Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
244/20.9PCCSC.L1-5
Relator: ARTUR VARGUES
Descritores: POLÍCIAS MUNICIPAIS
COMPETÊNCIA
TESTE DE ALCOOLÉMIA
CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/23/2021
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: - Como resulta do artigo 4º, alínea b), da aludida Lei nº 19/2004, a Polícia Municipal tem competência para a fiscalização do cumprimento das normas de estacionamento de veículos e de circulação rodoviária, mas está excluída a participação de acidentes de viação que envolvam procedimento criminal.
- Porque assim é, estando vedado às polícias municipais o exercício de competências próprias dos órgãos de polícia criminal, não podemos deixar de concluir que lhe faltava competência para determinar ao arguido a realização do exame para quantificação da taxa de álcool no sangue através do ar expirado, que se traduz numa recolha de prova em ordem à sua apresentação a julgamento pela prática de crime de condução de veículo em estado de embriaguez, com observância das formalidades previstas no artigo 153º, do Código da Estrada e que nestas se incluem, manifestamente
- Se aos agentes da Polícia Municipal faltava competência para intimar ao arguido a ordem para se submeter ao exame para quantificação da taxa de álcool no sangue através do ar expirado, a recusa do mesmo não se enquadra no crime de desobediência, por falta daquele pressuposto objectivo do tipo de ilícito – legitimidade da ordem.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I - RELATÓRIO
1. Nos presentes autos com o nº 244/20.9PCCSC, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste – Juízo Local de Pequena Criminalidade de Cascais, em Processo Especial Sumário, foi o arguido PM condenado, por sentença de 13/07/2020, pela prática de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, p. e p. pelo artigo 353º, do Código Penal, na pena de 14 meses de prisão, a executar em regime de permanência na habitação, sujeita a meios electrónicos de controlo à distância, ficando este regime condicionado à sujeição a tratamento clínico de desabituação de substâncias e a frequência de acção de formação no quadro da segurança rodoviária, nos termos do artigo 43º, nº 4, alínea c), do mesmo Código.
Foi absolvido da prática de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348º, nº 1, alínea a), do Código Penal ex vi artigo 152º nº 3, do Código da Estrada, de que se encontrava acusado.
2. O Ministério Público não se conformou com a decisão e dela interpôs recurso, tendo extraído da motivação as seguintes conclusões (transcrição):
1. O Ministério Público, em processo especial sumário, deduziu acusação contra o arguido PM imputando-lhe a prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelos artigos 348.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, ex vi artigo 152.º, n.º 3 do Código da Estrada, e um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, previsto e punido pelo artigo 353.º do Código Penal.
2. Realizada a audiência de discussão e julgamento, o Tribunal a quo proferiu sentença em que decidiu condenar o arguido pela prática do crime de violação de proibições, previsto e punido pelo artigo 353º do Código Penal, e decidiu absolver o arguido da prática do crime de desobediência, previsto e punido pelos artigos 348.º, n.º 1, al. a), do Código Penal.
3. O Tribunal a quo mal andou ao decidir absolver o arguido da prática do crime de desobediência previsto e punido pelos artigos 348.º, n.º 1, al. a), do Código Penal.
4. A decisão recorrida mostra-se ferida dos vícios constantes na alínea b) do n.º 1 do artigo 410.º referido diploma, quer no que respeita à decisão da matéria de facto, quer quanto ao enquadramento jurídico-penal.
5. O Tribunal a quo interpretou e aplicou de forma errada o direito.
6. O Tribunal a quo deu como provado, além do mais, que:
No dia 7 de Junho de 2020, pelas 6 horas e 05 minutos, na Avenida da República, no Estoril, área da Comarca de Cascais, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula XX-XX-XX.
Nessa mesma ocasião de tempo e lugar encontram-se em exercício de funções os agentes da Polícia Municipal (POLMUN) PC , MG e JR , os quais estavam em carro patrulha caracterizado com as insígnias da policia municipal e devidamente uniformizados.
Após ter sido abordado, foi determinado ao arguido, por elemento da policia municipal no exercício de funções de fiscalização do trânsito, que se submetesse ao teste de despistagem de álcool no sangue.
No mesmo teste (qualitativo) o arguido acusou a taxa de 2,20 g/l de álcool por litro de sangue.
Foi então determinado ao arguido que acompanhasse os agentes da POLMUN ao Departamento Camarário respectivo.
Chegados ao local, o arguido recusou realizar do teste quantitativo, com vista à determinação pericial da taxa de alcoolemia evidenciada.
Advertido de que incorreria na prática de um crime de desobediência, o arguido recusou submeter-se à realização dessa prova.
Ao agir do modo acima descrito o arguido previu e quis recusar submeter-se ao teste de pesquisa de álcool no sangue não acatando ordens transmitidas por elemento da Policia Municipal.
O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente bem sabendo que toda a sua conduta supra descrita era vedada por lei penal, por ser ilícita e criminalmente punida, e tendo capacidade de se determinar de acordo com as prescrições legais, não se inibiu de a levar a cabo.
7. O Tribunal a quo deu como não provado que “o arguido agiu com o propósito logrado de se furtar à realização do teste quantitativo de pesquisa de álcool no sangue, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei.”
8. Existe contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão porquanto o Tribunal a quo deu como provado, simultaneamente, um facto e o seu contrário.
9. Existe contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão porquanto o Tribunal a quo deu como provado que “o arguido recusou realizar do teste quantitativo, (...) Advertido de que incorreria na prática de um crime de desobediência, o arguido recusou submeter-se à realização dessa prova” e que “Ao agir do modo acima descrito o arguido previu e quis recusar submeter-se ao teste de pesquisa de álcool no sangue não acatando ordens transmitidas por elemento da Policia Municipal” porém, simultaneamente deu como não provado que o arguido tenha agido com o propósito logrado de se furtar à realização do teste quantitativo de pesquisa de álcool no sangue, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei.
10. “A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, corresponde, genericamente, à afirmação simultânea de uma coisa e do seu contrário, vale por dizer, quando se considera provado e não provado o mesmo facto, ou quando se dão como provados factos antagónicos ou quando esse antagonismo intrínseco e inultrapassável se estabelece na fundamentação probatória da matéria de facto, ou entre a fundamentação e a decisão, a ponto de se tornar evidente, a partir da simples leitura do texto que dessa fundamentação deveria resultar decisão oposta àquela que foi tomada.”
11. O que nos parece ser o caso in casu.
12. Os factos dados por provados pelo Tribunal a quo preenchem todos os elementos objectivos e subjectos do tipo legal de crime de desobediência, pelo que o Tribunal a quo, ao analisar o direito aplicável, deveria ter decidido condenar o arguido pela prática do crime de desobediência e não absolvê-lo, como o fez.
13. O Tribunal a quo concluiu, erradamente, pela ilegitimidade da policia municipal para sujeitar os condutores fiscalizados a teste quantitativo de pesquisa de álcool no sangue, concluiu, erradamente, pela ilegitimidade da ordem dada pela policia municipal para o condutor se sujeitar a teste quantitativo de pesquisa de álcool no sangue e conclui, erradamente, pela ilegitimidade da cominação feita pela Policia municipal ao condutor fiscalizado que, caso se recuse submeter-se a exame, incorreria na prática do crime de desobediência.
14. Nos termos do disposto no artigo 3º, al. e), da Lei n.º 19/2004 (que tem por objecto a revisão da lei quadro que define o regime e forma de criação das polícias municipais), uma das competências atribuídas por lei à Policia Municipal prende-se com competências relativas à “Regulação e fiscalização do trânsito rodoviário e pedonal na área de jurisdição municipal.”
15. O artigo 152º, n.º 1, al a) e n.º 3 do Código da Estrada, determina a obrigação dos condutores de se submeterem às provas estabelecidas por lei para a deteção dos estados de influencia do álcool e que a recusa de submissão a tais provas para a deteção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas são punidas por crime de desobediência.
16. O artigo 153.º do Código da Estrada estipula que os exames de deteção dos estados de influencia do álcool são realizados “por autoridade ou agente de autoridade mediante a utilização de aparelho aprovado para o efeito.
17. A conjugação das normas mencionadas determina que as Policias Municipais, para efeitos de realização de exames de deteção dos estados de influencia do álcool são “autoridade” nos termos do artigo 153.º, do Código da Estrada.
18. Ao contrário do decidido em sede de Sentença, a Policia Municipal tinha competência para realizar exame quantitativo de pesquisa de álcool no sangue ao arguido destes autos;
19. A lei impõe, na sequência da realização de exame qualitativo que indicie a presença de álcool no sangue, a realização de exame quantitativo.
