arguido, de uma medida de coacção menos gravosa. Não o tendo feito, aquela Magistrada violou os artigos 30° n°1,18° n° 2 e 28° n° 2 da Constituição da República Portuguesa, bem como os artigos 193° e 202° n° 1 do CPP.
28. Foi por sua própria iniciativa que o arguido deixou de contactar as vítimas; foi por sua própria iniciativa que deixou de frequentar o Parque Eduardo VII, por ser o local onde as vítimas se prostituíam; e foi por sua própria iniciativa que procurou ajuda clínica para não mais voltar a estabelecer contactos sexuais com menores.
29. Em face deste enquadramento, entende-se inexistir em absoluto o perigo invocado na decisão recorrida do arguido contactar as vítimas e assim prejudicar o decurso do inquérito, a recolha e a conservação da prova. Mas ainda que se entendesse que tal perigo existia, para o afastar sempre seria suficiente a aplicação da medida de coacção prevista no artigo 200°n°1 alínea d) do CPP, através da qual se poderia impor ao arguido a proibição de contactar os menores em causa, bem como de frequentar o Parque Eduardo VII. Não o tendo feito, a Mma Juíza violou, mais uma vez, os artigos 18° n° 2 e 28° n° 2 da Constituição da República Portuguesa, bem como os artigos 193° e 202° n° 1 do CPP.
30. Pelo facto do arguido ser assessor de um vereador na Câmara Municipal de ..., "com responsabilidades acrescidas no âmbito do Município", a Mma Juíza do tribunal recorrido entendeu que a sua libertação perturbaria a ordem e a tranquilidade públicas.
31. Os actos pelos quais está indiciado o arguido em nada se relacionam com a sua actividade profissional ou desportiva, reportando-se unicamente a comportamentos pontuais que o mesmo assumiu para com jovens que conheceu no Parque Eduardo VII, local onde estes se prostituíam. 32. Mas ainda que se pudesse sentir algum receio a esse nível, este só se poderia reportar às actividades desenvolvidas pelo arguido que envolvem crianças e jovens, como seja a sua participação na Comissão de Protecção de jovens e Crianças - que muito sensibilizou o arguido para a necessidade de proceder a um tratamento, tendo contribuído para a sua tomada de decisão a esse nível - ou os contactos que, a nível desportivo, o recorrente estabelece com equipas infantis e juvenis.
33. De qualquer forma, a prisão preventiva sempre se afigura uma medida excessiva e desnecessária para acautelar o alegado perigo de perturbação desses jovens, crianças ou respectivos pais, sendo manifestamente suficiente, se tal se entendesse necessário, optar pela suspensão do arguido das actividades supra identificadas, nos termos do artigo 199° n° 1 alínea b) do CPP. Não o tendo feito, a Mma Juíza do tribunal a quo voltou a violar os artigos 18° n° 2 e 28° n° 2 da Constituição da República Portuguesa, bem como os artigos 193° e 202° n° 1 do CPP.
34. O arguido entende que aplicação dessas medidas de coacção - proibição de contactos com as vítimas; proibição de frequência do Parque Eduardo VII; suspensão de actividades exercidas a nível concelhio que envolvam o relacionamento com jovens e crianças -, à qual se pode acrescentar a obrigação de apresentação de relatórios periódicos do seu psiquiatra, dando conta da evolução da sua terapêutica (já sugerida nos autos, em sede de primeiro interrogatório), são suficientes para acautelar eventuais receios da verificação dos perigos previstos no artigo 204° alíneas b) e c) do CPP.
35. Mas caso V. Exas entendam que apenas a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação prevista no artigo 201° do CPP pode acautelar essas exigências, o arguido desde já indica como residência disponível para a cumprir, o seu domicílio em Lisboa e melhor identificado junto aos autos, ou se assim melhor se entender, a morada de sua mãe - sita na Rua ... - dando também desde já o seu assentimento, se a tal medida se entender acrescentar a vigilância electrónica.”

