Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1050/14.5TTLSB.L1-4
Relator: MARIA JOÃO ROMBA
Descritores: ACÇÃO DE RECONHECIMENTO DA EXISTENCIA DE CONTRATO DE TRABALHO
AUDIÊNCIA DE PARTES
DESISTÊNCIA DO PEDIDO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/24/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: I- A intervenção do Ministério Público na propositura da acção de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, introduzida no CPT pela L. 63/2013, de 27/8,  faz-se, em 1º lugar, em defesa do interesse do “trabalhador” a que a acção diz respeito e, só secundariamente, em defesa do interesse público de combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado.

II- Sendo o contrato de trabalho (tal como o de prestação de serviços) um contrato de direito privado, é disponível o direito dos respectivos outorgantes a verem jurisdicionalmente definida a respectiva qualificação jurídica.

III- Isso decorre aliás da própria lei ao prever, no art. 186º-O do CPT que, estando presentes ou representados o ”trabalhador” e o empregador, o juiz realiza audiência de partes, procurando conciliá-los (mesmo que o “trabalhador” não tenha aderido aos factos apresentados pelo M.P., apresentado articulado próprio, nem constituído mandatário).

IV- Se o “trabalhador” manifesta vontade de desistir do pedido e não houver razões para pôr em causa que tal declaração é consciente e livre, nada obsta a que se homologue a desistência e julgue extinto o direito que se pretendia fazer valer.
     (Elaborado pela Relatora)

Decisão Texto Parcial:Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa

          Proposta pelo Ministério Público contra AA, S.A. a presente acção especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho relativamente à relação existente entre a R. e BB, após apresentação de contestação pela demandada, foi marcada audiência de julgamento, e, na data para tal designada, estando presentes empregador e “trabalhadora”, a Srª Juíza em audiência de partes procurou conciliá-las, o que conseguiu, tendo a trabalhadora declarado não pretender o prosseguimento dos autos e desistir do pedido formulado na acção.

           Foi então proferida o seguinte despacho:

  “Na presente acção especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, pese embora o impulso processual caiba ao Mº Pº, estão em causa direitos disponíveis. Por conseguinte, tendo em conta a manifestação de vontade da titular do interesse que se pretende proteger com a propositura da presente acção, é entendimento do Tribunal que o Mº Pº não tem legitimidade para se pronunciar quanto à desistência do pedido apresentado pela titular do interesse que se pretende proteger.

Pelo exposto, homologo a desistência do pedido e, consequentemente, declaro extinto o direito que se pretendia fazer valer na presente acção.

  Sem custas, por a acção ter sido intentada pelo Mº Pº e a interessada Natacha Nunes Melão não ter intervindo formalmente nos autos.”

O Ministério Público interpôs recurso, formulando nas respectivas alegações as seguintes conclusões:

(…)

          A R. contra-alegou, pugnando pela confirmação do despacho recorrido.

       O objecto do recurso consiste no essencial em saber se, sendo a acção intentada pelo Ministério Público, a trabalhadora em cujo interesse o M.P., agiu pode desistir do pedido.

        Os factos com relevância para a decisão constam com clareza do relatório, pelo que nos dispensamos de os elencar.

            Cumpre apreciar.

Estamos perante uma acção prevista nos art. 186º-K a 186º-R do CPT, preceitos introduzidos neste código pela L. 63/2013, de 27/8, que visou a instituição de mecanismos de combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado.

O mesmo diploma aditou também um artigo – o 15º-A – ao regime das contra-ordenações laborais e da segurança social (L. 107/2009 de 14/9) sobre o procedimento a adoptar quando o inspector do trabalho detecte a existência de uma situação de prestação de actividade aparentemente autónoma, em condições análogas ao contrato de trabalho.

Esse procedimento passa pela atribuição ao empregador de um prazo de 10 dias para regularizar a situação ou dizer o que tiver por conveniente, sendo que, se findo esse prazo a situação do “trabalhador” não estiver regularizada, é remetida ao M.P. da área da residência do “trabalhador” participação dos factos, acompanhada dos meios de prova, para que seja instaurada a acção de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, ficando o procedimento contra-ordenacional suspenso até ao trânsito em julgado da decisão da referida acção (de simples apreciação positiva).