20. Ao contrário do decidido em sede de Sentença, a Policia Municipal tinha competência para dar ordem ao arguido para se submeter a tal exame de pesquisa de álcool no sangue;
21. Ao contrário do decidido em sede de Sentença, a ordem emanada pela Policia Municipal ao arguido para este se submeter a teste de pesquisa de álcool no sangue foi legítima e emitida por autoridade com competência para emanar essa ordem.
22. Mal decidiu o Tribunal a quo ao decidir absolver o arguido do crime de desobediência.
23. A Policia Municipal tem competência para recolher a prova relacionada com a submissão dos condutores a teste de pesquisa de álcool no sangue na sequência de fiscalização rodoviária na área do município.
24. A Policia Municipal pode transportar os condutores que acusem álcool no sangue após teste qualitatitivo às instalações da Policia Municipal para submissão desses condutores a teste quantitativo de pesquisa de álcool no sangue.
25. Mal entendeu o Tribunal a quo ao decidir tratar-se de um elemento de prova proibido o resultado do teste quantitativo de pesquisa de álcool no sangue realizado pela Policia Municipal por não ser um elemento de prova que possa ser recolhido pela Policia Municipal uma vez que tal possibilidade decorre directamente da lei.
26. O Ministério Público, recorrente, subscreve na íntegra os fundamentos expendidos no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, pela 3ª Secção, no âmbito do processo 34/20.9PBCSC.L1, os quais se aplicam, na íntegra, ao caso sob apreciação.
27. “Pretender como se argumenta na sentença que a polícia municipal deveria ter chamado ao local a PSP, é uma solução possível e até, eventualmente, a ideal, mas a verdade é que, mesmo sendo a PSP, na sua qualidade de órgão de polícia criminal, a formalizar a detenção, tal não neutraliza a consideração de que depois de despistada a existência de álcool, O condutor fica legalmente impedido de conduzir, durante as 12 horas seguintes, conforme previsão contida no art. 154º do CE, o teste quantitativo do álcool é obrigatório e ainda está no âmbito das competências da polícia municipal realizá-lo, pelo que mesmo que depois do despiste qualitativo, sendo o teste quantitativo obrigatório porque só ele providencia a concreta TAS e só depois desse exame sendo possível a elaboração do auto de notícia.
28. É que, sendo a polícia municipal uma entidade policial, tem competência para a elaboração de auto de notícia relativamente a crime de denúncia obrigatória que presencie (artigo 243º do CPP) ou para a detenção em flagrante delito (artigo 255ºdo CPP).
29. O artigo 4º nº 1 alínea e) da Lei n.º 19/2004, incluí entre as competências próprias da polícia municipal, a detenção e entrega imediata, a autoridade judiciária ou a entidade policial, de suspeitos de crime punível com pena de prisão, em caso de flagrante delito, nos termos da lei processual penal. Pese embora não deva usar do prazo de 48 horas previsto no art. 254º nº 1 al. a) do CPP, a alusão a entrega imediata reforça a necessidade de o detido ser entregue com urgência, no mais curto espaço de tempo possível, mas é compatível com a elaboração do auto de notícia pela polícia municipal, o qual não prescinde da realização prévia do teste quantitativo do álcool e, uma vez realizado este e obtida uma TAS superior a 1,20 gr/litro está perfeitamente consolidado o flagrante delito.
30. Acresce ao que fica dito que, se, por um lado, por imposição do art. 2º nº 1 da Lei 18/2007 de 17 de Maio, quando o teste realizado em analisador qualitativo indicie a presença de álcool no sangue, o examinando é submetido a novo teste, a realizar em analisador quantitativo, devendo, sempre que possível, o intervalo entre os dois testes não ser superior a trinta minutos, por outro lado, a polícia municipal tem, entre as suas competências próprias, de acordo com as disposições conjugadas dos artigos 4º nº 1, alínea f), da Lei n.º 19/2004, e do artigo 249º nºs 1 e 2, alínea c), do CPP, praticar os actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova, até à chegada do órgão de polícia criminal competente, perante os crimes de que tiverem conhecimento no exercício das suas funções. “
31. «A entrega dos suspeitos pode, no entanto, como faculta o citado preceito, ser feita ao órgão de polícia criminal competente, podendo efectivar-se no próprio local onde se verificou o crime, nas instalações da autoridade de segurança receptora, ou nas instalações da polícia municipal. (...). O que importa é que, como bem decorre da lei, a entrega se efectue no espaço de tempo mais célere que for possível.»
32. Acresce que, neste quadro normativo, não há qualquer razão juridicamente válida para distinguir, como parece ter sido o caso da sentença recorrida, nas competências de fiscalização da circulação rodoviária e de detenção em situações de flagrante delito, relativas a crimes puníveis com penas de prisão atribuídas à polícia municipal, entre o teste qualitativo e o teste quantitativo do álcool.
33. Ela não tem sustentação no texto da lei (e onde o legislador não distingue, não deve o intérprete distinguir, além de ter de se levar em consideração o princípio de que o legislador optou pelas melhores soluções de direito e soube exprimir correctamente o seu pensamento no texto da lei - art. 9º do CC), nem razão de ser, sob pena, de se converter em letra morta, uma opção legislativa clara no sentido de conferir às polícias municipais um papel coadjuvante dos OPC e das autoridades judiciárias, é certo que em termos muito limitados, às situações de flagrante delito e apenas por crimes puníveis com penas de prisão, mas que não pode ser desligada do intuito de tornar mais eficaz o combate ao crime, embora mantendo a natureza administrativa desta força policial.
34. As policias municipais podem sujeitar os condutores de veículos na via pública a testes qualitativos de pesquisa de álcool no sangue, podem, em função do resultado desses testes, submeter os condutores a teste quantitativo de pesquisa de álcool no sangue, podem transportar o condutor para as suas instalações (instalações da policia municipal para submissão a teste quantitativo) e, em função do resultado de tais testes, podem proceder à detenção dos condutores suspeitos que acusem uma taxa de álcool no sangue acima do limite legal - taxa crime.
35. Se, por um lado, os agentes da policia municipal podem fiscalizar condutores, tal decorre da lei, por outro, os condutores estão legalmente obrigados a sujeitar-se a testes de pesquisa de álcool no sangue (artigo 152.º, do CE).
36. É a lei que tipifica como crime de desobediência a conduta do condutor que se recuse submeter-se a tal teste de pesquisa de álcool no sangue, não sendo necessária a realização de qualquer cominação pelo agente fiscalizador.
37. A conclusão lógica e única legalmente admissível é que o arguido nestes autos, ao recusar-se submeter-se a teste de pesquisa de álcool no sangue perante a policia municipal nas instalações da policia municipal, praticou o crime de desobediência.
38. A sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que condene o arguido PM , pela prática de um crime de violação de imposições proibições ou interdições, previsto e punido pelo artigo 353º do Código Penal e pela prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelos artigos 348º, n.º 1, al. a) do Código Penal, por referência ao art.º 152º, n.º 1, al a) e n.º 3 do Código da Estrada, e na pena acessória prevista no artigo 69º, n.º 1, al. c) do Código Penal.
39. Atentos os antecedentes criminais do arguido, as penas a aplicar não poderão deixar de ser penas de prisão.
Pelo exposto, deve o presente recurso merecer provimento, revogando-se a decisão judicial recorrida e substituindo-a por outra nos termos determinados.
3. Inexiste resposta à motivação de recurso.
4. Nesta Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
5. Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, nº 2, do CPP, não tendo sido apresentada resposta.
6. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
II - FUNDAMENTAÇÃO
1.   Âmbito do Recurso
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410º, nº 2, do CPP – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/99, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.
No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, as questões que se suscitam são as seguintes:
Verificação do vício previsto no artigo 410º, nº 2, alínea b), do CPP.
Enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido.
2.   A Decisão Recorrida
O Tribunal a quo deu como provados os seguintes factos (transcrição):
1. Por sentença proferida em 26.06.2018, no processo sumário n.º 119/18.1PFCSC, do Juízo Local de Pequena Criminalidade de Cascais, foi o arguido PM condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 5 meses de prisão efectiva, a cumprir em regime de permanência na habitação, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 22 (vinte e dois) meses.