O Magistrado do Ministério Público apresentou a sua resposta concluindo:
“1 - O art°. 178° n.°. 2 do CPP surge como uma forma de evitar a desprotecção do menor de 16 anos - e por isso,. incapaz para exercer directamente o direito de queixa (art°. 113° n.°. 3 daquele diploma) - naqueles casos em que o titular do direito de queixa a não apresenta, quando o interesse da vítima assim o impunha;
2 - A ratio legislativa situa-se em termos de combater e evitar os casos de impunidade resultantes da circunstância da vítima não ter, ainda, capacidade para o exercício do direito de queixa e de o titular desta a não apresentar - veja-se neste sentido, Maria João Antunes, in "Revista Portuguesa de Ciência Criminal", Ano 9, fasc. 2°, pág. 328;
3 - A intervenção do Ministério Público a que se reporta o art°. 178° n.°. 2 do CP deve, necessariamente, ter-se por subsidiária e porque subsidiária, cessa quando passe a inexistir razão que sob o ponto de vista finalístico a fundamente, ou seja, quando a vítima complete 16 anos e passe a dispor de capacidade para o exercício do direito de queixa;
4 - A lei não fixa qualquer momento para ser aferido pelo Ministério Público qual o interesse da vítima, nem tão pouco impõe que seja lavrado um despacho inicial justificativo de tal posição;
5 - Conforme se refere no Acórdão do STJ de 31.5.2000 - proc. 272/2000 "sempre que sejam notórias as razões de facto em que se apoia o Ministério Público e a própria exigência do procedimento pelo interesse (objectivo) da vítima, a sua não especificação detalhada, só por si, nunca pode implicar, necessariamente, a ilegitimidade daquele";
6 - No mesmo sentido se pronunciou o Acórdão do STJ de 3.4.2002, no proc. 02P4628 (consultado em www.dgsi.t:t) ao considerar que "a constatação de tal interesse público na promoção do procedimento criminal não carece de ser expressamente declarada no processo pelo magistrado titular do mesmo", quando tal interesse decorra inquestionavelmente do teor dos próprios autos;
7 - O que é essencial é que os autos contenham elementos suficientes que habilitem o Ministério Público e o Tribunal a aferir o interesse do menor;
8 - Os presentes autos contêm elementos suficientes para permitir ao Tribunal sindicar a actuação processual do Ministério Público, em ordem a determinar a sua legitimidade processual;
9 - Encontra-se demonstrado nos autos que os menores que foram indiciariamente vítimas da actuação criminosa do arguido, são crianças desprovidas de meio familiar normal, estão confiados a Instituições de protecção e assistência, não têm referências afectivas sólidas e securizantes e são autênticos "meninos de rua";
10 - Os menores identificados nos autos não tinham qualquer contacto regular com a sua família e os organismos públicos a que se encontram confiados não conseguiram protegê-los eficazmente, não podendo deixar de se concluir pela existência de interesse dos menores no exercício da acção penal pelo Ministério Público;
11 - Ao contrário do que parece pretender o arguido, não há critério legal ou ético que permita distingir, valorando-a diferentemente, a conduta do agente em função do percurso de vida da criança vítima de abusos sexuais, do local de recrutamento ou do sítio onde é consumado o abuso;
12 - O arguido nunca questionou a indiciação realizada pelo Ministério Público, confessando, aliás, na generalidade, a prática dos factos que lhe são imputados, havendo que concluir pela existência de fortes indícios da prática dos crimes que são imputados ao arguido, não merecendo o despacho recorrido qualquer censura no que a esta questão concerne.
13 - A aplicação ao arguido da medida de coacção de prisão preventiva obedeceu a todos os princípios e critérios norteadores da aplicação de medidas de coacção;
14 - Na sequência da busca domiciliária efectuada à residência do arguido apurou-se que o mesmo detinha na sua posse uma lista de telefones dos menores (inclusivamente do Lar onde um deles se encontra internado), registos de pagamentos entre o arguido e os menores e uma fotocópia a cores do Bilhete de Identidade de um dos menores;
15 - Entre o material que lhe foi apreendido contavam-se fotografias de práticas sexuais levadas a cabo pelo arguido na pessoa dos ofendidos dos autos, pelo que não é verdade que o arguido esteja a cumprir qualquer contrato terapêutico e que tenha destruído as referidas fotografias, conforme declarou no seu interrogatório judicial;
16 - Da análise de tais documentos conclui-se que, ao contrário do que tentou fazer crer, o arguido mantinha relações privilegiadas com os menores, conhecendo perfeitamente a sua identidade e as suas condições pessoais, o local onde os poderia encontrar, o tipo de vida que faziam e a forma mais célere de contacto com esses menores;
17 - Só depois de ter recebido um telefonema do seu co-arguido (AN), que o avisou que um dos ofendidos tinha sido reencaminhado para um Lar, "depois da polícia ter apertado consigo" e de ter tomado conhecimento que os menores tinham sido chamados a depor na Polícia Judiciária é que o arguido começou a procurar delinear uma estratégia que lhe permitisse escapar às malhas da justiça;
18 - E, de acordo com essa estratégia, procurou um médico, (sem que tenha cumprido qualquer plano terapêutico), conversou com os menores tentando que os mesmos o não denunciassem e até procurou aconselhamento jurídico, fazendo fé nas declarações constantes do requerimento que, em sede de primeiro interrogatório, foi apresentado pela sua defesa;
19 - Na agenda constante do Apenso D-3 constata-se que, nas vésperas da sua detenção e depois de saber que os menores tinham falado com a Polícia Judiciária, o arguido contactou todos os menores de quem abusara sexualmente, procurando, a troco de dinheiro e de pressão psicológica, comprar o seu silêncio, garantindo que os mesmos “ficariam do seu lado”, explicando-lhes as suas razões e pedindo-lhes “juramentos de fidelidade”;
20 - O arguido desdobrou-se, também, em contactos com os indivíduos que controlavam o Parque Eduardo VII, entre os quais o seu co- arguido (AN), com quem fez o ponto da situação, procurando pôr-se a par das movimentações da polícia, e delinear uma estratégia que lhe permitisse escapar à sua responsabilidade penal: pediu aos menores para deixarem de lhe ligar pelo telemóvel, verificava se era seguido quando saía de casa e teve até o especial cuidado de embalar todo o material de conteúdo pornográfico e pedófilo que tinha na sua posse e de o colocar em casa da sua Avó, a fim de evitar ser surpreendido por alguma busca policial à sua residência;

