Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2025/2008-2
Relator: NELSON BORGES CARNEIRO
Descritores: PETIÇÃO DEFICIENTE
DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/24/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Sumário: Fora dos casos de ineptidão, a existência de imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada na petição impõe ao juiz o dever de convidar a parte a suprir tais deficiências aditando factos omitidos, clarificando as dúvidas que se suscitam ou corrigindo o modo de alegação.
(G.A.)
Decisão Texto Integral:       Acordam os Juízes da 2ª Secção (Cível) do Tribunal da Relação de Lisboa:

1.RELATÓRIO
      P e F, intentaram a presente acção declarativa comum sob a forma sumária contra ASSOCIAÇÃO DE PAIS DO A e, A, pedindo a condenação destes a pagarem-lhes a quantia de € 10.000,00, por não danos patrimoniais.
      Foi proferido saneador/sentença que julgou procedente a excepção peremptória de caso julgado relativo ao pedido formulado pela Autora, e improcedente a acção no que respeita ao pedido formulado pelo Autor.
      Inconformados, vieram os Autores apelar da sentença, tendo extraído das alegações que apresentaram as seguintes
CONCLUSÕES:
      1.) O Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo entendeu, incorrectamente, em sede de despacho saneador, julgar procedente a excepção do caso julgado, relativamente ao pedido formulado pela Autora Mulher, quando, não só o mesmo foi formulado por ambos os Autores, como o Autor Marido não foi parte na acção laborai intentada pela Autora Mulher, nem o pedido de indemnização por danos não patrimoniais deduzido na acção laborai se confunde com o pedido do presente pleito;

      2.) O Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo entendeu, incorrectamente, em sede de despacho saneador, julgar improcedente o pedido, na parte restante, quando:
        I. Sendo legítimo aos Réus deixarem, ou não, entrar os pais no espaço sob sua gestão, será ilegítimo, por abuso de direito, barrar a entrada a um, e apenas um dos pais, por ser pessoa "não aconselhável";
        II. Não sabemos, em bom rigor, se quem teve conhecimento do assunto acharia normal tal catalogação. Só em sede de julgamento, com recurso à prova testemunhal, poder-se-ia aferir se chamar a alguém pessoa "pouco aconselhável" é, ou não, o mesmo que dizer nada;
        III. O Autor Marido não se limitou a meras insinuações, alegando claramente que foi ele o objecto da catalogação, conforme consta da petição inicial;
        IV. Entendem, quanto aos danos não patrimoniais, que os mesmos estão devidamente concretizados, uma vez que o Autor Marido alegou uma "grande desconfiança em relação à sua pessoa", que "não mais tiveram paz" e que "não lhe bastando assistir ao sofrimento da sua esposa e da filha de ambos, viu-se catalogado como pessoa "indigna".
      Não foram apresentadas contra-alegações.
      Colhidos os vistos, cumpre decidir.
                                                       *
         OBJECTO DO RECURSO:[1]
      Emerge das conclusões de recurso apresentadas por   P e F, ora Apelantes, que o seu objecto está circunscrito às seguintes questões:
        1.) Excepção dilatória de caso julgado.
        2.) Despacho de aperfeiçoamento da petição inicial.
                          
