Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
975/12.7TDLSB.L1-9
Relator: SIMONE ABRANTES DE ALMEIDA PEREIRA
Descritores: TRÂNSITO EM JULGADO
REFORMA DA SENTENÇA
NULIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/23/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Pedido de correcção/reforma de sentença transitada em julgado:
I. O instituto jurídico da correcção/reforma da sentença não é o meio processual próprio para arguir a nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, que integra a nulidade típica prevista na alínea c) do nº 1, do artigo 379º do Código de Processo Penal, cuja cognoscibilidade, por via da rectificação ou reforma, está expressamente afastada pelo artigo 380º, nº 1, al. a) [que prevê a possibilidade de correcção da sentença, quando não tiver sido observado o disposto no artigo 374º, apenas quando não estiverem em causa as nulidades previstas no artigo 379º].
II. O sentido normativo de tal proibição – a de conhecer das nulidades previstas no artigo 379º - reside precisamente na impossibilidade de fazer operar modificações essenciais, ofensivas do caso julgado. 
III. Estando em causa uma sentença recorrível, relativamente à qual o recorrente entende verificar-se o vício da nulidade, impunha-se-lhe o ónus de impugnar a mesma por via de recurso, invocando a respectiva nulidade [artigos 379º, nº 2 e 414º, nº 4 do CPP].
IV. Esgotado o prazo legal da sua impugnação [o prazo de recurso ou de arguição de nulidade, quanto às decisões irrecorríveis], a decisão transita em julgado, precludindo, por via deste, o direito de os sujeitos processuais colocarem em causa a validade do processado conducente à prolação da decisão ou da própria decisão [independentemente de a questão ter sido ou não concretamente conhecida, quer no próprio despacho ou decisão, quer nos eventuais acórdãos proferidos no âmbito de recursos que tenham sido interpostos].
(da inteira responsabilidade da relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO
No Juízo Local Criminal de Lisboa (Juiz 13), do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, no âmbito do processo comum, com intervenção do Tribunal Singular nº 975/12.7TBLSB, o arguido A[e outro], devidamente identificado nos autos, foi julgado e condenado, por decisão de 30.03.2022, transitada em julgado em 09-05-2022, pela prática de dois crimes de abuso de confiança em relação à Segurança Social (referentes ao período de julho de 2008 e de setembro de 2008 a janeiro de 2009), p. e p. pelos artigos 3.º, alínea a), 6.º, n.º 1, 7.º, n.º 1, 107.º, n.ºs 1 e 2, em conjugação com o artigo 105.º, n.ºs 1, 2 e 4, todos do RGIT, na pena única de 300 (trezentos) dias de multa, à taxa diária de €15,00 (quinze euros), num total de €4.500,00 (quatro mil e quinhentos euros), e a pagar à Demandante Instituto da Segurança Social, I.P., a quantia de €9.912.01 (nove mil, novecentos e doze euros e um cêntimo), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, calculados às taxas legais sucessivamente em vigor, desde 16.06.2013 e até efetivo e integral pagamento.
Por requerimento de 06.06.2022 [com referência citius 32793701], o arguido/condenado veio requerer a reforma da sentença, com fundamento em omissão de pronúncia relativamente à prescrição do procedimento criminal, solicitando pronúncia sobre a mesma.
Por despacho judicial de 29.06.2022 foi indeferido o requerido, com fundamento na inadequação do meio processual utilizado para a arguição da nulidade por omissão de pronúncia, no trânsito em julgado da sentença e consequente esgotamento do poder jurisdicional do Tribunal.
Inconformado com o despacho de indeferimento, vem o arguido/condenado Ainterpor recurso, terminando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
i. Veio o douto Tribunal “a quo” indeferir o requerimento apresentado pelo ora recorrente no que concerne à arguição da nulidade da sentença proferia em 30.03.2022 por omissão de pronuncia.
ii. Salvo o devido respeito, que aliás é muito, não pode o ora recorrente concordar com o douto despacho proferido pelo douto Tribunal “a quo”.
iii. Com efeito, através de sentença proferia em 30.03.2022, veio o douto tribunal “a quo” condenar o ora recorrente, pela prática, como autor material, de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social e de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social na forma continuada, na pena única de 300 (trezentos) dias de multa, à taxa diária de €15,00 (quinze euros), num total de €4.500,00 (quatro mil e quinhentos euros).
iv. Em 06.06.2022 veio o ora recorrente apresentar requerimento a invocar a nulidade da sentença por omissão de pronuncia quanto à questão da prescrição do procedimento criminal.
v. Estamos perante uma nulidade absoluta e, em consequência, de conhecimento oficioso e, por isso, invocável a todo o tempo (Ac. STJ, Proc. 02S1599).
vi. Isto porque, caso o douto Tribunal se tivesse pronunciado, como deveria ter feito, sobre a prescrição do procedimento criminal, não teria existido uma condenação nos presentes autos.
vii. Estamos perante uma nulidade que é do conhecimento oficioso e, por isso pode ser invocada a todo o tempo.
viii. O douto Tribunal não fez uma interpretação correcta do referido artigo (artigo 379.º do CPP) que tem clara aplicação aos presentes autos.
ix. Desta forma, foi violado, por manifesto erro de interpretação, os artigos 379.º do CPP, pelo que deve ser revogado o douto despacho e substituído por outro que julgue procedente o requerimento apresentado a arguir a nulidade da sentença por omissão.
Termos em que, e nos melhores de Direito, sempre com o douto suprimento de V. Exa., deve o presente Recurso ser julgado procedente por provado e, em consequência, revogar- se a decisão recorrida, no estrito cumprimento de tão douta e costumada JUSTIÇA!
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O recurso foi admitido por despacho proferido a 29.09.2022, a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito devolutivo [após correcção do despacho de admissão, em 28.10.2022; referências citius 418682993 e 420117483].
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Pelo Ministério Público foi apresentada resposta, pronunciando-se pela improcedência do recurso, com fundamento no facto de o pedido de reforma não ser o meio processualmente adequado para arguir a nulidade da sentença por omissão de pronúncia e a decisão já ter transitado em julgado, não sendo, por isso, modificável.
 