21 - Assim, é forçoso concluir, dentro da normalidade das coisas, que se for restituído à liberdade, o arguido tudo fará para tentar "comprar" os menores e destruir os indícios que contra si foram já recolhidos;
22 - Acresce que, foram encontrados em casas de que o arguido tinha a disponibilidade quase exclusiva, inúmeros documentos contendo anotações sobre outros menores que terão sido sujeitos a práticas sexuais pelo arguido e cuja identidade não está completamente apurada, importando acautelar a prova ainda a recolher, sendo que a restituição do arguido à liberdade seria susceptível de fazer perigar todas essas diligências de investigação;
23 - Os crimes de abuso sexual de crianças imputados ao arguido são geradores de uma forte sentimento de repulsa por parte da sociedade e como o próprio arguido reconhece traduz uma "conduta relativamente a menores não era a mais adequada", profundamente rejeitado e criticado nas sociedades modernas;
24 - A sociedade reclama que os Tribunais adoptem medidas adequadas à sua pacificação e à reposição da confiança nas estruturas e instituições do Estado de Direito por forma a garantirem a segurança e a tranquilidade de todos os cidadãos;
25 - No caso em apreço, o sentimento de insegurança e de intranquilidade públicas - do povo em nome de quem os Tribunais exercem a Justiça - é reforçado pela circunstância do arguido, até ao momento do decretamento da sua prisão preventiva, exercer funções públicas - assessor do Vereador do Desporto da Câmara Municipal de ..., cabendo-lhe em particular e conforme ele próprio referiu, manter "contactos próximos com crianças e adultos na sua actividade desportiva -, ser membro da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens do Concelho de ... e ser sócio de uma escola de futebol, frequentada por crianças e jovens até aos 15 anos;
26 - No imenso material que foi apreendido ao arguido, aquando da realização das buscas domiciliárias efectuadas nos presentes autos, foi encontrado um arsenal de material de conteúdo pornográfico e pedófilo, ao nível de locais de recrutamento de menores, de "sites" da Internet sobre esses temas, de notícias sobre casos judiciais que versam sobre essa matéria, de fotografias e filmes envolvendo crianças ainda de tenra idade, de registos de encontros do arguido com menores, ocorridos há menos de um mês, e de fotografias e filmes realizados pelo arguido aquando da prática dos abusos sexuais denunciados nos autos;
27 - Pelo que, não é verdade que o arguido tenha feito um esforço para se regenerar, sendo patente a compulsividade do seu comportamento pedófilo;
28 - Da análise dos manuscritos constantes da sua agenda, constante do Apenso D-3, constata-se que o arguido continuou a procurar e a contactar com menores até às vésperas de ser preso, continuando a relacionar-se sexualmente sempre que lhe pareceu seguro;
29 - No relatório médico que juntou aos autos, o próprio médico que o examinou concluiu que o mesmo apresentava "um grau de ansiedade elevado, que deve ser atribuído ao receio de poder vir a ser preso. (..) Tem clara consciência dos seus actos e das suas consequências, pelo menos nos últimos anos. A motivação para o seu pedido de ajuda tem assim a ver com esta maior consciência das possíveis consequências traumáticas do seu envolvimento sexual com crianças/adolescentes e com receio de ser preso";
30 - Foi o medo de poder vir a ser preso que levou o arguido, estrategicamente, a procurar aconselhamento médico, nunca desistindo do seu comportamento pedófilo (e a prova é que não se desfez do material pedófilo que tinha, apenas o mudou de lugar para escapar à Polícia), rodeando-se de todos os cuidados;
31 - A compulsividade do seu comportamento pedófilo é de tal forma patente, que é grande o perigo de continuação da actividade criminosa, pois mesmo que o arguido - tal como até aqui - mantenha os menores identificados nos autos longe de si, sempre procurará outros - ... - para deles abusar sexualmente, no desconhecimento das autoridades e no meio das maiores "juras de fidelidade";
32 - Perante os restantes perigos que se mostram indiciados e os crimes imputados ao arguido, justifica-se e impõe-se a sujeição do arguido à medida de prisão preventiva, uma vez que qualquer das outras medidas de coacção previstas no CPP, isolada ou cumulativamente aplicadas, nos casos em que tal é legalmente admissível, não seria adequada ao afastamento dos perigos referidos;
33 - Desde logo, as medidas de coacção previstas no art°s. 196, 197, 198 e 200 do CPP, ou mesmo a prevista no art° 201 daquele diploma legal - obrigação de permanência na habitação, mesmo que acompanhada de vigilância electrónica -, não acautelariam nem o perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, nem o perigo de continuação da actividade criminosa;
34 - Se o arguido não puder sair de casa sempre poderá pedir àqueles que conhece - e que são muitos a avaliar pelos contactos exarados na sua agenda - que a casa lhe levem as crianças para satisfação das suas necessidades sexuais ou através do telefone "contratar" os seus serviços, tanto mais que vive sozinho sem qualquer forma de vigilância familiar;
35 - Seria incompreensível para a sociedade que perante a indiciação do arguido como autor de quarenta e cinco crimes de abuso sexual de crianças e seis de actos homossexuais com adolescentes, ao mesmo não fosse aplicada a medida mais gravosa do nosso ordenamento, conforme, aliás, tem sido prática na generalidade dos nossos tribunais que, ao reconhecerem a extrema repulsa que este tipo de condutas geram na comunidade, e o alarme social que lhes está inerente, têm concluído pela necessidade de aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, como forma de ficar acautelado o perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas;
36 - Perante os perigos de perturbação de continuação da actividade criminosa, de perturbação da ordem e tranquilidade públicas e de perturbação do processo na vertente de conservação da veracidade da prova, a única medida de coacção que se mostra adequada a evitálos é a prisão preventiva;
37 - O despacho recorrido não violou qualquer norma legal.”
Termina pela manutenção do decidido.