2. Tal sentença transitou em julgado em 28.05.2018.
3. Para cumprimento da proibição de conduzir aplicada, o título de condução do arguido foi remetido pelo processo 35/16.1PAOER para o processo 119/18.1PFCSC no dia 25.06.2019 iniciando-se, nessa data, o cumprimento pelo arguido da pena acessória de proibição de condução de veículos com motor.
4. Porém, no dia 7 de Junho de 2020, pelas 6 horas e 05 minutos, na Avenida da República, no Estoril, área da Comarca de Cascais, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula XX-XX-XX.
5. Nessa mesma ocasião de tempo e lugar encontram-se em exercício de funções os agentes da Polícia Municipal (POLMUN) PC , MG e JR , os quais estavam em carro patrulha caracterizado com as insígnias da polícia municipal e devidamente uniformizados.
6. Após ter sido abordado, foi determinado ao arguido, por elemento da polícia municipal no exercício de funções de fiscalização do trânsito, que se submetesse ao teste de despistagem de álcool no sangue.
7. No mesmo teste (qualitativo) o arguido acusou a taxa de 2,20 g/l de álcool por litro de sangue.
8. Foi então determinado ao arguido que acompanhasse os agentes da POLMUN ao Departamento Camarário respectivo.
9. Chegados ao local, o arguido recusou realizar do teste quantitativo, com vista à determinação pericial da taxa de alcoolemia evidenciada.
10. Advertido de que incorreria na prática de um crime de desobediência, o arguido recusou submeter-se à realização dessa prova.
11. Ao agir do modo acima descrito o arguido previu e quis recusar submeter-se ao teste de pesquisa de álcool no sangue não acatando ordens transmitidas por elemento da Policia Municipal.
12. Em circunstância não concretamente apuradas, os agentes da POLMUN decidiram algemar o arguido.
13. Cerca de 40 min. mais tarde entregaram-no, ainda algemado (?!) na Esquadra da PSP do Estoril.
14. Nessa ocasião, o período de interdição de conduzir automóveis ainda não havia findado, mantendo-se a carta de condução do arguido retida à ordem do processo 119/18.1PFCSC.
15. Não obstante saber que estava proibido, por sentença criminal, de conduzir veículos com motor pelo período de 22 meses, o arguido decidiu exercer a actividade da condução, no período de cumprimento da aludida pena acessória, bem sabendo que tal actividade lhe estava vedada.
16. O arguido agiu com o propósito de conduzir na via pública e com o propósito de violar uma proibição que lhe havia sido regular e legalmente comunicada.
17. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente bem sabendo que toda a sua conduta supra descrita era vedada por lei penal, por ser ilícita e criminalmente punida, e tendo capacidade de se determinar de acordo com as prescrições legais, não se inibiu de a levar a cabo.
Mais se provou que:
18. O arguido sofreu já as seguintes condenações:
i. Pela prática, em 24.12.1998, de crime de condução sem habilitação legal, na pena de cinquenta dias de multa, à taxa diária de 500$.
ii. Pela prática, em 31.07.2000, de crime de condução sem habilitação legal, na pena de duzentos dias de multa, à taxa diária de 400$.
iii. Pela prática, em 30.08.1999, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de € 4,99.
iv. Pela prática, em 10.10.1998, de um crime de receptação, na pena de 210 dias de multa à taxa diária de € 1,99.
v. Pela prática, em 27.07.2003, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de duzentos dias de multa, à taxa diária de € 2.
vi. Pela prática, em 10.03.2004, de um crime de condução sem habilitação legal na pena de sete meses de prisão, suspensa pelo período de dois anos.
vii. Pela prática, em 12.04.2004, de um crime de ofensa à integridade física, na pena de 220 dias de multa, à taxa diária de € 6,00.
viii. Pela prática, em 11.12.2008, de um crime de condução sem habilitação legal na pena de sete meses de prisão, suspensa pelo período de um ano.
ix. Pela prática, em 05.06.2007, em concurso real, de um crime de condução sem habilitação legal e de um crime de desobediência, na pena de oitenta dias de multa, à razão diária de € 5,00;
x. Pela prática, em 06.04.2009, de um crime de condução sem habilitação legal na pena de 18 períodos de prisão por dias livres.
xi. Pela prática, em 01.02.2007, de um crime de condução sem habilitação legal em concurso real com crime de desobediência na pena de oito meses de prisão, suspensa pelo período de um ano;
xii. Pela prática, em 16.04.2010, de um crime de condução sem habilitação legal em concurso real com crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de vinte meses de prisão;
xiii. Pela prática, em 29.02.2016, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de quatro meses de prisão;
xiv. Pela prática, em 29.02.2016, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de vinte e três períodos de prisão por dias livres.
xv. Pela prática, em 24.02.2018, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de cinco meses de prisão, a cumprir em regime de permanência na habitação e em vinte e dois meses de inibição de condução de veículos a motor.
xvi. Pela prática, em 07.04.2018, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez em concurso real com um crime de violação de proibições, na pena de nove meses de prisão, suspensa na sua execução por um ano e em dez meses de inibição de condução de veículos a motor.
xvii. Pela prática, em 04.04.2018, de um crime de violação de proibições, na pena de nove meses de prisão, a cumprir em regime de permanência na habitação.
19. O arguido reside na companhia do pai, um primo e de uma irmã, que padece de deficiência, e cujo cuidado e auxílio o arguido assegura.
20. É pai de três filhos, de quinze, doze e nove anos de idade, com quem mantém ligação e que vivem com as respetivas progenitoras no mesmo meio residencial.
21. Dentro de cerca de dois meses será pai de outra criança.
22. O arguido trabalha para a empresa "L.", localizada na zona do Cacém, na qual exerce funções de ajudante de armazém.
23. Aufere cerca de € 700,00 (setecentos euros) e paga € 52,00 (cinquenta e dois euros) de renda de casa, custeando o seu sustento e o de sua irmã.
24. As rotinas laborais que o arguido tem atualmente, de segunda a sábado, passam pela saída de casa por volta das 12h30, deslocação da zona de residência para o local de trabalho em carrinha da empresa e regresso ao final do dia (entre as 19h00 e as 21h00, variável de acordo com o volume de trabalho diário) com um conhecido que vive em Porto Salvo e que o traz na sua viatura.
25. O arguido assume algum excesso em contextos de convívio com amigos e conhecidos mas, tende a desvalorizar o problema e a minimizar as consequências desses mesmos hábitos ao nível do inerente descontrole comportamental, o que constitui um forte fator de risco de reiteração de condutas.
26. O arguido deu o seu assentimento à sujeição a tratamento da dependência alcoólica.
Quanto aos factos não provados, considerou como tal (transcrição):
a) No enquadramento do descrito em 11., o arguido agiu apesar de saber que este (agente da POLMUN) tinha poderes para o efeito e quais as legais consequências do seu não acatamento.
b) De igual modo, o arguido agiu com o propósito logrado de se furtar à realização do teste quantitativo de pesquisa de álcool no sangue, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei.
Fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):
Para decidir da factualidade tal como acima consta fixada, baseou-se o Tribunal na prova testemunhal produzida, de acordo com o prescrito nos art. 128.º a 130.º e 348.º do CPP e ainda na prova documental junta aos autos, ao abrigo do art. 340.º e por referência aos art. 164.º e 165.º do CPP, tudo, como se verá adiante, através da análise crítica e conjugada dos meios de prova ao alcance do Tribunal, com vista à descoberta da verdade material e em abono da livre apreciação daquela, mediante parâmetros objectiváveis e motiváveis (art. 127.º do CPP) e fazendo jus aos princípios e regras básicas de produção e valoração de prova em direito processual penal.
Observemos em pormenor:
Prestaram depoimento os agentes da Polícia Municipal que tomaram conta da ocorrência, como autuantes relativamente à mesma, ou através do seu testemunho de como decorreu a fiscalização, MG, JR e PC que declararam a propósito:
- O arguido dirigia a viatura em causa abordando no circunstancialismo acima descrito por ter invertido de forma abrupta e contra as regras estradais o sentido da marcha;
- Interceptaram-no e, como ostentava "odor alcoólico", realizaram o respectivo teste de despiste, através do "alcoolímetro qualitativo".
- Neste momento o arguido admitiu logo que tinha a carta apreendida e "a muito custo consegui(mos) confirmar a informação junto da PSP".
-Tendo o arguido acusado taxa considerada crime (2,20 g/l de sangue), prontamente lhe determinaram que saísse da viatura e os acompanhasse no próprio "carro de patrulha", para o Departamento Municipal.