2.FUNDAMENTAÇÃO

    A.) O DIREITO:
           Importa conhecer o objecto do recurso, circunscrito pelas respectivas conclusões.            
                             *
    1.) EXCEPÇÃO DILATÓRIA DE CASO JULGADO.
                             *
      A excepção de caso julgado consiste na alegação de que a mesma questão foi já deduzida num outro processo e nele julgada por decisão de mérito, que não admite recurso ordinário.[2]
      Repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir – n.º 1, do art. 498º, do CPCivil.
      Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica - n.º 2, do art. 498.º do CPCivil.
      Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico - n.º 3, do art. 498.º, do CPCivil.
      Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídi­co - n.º 4.
      Causa de pedir é o facto jurídico de que emerge a pretensão deduzida, isto é, o acto ou facto jurídico em que o Autor se baseia para formular o seu pedido.[3]
      É o facto jurídico de que emerge o direito do autor, e fundamenta, portanto, legalmente a sua pretensão.
      O que individualiza a causa de pedir é o facto constitutivo do direito conexionado, todavia, com o facto lesivo desse mesmo direito.[4]
      A eficácia do caso julgado já funcionará, no entanto, para impedir que, decaindo o autor na acção, ele possa em outra acção vir alegar novos factos instrumentais, relativamente à mesma causa de pedir, para obter o efeito jurídico visado na acção anterior.[5]
      A causa de pedir é constituída pelo conjunto dos factos concretos susceptíveis, segundo a perspectiva do Autor, de produzir o efeito jurídico pretendido. Na responsabilidade civil contratual, por exemplo, a causa de pedir consiste nos factos que integram o contrato, no facto concreto em que, na perspectiva da parte, se traduziu o incumprimento, no dano e no nexo de causalidade.[6]
      Vejamos se procede do mesmo facto jurídi­co a pretensão deduzida pela Apelante nesta acção e na que correu termos pelo Tribunal de Trabalho?
      Pensamos que sim.
      Como causa de pedir para os invocados danos não patrimoniais, a Apelante alega, tanto nesta acção, como na que correu termos pelo Tribunal de Trabalho de Torres Vedras, que “desde que esta situação se despoletou, tem passado por momentos de grande instabilidade emocional, que levou à necessidade de uma baixa médica dias”(sic).
      Assim, nas duas acções, a pretensão da Apelante por alegados danos não patrimoniais procede do mesmo facto, isto é, da actuação por parte da Apelada, Associação de Pais do Atlântico e que lhe causou instabilidade emocional.
      Temos pois que em relação aos invocados danos não patrimoniais, a causa de pedir é idêntica nas duas acções, isto é, uma actuação ilícita por parte da Apelada, Associação de Pais do Atlântico.
      É certo que a Apelante na acção que correu termos pelo Tribunal de Trabalho também procurou demonstrar que foi injusta a sanção disciplinar que lhe foi aplicada.
      Porém, como o pedido por danos não patrimoniais formulado naquela outra acção, como nesta, se fundamentaram nos mesmos factos, ter-se-á que concluir que a causa de pedir é idêntica em ambas as acções.
      Acresce dizer que contrariamente ao expendido pelos Apelantes, a presente acção não foi intentada por estes em representação da sua filha menor, mas sim em nome próprio.
      Assim, não se discute nesta acção os danos não patrimoniais sofridos pela filha menor dos Apelantes (“se ficou triste por não puder frequentar o ATL”), mas sim, eventuais danos por estes sofridos, e em consequência da conduta dos Apelados.
      Concluindo, não é causa de pedir da acção, saber-se se a atitude que tomaram as Apeladas e que visaram em última análise a filha do Apelante, merecem ou não tutela do direito, pois, repete-se, esta não é parte na presente acção.
      Causa de pedir nesta acção são os eventuais danos não patrimoniais sofridos pelos Apelantes por via de uma actuação dos Apelados.    
      Por outro lado, também há identidade de pedido, pois numa e noutra acção pretende-se obter o mesmo efeito jurídico, isto é, uma indemnização em dinheiro, por danos não patrimoniais, pese embora os montantes pedidos não serem coincidentes numa e noutra acção.
      Diferentemente, se se pediu, sem sucesso, a restituição de 200, não se pode, depois, pedir a restituição de 50, com base nos mesmos factos essenciais.[7]
      Há pois que concluir que o pedido é idêntico nas duas acções, isto é, o pagamento de uma indemnização por danos não patrimoniais sofridos em consequência de uma violação ilícita de um direito da Apelante.
      Por fim, temos que as partes são as mesmas, pois numa e noutra acção, a Apelante figura na posição de Autora, e a Apelada, ASSOCIAÇÃO DE PAIS, na posição de Ré.  
      Sendo esta acção idêntica à acção que correu termos pelo Tribunal de Trabalho de Torres Vedras, entre as duas, e relativamente ao pedido formulado pela Apelante,(P), verifica-se a excepção dilatória de caso julgado.
      O caso julgado é uma excepção dilatória, devendo o juiz abster-se de conhecer o pedido e absolver o réu da instancia - al. e), do n.º 1, do art. 288.º, e al. i), do art. 494º, ambos do CPCivil.
      Nestes termos, verificando-se relativamente ao pedido formulado pela Apelante, (P), a excepção dilatória de caso julgado entre as duas acções, as Apeladas teriam que ser, como o foram, absolvidas da instância.       
      Destarte, improcedem as conclusões da Apelante, de confirmar, nesta parte, o saneador/sentença proferido pelo tribunal “a quo”.
                                                        *
    B.) DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO DA PETIÇÃO INICIAL.
                             *
      Invocou o Apelante que não se limitou a meras insinuações, alegando claramente que foi ele o objecto da catalogação.
      Cumpre decidir.
                             *
      O juiz pode convidar qualquer das partes a suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido - n.º 3, do art. 508º, do CPCivil.
      Quando a lei se refere a insuficiência na exposição da matéria de facto, estar-se-á a reportar a condições de procedência da acção ou da excepção, sempre pressupondo que da análise dos articulados respectivos resulte a existência de causa de pedir ou de defesa por excepção.[8]
      A alusão efectuada pela lei às imprecisões da matéria de facto anda ligada à deficiente concretização, nomeadamente quando são feitas afirmações de pendor conclusivo ou quando a versão apresentada suscita algumas dúvidas, embora sem tornarem ininteligível a posição assumida.[9]
      A parte convidada pelo juiz apenas pode tornar mais clara uma concretização ou exposição factual ambígua; apenas pode tornar mais inteligível essa concretização ou exposição, mais completa, mais exacta, menos prolixa.[10]
      Invocando o Apelante/Autor a existência de danos não patrimoniais ocasionados pela conduta ilícita das Apeladas, a petição inicial não é inepta, por falta ou ininteligibilidade da causa de pedir.
      Assim, não sendo nulo o processo por ineptidão da petição inicial, caso esta fosse deficiente na alegação da matéria de facto, deveria o tribunal convidar a parte a supri-las. 
      Entendendo o Tribunal “a quo”, que alegando o Apelante que o dizer-se ““o pai de uma das crianças” é “pessoa pouco aconselhável”, e dizer nada é a mesma coisa””, deveria ter convidado a parte a concretizar tal afirmação, isto é, a suprir a imprecisão de tal alegação conclusiva.
      Se ainda dúvidas tivesse, deveria ter convidado o Apelante a esclarecer se as imputações lhe foram ou não a si dirigidas.
      Temos pois que não se estando perante um caso de ineptidão da petição inicial ou de deficiências que afectem a existência da própria causa de pedir, deveria o tribunal “a quo”, ter convidado o Apelante/Autor a concretizar as afirmações de pendor conclusivo (pessoa pouco aconselhável).
      A responsabilidade civil extra-contratual pressupõe o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante, o dano e um nexo de causalidade entre o facto e o dano.
      Danos não patrimoniais são os prejuízos (como as dores físicas, desgostos morais, vexames, perda de prestigio ou de reputação, complexos de ordem estética) que, sendo insusceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens (como a saúde, o bem estar, a liberdade, a beleza, a honra, o bom nome) que não integram o património do lesado, apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo esta mais uma satisfação do que uma indemnização.[11]
      Assim, assiste razão ao Apelante quando diz que alegou na petição inicial a existência de danos não patrimoniais (assistir ao sofrimento da sua pessoa e da filha de ambos; catalogado como pessoa indigna; clima de desconfiança em relação à sua pessoa), alegadamente provocados por uma actuação ilícita das Apeladas.
      Porém, também neste caso, se o tribunal “a quo” entendesse que não estavam concretamente alegados os danos não patrimoniais, ou os pressupostos por responsabilidade civil extra-contratual, deveria ter convidado o Apelante a esclarecer ou a aditar tais factos.
      Concluindo, não se estando perante uma petição inicial inepta por falta ou ininteligibilidade da causa de pedir, havendo imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, nos termos do n.º 3, do art. 508º, do CPCivil, o tribunal “a quo” deveria ter convidado a parte a proceder ao aditamento de factos omitidos, à clarificação das dúvidas que se suscitaram ou à correcção do modo de alegação.
      Destarte, procedendo, nesta parte, a Apelação, deverá revogar-se o saneador/sentença na parte em que absolve as Apeladas do pedido formulado pelo Apelante, o qual deve ser substituído por outro que convide a parte, a querendo, supra as deficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada.
                             *                            
3.DISPOSITIVO     
    DECISÃO:
      Pelo exposto, Acordam os Juízes desta Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar parcialmente procedente o recurso e, consequentemente, em revogar-se o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro, que convide o Apelante, (F) a suprir as deficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada.
                          