O Mmo Juiz titular dos autos manteve o seu despacho.
Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento, acrescentando:
“ a)- quanto à questão prévia
- a razão de ser da especialidade do art° 178°, n. 4 do CP (na redacção introduzida pela Lei n° 99/2001, de 25 de Agosto), reside na necessidade de evitar a desprotecção do menor de 16 anos, incapaz de exercer o direito de queixa, e face à evidência imperiosa de acautelar o interesse da vítima;
- a ratio legislativa do preceito pretende combater a impunidade (neste sentido Maria João Antunes, in "Revista de Ciência Criminal", ano 9°, fascículo 2°, página 328);
- em concreto, ainda que se aceite a legitimidade subsidiária do M.Público para iniciar o processo e investigar, ela não inculca alteração da natureza do crime (que se mantem semi-público), ela cessa com a vontade livre do menor que complete os 16 anos;
- por outro lado, ao contrário do que defende o recorrente, para que se faça uso da faculdade ínsita no citado n. 2 do art° 178° CP, a lei não exige que o MP° consigne nos autos, por despacho ou outra declaração de intenções, que actua no interesse da vítima, impulsionando o processo sem que tenha havido prévia queixa; 2
b)- quanto à prisão preventiva
- investigam-se crimes de abuso sexual cometidos sobre menores;
- existe manifesto e evidente «risco de continuação da actividade criminosa», tanto mais que o arguido admite distúrbio de índole neurológica/psiquiátrica na propensão para os crimes em questão, sendo por tal reconhecimento que prossegue tratamento clínico;
- os crimes em investigação e já fortemente indiciados são de grande gravidade, sendo que a sociedade interioriza com repugnância a sua verificação, reclamando firmeza e severidade da justiça na sua prevenção, combate e punição dos agentes que tão grande alarme causam nas famílias;
- em concreto, sendo legal e admissível, a única medida de coacção adequada, justa e suficiente para prevenir e prosseguir os fins em vista, é a de prisão preventiva;
- " Deve manter-se em prisão preventiva o arguido suspeito de abuso sexual continuado de crianças, atento o perigo de repetição da prática de novos crimes, inerentes à personalidade do agente revelada à luz das regras da experiência, e a forte repulsa social e intenso sentimento de insegurança, ao menos na vizinhança. - in Ac. Rel. Lx. de 2002-06-25 (Rec. n° 4859/02 – 5ª secção, Rel:- Vasques Dinis, in www.dgsi.pt).
- e não há razões, por ora, para "suspender" a execução da medida ao abrigo do art° 211° CPP, porquanto o arguido pode prosseguir a terapia em curso e ser acompanhado por especialistas, ainda que na cadeia.”
Termina pela concordância com a decisão impugnada e pelo não provimento do recurso.

Foi dado cumprimento ao art. 417.º, n.º 2 do C.P.Penal, tendo havido resposta por parte do recorrente na qual reitera toda a matéria e argumentação expostas na motivação

II.
Colhidos os vistos legais, e consultado o processo, cumpre apreciar e decidir.
***
Resulta das peças que instruem o presente recurso que ao recorrente (P) foi aplicada a medida de coacção de prisão preventiva pela M.ma Juiz de Instrução na sequência de interrogatório judicial que teve lugar a 24/04/2004.
Tal despacho tem o seguinte teor (transcrição):
(...)