- Questionados acerca da natureza de tal teste, um dos agentes (PC) afirmou que se tratava de um "mero teste de despistagem" que apresentava um valor aproximado mas que "não servia para nada" (por não poder ser utilizado como prova do cometimento do ilícito);
- Chegados às instalações da POLMUN o arguido recusou a realização de teste quantitativo.
- Como recusava colaboração e "encostou a cabeça" a quem lhe estava a fazer o teste "acharam por bem algemá-lo e depois de elaborar(em) o expediente respectivo levaram-no à Esquadra do Estoril"(PC /JR  - sic);
- As orientações que têm da chefia e do MP da Comarca é que "tudo o que sejam crimes relativamente ao Código da Estada só entregam(os) o cidadão já detido e depois da elaboração do expediente" (PC /JR  - sic) e, sendo o caso, recolha de prova.
-Acrescentaram que explicaram ao arguido que "tinha de soprar, sob pena de cometer um crime de desobediência e que, no limite, se não estivesse em condições de o realizar, que estava porque tinha acabado de fazer o outro, no limite poderia ir fazer um teste de sangue". (sic)
Todos os agentes prestaram depoimento de forma medianamente segura, espontânea e objectiva, pelo que os seus depoimentos foram levados em conta pelo Tribunal porque credíveis, por referência à forma como se passam as situações em casos análogos (do conhecimento judicial da signatária, atenta a função desempenhada).
Prestou também declarações o agente da PSP do Estoril, ES , que naquela noite estava de serviço de graduado à esquadra respectiva:
- Referiu que foi previamente contactado no sentido de saber à ordem de que processo estava a carta do agora arguido apreendida, mas que não soube indicar especificamente por não ter acesso informático (atentas as suas permissões) ao sistema centralizado de informação em causa.
- Que num período inferior a duas horas (segundo o que surge indicado nos escritos da POLMUN) entregaram o arguido, algemado, na esquadra;
- Que lhe foram retiradas no imediato as algemas e que junto dos agentes da PSP manteve sempre uma postura colaborante, cordata e educada. Foi respeitoso com os mesmos e referiu que um dos agentes da POLMUN tinha sido rude consigo e tinha ficado muito desagradado da forma de abordagem empreendida pelo mesmo, dali a situação de coação física em que foi apresentado (referenciou que a altercação também vinha narrada no "auto" da POLMUN).
- Lavrou o expediente de acordo com uma directiva de colaboração das actividades dos OPC e POLMUN, datada de Março deste ano e notificou o arguido para comparecer em Tribunal.
- Do auto lavrado por si referiu que teve por base o narrado pelos agentes da POLMUN e que o próprio não testemunhou directamente (à imagem do que faz quando um cidadão se desloca à Esquadra para apresentar uma queixa/denúncia).
Na segunda sessão de julgamento, o arguido, que compareceu sob custódia, assentiu a prestar declarações. Fê-lo também nesta sessão:
Respondeu de forma objectiva e espontânea, no sentido de que quando interceptado havia acompanhado os agentes (uniformizados e armados, acrescentamos nós) porque lhe ordenaram que o fizesse e, consoante o próprio mencionou, "quando a Polícia dá uma ordem não temos alternativa que não cumprir", da compreensão que teve era seu dever acompanhá-los, não lhe sendo dada outra alternativa.
Confessou a prática do crime de violação de proibições e que disto teria dado conhecimento aos agentes da POLMUN logo quando o interceptaram.
Os seus esclarecimentos foram devidamente ponderados para formação da convicção judicial a respeito da forma como decorreu a acção de fiscalização (até porque parcialmente coincidentes com a descrição da mesma feita pelos agentes da POLMUN e acima indicada, com excepção da circunstância referenciada de não ter tentado agredir qualquer agente, "nem sequer se ter chegado perto" e, por isso, não ter resistido a qualquer actuação, quer quando lhe determinaram que os acompanhasse quer mesmo quando o algemaram (impondo-lhe que pusesse as mãos atrás das costas) e com ele retornaram à Esquadra do Estoril- sic).
À imagem do sucedeu quanto ao evento analisado, também relativamente à sua condição socio-económica foi tido em conta o que esclareceu.
Apresentou uma postura responsável, adequada e consentânea com a presença em julgamento.
O averbamento das condenações criminais está provado atento o teor do certificado de registo criminal do arguido.
As condições socio-económicas decorreram da apreciação crítica do relatório social junto aos autos, cujo teor foi sumamente confirmado pelas declarações a propósito prestadas pelo arguido.
Uma consideração relativa à temática que, no caso presente, ao Tribunal se impõe analisar e que se prende, fundamentalmente, com a actuação da Polícia Municipal de Cascais na fiscalização perpectrada.
A pronúncia pode sumariar-se da seguinte forma:
a) Dos procedimentos de fiscalização da Polícia Municipal (POLMUN);
b) Da fiscalização da condução sob o efeito de álcool pela POLMUN, em especial
c) Da detenção em flagrante delito e das obrigações imediatas e inerentes à mesma por banda da polícia administrativa,
d) Das medidas cautelares ou meios de prova,
a) Da algemagem e demais consequências legais da actuação da POLMUN.
*
a) Procedimentos de fiscalização da Polícia Municipal (POLMUN)
A actuação daquela polícia administrativa é a regulada diante da Lei n.º 19/2004, de 20 de Maio, com as alterações decorrentes da lei n.º 50/2019, de 24 de Julho.
Para o que releva, ali se dispõe:
Artigo 3º
Funções de Polícia
1 - As polícias municipais exercem funções de polícia administrativa dos respectivos municípios, prioritariamente nos seguintes domínios:
a) Fiscalização do cumprimento das normas regulamentares municipais;
b) Fiscalização do cumprimento das normas de âmbito nacional ou regional cuja competência de aplicação ou de fiscalização caiba ao município; (...)
2 - As polícias municipais exercem, ainda,_funções nos seguintes domínios: (...)
e) Regulação e_ fiscalização do trânsito rodoviário e pedonal na área de jurisdição municipal.
3 - Para os efeitos referidos no n.º 1, os órgãos de polícia municipal têm competência para o levantamento de auto ou o desenvolvimento de inquérito por ilícito de mera ordenação social, de transgressão ou criminal por factos estritamente conexos com violação de lei ou recusa da prática de acto legalmente devido no âmbito das relações administrativas.
4  - Quando, por efeito do exercício dos poderes de autoridade previstos nos n.º 1 e 2, os órgãos de polícia municipal directamente verifiquem o cometimento de qualquer crime podem proceder à identificação e revista dos suspeitos no local do cometimento do ilícito, bem como à sua imediata condução à autoridade judiciária ou ao órgão de polícia criminal competente.
5 - Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, é vedado às polícias municipais o exercício de competências próprias dos órgãos de polícia criminal.
(sublinhados nossos)
Acrescenta ainda o art. 4.º, sob epígrafe:
Competências
1 - As polícias municipais, na prossecução das suas atribuições próprias, são competentes em matéria de: (...)
a) Fiscalização do cumprimento das normas de estacionamento de veículos e de circulação rodoviária, incluindo a participação de acidentes de viação que não envolvam procedimento criminal;
e) Detenção e entrega imediata, a autoridade judiciária ou a entidade policial, de suspeitos de crime punível com pena de prisão, em caso de flagrante delito, nos termos da lei processual penal;
f) Denúncia dos crimes de que tiverem conhecimento no exercício das suas funções, e por causa delas, e competente levantamento de auto, bem como a prática dos actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova, nos termos da lei processual penal, até à chegada do órgão de polícia criminal competente;
g) Elaboração dos autos de notícia, autos de contra-ordenação ou transgressão por infracções às normas referidas no artigo 3.º;
(sublinhados nossos)
Finalmente e no que concerne a Poderes de Autoridade, disciplina o art. 14.º:
1 - Quem faltar à obediência devida a ordem ou mandado legítimos que tenham sido regularmente comunicados e emanados do agente de polícia municipal será punido com a pena prevista para o crime de desobediência.
2 - Quando necessário ao exercício das suas funções de fiscalização ou para a elaboração de autos para que são competentes, os agentes de polícia municipal podem identificar os infractores, bem como solicitar a apresentação de documentos de identificação necessários à acção de fiscalização, nos termos da lei.
Em suma, a regulação vigente que enquadra a actuação, funções, competências e poderes das Polícias Municipais (POLMUN) distingue de forma cristalina (no art. 3.º do dispositivo normativo acima indicado) entre competências próprias e competências complementares (ou partilhadas) com as forças de segurança nacionais (entre as quais, GNR e PSP).
Estabelece, no que concerne à aplicação, execução e fiscalização de normas municipais ou cuja fiscalização de cumprimento está deferida aos municípios um conjunto de poderes, abrangentes e adequados a permitir, num quadro amplo e proporcionado, que a polícia administrativa em causa exerça as funções que lhe estão cometidas por lei (art. 3.º, n.º 1 al. a) e n.° 3).
Trata-se fundamentalmente de matérias de ambiente, urbanismo, tratamento de resíduos, etc. Neste âmbito, permite-se que a POLMUN elabore autos, instrua procedimentos administrativos, exija o cumprimento de posturas e decisões municipais e, se necessário, imponha a identificação coerciva dos agentes das infracções (de natureza administrativa), sendo com a inerente cominação de que o incumprimento das suas determinações pode implicar a prática de crime de desobediência (art. 14.º).
Já no domínio da cooperação com as forças de segurança, na manutenção da tranquilidade pública e na protecção das comunidades locais desenvolvem as acções taxativamente elencadas no art. 3.º, n.º 2 da Lei n.º 19/2004, numa densificação do previsto no art. 237.º, n.º 3 da CRP.
Neste quadro, podem identificar e revistar suspeitos, adoptar medidas cautelares de polícia e proceder à detenção em flagrante delito por crime a que corresponda a aplicação de pena de prisão, devendo entregar no imediato o cidadão dedito ao OPC (órgão de polícia criminal) competente.
Aliás, o exercício das funções neste âmbito surge clara e expressamente limitado pelo preceito correspondente que dispõe:
Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, isto é, da identificação e da revista (de segurança), é vedado às polícias municipais o exercício de competências próprias dos órgãos de polícia criminal. Mais se acrescentando mesmo que não podem as POLMUN tomar conta de acidentes de viação que envolvam eventual procedimento criminal.
A matéria encontra-se cabalmente analisada no Parecer da PGR, n.º convencional 2971, homologado em 23.06.2008.
De onde citamos apenas que as polícias municipais são, de acordo com o disposto no artigo 1°, n.º 1, da Lei n.º 19/2004, de 20 de Maio, serviços municipais especialmente vocacionados para o exercício de funções de polícia administrativa no espaço territorial correspondente ao do respectivo município (...)
As polícias municipais não constituem forças de segurança, estando-lhes vedado o exercício de competências próprias de órgãos de polícia criminal, excepto nas situações referidas no artigo 3.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 19/2004 (...)
De acordo com o disposto no artigo 4.º, n.º  1, alínea f), da Lei n.º 19/2004, e do artigo 249.º, n.ºs 1 e 2, alínea c), do CPP, os órgãos de polícia municipal devem, perante os crimes de que tiverem conhecimento no exercício das suas funções, praticar os actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova, até à chegada do órgão de polícia criminal competente, competindo-lhes, nomeadamente, proceder à apreensão dos objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir a prática de um crime (...)
(sublinhados nossos)
Esclarecendo situação paralela à que aqui se trata, pronunciou-se igualmente o Venerando TRC, em acórdão de 28.05.2008, relatado por Fernando Ventura em doutrina que subscrevemos:
I. - O dever de identificação do responsável da infracção estradai decorrente do artº 151º do Código da Estrada tem como pressuposto a verificação imediata pelo funcionário autuante de quem foi o autor da conduta ilícita.
II. - Iniciado o procedimento contra-ordenacional através da elaboração de auto e aposição do respectivo duplicado no veículo, esgotou-se esse dever_ funcional.
III. - Os agentes das polícias municipais não integram as forças ou serviços de segurança.
IV. - Excede os respectivos poderes, constituindo ordem ilegítima, a conduta de agente de polícia municipal que ordena a cidadão a entrega dos documentos de identificação e documentos de veículo, sem ligação funcional à elaboração de auto ou acção de fiscalização e, subsequentemente, profere voz de detenção quando tal não acontece.
Daqui retiramos várias ilacções que importa caracterizar em ordem à sua operacionalização para o estudo da questão vertente:
- A POLMUN não é um OPC. Constitui serviço municipal de polícia administrativa.
- Estão-lhe cometidas funções prioritárias atinentes à aplicação das posturas municipais e às regras jurídicas cuja lei defira ao município respectivo executar e fiscalizar.
- Podem ainda, em cooperação com as forças de segurança, que não integram, e finalisticamente orientadas à manutenção da tranquilidade pública e protecção das comunidades locais, guardar espaços municipais, promover a segurança nas escolas, disciplinar o trânsito, fiscalizando o estacionamento de viaturas e a actuação de condutores e peões.
- No desenvolvimento da sua missão, a lei confere-lhes os poderes que o e legislador considerou suficientes e adequados ao eficiente desempenho da actividade da POLMUN, onde se integra a possibilidade de elaborar aos de notícia por contra-ordenação, ordenar a identificação de suspeitos, executar medidas cautelares de polícia, no local do facto típico (do que se retira quando a própria lei refere, a prática dos actos cautelares necessários e urgentes (...) até à chegada do órgão de polícia criminal competente) empreender, neste âmbito, detenções em flagrante delito e entregar no imediato o suspeito ao OPC competente.
- O incumprimento das suas determinações (desde que legítimas) pode implicar a prática de crime de desobediência.
Oferece-nos acrescentar, ainda que colateralmente relacionada com a questão fulcral que se aborda que a "limitação de competências de âmbito de polícia criminal", por referência à teleologia da Lei n.º 19/2004, de 20 de Maio, se justifica igualmente pelo facto de que, ao contrário das forças de segurança - OPC, os agentes da POLMUN não estão adstritos ao estatuto profissional inerentes ao regulamento profissional e de avaliação, quer da PSP quer da GNR, nem ao seu código deontológico, nem tão pouco os seus agentes estão vinculados a comandos policiais, seja do Director Nacional da PSP ou do Comandante-geral da GNR, mas apenas à dependência hierárquica do Presidente de Câmara respectivo, o que não é, de todo em todo, identitário, por motivos óbvios de se tratar de um comando administrativo (e não policial).
Para além disso, recorde-se que, ao contrário do que sucede com a POLMUN de Lisboa, cuja actuação está também disciplinada por Regulamento próprio (publicitado em DR através do Aviso n.º 11359/2018 de 16.08.2018) onde se estabelece o recrutamento de agentes na PSP e que estes, no desempenho de funções se mantêm vinculados ao Estatuto Profissional de origem, seja quanto a direitos, deveres ou de avaliação, ou até ao seu código deontológico (art. 7.º do respectivo regulamento) inexiste normativo análogo, quer em termos de exigência quer quanto a procedimentos de conduta, pelo menos no que à POLMUN de Cascais diz respeito, até em virtude da forma de recrutamento e formação conferida aos agentes.
Ora, esta diferenciação entre o regime a que estão vinculadas as forças de segurança e as exigências da sua actuação, simbioticamente relacionadas com as funções que legalmente lhes estão cometidas, e cuja diferença relativamente à POLMUN é ostensiva, deve também ser considerada no modo como se interpreta a lei habilitante, tal como na (im)possibilidade de interpretar extensivamente e até analogicamente (por referência aos poderes funcionais conferidos aos OPC) os poderes de autoridade de que a POLMUN se arroga. Parece-nos que a este respeito, devem entender-se como tal tão-só e estritamente aqueles prescritos na Lei n.º 19/2004, de 20 de Maio, e não a extensão e conteúdo daqueles cujo exercício está permitido às forças de segurança.
No seguimento de análise e em razão da matéria vertente releva uma cuidada abordagem às normas que disciplinam a fiscalização de condutores no âmbito do despiste da condução em estado de embriaguez.
b) Da fiscalização da condução sob o efeito de álcool pela POLMUN, em especial.
Disciplina, em termos gerais e para o que releva, o Código da Estrada (art. 152.º):
1 - Devem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas:
a) Os condutores; (...)
3 - As pessoas referidas nas alíneas a) e b) do n.º 1 que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas são punidas por crime de desobediência.
As formalidades de Fiscalização da condução sob influência de álcool (art. 153.º do Código da Estrada, doravante abreviadamente designado CE) impõem:
1 - O exame de pesquisa de álcool no ar expirado é realizado por autoridade ou agente de autoridade mediante a utilização de aparelho aprovado para o efeito.
2 - Se o resultado do exame previsto no número anterior for positivo, a autoridade ou o agente de autoridade deve notificar o examinando, por escrito ou, se tal não for possível, verbalmente:
a) Do resultado do exame;
b) Das sanções legais decorrentes do resultado do exame;
c) De que pode, de imediato, requerer a realização de contraprova e que o resultado desta prevalece sobre o do exame inicial; e
(…)
3 - A contraprova referida no número anterior deve ser realizada por um dos seguintes meios, de acordo com a vontade do examinando (...)
Acrescenta a Lei n.º 18/2007, de 17 de Maio que aprova o Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas (art. 2.º) que:
1. Quando o teste realizado em analisador qualitativo indicie a presença de álcool no sangue, o examinando é submetido a novo teste, a realizar em analisador quantitativo, devendo, sempre que possível, o intervalo entre os dois testes não ser superior a trinta minutos.
2. Para efeitos do disposto no número anterior, o agente da entidade fiscalizadora acompanha o examinando ao local em que o teste possa ser efectuado, assegurando o seu transporte, quando necessário.
3. Sempre que para o transporte referido no número anterior não seja possível utilizar o veículo da entidade fiscalizadora, esta solicita a colaboração de entidade transportadora licenciada ou autorizada para o efeito.
Em termos gerais, admite-se que, a partir do momento em que a lei (n.º 19/2004, na redacção actual) admite a Regulação e fiscalização do trânsito rodoviário pela POLMUN está a permitir que, no âmbito dessa mesma fiscalização, possa a POLMUN empreender os exames de pesquisa de álcool no sangue.
Concede-se ainda que possa entender-se aqui a POLMUN como autoridade ou agente de autoridade para estes efeitos (até porque o diploma sobejamente aludido lhe permite que proceda à identificação de agentes de factos tipificados como contraordenação), no entanto, o limite estabelece-se precisamente quando no decorrer de tal fiscalização se verifique a prática de crime.
Aliás, este entendimento sustenta-se na clareza lapidar com que a Lei n.º 19/2004 prescreve a insusceptibilidade dos agentes da POLMUN praticarem actos próprios dos OPC (designadamente produção de prova), impondo-lhes, face à verificação de flagrante delito, a detenção com entrega imediata (leia-se, no mais curto espaço de tempo possível) às forças de segurança ou ao órgão judicial competente (para a tramitação de inquérito crime, acrescentamos nós).
Permite-se, é certo, que a POLMUN acautele no local do facto típico as medidas cautelares necessárias e adequadas, mas a lei em lugar algum permite que a POLMUN detenha suspeitos identificados e, em detrimento de os conduzir ao OPC competente, decida levá-los para o próprio Departamento de Polícia, proceda às diligências de prova que tem por necessárias à instrução do caso, elabore todo o expediente substancial processual atinente e, terminado este, então contacte o OPC - já não o competente em razão do lugar da prática do facto, mas aquele cuja área de jurisdição integra o Departamento de Polícia e Fiscalização Municipal - com vista a entregar o detido e a que estes agentes das forças de segurança, elaborem o expediente meramente formal que consideram vedado ao órgão administrativo (já que a factualidade substantiva foi previamente recolhida e em auto transcrita pela POLMUN).
(diga-se, a latere, numa óbvia instrumentalização das funções do OPC face à actuação do agente administrativo, conferindo-lhe a aparência da tutela da legalidade, quando, na verdade, o cidadão foi detido noutro local, cuja jurisdição pode (ou não) estar cometida àquela força policial que o recolhe ulteriormente, mas que, em todo o caso, nada apurou nem participou na recolha de prova (nomeadamente pericial, no caso do teste quantitativo de determinação de embriaguez), nem fiscalizou do cumprimento dos direitos básicos do cidadão diante da actuação processual penalmente relevante, como se opinará adiante).
Observe-se que no caso de acidente de viação se discrimina que, podendo tomar conta das ocorrências, se se estiver diante de acidente com relevância jurídico penal, não pode a POLMUN intervir (art. 4.º, n.º 1 al. b) da Lei n.º 19/2004, na redacção vigente).
Ora, se a lei habilitante da actuação da POLMUN não lhe permite acudir a qualquer circunstância que possa ter inerente a prática de crime, poderá aquela entidade administrativa (fora dos casos em que a lei expressamente o permite, como no âmbito das funções desenvolvidas e prescritas no art. 3.º, n.º 1 do diploma mencionado) diante da verificação do flagrante delito de crime de condução em estado de embriaguez, deter o agente e continuar activamente a recolha de prova e a instrução do caso e apenas contactar a Força de Segurança quando todo o expediente necessário à sua apresentação judicial já está completo (com excepção dos autos de constituição formal de arguido, de tomada de TIR)?
Não nos parece que no âmbito do CE ou, sequer, no Regulamento de fiscalização para detecção de substâncias se pretenda conferir uma maior amplitude de funções à POLMUN do que aquelas que lhe estão cometidas pela lei própria habilitante.
Nem tão pouco se julga legítimo que se considere que, neste enquadramento do CE, que o mesmo se operacionaliza atribuindo mais poderes à POLMUN do que aqueles que lhe são deferidos em estatuto próprio e que a distingue claramente dos OPC.
A interpretação nesse sentido, que é empreendida pela forma como estão redigidos os preceitos do CE e do Regulamento aludido (porque ali apenas se refere autoridade ou agente de autoridade) poderia levar ao absurdo de, em certos casos, termos de considerar, em abstracto, a ASAE, a AT ou outra qualquer autoridade administrativa legítimas para estes efeitos (por serem autoridades e agentes de autoridade) a fiscalizar a condução sob o efeito do álcool, ou melhor esclarecendo, a prática de crime de condução de veículo em estado de embriaguez, já que naquele diploma (Lei n.° 18/2007, de 17 de Maio) efectivamente não se distingue qualquer entidade competente para a fiscalização de condução sob efeito de álcool ou substâncias psicotrópicas apenas referenciando a "entidade fiscalizadora".
Somos, pois, de crer que, embora a POLMUN detenha expressamente competência para a fiscalização do trânsito rodoviário e pedonal, quando os condutores (ou os peões) possam com a sua conduta perpectrar crimes (que os agentes presenciem em flagrante delito ou sejam indiciado claramente por um teste de pesquisa de resultado tendencialmente aproximado, como o é o teste qualitativo) as suas competências cingem-se ao previsto na Lei n.º 19/2004, não abrangendo quaisquer outras e não sendo, por isso, passível a interpretação extensiva (ou mesmo analógica) do CE, em moldes que importem o conferir à POLMUN competências, por natureza e finalidades, são exclusivas dos OPC.
Sublinhe-se que não choca que a POLMUN possa empreender a fiscalização (qualitativa) em causa e, verificando estar-se diante da prática de contraordenação (taxa de alcoolemia entre 0,5 e 1,19 g/l) pode instruir a causa, designadamente os competentes autos, através da identificação do sujeito e cominação respectiva, mas tal não pode, em caso algum, implicar a detenção ou a deslocação do agente para onde a POLMUN pretenda levá-lo (sob pena de actuação abusiva e ilegítima - vide Ac. TRC de 28.05.2008, já citado).
Em bom rigor, observe-se que o regulamento citado afirma ipsis verbis que o agente da entidade fiscalizadora acompanha o examinando ao local em que o teste possa ser efectuado, assegurando o seu transporte, e em lugar algum prescreve que tal importa a retenção ou detenção de cidadãos para realização de tal teste, ou sequer prevê a cominação de crime de desobediência se o cidadão se recusar a acompanhar a "entidade fiscalizadora" para realização de tal teste quantitativo noutro local.
Parece-nos, pois, que inexiste no âmbito contra-ordenacional a injunção (em sentido próprio) de ser transportado para outro local para realização do teste quantitativo. Se o cidadão, porventura, preferir deslocar-se de mottu proprio ao local em causa para realização do teste quantitativo, se entender que não deve deslocar-se voluntariamente na viatura da entidade fiscalizadora, a conduta em causa, de per se, não configura (em nosso entendimento) a prática de crime de desobediência, porquanto, refere precisamente o CE que somente a recusa em realizar o teste quantitativo é que consubstancia a prático do ilícito típico criminal (na prática, e neste caso, terá o referido teste de ser disponibilizado no local da intercepção), sob pena de estarmos a impor, ainda que de forma indirecta, uma deslocação de um cidadão, em privação de liberdade parcial, e a coberto de eventual prática de infracção administrativa (ou de nada e) muito dificilmente compatível com o preceituado no art. 27.º da CRP (Direito à Liberdade e à Segurança e respectivas restrições, n.º 3, todas do âmbito criminal ou de saúde mental).
