Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
14091/09.5T2SNE-A.L1-7
Relator: ROSA RIBEIRO COELHO
Descritores: PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTECÇÃO
MENORES
CONSULTA DO PROCESSO
CONFIDENCIALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/02/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I-O processo de promoção e proteção de menores tem, de hoje em dia, caráter reservado, a significar que apenas as pessoas enunciadas na lei o podem consultar, entre elas figurando os pais do menor.
II - Pode, assim, afirmar-se o princípio segundo o qual as restrições de acesso e consulta do processo não abrangem os pais do menor que, à partida, o podem consultar sem restrições.
III - Esse acesso livre sofre, como única limitação, o segredo que a lei manda preservar, no âmbito de aplicação da medida de confiança a pessoa selecionada para adoção ou a instituição com vista a futura adoção, quanto à identidade dos adotantes e dos pais biológicos do adotado.
IV - Podem existir casos em que a integridade física da criança possa ficar em causa se o progenitor souber que a mesmo verbalizou, no âmbito do processo, o seu medo de conviver com ele, de sorte a que o superior interesse da criança aponte para a necessidade de limitar o acesso do progenitor a esse desabafo.
V – Não existindo elementos que permitam reconduzir o caso em análise à hipótese figurada, a confidencialidade não se justifica, tanto mais que o progenitor tomou já conhecimento da alegada verbalização desse medo através de outra peça processual
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

7ª SECÇÃO CÍVEL


I - Por decisão datada de 23.09.2016, em revisão e substituição de medida anterior, foi aplicada às menores ... ... ... e ... Daniela ... ..., nascidas respetivamente, em 29.01.2006 e 27.11.2008, a medida de promoção e proteção de acolhimento residencial conjunto de ambas, pelo prazo de seis meses, que está a ser executada na “Casa de Acolhimento (LIJ) Centro de Alojamento de Tercena”.[1]

Na sequência da comunicação de 13.10.2016, dirigida ao tribunal pelo Centro de Alojamento Temporário de Tercena, certificada a fls. 3 e 6, seguiu-se em 17.10.2016 promoção do M. P. onde, com invocação “do medo exacerbado revelado pelas menores em relação à progenitora, consoante informação do CAT de Tercena” se promoveu, além do mais, a avaliação da situação das crianças pela psicóloga Ana Lopes.

Por decisão de 11.11.2016 foi autorizada “a implementação dos convívios entre as crianças (…) e a mãe, ainda que inicialmente tais convívios devam decorrer na «Casa de Acolhimento (LIJ) Centro de Alojamento de Tercena» (…), pelo menos, com periodicidade quinzenal, a agendar de acordo com a disponibilidade das crianças, do CAT e da mãe, devendo ainda ser permitidos e incentivados os convívios com outros membros da família das crianças com quem as mesmas apresentem relacionamento afetivo, em especial, com o irmão Iaia, tia Epifânia e sobrinhas.

Por requerimento entrado em juízo no dia 13 de Janeiro do corrente ano, ... ... ..., mãe das menores, fazendo referência à promoção do M. P. a que acima se aludiu e ao facto de o seu Patrono, quando vai consultar os autos, ter de esperar que dele sejam removidas, em cumprimento de ordens superiores, as fls. 1215, 1249 a 1255, 1286, 1309, 1310, 1320, 1331, 1332, 1335, 1338, 1341 a 1343, 1354, 1355, 1361, 1367, 1397 a 1401, requereu, com invocação do art. 88º do LPCJP, que àquele seja facultada a consulta da integralidade dos autos.

Conhecendo do assim requerido, foi proferida decisão em 27.01.2017 que, autorizando o acesso da progenitora ao demais que consta dos autos, determinou a confidencialidade do que consta a fls. 1397-13897 (1399 a 1401)[2].

Apelou a mãe das menores, tendo apresentado alegações onde pede a revogação da decisão e formula as seguintes conclusões:

1

O caráter reservado do processo de promoção e proteção previsto no art. 88º, nº 1 da LPCJP, significa apenas que aqueles que ao mesmo tenham acesso ficam obrigados a dever de segredo relativamente àquilo de que tomarem conhecimento, como resulta aliás do disposto no art. 89º, nº 1 daquela lei.

2

Ao advogado, patrono ou mandatário da mãe das menores objeto do processo de promoção e proteção, assiste-lhe o direito de consultar tal processo na secretaria.

3

Inexiste qualquer norma ou processo legal que permita ao Juiz de modo discricionário determinar as partes de um processo de promoção e proteção que podem ser consultadas pelo advogado, ou facultar a sua consulta amputado de peças processuais.

4

Tratando-se para mais de peças processuais em que alegadamente técnicos sociais propalam a ideia de que as menores têm um medo exacerbado da mãe, facto de enorme importância no âmbito de tal processo atenta a sua natureza e uma vez que as menores suas filhas lhe foram retiradas há mais de oito anos, em obediência ao princípio do contraditório devem tais documentos/relatórios poder ser do seu conhecimento, através da consulta dos autos, para que os possa contraditar.

5

O despacho recorrido na parte em que veda a consulta integral do processo ao patrono da mãe das menores é manifestamente ilegal, violando desde logo o disposto no art. 88º, 3 LPCJP, e como tal deve ser revogado e substituído por outro que em cumprimento da lei permita a consulta integral do processo na secretaria.

Em contra-alegações apresentadas, o M. P. pugna pela improcedência da apelação.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II – Os elementos processuais com interesse para a decisão do presente recurso são, para além dos já acima enunciados em sede de relatório, os seguintes:

1. Na decisão de 27.01.2017, para além do que em sede de relatório se descreveu já, referindo-se o interesse manifestado nesse sentido pelas menores, decidiu-se “autorizar a implementação dos convívios entre as crianças (…) e a mãe/família biológica, fora da residência de acolhimento, com a supervisão e o acompanhamento (…). Mais se autoriza que o início de tais convívios tenha lugar no próximo domingo, dia 29 de janeiro, entre as 11.00 horas e as 17.00 horas (…)

2. Foi homologado, por decisão proferida em 10.03.2017 e certificada a fls. 37, “o plano de convívios entre as crianças e a mãe/família biológica[3], em consonância com a proposta apresentada pela equipa técnica que acompanha a situação das crianças.

3. Por decisão de 6.04 do corrente ano, foi proferida decisão que autorizou ... e Daniela a passarem “o fim-de-semana da páscoa com a mãe, na residência desta, com pernoita de dia 15 de abril para 16 de abril de 2107 com a orientação da equipa da ComDignitatis - Associação Portuguesa para a Promoção da Dignidade Humana - em articulação com a equipa técnica da Residência de Acolhimento, e sem prejuízo do plano de convívios já definido entre as crianças e a mãe/família biológica, homologado no despacho de 10.03.2017.”

III – Abordemos, então, a questão que neste recurso vem suscitada.

Antes, porém, tem todo o interesse atentar nos argumentos e raciocínio que estruturaram a decisão emitida.

Podem resumir-se do seguinte modo:

- O processo de promoção e proteção assume caráter reservado, como expressamente resulta do art. 88º da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em perigo, aprovada pela Lei nº 147/99, de 1 de setembro;

- Também neste domínio, o princípio do interesse superior da criança e do jovem, consagrado no art. 4º, al. a) da LPCJP, deve prevalecer sobre todos os interesses que com ele sejam conflituantes, cabendo ao tribunal decidir o que deve ser facultado às partes para consulta do processo sempre que a divulgação de determinadas peças seja suscetível de colidir com o referido princípio.

- “Relativamente à informação prestada pelo CAT - Tercena, reproduzida a fls. 1397-1398 (1399 a 1401), foi expressamente requerida pelo CAT a confidencialidade da referida informação com fundamento na salvaguarda da integridade das crianças porque baseada em relatos das crianças, entendendo-se que a respetiva divulgação junto da progenitora das crianças é suscetível de poder vir a afetar a estabilidade das crianças e salvaguardar o bem-estar das mesmas no seu relacionamento com a mãe”, pelo que determina a sua confidencialidade.

O processo de promoção e proteção de menores tem, de hoje em dia, caráter reservado – nº 1 do art. 88º da Lei de proteção de crianças e jovens em perigo (LPCJP), aprovada em anexo à Lei nº 147/99, de 1 de Setembro.[4]

E essa reserva significa que só as pessoas enunciadas nos seus vários números têm acesso ao processo, podendo consultá-lo.

Tal consulta é reservada aos pais do menor, ao seu representante legal ou às pessoas que detenham a sua guarda de facto, por si ou através de advogado – nº 3 do preceito.

A própria criança ou jovem podem consultar o processo, através do seu advogado ou pessoalmente, caso a sua maturidade e capacidade de compreensão e natureza dos factos o consintam e o juiz o autorize – nº 4 da mesma norma.

Finalmente, pode consultar o processo quem manifeste interesse legítimo e mediante prévia autorização nos teros do nº 5 do mesmo art. 88º.

Pode, pois, afirmar-se o princípio segundo o qual as restrições de acesso ao processo não abrangem os pais do menor que, à partida, o podem consultar sem restrições.

Esse acesso livre sofre, como única limitação, o segredo que a lei manda preservar, no âmbito de aplicação da medida de promoção e proteção prevista na alínea g) do nº 1 do art. 35º - confiança a pessoa selecionada para adoção ou a instituição com vista a futura adoção -, quanto à identidade dos adotantes e dos pais biológicos do adotado, nos termos previstos no artigo 1985º do Código Civil e no artigo 173º-B da Organização Tutelar de Menores – nº 7 do mesmo art. 88º.

Com a natureza reservada que se atribui ao processo visa assegurar-se a proteção da intimidade e do direito à imagem e reserva da vida privada da criança ou do jovem, um dos princípios a observar na intervenção para a promoção e proteção de que seja alvo – art. 4º, alínea b).

Não se estando perante o segredo que o nº 7 do art. 88º manda guardar, tudo o que acaba de expor-se aponta no sentido de que à mãe das menores não deva ser subtraído o acesso a qualquer elemento que conste dos autos.

Aceita-se, em termos abstratos, a existência de casos em que a integridade física da criança possa ficar em causa se o progenitor souber que a mesmo verbalizou, no âmbito do processo, o seu medo de conviver com ele, de sorte a que o superior interesse da criança – outro dos princípios orientadores da intervenção, previsto no art. 4º, b) – aponte para a necessidade de limitar o acesso do progenitor a esse desabafo.

Todavia, só caraterísticas comportamentais ou de personalidade mais ou menos desviantes levarão a que o progenitor não tenha capacidade para lidar com o anunciado medo de seu filho em estabelecer um contato mais frequente e íntimo consigo, e assuma, em reação a tal sentimento da criança, uma atitude de agressividade tal que ponha em causa a integridade física daquela.

E, nesse caso, a salvaguarda do superior interesse da criança de modo algum aconselhará que se institua – ao invés do que no caso dos autos aconteceu - qualquer esquema de convívio mais próximo entre o progenitor e a criança fora da instituição que a acolhe e sem qualquer supervisão.

Perante os elementos de que dispomos não se vê – nem a decisão recorrida refere, aliás, a sua existência – que a progenitora possua tais traços de personalidade e a restrição de acesso instituída parece ter-se baseado apenas no parecer do Técnico Superior do Centro de Alojamento Temporário de Tercena do seguinte teor: “Devido à gravidade dos factos acima descritos, que podem pôr em causa a integridade física das menores, caso a mãe perceba que as mesmas verbalizaram, pedimos confidencialidade dos mesmos.”

E como se vê das ocorrências processuais acima descritas, foi implementado, também por interesse nesse sentido manifestado pelas crianças, o convívio entre elas e sua mãe e demais família próxima, com periodicidade pelo menos quinzenal, primeiro na instituição e mais tarde fora dela, tendo as menores passado o fim-de-semana da última páscoa com a mãe, na residência desta, com pernoita de dia 15 de abril para 16 de abril.

Não existe, assim, fundamento para restringir o acesso da progenitora a fls. 1397-13897 (1399 a 1401) dos autos, fazendo-se notar, de qualquer modo, que o conteúdo desta comunicação se mostra resumido, em temos essenciais, na promoção do M. P. acima aludida e a que a progenitora sempre teve acesso, não fazendo sentido, até por essa circunstância, a confidencialidade imposta.

Impõe-se, pois, a procedência da apelação.

IV – Pelo exposto, julga-se a apelação procedente e revogando-se a decisão recorrida, determina-se que a mãe das menores e seu patrono têm acesso à integralidade do processo.

Sem custas.

Lxa. 2.05.2017

(Rosa Maria M. C. Ribeiro Coelho)

(Maria Amélia Ribeiro)

(Graça Amaral)

________________________________________________


[1] Elementos aqui certificados a fls. 9-12
[2] Fls. 1399 a 1401 é repetição de fls. 1397-1398
[3] Cujos concretos termos se não mostram certificados
[4] Diploma a que pertencem as normas de ora em diante referidas sem menção de diferente proveniência.