***
É pacífica a jurisprudência do S.T.J. no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso.
São as seguintes as questões levantadas no recurso dos autos:
A – da legitimidade do Ministério Público para presente acção penal;
B – Adequação e proporcionalidade da medida de coacção;

Entrando no objecto do recurso tal como vem apresentado:

A – da legitimidade do Ministério Público para presente acção penal

A iniciativa processual do MºPº assenta no normativo legal expresso pelos art.ºs 178º, n.º4 e 113º, n.º6 ambos do CPP .
No que ao caso interessa, trata-se de factualidade susceptível de integrar crimes de abuso sexual de criança, de actos homossexuais com adolescente e de actos sexuais com adolescente, crimes sexuais que envolviam ofendidos então com idades inferiores a 16 anos, relativamente aos quais se entendeu estar em causa o interesse das vítimas, susceptível de legitimar a intervenção do MºPº, com vista à investigação das situações de pedofilia, dada a gravidade dos crimes e o eventual desconhecimento dos representantes legais das vítimas.
A matéria em referência, foi já decidida, neste Tribunal, nomeadamente no recurso n.º 4021/04 da 5.ª secção em que foi relatora a Veneranda Desembargadora Dra. Filomena Lima, em acórdão que subscrevemos no qual se suscitou e dirimiu esta questão.
Assim, e transcrevendo, ...
- “ ...
Na versão original do CP 1982, os crimes sexuais que tivessem por vítima menor de 12 anos possuíam natureza pública (art.º 211º, n.º2 CP) podendo o MºPº desencadear oficiosamente o procedimento criminal e exercer com total autonomia a acção penal.
Tal como refere o MºPº, na actual legislação penal, os crimes sexuais têm em regra natureza semi pública, dependendo o procedimento criminal da queixa do ofendido ou de outras pessoas definidas por lei.
Essa natureza foi reforçada pela reforma do CP de 1995 (DL 48/95) que permitiu (art.º 178ºCP) que o MºPº desse início ao processo “se especiais razões de interesse público o impuserem”, no tocante a crimes previstos no seu n.º 1 e se a vítima fosse menor de 12 anos. E o art.º 113º, n.º5 CP dispunha igualmente que o MºPº poderia dar início ao processo se especiais razões de interesse público o impusessem sempre que o direito de queixa não pudesse ser exercido por a sua titularidade caber ao agente do crime.
Resultava do preâmbulo do DL 48/95 de 15.3 :
“Os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual foram objecto de particular atenção, especialmente quando praticados contra menor.
Nessa conformidade, o crime sexual praticado contra menor é objecto de uma dupla agravação: por um lado a que resulta de elevação geral das molduras penais dos crimes de violação e coacção sexual, quer no limite mínimo, quer no máximo; e, por outro, a agravação estabelecida para os casos em que tais crimes sejam praticados contra menor de 14 anos. Donde resulta que o crime praticado contra menor de 14 anos é sempre punido mais severamente que o crime praticado contra um adulto, atenta a especial vulnerabilidade da vítima.
Uma outra nota que acentua a protecção do menor é a possibilidade de o Ministério Público, sempre que especiais razões de interesse público o justifiquem, poder desencadear a acção penal quando a vítima for menor de 12 anos”.
Esta fórmula foi substituída, com as alterações operadas pelo DL 65/98 de 2.9., passando a referir-se a razões relacionadas com o interesse do menor - “se o interesse do menor o impuser”- e elevaram a idade das vítimas dos crimes em causa em que tal definição era possível de 12 para 16 anos.
Os crimes semi-públicos, natureza que lhes é conferida em função da natureza dos interesses que tutelam traduzem-se, no essencial, numa redução do princípio da oficialidade ou oficiosidade, podendo o MºP impulsionar o procedimento criminal apenas se o ofendido ou outras as pessoas com legitimidade para tal lhe darem conhecimento do facto ou depois de o terem feito perante qualquer outra entidade com obrigação legal de transmitir a queixa ao MºPº (art.ºs 48º, 49º, 242º e 248 CPP) e permitem que, perante a desistência de queixa dos respectivos titulares até à publicação da sentença em 1ª instância, se possa pôr termo a um processo criminal (art.º 116º CP e 51º CPP).
Conforme resulta do art.º 178º, n.º4CP, na redacção dada pela Lei 99/2001 de 25.8, quando os crimes previstos nos art.ºs 163º a 165º , 167º, 168º e 171º 1 175º CP forem praticados contra menor de 16 anos pode o MºPº dar início ao procedimento se o interesse da vítima o impuser.
Quer a presente redacção quer a que resultava da redacção do DL 65/98 representam uma restrição dos casos em que é permitida a promoção pública do processo penal. A anterior expressão que assentava na ponderação das razões de especiais interesse público permitia o entendimento de que seria este o prevalecente na ponderação da iniciativa processual independentemente das razões relacionadas com o interesse da vítima.
Actualmente acentua-se o interesse da vítima, vulnerável por natureza e possivelmente carecida de protecção familiar, em detrimento de motivos de interesse público, ligados a razões de política criminal, como os de prevenção de crimes ou de repressão da criminalidade.
Sempre se poderá entender, porém, que a interpretação do conceito de interesse público, poderia ser definido, perante a averiguação e ponderação dos interesses tutelados pela comunidade, em sintonia com os interesses das vítimas, menores de 16 anos, que competia à sociedade salvaguardar sob pena de se colocarem em crise os próprios interesses públicos. Nesta perspectiva seria desejável que tais interesses se entendessem e avaliassem como coincidentes.
De todo o modo, para que não pudesse ser dada prevalência a um “interesse público”, entendido de forma a não atender satisfatoriamente ao interesse do menor, o legislador veio a acolher a fórmula que preferiu a referência clara ao interesse deste.
A razão de ser da natureza semi-pública nestes casos, visa essencialmente a protecção dos interesses da vítima do crime.
A questão que fundamentalmente se coloca neste recurso é a de definir a natureza dos citados crimes sexuais cometidos contra menores de 16 anos e em que o interesse do menor impõe a intervenção e iniciativa do MºPº, no sentido da sua investigação com vista à eventual aplicação futura de uma reacção penal, na perspectiva de realizar os fins de tutela dos valores fundamentais que o direito penal visa assegurar.
À semelhança do pensamento da Prof. Maria João Antunes, expresso na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 9, 2º, 327, em comentário ao ARP de 10.2.99, relatado pelo Desembargador Marques Salgueiro – que decidiu no sentido da possibilidade de o ofendido vir desistir de queixa mesmo quando foi o MºPº a dar início ao procedimento – são vários os argumentos para esta interpretação sendo um deles o de que “os crimes previstos no art.º 178º, n.º1 CP não têm natureza pública quando sendo a vítima menor de 16 anos o interesse desta impuser o início do procedimento criminal ou a continuação deste. Mas os crimes previstos no art.º 178º, n.º1 também não mantêm natureza semi-pública quando, sendo a vítima menor de 16 anos, o interesse desta impuser o início do procedimento criminal”.
Com efeito, o procedimento criminal pode decorrer à revelia de qualquer queixa, o que o afasta dos crimes semi-públicos; mas não basta a notícia do crime para que ele se inicie e prossiga mesmo contra a vontade do seu titular, o que lhe confere uma natureza atípica.
Também segundo a mesma autora, a promoção processual pelo MºPº é subsidiária pois é duplamente condicionada : ao facto de o titular do direito de queixa o não exercer e de tal não exercício se dever a razões alheias - ou mesmo, diremos nós, contrárias - ao interesse da vítima. Não se trata de mera intervenção, se e enquanto o titular do direito não agir. É uma intervenção que se justifica mesmo contra a vontade desse titular, se o interesse da vítima o exigir. Assim sendo, pergunta-se: como pode coexistir a legitimidade da iniciativa do MºPº com a possibilidade de o titular do direito dele continuar a dispor, se a abstenção do titular é que justifica equacionar tal iniciativa, por razões de tutela do interesse da vítima, menor de 16 anos.
E a possibilidade de o MºPº iniciar e continuar o procedimento criminal precisamente nos casos em que “as razões justificativas da natureza semi-pública dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual não presidem à não apresentação ou à desistência da queixa” ( obra citada, fls. 328).
Também se entende que o art.º 178º, n.4 CP é um dos casos previstos na lei em que o MºPº pode dar início ao procedimento em nome do interesse da vítima, não obstante o procedimento criminal depender de queixa.
Foi clara a intenção do legislador de conceder ao MºPº a prevalência na apreciação do interesse da vítima sobre a capacidade geralmente conferida, a esse propósito, aos seus representantes legais porque não confiou que estes pudessem sempre fazê-lo com isenção e de forma a acautelar os superiores interesses do menor, por razões relacionadas com a natureza destes crimes e com as circunstâncias que as mais das vezes os rodeiam e que poderiam determinar a não apresentação de queixa, paralisando assim o desencadeamento do procedimento criminal. Por outro lado, entregou ao MºPº a função de realizar o interesse do menor, conferindo-lhe uma natureza não compatível com a sua mera gestão particular. Neste capítulo e com tal finalidade, verificadas que sejam as condicionantes de actuação que consagrou no art. 178º,n.º4 CP, passou a ter por público o interesse do menor, o que não surpreende se reputarmos este como um dos valores que a Lei Fundamental quis proteger. ...”
Acresce que não resulta do citado n.º 2 do atigo 178.º do CP a exigência que o MºPº consigne, por despacho ou qualquer outro modo, que pretende actuar ou actue no interesse da vítima de molde a promover o impulso processual sem prévia queixa – neste sentido cfr. Ac. STJ de 31.05.2000 e de 03.04.2002 (proc. N.º 272/00 e 4628/02 respectivamente).
Face ao exposto, o Ministério Público tem legitimidade e interesse em agir pelo que improcede nesta parte o recurso.

B – Adequação e proporcionalidade da medida de coacção

O primeiro interrogatório judicial de Arguido detido (artigo 141.º do Código de Processo Penal) destina-se, fundamentalmente, a verificar se existem os requisitos legais justificativos da detenção, da prisão preventiva ou da substituição desta por outra medida; e ainda a informar o Arguido dos direitos que lhe assistem e dos factos imputados.
A Mma. Juiz a quo, no despacho recorrido:
a) validou, por a ter apreciado, a detenção;
b) aplicou aos factos que fundamentadamente entendeu indiciados o direito, assim os integrando na previsão do artigo 172° n.°s 1 e 2, 3 alinea a) e b) , 175.º, 275.º n.º 1 e 3 e 376.º n.º 1 todos do C.Penal;
c) determinou a medida de coacção a aplicar fundamentando-a na própria natureza dos mesmos factos e na existência de perigo de continuação da actividade criminosa, conservação e aquisição e veracidade da prova e perturbação de ordem e tranquilidades públicas.
Em todas indicou os preceitos legais em que se fundou.
Verifica-se, em consequência, que, na forma, o despacho recorrido não contém qualquer irregularidade – encontra-se claro e conciso, fundamentado, remetendo para a promoção do Ministério Público, aplicando correctamente o facto à lei, não merecendo qualquer dúvida de interpretação, não sendo, em consequência, merecedor, nesta parte, de crítica.
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Quanto à substância do despacho, no caso concreto, e no que se refere aos crimes imputados ao Arguido recorrente, não se suscitam quaisquer dúvidas, em termos indiciários da sua existência – do quando, como e onde.
O julgador não tem, geralmente, acesso imediato aos factos directamente relevantes para efeitos da lei criminal, defrontando-se com as versões conflituantes da acusação e da defesa.
Como a maioria das acções puníveis, no momento do processo, apenas são apreensíveis pelo tribunal através de diferentes manifestações (ou efeitos) posteriores, são principalmente as regras de experiência e conclusões logicamente muito complexas que tornam possível a verificação dos factos. A prova judicial é, na maioria dos casos, aquilo a que chamamos uma prova por indícios, quer dizer, uma prova feita através de conclusões dos indícios para os factos directamente relevantes cuja verificação está em causa. Chamamos indícios àqueles factos que têm, na verdade, a vantagem de serem acessíveis a uma percepção e apreensão actuais, mas que em si mesmos seriam juridicamente insignificantes se nos não permitissem uma conclusão para aqueles factos de cuja subsunção às hipóteses legais se trata e a que nós chamamos factos directamente relevantes.” – “Introdução ao pensamento jurídico”, K. ENGISCH, pág. 72.
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A gravidade dos factos indiciados interessa, não só no âmbito da aplicação das medidas de coacção em geral – que terão necessariamente que obedecer ao principio constitucional da adequação e proporcionalidade – mas em particular à medida de prisão preventiva, indicada por lei como de carácter excepcional ou subsidiário ( vd. art.º 18.° e 28.° n.° 2 , da C.R.Portuguesa e 193.° n.° 2 e 196.° e segs. do C.P.Penal, bem como “As medidas de Coacção e de Garantia Patrimonial no Novo Código de Processo Penal”, José António Barreiros. ).
Importa, pois, ter presente e nunca perder de norte que as medidas de coacção são meios processuais de limitação da liberdade pessoal dos Arguidos, tendo por objectivo acautelar a eficácia do procedimento, quer quanto ao seu desenvolvimento, quer quanto á execução das decisões condenatórias – cfr. a propósito “Curso de Processo Penal”, vol. II , Professor Germano Marques da Silva , página 201, Verbo, 1993.
Assim, nenhuma medida de coacção à excepção do termo de identidade e residência pode ser aplicada se em concreto não se verificar:
a) fuga ou perigo de fuga;
b) perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova;
c) perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do Arguido, de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas ou de continuação da actividade criminosa.
Como assim, atentos os princípios constitucionais – mormente art. 27.° n.° 3 , 28.° e 32.° n.° 2 – a lei admite a aplicação ao Arguido de certas medidas restritivas dos seus direitos fundamentais, medidas que formula em abstracto, ponderando também em abstracto da sua adequação, necessidade e proporcionalidade, mas prescreve também, que nenhuma dessas medidas, com excepção do termo de identidade, pode ser aplicada se em concreto não se verificar a sua necessidade para acautelar os fins que importa prosseguir.
Acresce que haverá, ainda, que verificar se, no caso concreto, essa medida se mostra, objectiva e subjectivamente adequada e proporcional ( vd. art. 193.° n° 1 e 2 do CPP) à finalidade para que a lei a permite .
Assim, a regra é a da liberdade, surgindo a prisão preventiva como uma medida coactiva excepcional, a verificar casuisticamente da sua necessidade, adequação e proporção.
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Os ofendidos eram menores oriundos de estratos sociais deficitários, caracterizando-se a sua situação pessoal e familiar pela ausência de referências afectivas sólidas e de apoios, o que os tornava especialmente vulneráveis, tanto mais que os organismos públicos a que alguns deles se encontravam confiados não conseguiram protegê-los eficazmente.
Esta circunstância era do pleno conhecimento do Arguido, o que agrava a censurabilidade da sua conduta.