Os art. 186º- K e 186º-L do CPT vieram assim atribuir competência ao M.P. para intentar, em 20 dias, a aludida acção, que não carece de ser articulada, devendo conter exposição sucinta da pretensão e respectivos fundamentos. O empregador é citado para contestar em 10 dias e, ao “trabalhador” são remetidos, com a notificação da data da audiência de julgamento, duplicados da petição inicial e da contestação, sendo advertido de que pode, em 10 dias, aderir aos factos apresentados pelo M.P., apresentar articulado próprio e constituir mandatário.

Prosseguindo a acção para julgamento[1], a ter lugar em 30 dias, dispõe o art. 186º- O que, estando presentes ou representados o empregador e o “trabalhador”, realiza-se audiência de partes com vista a tentar a conciliação.

Foi o que sucedeu no caso em apreço, tendo aí a “trabalhadora” declarado “não pretender o prosseguimento da acção intentada pelo M.P. para reconhecimento da existência de um contrato de trabalho entre si e a AA, S.A.”. (cfr. acta fls. 87).

Porque o autor na presente acção é o Ministério Público, coloca-se a questão de saber em que qualidade age, se em defesa do interesse da trabalhadora referenciada nos autos  ou / e, se age, (igualmente), no interesse público de combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado[2], em conformidade com o disposto pelos art. 1º e 3º nº 1 al. p) do Estatuto do Ministério Público aprovado pela L. 47/86, de 15/10, republicado pela L. 60/98 de 27/8 e alterado pelas L. nº 42/005, de 29/8, 67/2007, de 31/12, 52/2008, de 28/8, 37/2009, de 20/7, 55-A/2010, de 31/12 e 9/2011, de 12/4.

Com efeito, determina o art. 1º do mencionado estatuto que “o Ministério Público representa o Estado, defende os interesses que a lei determinar, … defende a legalidade democrática, nos termos da Constituição e da lei”, competindo-lhe especialmente, conforme resulta do art. 3º nº 1, além do mais, “p) exercer as demais funções conferidas por lei”.

Ora, entre as funções que lhe são conferidas por lei, conta-se, nos termos dos art. 186º-K e 186º-L do CPT, a propositura desta nova acção especial de simples apreciação positiva, denominada de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, sempre que a ACT lhe participe factos que indiciem que determinada relação, sob a aparência de prestação de serviços ou de trabalho autónomo, configura na realidade uma situação análoga ao contrato de trabalho. 

Subjacente a tal actuação do M.P. afigura-se-nos estar, antes de mais, o interesse do próprio “trabalhador” a que a acção diz respeito, e só num plano secundário, o interesse da colectividade no combate à precariedade no trabalho - que afecta sobretudo, mas não só, os jovens, e que, como é sabido, tem reflexos tão negativos no todo social, como é, por exemplo o acentuado decréscimo da natalidade, que as estatísticas vêm revelando  (se bem que haja também outros factores para tal).

Apesar de a lei determinar que o Ministério Público intente tal acção, quando lhe forem participados os factos pertinentes para o efeito, sendo, como é, indiscutivelmente, o contrato de trabalho um contrato de direito de privado, cremos não poder negar-se aos outorgantes do contrato cuja qualificação jurídica é suscitada em tribunal pelo M.P., o direito de ver, ou não, essa questão jurisdicionalmente decidida. É, aliás, a lei que, ao estabelecer no art. 186º-O do CPT[3] que “se o empregador e o trabalhador estiverem presentes ou representados, o juiz realiza a audiência de partes, procurando conciliá-los”, deixa claro que o direito em causa – de ver jurisdicionalmente definida a qualificação jurídica do contrato – é disponível, pois, de outro modo, não se compreenderia a previsão legal de tal tentativa de conciliação, sendo certo que o que está em causa na acção é apenas e só o reconhecimento da existência de um contrato de trabalho. Não faria sentido, salvo o devido respeito, prever a realização de uma tentativa de conciliação se a única conciliação possível passasse apenas pela confissão, por parte do empregador, da pretensão formulada nos autos, como vem sustentar o recorrente. A tentativa de conciliação visa, em princípio, alcançar uma transacção, através de cedências recíprocas.