      REGIME DE CUSTAS:
      Custas do recurso de Apelação pela Apelante, (P) e pela parte vencida a final, na proporção de ½ para cada uma delas - art. 446.º do CPCivil.

    Lisboa, 2008-04-24

(NELSON PAULO MARTINS DE BORGES CARNEIRO)
(ANA PAULA LOPES MARTINS BOULAROT)
(LÚCIA CELESTE DE SOUSA)
___________________________________________________________________
[1] As conclusões das alegações do recorrente fixam o objecto e o âmbito do recurso – n.º 3, do art. 684.º, do art. 690.º, do CPCivil.
  Todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
  Vem sendo entendido que o vocábulo “questões” não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entendendo-se por “questões” as concretas controvérsias centrais a dirimir.
[2] ANTUNES VARELA, Manual de Processo Civil, pág. 294.
[3] ALBERTO DOS REIS, Comentário ao Código de Processo Civil , 2º vol., pág. 369.
[4] REMÉDIO MARQUES, Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, pág. 440.
[5] ANTUNES VARELA, Manual de Processo Civil, pág. 698.
[6] REMÉDIO MARQUES, Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, pág. 446.

[7] REMÉDIO MARQUES, Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, págs. 441/442.

[8] ABRANTES GERALDES, Temas da Reforma do Processo Civil, 2º vol. 3ª ed., pág. 81.
[9] ABRANTES GERALDES, Temas da Reforma do Processo Civil, 2º vol. 3ª ed., pág. 81.
[10] REMÉDIO MARQUES, Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, pág. 340.
[11] ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, 10ª, ed., vol. 1º, pág. 601.
[12] Foram utilizados meios informáticos na elaboração e execução da presente peça processual – n.º 5 do art. 138.º do CPCivil.