“… Pedofilia - Anomalia sexual, na qual o objecto preferido é uma criança. Esta Perversão baseia-se, na maioria das vezes, em sentimentos de inadequação sexual, desejos incestuosos transferidos ou em fixações numa experiência sexual dos primeiros anos de vida (sublinhado nosso). Além disso, essas experiências são susceptíveis de criar graves sentimentos de Culpa, ansiedade e repulsa nas crianças, e, por vezes, têm influência desfavorável nas suas atitudes sexuais. A sedução de rapazes por homens desperta ocasionalmente uma tendência latente para a Homossexualidade; o suborno, frequentemente utilizado para levar a criança a aceder a essas solicitações, pode ser desmoralizador para rapazes e raparigas. A sedução sofrida numa idade muito jovem suscita frequentemente o desejo de repetição da experiência (sublinhado nosso). Os pederastas são, muitas vezes, homens impotentes ou idosos, que não têm acesso a uma companhia adequada…” – “Dicionário de Sexologia”, Hugo G.Beigel, Publicações D.Quixote.
Há pedófilos de todas as condições sociais. Os mais perigosos são, certamente, aqueles em quem a criança/jovem confia por natureza ou admira – um professor, um médico, um artista conhecido (…) .
Por outro lado, e do ponto de vista moral o pedófilo não é um doente mental isento de responsabilidades, nem um delinquente à margem das leis da vida social e familiar (podendo até ser um bom profissional e um bom pai de família), mas um homem ou uma mulher, diferentes na maneira de viverem a sexualidade, condicionados na liberdade pela estrutura da sua personalidade, ainda que responsáveis pelo mal que introduzem no mundo, quando atuam pedofilicamente. A luta contra a violência sexual com crianças passa necessariamente, por dois aspectos: o lugar da criança na sociedade e a atitude dos adultos em relação às crianças, mas que convergem para o mesmo foco, qual seja, o direito da criança e sua violação – “A Pedofilia” - Gelson Francisco Alves da Costa, Cadernos jurídicos.
“... Apresenta um grau de ansiedade elevado, que deve ser atribuído ao receio de poder vir a ser preso. Não se encontram sinais de psicopatologia para além do comportamento parafilico. Este é melhor descrito como de carácter impulsivo e obsessivo, o que está de acordo com outros traços obsessivos da sua personalidade(sublinhado nosso). Tem clara consciência dos seus actos e das suas consequências, pelo menos nos últimos anos. A motivação para o seu pedido de ajuda tem assim a ver com esta maior consciência das possíveis consequências traumáticas do seu envolvimento sexual com as crianças/adolescentes e com o receio de ser preso.” – Relatório médico apresentado pelo arguido e constante de fls. 110 e seguintes .
A luta contra a violência sexual com crianças passa necessariamente, por dois aspectos: o lugar da criança na sociedade e a atitude dos adultos em relação às crianças, mas que convergem para o mesmo foco, qual seja, o direito da criança e sua violação. Está hoje comprovado que a pedofilia é um comportamento compulsivo, determinando esta circunstância a existência de um perigo concreto de continuação da actividade criminosa.
Nem mesmo, como propugna o recorrente, a adesão por parte do arguido a um tratamento que vem desenvolvendo tal como consta do relatório médico-legal de fls. 110 e seguintes dos autos permite afastar aquele perigo concreto. É que, a facilidade que o recorrente invoca na adesão ao tratamento funciona também para um eventual abandono desse mesmo tratamento, o que de resto resulta da conclusão 3.ª desse relatório.
Está, em consequência, correcta a conclusão extraída pela Mma. J.I.C. constante do despacho recorrido de que se verifica, em concreto perigo de continuação da actividade criminosa por parte do Arguido .

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Mas também dos autos resultam seriamente fundados os perigos de perturbação do decurso do processo, nomeadamente para a aquisição, conservação e veracidade da prova – artigo 204.º alínea b) do C.P.Penal.
Efectivamente constam dos autos com relevância extrema elementos que o traduzem.
O arguido conhece e tem os contactos dos menores de quem abusou sexualmente - tal como resulta de fls. 121 e seguintes da certidão apensa - sobre eles tem evidentemente ascendência psicológica sendo por isso de recear que o mesmo possa perturbar o decurso do inquérito impedindo a produção de prova suplementar e a conservação da já produzida. Sintomáticas as referências feitas, no diário da autoria do arguido e cuja cópia consta na certidão apensa, a “juramentos de fidelidade”.
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Não pode este Tribunal ad quem como o não pode o Tribunal a quo olvidar as consequências extremas que actos de pedofilia têm e a forma negativa como os mesmo são vistos, pelo que existe quanto a este Arguido o perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, tudo em razão da natureza e circunstâncias do crime, bem como da personalidade do arguido – tenha-se em atenção que o mesmo aceitou integrar Comissão de Protecção de Menores bem como desempenhava funções na Câmara Municipal de ... como assessor de vereador e ainda era coordenador técnico de equipa de futebol infantil e juvenil funções estas que lhe permitiam estabelecer mais facilmente contactos estreitos com os menores, potenciais vítimas, o que dificilmente seria compreensível e aceitável pelo público em geral.

III.
Face do exposto decide-se negar provimento ao recurso confirmando a decisão recorrida.
Pagará o recorrente 10 UC’s de taxa de justiça.

Elaborado e revisto pelo 1º signatário

Lisboa, 8 de Julho 2004

João Carrola
Carlos Benido
Almeida Semedo