Embora, no caso, a “trabalhadora” não tivesse aderido aos factos apresentados pelo M.P., nem apresentado articulado próprio ou constituído mandatário, como lhe era facultado pelo nº 4 do art. 186º-L, a partir do momento em que foi ouvida em audiência de partes, conforme previsto no nº 1 do art. 186º-O, assumiu, inequivocamente a posição de parte na acção, mais precisamente de autora, uma vez que é titular da relação material controvertida, tendo por isso interesse directo na demanda, que se exprime pela utilidade que para si derivaria da procedência da acção. Em suma, tem legitimidade activa (cfr. art. 30º do CPC). A própria previsão legal desta diligência – audiência de partes com “empregador” e “trabalhador” - revela que o legislador equaciona a acção em causa como visando resolver a dúvida que se suscita quanto àquela concreta relação, considerando o “trabalhador” como parte, ainda que o mesmo não tenha até então aderido aos factos apresentados pelo M.P. ou sequer apresentado articulado próprio.

Assim sendo e tratando-se, como vimos, de um direito disponível, podia a “trabalhadora” desistir do pedido conforme previsto no art. 283º do CPC.

Não acompanhamos, porém, a Srª Juíza recorrida quando afirma que “o M.P. não tem legitimidade para se pronunciar sobre a desistência do pedido apresentado pela titular do interesse que se pretende proteger”.

Sendo o M.P., até então, por imposição da lei, o A. na acção, não podia, em nosso entender, deixar de ser ouvido sobre a desistência do pedido formulada pela “trabalhadora”, o que não significa, de modo algum, que se porventura manifestasse discordância da posição assumida pela “trabalhadora” (como a posição assumida no presente recurso permite presumir que faria), a sua posição devesse prevalecer sobre aquela, devendo, em todo o caso, ser devidamente ponderada no âmbito da apreciação a que se refere o art. 52º do CPT.

Ainda que o M.P. invocasse como fundamento de oposição a defesa do interesse público no combate à precariedade laboral, maxime ao fenómeno dos falsos contratos de prestação de serviços, não encontramos na lei razões que imponham que o interesse público, que como atrás referimos, assume no caso relevância secundária face ao interesse da “trabalhadora” a que os autos dizem respeito, deva sobrepor-se à manifestação de vontade livremente manifestada por esta, primeira titular do interesse directo na propositura da acção. Como atrás referimos, a previsão de audiência de partes para realização tentativa de conciliação leva-nos a concluir precisamente o contrário.

Ao homologar a desistência do pedido, a Srª Juíza considerou que a manifestação de vontade expressa pela trabalhadora era consciente e livre, sendo certo que o direito que estava em causa era disponível, cumprindo assim o disposto pelo art. 52º do CPT.

Não fornecem os autos elementos concretos que permitam concluir que tal juízo padeça de erro, mormente nada permite considerar, ao contrário do que alega o recorrente, que a desistência e a homologação tivessem visado iludir as disposições previstas na lei aplicáveis ao contrato de trabalho, em prejuízo do interesse e dos direitos da “trabalhadora” BB.

E, não obstante o M.P. não ter sido ouvido sobre a desistência do pedido pela A./“trabalhadora”, a irregularidade processual decorrente dessa omissão encontra-se sanada, face à tomada de posição entretanto assumida pelo M.P. neste recurso.

Em suma, não vemos razões para julgar procedentes os fundamentos do recurso, sendo pois de confirmar a decisão recorrida.

            Decisão

Tudo visto e ponderado acordam as juízas deste Tribunal da Relação em confirmar a decisão recorrida, julgando improcedente o recurso.

Sem custas, atenta a isenção de que goza o recorrente (art. 3º nº 1 al. a) do RCP).

            Lisboa, 24 de Setembro de 2014

           Maria João Romba

            Paula Sá Fernandes

            Filomena Manso

[1] Caso tenha sido contestada e não ocorra excepção dilatória, nem seja julgado o pedido manifestamente improcedente.
[2] Atente-se na Exposição de Motivos do Projecto de Lei nº 142//XII (iniciativa legislativa de cidadãos), que desencadeou o processo legislativo que culminou  na lei 63/2013, in DAR de 4/7/2012.
[3] Sob a epígrafe “audiência de partes e julgamento”.

Decisão Texto Integral: