Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
325/17.6T8AMD.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: VENDA DE COISA DEFEITUOSA
CLÁUSULA DE IRRESPONSABILIDADE
NULIDADE ATÍPICA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/05/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I. É nula a cláusula de renúncia à garantia, subscrita pelo consumidor num contrato de compra e venda de bem de consumo.
II. A invocação da nulidade referida em I depende da manifestação de vontade nesse sentido por parte do consumidor.
III. Entende-se estar preenchido o requisito indicado em II para o conhecimento da aludida nulidade por parte do tribunal se o consumidor, arredando tacitamente os efeitos da aludida declaração de renúncia à garantia, demanda judicialmente o vendedor, reclamando deste a reparação de anomalia do veículo vendido e o pagamento de indemnização pela privação do seu uso.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Em 03.3.2017 José instaurou ação declarativa de condenação com processo comum contra R, Lda.
O A. alegou, em síntese, que em 30.9.2016 comprou à R. um motociclo de marca Aprília, pelo preço de € 8 000,00. No dia 07.11.2016 o motociclo avariou, tendo deixado de trabalhar em virtude de um defeito no motor. A sua reparação está orçamentada em € 4 655,27. O A. deu conta do sucedido à R., por carta de 21.11.2016, mas a R. entendeu não ter responsabilidade na reparação do motociclo, alegando que o A. tinha conhecimento das anomalias e que estas haviam sido reparadas, tendo custado à R. o montante de € 300,00. Entretanto o A. tem estado privado do uso do motociclo, contabilizando o respetivo prejuízo em € 15,00 por dia.
O A. terminou pedindo que a R. fosse condenada a pagar-lhe:
A) A reparação do motociclo de marca Aprilia, modelo RSV4, com a matrícula (…), ou, a não ser possível a reparação, a restituição do motociclo e devolução do montante pago pelo aqui A., no montante de € 8.000,00;
B) A indemnização pelo não uso do motociclo, desde o dia 07 de novembro até à data da entrada da ação, no montante de € 1.350,00;
C) O montante da indemnização pelo não uso, desde a citação até integral pagamento, que se relega para liquidação em execução de sentença, por de momento ser impossível determiná-la;
D) Acrescidos de juros à taxa legal desde a citação até integral pagamento.
A R. contestou, arguindo a sua ilegitimidade, na medida em que o motociclo não lhe pertencia, mas sim a um particular, Tiago (…), que foi quem negociou com o A.. Na ocasião foi feito um check-up ao motociclo, tendo-se registado diversas anomalias. O Sr. Tiago mandou reparar algumas delas e, quanto às restantes, propôs ao A. uma de duas alternativas: o vendedor reduzia o preço do motociclo em € 900,00 e o A. tratava de proceder à sua reparação; o vendedor mandava proceder à sua reparação e mantinha-se o preço de € 8 900,00. O A. optou pela 1.ª solução, dizendo que conhecia uma oficina onde conseguiria reparar o veículo por um preço inferior. Assim, o A. procedeu à aquisição da mota, a um particular, pelo preço de € 8 000,00, tendo também assinado um termo de responsabilidade e de renúncia de garantia.
A R. terminou pugnando pela procedência da exceção da ilegitimidade e, ainda que assim não se entendesse, pela improcedência da ação, por não provada.
O A. respondeu à exceção, reiterando que celebrara o contrato de compra e venda com a R. e concluindo como peticionado.
Realizou-se audiência prévia e, na sequência de convite do tribunal, o A. requereu, nos termos do art.º 39.º do CPC, a intervenção principal provocada de Tiago (…).
O chamado juntou contestação, em que apresentou uma versão dos factos idêntica à da R., nomeadamente que o contrato de compra e venda do motociclo fora celebrado entre dois particulares, isto é, o A. e o ora interveniente, tendo o A., para salvaguarda do interveniente, assinado um termo de responsabilidade e renúncia de garantia. Subsidiariamente, o interveniente alegou a caducidade do direito de ação, uma vez que o A. não denunciou os defeitos do motociclo ao ora interveniente e propôs a ação após ter decorrido o prazo de seis meses previsto no n.º 4 do art.º 921.º do CC.
O interveniente concluiu pela sua absolvição do pedido.
O A. respondeu à arguição da exceção de caducidade do direito de ação, pugnando pela sua improcedência.
Realizou-se audiência prévia, na qual foi proferido saneador tabelar, identificou-se o objeto do litígio e enunciaram-se os temas da prova.
Realizou-se audiência final e em 02.02.2020 foi proferida sentença, em que se julgou a ação não provada e improcedente e, consequentemente, se absolveu os RR. do pedido.
O A. apelou da sentença, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões:
I-Vem o presente recurso da, aliás, douta sentença que julgou improcedente a acção e, em consequência, absolveu a Ré do pedido, na medida em que o autor declarou renunciar à garantia. Tal renúncia é nula – cf. art. 10º, nº 1 do DL. 67/2003 de 8 de abril. Porém, trata-se de uma nulidade atípica, a qual só pode ser invocada pelo consumidor e é insuscetível de ser conhecida oficiosamente pelo tribunal - cf. art. 16º, nº 2 da Lei 24/96, de 31-7 ex vi art. 10º, nº 2 do DL 67/2003 de 8-4 4.
II-Sucede que o autor, não invocou a nulidade de tal renúncia, designadamente na resposta a que procedeu às exceções invocadas, quer pela ré, quer pelo interveniente. Ora, respeitando a opção do legislador – no sentido de que só o consumidor pode invocar a nulidade – e não podendo o tribunal substituir-se à parte/consumidor (a qual não invocou a nulidade da renúncia à garantia) há que considerar que o autor renunciou à garantia.
III- Entende o recorrente que tal nulidade podia e devia ser oficiosamente conhecida e arguida pelo Tribunal, na medida em que não sendo assim, existe uma subversão dos objectivos de protecção dos interesses dos consumidores.
IV- E, mais, não se entende então porque se seguiu para julgamento, tendo o Juiz o poder de em Audiência Prévia ter decidido logo pela improcedência da acção, conforme dispõe o art. 591º, nº1, al.b) do Código de Processo Civil.
V- Vejamos então a interpretação que é feita por Jorge Morais Carvalho, no seu livro “Os limites à liberdade contratual“, onde explana o seguinte:
O nº 1 do art. 16º da LDC, determina que “ qualquer convenção ou disposição contratual que exclua ou restrinja os direitos atribuídos pela presente Lei é nula.” No entanto, a nulidade “ apenas pode ser invocada pelo consumidor ou seus representantes”. Ao contrário do exemplo anterior, trata-se aqui de um caso em que a lei estabelece, pela positiva, que a nulidade só pode ser invocada por determinadas pessoas. A nulidade é aqui estabelecida no interesse se uma das partes do contrato ( o consumidor ), contra a outra ( o profissional ).
VI-Considera a lei que, apesar da exclusão ou limitação dos seus direitos, o consumidor pode ter interesse na manutenção do contrato tal como está, não fazendo sentido, neste caso, impor-lhe uma solução que não seria do seu agrado. O interesse encontra-se salvaguardado sempre que o consumidor pretenda que o contrato continue a vigorar nos precisos termos contratados. É, portanto, no interesse do profissional. Considera a lei que, apesar da exclusão ou limitação dos seus direitos, o consumidor pode ter interesse na manutenção do contrato tal como está, não fazendo sentido, neste caso, impor-lhe uma solução que não seria do seu agrado. O interesse encontra-se salvaguardado sempre que o consumidor pretenda que o contrato continue a vigorar nos precisos termos contratados. É, portanto, no interesse do consumidor que a lei estabelece um regime especial de nulidade. Assim, só faz sentido manter o regime especial de nulidade quando o interesse do consumidor o determinar, devendo aplicar-se as regras gerais nos restantes casos.
VII-Esta questão é especialmente importante no que respeita à possibilidade de o tribunal se pronunciar sobre a questão da nulidade do contrato mesmo sem esta ter sido ( expressamente ) invocada. Cabendo ao consumidor analisar a situação e concluir se pretende a declaração da nulidade, poder-se-ia pensar que a intervenção oficiosa estaria excluída. No entanto, o preceito não pode ser interpretado neste sentido, sob pena de subversão dos seus objectivos de protecção dos interesses dos consumidores. É relativamente comum a situação em que o consumidor manifesta de forma comum a sua intenção de se desvincular do contrato celebrado, mas não invoca a sua nulidade de forma expressa com base num fundamento que só ele pode invocar. Nestes casos, não subsistem dúvidas de que o consumidor pretende a nulidade do contrato, pelo que a razão de ser da diferença do regime da nulidade não se aplica, devendo o tribunal declarála, tendo em atenção a intenção do consumidor.
VIII- No caso em apreço, o recorrente ao intentar a acção de cumprimento defeituoso, já está a arguir a nulidade do mesmo, pois já está na sua acção a resolver o contrato com a Ré, por cumprimento defeituoso.
IX- Por Pedro Cláudio Oliveira Rodrigues dos Santos, na sua dissertação sobre “ A garantia legal do consumidor na aquisição de bens”- Dissertação em Ciências Jurídico-Forenses Orientação: Professora Dra. Olinda Garcia 12 de Janeiro de 2015, é seu entendimento:
O regime jurídico da garantia legal resultante da Diretiva 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 25/5/1999 e da respetiva transposição, O art. 1.º-A, n.º 1, do DL 67/2003, estabelece que este regime se aplica «aos contratos de compra e venda» mas o n.º 2 precisa que «é, ainda, aplicável com as necessárias adaptações, aos bens de consumo fornecidos no âmbito de um contrato de empreitada ou de outras prestações de serviços, bem como à locação de bens de consumo» e o art. 1.º-B, al. b), define bem de consumo como «qualquer bem imóvel ou móvel corpóreo, incluindo os bens em segunda mão». O primeiro tipo contratual visado é a compra e venda mas não esgota o conteúdo deste regime. A diretiva estabelece no art. 1.º n.º 4 que «são igualmente considerados contratos de compra e venda os contratos de fornecimento de bens de consumo a fabricar ou a produzir» mas o DL 67/2003 aditou a «locação de bens de consumo».Nos termos do art. 8.º n.º 2 da diretiva «os Estados Membros podem adotar ou manter, no domínio regido pela presente diretiva, disposições mais estritas, compatíveis com o tratado, com o objetivo de garantir um nível mais elevado de proteção do consumidor», adotando um objetivo de harmonização mínima. Desta proteção resulta a imperatividade do regime jurídico da garantia legal e comercial, pelo menos na medida em que tal resulta da transposição da proteção mínima prevista na diretiva. Assim, o art. 10.º n.º 1 do DL 67/2003 estabelece que «sem prejuízo do regime das cláusulas contratuais gerais, é nulo o acordo ou cláusula contratual pelo qual antes da denúncia da falta de conformidade ao vendedor se excluam ou limitem os direitos do consumidor previstos no presente diploma», não sendo admissíveis cláusulas em que o consumidor aceita a existência de defeitos ou que sujeitem o exercício dos direitos a condições ou encargos, a realização de serviços pós-venda em determinados estabelecimentos, plafonds indemnizatórios, ónus de prova diferentes, prazos de caducidade mais curtos ou a devolução de descontos concedidos caso haja lugar a reparações. A justificação da imperatividade do regime é simples: se o consumidor é a parte mais fraca, leiga ou profana, seria fácil a um profissional obter dele a derrogação das normas supletivas instituídas em seu benefício. Este regime tem uma exceção pois as partes podem limitar temporalmente a garantia legal dos bens móveis em segunda mão. Sendo a cláusula nula, o n.º 2 manda aplicar à nulidade o disposto no art. 16.º n.º 2 e n.º 3 da LDC e, por isso, estamos perante uma nulidade atípica, apenas invocável pelo consumidor e seus representantes que não é de conhecimento oficioso, não afastando a manutenção do contrato. Outro traço da imperatividade do regime surge na limitação à escolha da lei pois o art. 11.º do DL 67/2003 consagra a regra de que havendo uma ligação estreita ao território dos Estados Membros da União Europeia não se pode escolher lei de Estado não Membro com menor tutela do consumidor.”