Remetidos os autos a este Tribunal da Relação de Lisboa, pelo Ex.º. Procurador-Geral Adjunto foi lavrado parecer, no qual declara aderir à argumentação expendida pelo Ministério Público em 1ª instância, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

Cumprido o preceituado no nº 2 do artigo 417º do Código de Processo Penal, foi apresentada resposta, no âmbito da qual foi reiterada a posição expressa no recurso.

Colhidos os vistos legais e realizada a conferência a que alude o artigo 419º do Código de Processo Penal, cumpre decidir.
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II – FUNDAMENTAÇÃO

É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso (cf. art.º 412.º e 417.º do Cód. Proc. Penal e, entre outros, Acórdão do STJ de 29.01.2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1, 5ª Secção).
Assim, atentas as conclusões do recorrente, cumpre apreciar se tendo a sentença proferida transitado em julgado, está este em tempo de arguir a nulidade da mesma, por omissão de pronúncia, e o Tribunal a pode reformar.
Delimitado o objecto do recurso, importa conhecer a factualidade que releva para a decisão impugnada.
A) Factos com relevância para a decisão:
Dos elementos constantes do processo, e com relevância para a apreciação da decisão recorrida, mostra-se assente, a seguinte factualidade:

1. A sentença, proferida nos autos em 30.03.2022, transitou em julgado em 09.05.2022.
2. Por requerimento de 06.06.2022 [com referência citius 32793701], cujo teor se dá por reproduzido, o arguido/condenado veio requerer a reforma da sentença, com fundamento em omissão de pronúncia relativamente à prescrição do procedimento criminal.
3. Em 29.06.2022, o Tribunal a quo proferiu o despacho recorrido, com o seguinte teor (transcrição):
«Por sentença transitada em julgado em 09.05.2022, o arguido A, foi condenado, pela prática, como autor material, de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social (referente ao período de julho de 2008), p. e p. pelos artigos 3.º, alínea a), 6.º, n.º 1, 7.º, n.º 1, 107.º, n.ºs 1 e 2, em conjugação com o artigo 105.º, n.ºs 1, 2 e 4, todos do RGIT e de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social na forma continuada (referente ao período de setembro de 2008 a janeiro de 2009), p. e p. pelos artigos 3.º, alínea a), 6.º, n.º 1, 7.º, n.º 1, 107.º, n.ºs 1 e 2, em conjugação com o artigo 105.º, n.ºs 1, 2 e 4, todos do RGIT e em conjugação com o disposto no artigo 30.º, n.ºs 1 e 2, e 79.º do Código Penal, na pena única de 300 (trezentos) dias de multa, à taxa diária de €15,00 (quinze euros), num total de €4.500,00 (quatro mil e quinhentos euros). Mais foi condenado, relativamente ao pedido de indemnização civil, a pagar à Demandante Instituto da Segurança Social, I.P., a quantia de € 9.912.01 (nove mil, novecentos e doze euros e um cêntimo), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, calculados às taxas legais sucessivamente em vigor, desde 16.06.2013 e até efetivo e integral pagamento.
Vem agora o arguido, através de requerimento de 06.06.2022, invocar a nulidade da sentença por omissão de pronúncia quanto à questão da prescrição do procedimento criminal, requerendo a Reforma da Sentença proferida nos presentes autos, de forma a que a mesma se pronuncie de mérito sobre a questão da prescrição.
Cumpre decidir.
O art.º 379º do Código de Processo Penal, prevê os casos de nulidade da sentença, nomeadamente a al. c) do nº1 do referido artigo, diz-nos que é nula a sentença “Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.”
Quanto ao momento e sede para se arguir tal nulidade, prevê o nº 2 do mesmo artigo que “As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no nº4 do art. 414º.”
Pelo que, facilmente se constata que o requerimento apresentado pelo arguido, em 06.06.2022, para reforma de Sentença por nulidade quanto a omissão de pronúncia, não é o meio processual próprio para arguir da nulidade supramencionada. Tal nulidade deveria ter sido arguida mediante interposição de recurso da sentença proferida, que, entretanto, já transitou em julgado no passado mês de Maio.
Ora com o referido trânsito em julgado da sentença, a mesma está consolidada no ordenamento jurídico e assim encontra-se esgotado o poder jurisdicional deste Tribunal quanto a tal questão, pelo que se indefere o requerido pelo arguido.
Notifique.».

B) Apreciação dos fundamentos de recurso:
Sem colocar em causa que a sentença relativamente à qual argui a nulidade, por omissão de pronúncia, transitou em julgado, sustenta o recorrente que tal nulidade é invocável a todo o tempo, pelo que deve a decisão ser reformada.
Adianta-se, sem dificuldade, ser a pretensão recursória manifestamente improcedente, quer por inaptidão do meio processual do qual lançou mão para suscitar a nulidade [correcção da sentença/ reforma], quer pela imodificabilidade da sentença, por força do caso julgado.
Começando pela inaptidão do meio processual utilizado – o instituto jurídico da correcção/reforma da sentença –, como correctamente se afirmou no despacho recorrido e resulta da lei, o mesmo não é o meio processual próprio para arguir a nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, que integra a nulidade típica prevista na alínea c) do nº 1, do artigo 379º do Código de Processo Penal, cuja cognoscibilidade, por via da rectificação ou reforma, está expressamente afastada pelo artigo 380º, nº 1, al. a) [que prevê a possibilidade de correcção da sentença, quando não tiver sido observado o disposto no artigo 374º, apenas quando não estiverem em causa as nulidades previstas no artigo 379º]. O sentido normativo de tal proibição – a de conhecer das nulidades previstas no artigo 379º - reside precisamente na impossibilidade de fazer operar modificações essenciais, ofensivas do caso julgado. 
O regime das nulidades processuais tem que ser aplicado e interpretado de forma a não colidir com outros princípios da lei de processo, como o trânsito em julgado das decisões judiciais ou o esgotamento do poder jurisdicional do Juiz, regulados nos artigos 619º e 613º do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi do artigo 4º do Código de Processo Penal.
O trânsito em julgado de uma decisão judicial tem por efeito estabilizar não apenas a situação jurídica material sobre a qual dispôs, mas também o processado que a antecedeu e do qual depende. Por conseguinte, independentemente do enquadramento jurídico processual que se atribua ao vício invocado [nulidade insanável, nulidade sanável ou irregularidade], esgotado o prazo legal da sua impugnação [o prazo de recurso ou de arguição de nulidade, quanto às decisões irrecorríveis], a decisão transita em julgado, precludindo, por via deste, o direito de os sujeitos processuais colocarem em causa a validade do processado conducente à prolação da decisão ou da própria decisão [independentemente de a questão ter sido ou não concretamente conhecida, quer no próprio despacho ou decisão, quer nos eventuais acórdãos proferidos no âmbito de recursos que tenham sido interpostos].
No caso dos autos, estando em causa uma sentença recorrível, relativamente à qual entende o recorrente verificar-se o vício da nulidade, impunha-se-lhe o ónus de impugnar a mesma por via de recurso, invocando a respectiva nulidade [artigos 379º, nº 2 e 414º, nº 4 do CPP].
Não o tendo feito, precludiu o direito de invocar o vício.
Consequentemente, teremos de concluir que a pretensão recursiva não pode proceder, ainda que o acto processual questionado – sentença – pudesse, face da lei de processo, padecer de vício gerador de nulidade insanável.
Improcede, pois, o recurso.

III- DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os Juízes que integram a 9ª secção deste Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso, confirmando o despacho recorrido.
Condena-se o recorrente nas custas do recurso, fixando-se em 3 Ucs a taxa de justiça devida – artigos 513º e 514º, ambos do Código de Processo Penal, e tabela III do Regulamento das Custas Processuais aprovado pelo Decreto-Lei nº 34/2008, de 26 de Fevereiro.
Notifique.

Lisboa, 23 de Fevereiro de 2023
(Texto elaborado pela relatora e revisto, integralmente, pelas signatárias)
Simone Abrantes de Almeida Pereira
Lídia Renata Goulart Whytton da Terra
Maria José Cortes