X- Ora, é entendimento do Recorrente que existindo uma directiva europeia, a mesma é imperativa, devendo essa ser adotada, em detrimento da legislação do estado europeu. Pois não pode o Estado membro adotar medidas mais estritas, onde a proteção do consumidor fique em risco. Sendo, essa a situação do caso presente, pois não adotando a directiva comunitária está-se a colocar em causa a imperatividade jurídico da garantia legal e comercial, pelo menos na medida em que tal resulta da transposição da proteção mínima prevista na diretiva. E, mais, mesmo no nosso ordenamento jurídico, as opiniões dividem-se, tal como foi esplanada, na opinião de Jorge Morais Carvalho, na sua interpretação ao nº 1 do art. 16º da LDC. Devendo ser essa, na nossa modesta opinião, a posição a tomar em defesa dos direitos dos consumidores.
O Mº Juiz “a quo”, com o devido respeito, deveria ter-se pronunciado sobre a nulidade da cláusula em que o Autor renunciou à garantia, devendo arguir a nulidade da mesma, salvaguardando assim os direitos do consumidor e dessa forma considerando que só pelo facto do recorrente ter intentado acção de cumprimento defeituoso, já estaria a arguir a nulidade da renúncia à garantia.
O apelante terminou pedindo que a decisão recorrida fosse revogada e substituída por outra que julgasse a ação totalmente procedente por provada.
A R. contra-alegou, tendo rematado com as seguintes conclusões:
1. Vem o Autor nos presentes autos apresentar alegações de recurso por não concordar com a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, considerando que a nulidade de renuncia à garantia deveria ter sido declarada oficiosamente.
2. No entender da Apelada, e salvo o devido respeito, não assiste qualquer razão ao Apelante pelo que a sentença proferida nos presentes autos não merece qualquer reparo nessa parte.
3. Mais, no entender da Apelada muito bem andou o Meritíssimo Juiz ao proferir uma sentença que repusesse a justiça merecida, no entanto, e salvo o devido respeito, não deveria ter dado como provado os factos 6, 8 e 9 da douta Sentença, e, a contrário, deveria ter dado como provados os factos 1 e 2.
4. Quanto ao ponto 1 da matéria de facto dada como não provada, não se percebe como tal possa acontecer, pois da consulta da base de dados da Conservatória do Registo Automóvel, conforme certidão junta aos autos, a Ré nunca foi proprietária do referido motociclo.
5. O registo automóvel, na data da venda, era precisamente do Sr. Tiago (…) e o mesmo prestou declarações referindo que o motociclo era seu, havendo mesmo uma presunção de propriedade que não foi ilidida.
6. Assim., tendo em conta toda a prova documental e testemunhal produzida nos autos não se provou, salvo melhor opinião, que a Ré tivesse vendido o motociclo ao Autor, muito pelo contrário.
7. Mas mais, vem o Apelante referir que o Tribunal a quo deveria ter declarado oficiosamente tal nulidade, inclusive que deveria logo ter em audiência prévia decidido pela improcedência da ação, nada mais errados, pois:
8. O Autor vem referir que a nulidade deveria ser de conhecimento oficiosos e que o mesmo era seria a parte mais fraca do contrato e nesse sentido deveria ser protegida.
9. No entanto, acontece que o Autor ao renunciar a garantia sabia e assinou documento em que além de abdicar de qualquer garantia sabia que o negócio era entre particulares, ao contrário do referido pela Douta Sentença.
10.Aliás, o Autor em declarações no Tribunal referiu expressamente que assinou tal documento e tinha perfeito conhecimento do seu conteúdo e agora pretende que o Tribunal arguisse uma nulidade que o próprio desmente e que afirmou ter conhecimento e concordou?
11.Além de não ser juridicamente aceite no caso concreto seria mesmo reprovável eticamente, estando mesmo perante um caso de litigância de má fé.
12.Muitos outros exemplos existem de que a presente sentença repôs a verdade, veja-se, a título de exemplo, que o Autor em declarações refere que efetuou o pagamento do sinal através de Multibanco ATM no “Stand”, e conforme documentos juntos pelo Banco foi esclarecido que tal pagamento foi efetuado por transferência bancária.
13.O Autor referiu, inclusive, que tinha a certeza absoluta deste facto, o que mais não é do que uma mentira dita em julgamento, entre outras.
14.Por fim se refira que o Tribunal a quo dá como provado que o Autor deu conta do sucedido à Ré no dia 21 de novembro, ora tal prova é inexistente, tendo sido junta aos autos no próprio dia de alegações um documento que se impugnou, não havendo qualquer outra prova.
15.Por tudo o quanto ficou exposto a Sentença peca por dar como provado que a venda foi efetuada pela Ré, devendo alterar-se essa parte e dar como não provado.
16.No entanto, mantendo-se sempre a Sentença nos seus precisos termos, uma vez que a nulidade referida não é de conhecimento oficioso, sendo mesmo confirmada tal posição pelo Autor em declarações.
A apelada terminou pedindo que fosse negado provimento ao recurso.
Foram colhidos os vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO
As questões que se suscitam neste recurso são as seguintes: conhecimento, pelo tribunal, da nulidade da cláusula de renúncia à garantia por parte do A.; em caso de procedência da apelação, nesta parte, apreciação da impugnação da matéria de facto deduzida subsidiariamente pela R.; no caso de improcedência da impugnação da matéria de facto, definição dos direitos do A..
Primeira questão (conhecimento pelo tribunal da nulidade da cláusula de renúncia à garantia por parte do A.)
Na sentença recorrida deu-se como provada a seguinte
Matéria de facto
1. A R. tem por objeto o comércio de veículos automóveis e motociclos.
2. No âmbito da sua atividade, a R., no dia 30 de setembro de 2016, vendeu ao A. o motociclo de marca Aprilia, modelo RSV4, com a matrícula (…), pelo preço de 8.000,00€.
3. No dia 7 de novembro de 2016, o motociclo começou por aquecer e apresentava um ruído anormal no motor, tendo parado e não mais voltou a circular.
4. O motor apresentava danos, designadamente, ao nível das juntas da cabeça do motor e a verificação de fuga entre os sistemas de refrigeração e de lubrificação.
5. Sendo que, o A. levou o motociclo à oficina Piaggio Center Lisboa, tendo-lhe aí sido apresentado um orçamento de reparação, no montante de 4.655,27€.
6. O A. deu conta do sucedido à R., através da sua mandatária, no dia 21 de novembro de 2016.
7. O autor fazia uso do motociclo, essencialmente, em deslocações de lazer.
8. Foi a ré que promoveu a venda do motociclo, procedendo à respetiva publicidade, e foi através dessa publicidade que o A. teve conhecimento que o mesmo se encontrava para venda.
9. O negócio de compra e venda do motociclo ocorreu em instalações que eram usadas pela ré na sua atividade e foi aí que o autor procedeu ao levantamento do mesmo.
10. O autor assinou uma declaração, intitulada “Declaração e termo de responsabilidade”, datada de 30 de setembro de 2016, da qual resulta que adquiriu a viatura particularmente sem garantia e no estado em que se encontrava, responsabilizando-se pelo que pudesse suceder com a moto, “durante o tempo em que circular em nome de Tiago (…)”.
11. O autor assinou uma declaração, intitulada “Termo de responsabilidade e renúncia de garantia”, donde consta a menção de que renuncia a “qualquer tipo de garantia e nas condições em que se encontra, por mim já verificadas (prescindindo assim do direito à Lei nº 67 de 8 de abril de 2003)”.
Na sentença enunciaram-se os seguintes
Factos não provados
1. A R. nunca foi proprietária do motociclo identificado em 2. dos factos provados, nem nunca agiu em tal qualidade.
2. O proprietário e vendedor do motociclo identificado em 2. dos factos provados, àquela data, era Tiago (…).
3. O Autor demonstrou interesse na compra do motociclo, pelo valor de 8.900,00€, tendo pago €500,00 (quinhentos euros), ficando acordado que seria realizado um check-up na oficina Moto C. Machado Lda. – representante oficial da marca Aprilia.
4. No check-up realizado ao motociclo foram detetadas e identificadas várias anomalias mecânicas, nomeadamente a necessidade de substituição do pneu traseiro, falta de água no radiador, ruído do motor que poderia ser dos tensores da corrente, necessidade de substituição de pastilhas de travão à frente e atrás, óleo de travões, óleo de motor, filtro e velas.
5. Face ao check-up, o proprietário, Sr. Tiago, requereu à oficina que colocasse água no radiador e substituísse as pastilhas de travão tendo sido emitida fatura ao “Consumidor Final”.
6. Quanto às restantes anomalias, o Sr. Tiago propôs ao Autor que, ou fazia um desconto equivalente a €900,00 (novecentos euros) no preço do motociclo, ou reparava a totalidade das anomalias e o preço de €8.900,00 para aquisição do motociclo se mantinha.
7. O Autor de imediato referiu que conseguiria numa oficina da sua confiança reparar o motociclo por um preço inferior e, portanto, preferia que fosse feito o referido desconto.
8. Após contacto do Autor revelando interesse na compra do motociclo, este encontrou-se com o Sr. Tiago, com o Sr. Bruno e o Sr. Guilherme.
9. Por solicitação do A., o Sr. Bruno (…) e o Sr. Guilherme (…), deslocaram-se à residência do aqui Interveniente onde o motociclo foi por este exibido ao A..
10.O A. comunicou ao interveniente o referido em 3. dos factos provados.
O Direito
Em 15 de março de 1962 John Kennedy enviou uma mensagem ao Congresso dos EUA (“Special message to the Congress on Protecting the Consumer Interest”) na qual, após notar que “consumidores, por definição, somos nós todos”, e que dois terços dos gastos na economia eram efetuados por consumidores, enunciou um programa de medidas de proteção dos consumidores, visando quatro direitos: o direito à segurança, o direito a ser informado, o direito a escolher, o direito a ser ouvido.
Foi mais um passo numa caminhada visando a regulação do consumo e a proteção dos consumidores, objeto de uma vastíssima produção jurídica, de âmbito nacional e transnacional.
Quanto ao ordenamento jurídico português, a defesa dos direitos dos consumidores tem consagração constitucional (art.º 60.º da CRP), constituindo uma das incumbências prioritárias do Estado (art.º 81.º, al. i) da CRP) e um dos seus objetivos em sede de política comercial (art.º 99.º al. e) da CRP).
No plano do direito internacional avulta o direito da União Europeia, cujas normas são diretamente aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo Direito da União e com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de Direito Democrático (art.º 8.º n.º 4 da CRP).
Buscando uma harmonização mínima dos direitos internos dos Estados Membros, no que respeita à proteção dos consumidores envolvidos na compra de bens de consumo, em 25 de maio de 1999 o Parlamento Europeu e o Conselho da União Europeia aprovaram a Directiva 1999/44/CE, relativa a certos aspetos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas.
Aí se consignou, nos respetivos considerandos, o intuito de garantir a proteção do consumidor em caso de não conformidade dos bens com o contratado (considerando 6); a não vinculação dos consumidores a cláusulas ou acordos que direta ou indiretamente anulem ou restrinjam os seus direitos, na medida em que esses direitos resultem da diretiva e porque, assim, se estaria a viciar a proteção jurídica concedida (considerandos 7 e 22); o direito do consumidor, em caso de não conformidade do bem com o contrato, de obter que os bens sejam tornados conformes com ele sem encargos, podendo escolher entre a reparação ou a substituição ou, se tal não for possível, a redução do preço ou a rescisão do contrato (considerando 10); a proibição de cláusulas segundo as quais o consumidor teria conhecimento de qualquer falta de conformidade dos bens de consumo existente no momento em que celebrou o contrato (considerando 22). Quanto aos bens em segunda mão, aceitou-se que em regra não será possível a reposição (considerando 16).
Tais considerandos têm a sua tradução nos artigos 2.º (sob a epígrafe “Conformidade com o contrato”), 3.º (sob a epígrafe “Direitos do consumidor”), 7.º (sob a epígrafe “Carácter vinculativo”) da Diretiva.
De realçar, também, as definições de consumidor e de vendedor, adotadas na Diretiva:
Consumidor: qualquer pessoa singular que, nos contratos abrangidos pela presente directiva, actue com objectivos alheios à sua actividade comercial ou profissional” (al. a) do n.º 2 do art.º 1.º da Diretiva);
“Vendedor: qualquer pessoa singular ou colectiva que, ao abrigo de um contrato, vende bens de consumo no âmbito da sua actividade profissional” (al. c) do n.º 2 do art.º 1.º da Diretiva).
A Diretiva 1999/44/CE foi transposta para o direito interno português pelo Dec.-Lei n.º 67/2003, de 08.4, alterado pelo Dec.-Lei n.º 84/2008, de 21.5.
Nos termos do seu art.º 1.º-A, o regime deste diploma aplica-se aos “contratos de compra e venda celebrados entre profissionais e consumidores” (art.º 1.º-A, n.º 1).
Para efeitos de aplicação do diploma, entende-se por “consumidor”, “aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios, nos termos do n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho” (al. a) do art.º 1.º-B). “Vendedor”, para os efeitos do diploma, é “qualquer pessoa singular ou colectiva que, ao abrigo de um contrato, vende bens de consumo no âmbito da sua actividade profissional”.
O vendedor tem o dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda (n.º 1 do art.º 2.º do Dec.-Lei n.º 67/2003).
Nos termos do n.º 2 do art.º 2.º do Dec.-Lei n.º 67/2003, “[p]resume-se que que os bens de consumo não são conformes com o contrato se se verificar algum dos seguintes factos:
a) Não serem conformes com a descrição que deles é feita pelo vendedor ou não possuírem as qualidades do bem que o vendedor tenha apresentado ao consumidor como amostra ou modelo;
b) Não serem adequados ao uso específico para o qual o consumidor os destine e do qual tenha informado o vendedor quando celebrou o contrato e que o mesmo tenha aceitado;
c) Não serem adequados às utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo;
d) Não apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem e, eventualmente, às declarações públicas sobre as suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem.
Nos termos do n.º 1 do art.º 3.º, o vendedor “responde perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento em que o bem lhe é entregue”.
Nos termos do n.º 2 do art.º 3.º, “[a]s faltas de conformidade que se manifestem num prazo de dois ou de cinco anos a contar da data de entrega de coisa móvel corpórea ou de coisa imóvel, respectivamente, presumem-se existentes já nessa data, salvo quando tal for incompatível com a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade”.
Em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato” (n.º 1 do art.º 4.º).
Tratando-se de um bem móvel, a sua reparação ou a substituição devem ser realizadas no prazo máximo de 30 dias, “em ambos os casos sem grande inconveniente para o consumidor” (n.º 2 do art.º 4.º).
Os direitos de resolução do contrato e de redução do preço “podem ser exercidos mesmo que a coisa tenha perecido ou se tenha deteriorado por motivo não imputável ao comprador” (n.º 4 do art.º 4.º).
Nos termos do n.º 1 do art.º 12.º da Lei n.º 24/96, de 31.7 (Lei de Defesa do Consumidor), com a redação introduzida pela Lei n.º 67/2003, de 8.4, o consumidor terá também “direito à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos.”
Nos termos do n.º 5 do art.º 4.º do Dec.-Lei n.º 67/2003, “[o] consumidor pode exercer qualquer dos direitos referidos nos números anteriores, salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito, nos termos gerais”.
Em caso de desconformidade do bem adquirido, o consumidor deve denunciar o defeito e exercer os seus direitos nos prazos referidos nos artigos 5.º e 5.º-A.
Analisemos o caso dos autos.
Face à matéria de facto provada, dúvidas não há que em 30.9.2016 o A. e a R. celebraram um contrato de compra e venda de um bem de consumo (n.º 2 da matéria de facto). Por meio desse negócio a R., no exercício da sua atividade comercial e, portanto, na qualidade de profissional, vendeu ao A., para este utilizar no seu uso pessoal, essencialmente em deslocações de lazer, isto é, enquanto consumidor, um determinado motociclo (n.ºs. 1 e 7 da matéria de facto). Sucedeu que, decorrido pouco mais de um mês após a aludida aquisição, o motociclo, após aquecer e produzir um ruído anormal no motor, parou e deixou de funcionar. Constatou-se que o motor do veículo apresentava danos ao nível das juntas da cabeça do motor e havia fuga entre os sistemas de refrigeração e de lubrificação (n.ºs 3 e 4 da matéria de facto). O A. deu a conhecer o sucedido à R. cerca de duas semanas após a ocorrência da aludida anomalia (n.º 6 da matéria de facto).
De tudo o exposto resulta que a R. vendeu ao A. um bem de consumo que, como se constatou após a celebração do negócio, não reúne as características exigíveis a tal bem, na medida em que enferma de anomalia que impede a sua utilização. O A. denunciou tempestivamente tal anomalia à vendedora, a R., e tem direito, como exige, à sua reparação.
Sucede, porém, que aquando da celebração do contrato e antes, pois, de saber que o motociclo enfermava da aludida desconformidade, o A. assinou o documento referido em 11 da matéria de facto, isto é, um “Termo de responsabilidade e renúncia de garantia”, onde consta a menção de que renuncia a “qualquer tipo de garantia e nas condições em que se encontra, por mim já verificadas (prescindindo assim do direito à Lei nº 67 de 8 de abril de 2003)”.
A Diretiva n.º 1999/44/CE impõe a irrelevância de tais cláusulas face ao consumidor (citado art.º 7.º n.º 1).
Também o Dec.-Lei n.º 67/2003 comina com a nulidade essas disposições contratuais:
Sob a epígrafe “Imperatividade” dispõe-se, no n.º 1 do art.º 10.º, que “Sem prejuízo do regime das cláusulas contratuais gerais, é nulo o acordo ou cláusula contratual pelo qual antes da denúncia da falta de conformidade ao vendedor se excluam ou limitem os direitos do consumidor previstos no presente diploma”.
Porém, no n.º 2 acrescenta-se o seguinte:
É aplicável à nulidade prevista no número anterior o disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 16.º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho.”
Remete-se, pois, para os preceitos do art.º 16.º da Lei n.º 24/96, de 31.7, isto é, da Lei de Defesa do Consumidor, os quais, sob a epígrafe “Nulidade”, estabelecem o seguinte:
1 – Sem prejuízo do regime das cláusulas contratuais gerais, qualquer convenção ou disposição contratual que exclua ou restrinja os direitos atribuídos pela presente lei é nula.
2 – A nulidade referida no número anterior apenas pode ser invocada pelo consumidor ou seus representantes.
3 – O consumidor pode optar pela manutenção do contrato quando algumas das suas cláusulas forem nulas nos termos do n.º 1.”
A nulidade referida é, assim, uma nulidade atípica (cfr. João Calvão da Silva, Venda de Bens de Consumo, 4.ª edição, 2010, Almedina, p. 156; David Falcão, Lições de Direito do Consumo, Almedina, 2019, p. 158; Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 7.ª edição, 2020, Almedina, p. 74). O seu conhecimento pelo tribunal está dependente da vontade do contraente consumidor. Levando-se em consideração que o regime em causa visa a defesa dos interesses do consumidor, e atendendo também a que a cláusula cominativa de nulidade contida no art.º 16.º da Lei de Defesa do Consumidor é muito genérica e abrangente e, por isso, vaga, decidiu-se sustentar na vontade do consumidor o acionamento, em concreto, da aludida invalidade.
Porém, como é evidente, estando o regime jurídico em causa norteado pela defesa do consumidor, a inoficiosidade ou atipicidade referidas não podem voltar-se contra o sujeito cuja proteção se enseja.
Conforme expende Jorge Morais Carvalho em Os Limites à Liberdade Contratual, 2017, reimpressão, Almedina, p. 198, citado pelo apelante, “…só faz sentido manter o regime especial de nulidade quando o interesse do consumidor o determinar, devendo aplicar-se as regras gerais nos restantes casos.”
Cabendo ao consumidor analisar a situação e concluir se pretende a declaração de nulidade, poder-se-ia pensar que a intervenção oficiosa estaria excluída. No entanto, o preceito não pode ser interpretado neste sentido, sob pena de subversão dos seus objetivos de proteção dos interesses dos consumidores. É relativamente comum a situação em que o consumidor manifesta de forma clara a sua intenção de se desvincular do contrato celebrado, mas não invoca a sua nulidade de forma expressa com base num fundamento que só ele pode invocar. Nestes casos, não subsistem dúvidas de que o consumidor pretende a nulidade do contrato, pelo que a razão de ser da diferença do regime da nulidade não se aplica, devendo o tribunal declará-la, tendo em atenção a intenção do consumidor” (obra citada, p. 198; no mesmo sentido, cfr., do mesmo autor, Manual de Direito do Consumo, citado, pp. 74 e 75).
A aludida cláusula de renúncia à garantia é, como se disse, nula. E disso tinha perfeito conhecimento, aquando da sua elaboração, a R., conforme consta do conteúdo dos documentos que foram dados à assinatura do A.. De facto, no próprio texto da cláusula e do outro documento dado a assinar pela R. ao A. se tenta justificá-la mediante a invocação de um “contrato entre particulares”, isto é, um contrato em que o vendedor não seria um “profissional”, portanto não estaria sujeito às obrigações impostas aos vendedores pelo regime jurídico de proteção dos consumidores (cfr. n.ºs 10 e 11 da matéria de facto). Essa foi, de resto, a tese apresentada pela R. na sua contestação.
Ora, o A. sempre negou que o motociclo em causa tivesse sido comprado a um particular. Desde o início o A. invocou, para sustentar as suas pretensões, o regime jurídico de compra e venda de bens de consumo, prevalecendo-se dos direitos que dele decorrem.
Se o A. se conformasse com a validade da aludida cláusula de renúncia, nada reclamaria da R.. Mas a verdade é que o A. peticionou a condenação da R. no pagamento da reparação das anomalias do bem vendido e, subsidiariamente, a resolução do contrato, com a restituição do preço pago e a entrega do motociclo. Paralelamente, o A. peticionou o ressarcimento do prejuízo inerente à privação do uso do motociclo, o que pressupõe a manutenção da vigência do contrato, sem a aludida cláusula.
Nesta ação o A. negou, pois, tacitamente, a validade da cláusula de renúncia (art.º 217.º n.º 1 do CC). Essa manifestação de vontade deve ser considerada pelo tribunal, pois consubstancia o levantamento do único obstáculo que a lei prevê ao conhecimento, pelo tribunal, da aludida nulidade: a vontade do consumidor.
Arredada a cláusula de renúncia à garantia, por ser nula, há que reconhecer ao A. os direitos que reclama, pelo que a apelação é procedente.
Assim, deverá apreciar-se a impugnação da matéria de facto, deduzida pela apelada nos termos do n.º 2 do art.º 636.º do CPC.
Segunda questão (impugnação da matéria de facto pela R.)
A primeira questão que aqui se coloca é a da existência, ou não, de adequada impugnação da decisão da matéria de facto.
Nos termos do n.º 1 do art.º 662.º do CPC “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”
Pretendendo o recorrente impugnar a decisão relativa à matéria de facto, deverá, nos termos do art.º 640.º do CPC, sob pena de rejeição, especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes (n.º 2 alínea a) do art.º 640.º do CPC).
Resulta do texto legal ser intenção do legislador que o inconformismo da parte acerca da decisão de facto se expresse de forma clara e precisa, através da indicação clara e precisa dos pontos de facto concretos sobre os quais incide a discordância da parte, a indicação clara e precisa do sentido da decisão que deve ser tomada acerca de cada um dos pontos de facto sobre que incide a impugnação, a indicação dos meios de prova em concreto em que se baseia essa discordância e, tratando-se de meios probatórios gravados, a indicação exata das passagens da gravação em que se baseia o recurso – sob pena de rejeição da impugnação da matéria de facto.
Assim como o tribunal deve indicar de forma clara e completa os factos que considera provados e não provados e deve explicar de forma clara e completa os motivos do seu juízo, analisando criticamente as provas acerca de cada facto (art.º 607.º n.ºs 3 a 5 do CPC), num exercício que não só garante a transparência da justiça mas também possibilita a demonstração de que o tribunal empreendeu a referida tarefa de forma metódica e ponderada, também as partes, na impugnação que fizerem desse juízo, deverão demonstrar que a sua iniciativa se baseia numa avaliação séria dos factos e das provas, apresentando-a em condições que possibilitem ao tribunal ad quem efetuar, sem a mediação de particulares esforços interpretativos do sentido da interpelação do recorrente, a análise crítica que se lhe pede.
Tal exigência refina-se nas conclusões, que, como se sabe, balizam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso (artigos 639.º e 635.º n.º 4 do CPC).
Do citado regime legal resulta, sem margem para dúvidas, que, assentando a impugnação da decisão de facto em depoimentos gravados, a transcrição de trechos desses depoimentos exerce uma função meramente complementar ou auxiliar, nunca dispensando a parte recorrente da identificação da localização, na gravação, das partes desses depoimentos que são relevantes para o sucesso da impugnação. Por outro lado, como é evidente, o recorrente deve indicar com clareza quais são os factos, dados como provados ou não provados pelo tribunal a quo, que merecem censura, e qual o sentido da modificação pretendida.
Todas estas considerações se aplicam ao recorrido que pretenda alargar o âmbito do recurso à matéria de facto, nos termos do n.º 2 do art.º 636.º do CPC (cfr. n.º 3 do art.º 640.º).
Na sua contra-alegação, a apelada entende que na sentença não se deveriam ter dado como provados os factos n.ºs 6, 8 e 9 e, pelo contrário, dever-se-iam ter dado como provados os factos n.ºs 1 e 2.
Contudo, na fundamentação dessa impugnação a apelada limita-se a considerações de ordem vaga e lacunar, referindo-se aos meios de prova em termos genéricos e insuficientes, sem precisar as partes dos depoimentos prestados que imporiam o sentido ora pretendido, sendo certo que além de não transcrever as partes tidas por pertinentes desses depoimentos, também não identifica, nas gravações, os trechos em que o tribunal ad quem deveria atentar, para firmar a sua convicção.
Efetivamente, tendo o tribunal a quo procedido, na fundamentação da decisão de facto, a detalhada apreciação da prova documental e pessoal, ao longo de quase 15 páginas, a apelada limita-se a afirmar que:
“Quanto ao ponto 1 da matéria de facto dada como não provada, não se percebe como tal possa acontecer, pois da consulta da base de dados da Conservatória do Registo Automóvel, conforme certidão junta aos autos, a Ré nunca foi proprietária do referido motociclo.
Mas mais, o próprio interveniente referiu que o motociclo sempre foi dele e que a Ré nunca foi a proprietária.
Pelo que não se percebe como pode o Tribunal a quo dar como não provado este facto assim como o facto n.º 2, pois o registo automóvel na data da venda era precisamente do Sr. Tiago Nunes e o mesmo prestou declarações referindo que o veiculo era seu, havendo mesmo uma presunção de propriedade que não foi ilidida.
Tendo em conta toda a prova documental e testemunhal produzida nos autos não se provou, salvo melhor opinião, que a Ré tivesse vendido o motociclo ao Autor, muito pelo contrário.
(…)
Nestes termos não se percebe nem podemos aceitar como o Tribunal a quo dá como provado que a venda foi efetuada pela Ré naqueles termos, quando toda a prova existente aponta em sentido contrário.
Por fim se refira que o Tribunal a quo dá como provado que o Autor deu conta do sucedido à Ré no dia 21 de novembro, ora tal prova é inexistente, tendo sido junta aos autos no próprio dia de alegações um documento que se impugnou, não havendo qualquer outra prova.
Por tudo o quanto ficou exposto a Sentença peca por dar como provado que a venda foi efetuada pela Ré, devendo alterar-se essa parte e dar como não provado (…).
Ora, não cabe ao tribunal ad quem suprir as manifestas e patentes insuficiências da contra-alegante na impugnação da matéria de facto, procedendo a uma total revisão da prova produzida para, em substituição da apelada, encontrar argumentação para, eventualmente, modificar a decisão de facto.
Nestes termos, pois, rejeita-se a impugnação da decisão de facto.
Terceira questão (direitos do A.)
Conforme exposto acima, o A. tem direito à peticionada reparação do motociclo que a R. lhe vendeu, o qual, como se veio a verificar, apresenta danos no motor, designadamente ao nível das juntas da cabeça do motor, e fuga entre os sistemas de refrigeração e lubrificação.
Por outro lado a R., ao omitir o cumprimento da sua obrigação contratual de fornecer um bem isento de anomalias e, denunciada a anomalia existente, de a reparar, incorreu na inerente responsabilidade civil, devendo ressarcir o A. pelos danos causados (artigos 12.º n.º 1 da Lei n.º 24/96, de 31.7, 798.º, 799.º, 562.º, 563.º, 564.º e 566.º do Código Civil – cfr., por todos, Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito de Consumo, citado, pp. 339 a 342).
O A. está privado da possibilidade de utilizar o motociclo, desde 07.11.2016. Sendo certo que se provou que o autor fazia uso do motociclo, essencialmente, em deslocações de lazer (n.º 7 da matéria de facto).
A este propósito reitera-se o entendimento subscrito pelo ora relator no acórdão desta Relação, datado de 21.5.2009, processo nº 1252/08.3TBFUN.L1 (acessível in www.dgsi.pt e, também, na Colectânea de Jurisprudência, ano XXXIV, tomo III, pág. 78 e seguintes), de que a mera privação do uso do veículo constitui para o respetivo proprietário um dano patrimonial, que é economicamente valorizável, se necessário com recurso à equidade (art.º 566.º n.º 3 do Código Civil).
O A. reclama, por cada dia de privação do veículo, uma indemnização no valor de € 15,00.
O valor locativo das viaturas, nomeadamente o valor que no mercado é cobrado pelas empresas de aluguer de viaturas, tem sido considerado como possível padrão a utilizar no cálculo da indemnização por privação da viatura, tendo-se em consideração as características da viatura em concreto. Tal valor diário excede, como é sabido, para os automóveis ligeiros, os € 20,00 diários. Valor que encontramos em casos como o apreciado pelo STJ em 28.11.2013 (processo 161/09.3TBGDM.P2.S1, acessível in www.dgsi.pt), reportado a acidente ocorrido em 2006. Sendo certo que no supra citado acórdão de 21.5.2009, processo 1252/08.3TBFUN.L1, se aceitou a despesa provada pelo lesado, de aluguer de um quadriciclo, no valor de € 40,25 por dia. E em acórdãos como os proferidos em 22.6.2016 (Relação de Lisboa, processo 31357-12.OT2SNT.L1-6), 27.10.2015 (Relação de Lisboa, processo 5119/12.2.TBALM.L1-1) e de 17.12.2014 (Relação de Lisboa, processo 1595/13.4TBALM.L1-2) condenou-se o responsável no pagamento de indemnizações, pela privação de uso de viatura, correspondentes, respetivamente, ao montante diário de € 30,00, € 36,50 e € 28,00.
De notar, porém, que em todas estas situações o julgador dispunha de um manancial mínimo de factos que lhe permitia sustentar, com base na equidade, a aplicação daqueles valores. Bem mais prudentes foram os tribunais portugueses em situações de total rarefação de matéria de facto onde se apoiar: veja-se os acórdãos da Relação de Lisboa, de 27.02.2014 (processo 889/11.8TBSSB.L1-6) e de 01.7.2014 (processo 11463/09.9THLSB.L1-1), em que, à míngua de elementos, se atribuiu ao lesado uma indemnização correspondente ao valor diário de € 05,00.
In casu, provou-se que o A. usava o motociclo sobretudo em momentos de lazer. Assim, não careceria do veículo para uma utilização diária. Por esse motivo, em termos médios, será ajustada uma indemnização não superior a € 10,00 por cada dia de privação do motociclo.
Assim, o A. tem direito a uma indemnização no valor diário de € 10,00, desde 07 de novembro de 2016 e até à data em que lhe for entregue o motociclo devidamente reparado, tudo acrescido de juros de mora, vencidos e vincendos, contados desde a data da citação da R. (art.º 805.º n.º 3 do CC).
Reputa-se adequada a fixação de um prazo de 15 dias para a reparação do motociclo, contado desde a data em que o A. ponha o veículo à disposição da R..
DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação procedente e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida e, em sua substituição, julga-se a ação provada e procedente e, consequentemente:
a) Declara-se a nulidade da cláusula de renúncia à garantia identificada no n.º 11 da matéria de facto;
b) Condena-se a R. Rotaçãospot Lda a proceder à reparação dos defeitos do motociclo objeto destes autos, mencionados no n.º 4 da matéria de facto, no prazo de 15 dias após a disponibilização do motociclo pelo A. à R.;
c) Condena-se a R. Rotaçãospot Lda a pagar ao A., a título de indemnização pela privação do uso da viatura, a quantia diária de € 10,00 (dez euros) desde 07 de novembro de 2016 e até à data em que for entregue ao A. o motociclo devidamente reparado, tudo acrescido de juros de mora, vencidos e vincendos, contados desde a data da citação da R. (28 de março de 2017) e até integral pagamento.
As custas da ação e da apelação, na vertente de custas de parte, são a cargo de ambas as partes (A. e R. Rotaçãospot), na proporção do respetivo decaimento (artigos 527.º n.ºs 1 e 2 e 533.º do CPC).

Lisboa, 05.11.2020
Jorge Leal
Nelson Borges Carneiro
Pedro Martins