Mas não é desta questão que tratam os autos, e em todo o caso, no padrão de normalidade expectável, a entidade fiscalizadora deve informar e esclarecer o cidadão de que, por efeito do resultado do teste qualitativo indicia-se a prática de contra-ordenação ou de crime, pelo que necessário será a ulterior realização de recolha de prova para efeitos administrativos e/ou eventualmente criminais:
No segundo caso, e por se tratar de matéria de especial cuidado e relevância: trata-se da ultima ratio da lunga mano do Estado sobre o indivíduo, pelo que deve entregar (ou chamar) no mais curto espaço de tempo o OPC para que tome conta da ocorrência.
No primeiro, deve informá-lo de que o acompanhará (se necessário, ao local) para realização do teste quantitativo, disponibilizando transporte (cientes todavia de que só as forças de segurança podem coligir o cidadão a acompanhá-las de forma coerciva e se não estiver vertente a prática de crime e intercepção em flagrante delito).
Se assim for, estritamente, actuam os agentes da POLMUN a coberto das competências conferidas por lei: identificação, elaboração de autos administrativos e competente instrução das contra-ordenações atinentes.
Em suma, clarifique-se que a tónica, da nossa perspectiva, se acentua no exercício do "poder de retenção e deslocação contra vontade do suspeito", seja para recolha de prova pericial, ou para elaboração de expediente ou para qualquer outra finalidade, que não está tutelada legalmente, e que, somos de parecer, por brigar com a liberdade do cidadão, no sentido do constitucionalmente tutelado, não poder suscitar-se no caso de contraordenação e que, em caso de notícia de crime, tem de orientar-se e cingir-se ao legalmente prescrito: para condução ao OPC ou à autoridade judicial.
Tudo quanto não esteja a coberto desta finalidade imediata será ilegítimo e contra- legem, ultrapassando as funções conferidas a tal polícia administrativa, legalmente. Estas considerações levam-nos, pois, à temática subsequente, relevantíssima pelo cariz potencialmente danoso da limitação de liberdade na esfera jurídica do cidadão, à ordem "e responsabilidade" deste órgão municipal administrativo que, em detrimento de conduzir o sujeito ao OPC competente decide deslocá-lo, impondo-lhe o transporte para área territorial que pode (ou não) ser da competência do OPC originariamente competente (em razão do local de verificação do ilícito) para "tomar nota da ocorrência" e empreender as mais diversas actividades de recolha de prova e instrução administrativa.
Recorde-se que foi o que os agentes da POLMUN fizeram:
a) Depois de o arguido ter acusado uma taxa de álcool de 2,20g/l sangue (é certo que no teste de despistagem, mas se não for este o caso de forte indício da prática de crime de condução de veículo em estado de embriaguez, qual será?) e;
b) De ter informado ter a sua carta apreendida à ordem do Tribunal (informação confirmada junto da PSP), porquanto,
c) Quando objectivamente tinham diante de si um cidadão indiciado da prática de dois crimes, optam por transportá-lo para o departamento municipal respectivo, de madrugada, e
d) Quando a situação de algum modo se descontrola algemam-no e, quarenta minutos mais tarde (?!), tornam com o próprio do cidadão (algemado) à Esquadra do local da intercepção; supostamente
e) Indiciando-o da prática de um crime de desobediência que, a ter ocorrido, sê-lo-ia no âmbito de jurisdição da Esquadra da PSP de Cascais (e não do Estoril) atendendo à localização das instalações do Departamento de POLMUN
f) Esquadra de Cascais esta situada, precisa e rigorosamente, em frente àquele Departamento Municipal.
No entretanto, andou um cidadão em bolandas, num carro camarário, foi algemado nas instalações da CMC, aguardou que os Srs. Agentes Administrativos (contámos, da descrição dos próprios agentes da POLMUN, três no carro patrulha, um no departamento municipal para realização do teste quantitativo e outro que exercia a função de "graduado de serviço" - sic) elaborassem todo o expediente (?!), contactassem quem entenderam, tornassem a "meter" o indivíduo na mesma viatura e tornassem a transportá-lo para o Estoril onde, finalmente, o decidiram entregar à força de segurança pública e órgão de polícia criminal.
Sublinhe-se uma vez mais a sensibilidade muito especial com que devem abordar-se situações iminentemente relacionadas com o coarctar da liberdade (e segurança) dos cidadãos considerando tratar-se de um direito fundamental, sujeito ao regime especialmente protegido dos direitos, liberdades e garantias (art. 37.º conjugado com o art. 18.º, n.º 1 e 2 da CRP) e ainda que se trate de situação de detenção em flagrante delito (o que coloca, evidentemente o cidadão numa especial posição de debilidade face ao agente da autoridade, e em razão da circunstância de ser no imediato detido e sujeito a medidas policiais).
Mas vejamos em particular.
b)   Da detenção em flagrante delito e as obrigações imediatas e inerentes à mesma por banda da POLMUN
No quadro vigente a detenção tem de subsumir-se no disposto no art. 254.º e seg. do CPP.
Ali se dispõe, para o que releva:
Artigo 254.º
Finalidades
1 - A detenção a que se referem os artigos seguintes é efectuada:
a) Para, no prazo máximo de quarenta e oito horas, o detido ser apresentado a julgamento sob forma sumária ou ser presente ao juiz competente para primeiro interrogatório judicial ou para aplicação ou execução de uma medida de coacção (...)
Artigo 255.º
Detenção em flagrante delito
1 - Em caso de flagrante delito, por crime punível com pena de prisão:
a) Qualquer autoridade judiciária ou entidade policial procede à detenção;
b) Qualquer pessoa pode proceder à detenção, se uma das entidades referidas na alínea anterior não estiver presente nem puder ser chamada em tempo útil.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, a pessoa que tiver procedido à detenção entrega imediatamente o detido a uma das entidades referidas na alínea a), a qual redige auto sumário da entrega e procede de acordo com o estabelecido no artigo 259.º (...)
Artigo 256.º
Flagrante delito
1 - É flagrante delito todo o crime que se está cometendo ou se acabou de cometer.
2 - Reputa-se também flagrante delito o caso em que o agente for, logo após o crime, perseguido por qualquer pessoa ou encontrado com objectos ou sinais que mostrem claramente que acabou de o cometer ou nele participar. (...)
Conjugam-se aqui, como aliás no edifício erigido constitucionalmente para salvaguarda máxima dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, dois conceitos égide da nossa comunidade jurídica: o flagrante delito da prática de crime e a detenção, sendo aquele que legitima esta, no intuito da investigação futura da acção criminosa, com vista a levar os seus agentes à justiça.
No caso da detenção empreendida pela POLMUN impõe-se que se trate de flagrante delito de crime punível com pena de prisão e que, imediatamente após a detenção a pessoa suspeita seja conduzida a OPC (art. 3.º, n.º 4 e 5 e 4.º al. e) e f) da Lei n.º 19/2004, de 20 de Maio).
A detenção consubstancia, pois, um ato de imposição a alguém, suspeito da prática de crime, de um estado de privação provisória da liberdade, com o fim de o submeter a decisão de uma autoridade judiciária" (LOBO, Fernando Gama (2015) Código de Processo Penal Anotado, Almedina, Coimbra, p. 470), nas palavras de Germano Marques da Silva (2008, Curso de Processo Penal II, 4ª edição, Verbo, Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, p. 262) a detenção é sempre precária, pelo menos nos casos, como o presente, que originada pelo flagrante delito da prática de crime e em ordem a submeter o detido a julgamento num processo em forma sumária, ou ser submetido ao primeiro interrogatório judicial, ou a ser aplicada ou executada uma medida de coação.
Em rigor, conjugando o disposto no CPP com a lei habilitante da actuação da POLMUN, não podemos deixar de concluir que a acção desta se aproxima do caso prescrito na al. b), do n.º 1 do art. 255.º, aliás, aquele normativo parafraseia parcialmente a expressão utilizada no CPP quando ali se refere a sua imediata condução/entrega à autoridade judiciária ou ao órgão de polícia criminal competente estabelecendo tão-só a nuance da possibilidade da identificação e revista (de segurança) dos suspeitos no local do cometimento do ilícito, bem como da adopção das medidas cautelares necessárias e urgentes para assegurar os meios de prova.
Esclarecidos os conceitos básicos atinentes, importa que se proceda à sua subsunção ao caso em apreço, respondendo-se claramente às questões que passam a elencar-se:
1. Episódio do flagrante delito (?)
2. Momento da detenção (?)
3. O que deve fazer a POLMUN ao detido, após ser detido (?)
(1)Temos para nós, do que foi possível apurar-se na audiência pública de julgamento, que o flagrante delito se evidenciou quando, interceptado o cidadão condutor este afirmou ter a carta de condução apreendida, informação prontamente confirmada pela PSP quando contactada pela POLMUN - crime de violação de proibições - e, pelo menos, fortes indícios da prática de crime de condução de veículo em estado de embriaguez (empreendido o teste de despiste de álcool no sangue, e aquele apresentou uma taxa de alcoolemia de 2,20 g/l de sangue) - crime de condução de veículo em estado de embriaguez:
Constituem indícios suficientes os elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, traduzidos em vestígios, suspeitas, presunções, sinais e indicações aptos para convencer que existe um crime e de que alguém determinado é responsável;
Tais elementos, logicamente relacionados e conjugados, hão-de formar uma presunção da existência do facto e da responsabilidade do agente, criando a convicção de que, mantendo-se em julgamento, terão sérias probabilidades de conduzir a uma condenação. (Ac. STJ de 21.05.2003, proc. n.º 03P1493)
Neste circunstancialismo, conclui (e bem) a POLMUN que está diante de sujeito em flagrante delito da prática de crime de condução de veículo em estado de embriaguez e de violação de proibições.
É precisamente esta verificação, por natureza imediata e ostensiva (em face do resultado do primeiro exame de despiste de álcool pelo ar expirado) que consubstancia o flagrante delito (expressado na condução contemporânea, acto em que o cidadão foi abordado pela polícia administrativa).
É a abordagem, aquando da condução de veículo pelo cidadão, da sua intercepção pela POLMUN, da submissão ao teste de despiste de álcool (a coberto do disposto no art. 153.º do CE) e do resultado imediato que legitima e tutela, acto contínuo, a detenção deste sujeito pela POLMUN, na referência de que abandone a sua viatura e os acompanhe no carro de patrulha está, em nosso entendimento, e salvo o devido respeito por opinião diversa, acertado e parametrizado com o prescrito legalmente.
(2)Tendo por referência o que se logrou provar, o cidadão ao entrar no carro patrulha da POLMUN por ordem dos agentes e dirigindo-se para onde entenderam levá-lo consubstancia um transporte de detido, por estar já coarctada a sua liberdade de decisão e movimentos.
Referir-se artificialmente que a detenção apenas ocorre após a recusa de realização (cerca de meia hora mais tarde) do teste de álcool no alcoolímetro quantitativo e no Departamento de POLMUN e fiscalização da Câmara Municipal de Cascais só pode configurar uma ficção jurídica (relativamente à actualidade/ contemporaneidade da acção e ao local da ocorrência). Trata-se, da nossa perspectiva de uma confusão na aplicação dos conceitos jurídicos, pretendendo estender elasticamente o conceito (até) de quase flagrante delito e desligar o acto formal de detenção, exteriorizado pelo comando emitido pelos agentes da POLMUN (logo aposto o teste de despiste) da materialidade subjacente claramente provada nos autos (vide a propósito o teor do auto citado em 8. dos factos assentes).
Posto isto, importa então responder à última das questões (3), nos termos da lei aplicável e de acordo com sobejamente explanado acima, a POLMUN ao deter o cidadão em flagrante delito da prática de crime de violação de proibições e de fortes indícios da prática de crime de condução de veículo em estado de embriaguez deveria tê-lo conduzido, no imediato, à Esquadra da PSP com jurisdição na área de detecção do ilícito ou, em alternativa, contactar aquela força de segurança para que pudesse entregá-lo no imediato, dando conta, precisamente, da verificação de tal flagrante delito.
Na verdade, o flagrante delito constitui precisamente uma situação em que, por natureza e de forma evidente, directamente (de acordo com o vocábulo utilizado no art. 3.º, n.º 4 da Lei n.º 19/2004) se observa a existência de crime, não carecendo da prova científica/pericial para o efeito (sob pena de perder a sua actualidade, a menos que esta esteja ali mesmo, pronta a realizar-se no local da intercepção), nem sequer da instrução de qualquer acto, maxime, que implique o abandono do local de verificação do crime para produção de outra prova.
Sublinhe-se uma vez mais o preceituado no art. 3.º, n.º 4 da Lei n.º 19/2004: Sem prejuízo do disposto nos n.º anteriores (identificação e revista) é vedado às polícias municipais o exercício de competências próprias dos órgãos de polícia criminal.
Sucede que, e no caso não é discipiendo, chegados ao Departamento Camarário o arguido se recusou materialmente a colaborar na actuação da POLMUN, e foi então advertido cominação com a prática de crime de desobediência, circunstância adiante analisada em lugar próprio, tendo-se gerado uma altercação cujos precisos termos e fundamentos não foi possível apurar, nas palavras de um dos agentes da POLMUN "acharam por bem algemá-lo! (?!!)"
Seguidamente, e se é do crime de desobediência que aqui tratamos, para que não se confunda ainda mais a situação, este, a ter sido praticado, foi-o nas instalações da POLMUN (em Cascais) e não no Estoril, pelo que lógica não há para que retornassem com o próprio do cidadão àquela localidade para o entregar ao OPC.
Assim, salvo devido respeito por entendimento diverso, que é muito, levar um cidadão detido ao Departamento da POLMUN e, posteriormente, após toda a instrução (afinal processual, pois foi com base nela que se procedeu a este julgamento), contactar a Esquadra da PSP e, a final, tornar a movimentá-lo para a Esquadra do local da intercepção, apenas para preencher o expediente administrativo e libertá-lo, parece-nos obviamente ultrapassar, e em muito, as competências conferidas à POLMUN neste âmbito.
(no fundo, diante de um crime, cuja prática lhes foi confirmada pelo OPC e de, pelo menos, fortes indícios do cometimento de outro, quem procede à detenção, (tenta) empreender a diligência de prova pericial, explica a possibilidade (e termos?) da contra-prova, comina a prática de desobediência, é a POLMUN (a substituir-se ao OPC) e, mais de meia hora depois, contacta a força de segurança do local de intercepção e não do local do flagrante delito da suposta desobediência, apenas para que sejam apresentados ao detido os documentos formais do que anteriormente já executou e aquele OPC o liberte?!!)
Aliás, na cooperação esperada com as forças de segurança (e legalmente determinada no n.º 2 do art. 3.º do diploma citado) no exercício destas funções de "regulação e fiscalização do trânsito" havia uma alternativa clara e que permitiría a custódia da prova, sem perigar a liberdade e os direitos fundamentais do suspeito, que configuraria o contacto com a Esquadra da PSP e a entrega do cidadão em flagrante delito de, pelo menos um crime, para que o OPC efectivamente competente, conduzisse o suspeito, aqui arguido, e no respeito pelos seus mais elementares direitos fundamentais, para recolha de prova e instrução processual penal.
Não demoraria certamente mais tempo (do que o utilizado) e não implicaria a execução de funções de investigação criminal em substituição clara do OPC competente nem tão pouco a ultrapassagem de competências e, possivelmente omitir-se-iam situações desnecessárias (quiçá legais e legítimas por banda de agentes administrativos).
A latere refira-se apenas que os direitos, liberdades e garantias constitucionais, cujo regime de restrição de exercício se encontra taxativa e minuciosamente regulado na Constituição da República (art. 18.º e 19.º do CRP) e onde se inclui o Direito à liberdade e à segurança (art. 27.º da CRP) impõe que toda a pessoa privada da liberdade deve ser informada imediatamente e de forma compreensível das razões da sua prisão ou detenção e dos seus direitos, acrescentando nós, previamente à execução de qualquer acto de recolha de prova, designadamente pericial.
É que tais direitos e garantias constitucionais não podem servir apenas para a sua declaração formal e solene, devendo ser operacionalizadas através da actuação de todos os órgãos públicos, sejam administrativos ou policiais, e são susceptíveis de fiscalização judicial, revelando aqui uma actualidade e acuidade bastantes para que nos refiramos à sua disciplina em razão do caso concreto, e mais deles não nos possamos desligar aquando do julgamento dos factos acima arrolados.
Mas vejamos em concreto que funções estão cometidas à POLMUN no quadro da recolha e preservação de prova, para que dúvidas se não suscitem quanto ao aqui ajuizado.
c)  Das medidas cautelares e dos meios de (obtenção da) prova
A iniciativa própria dos órgãos de polícia criminal define-se pela atuação em substituição precária da autoridade judiciária, baseada nos pressupostos de necessidade e de urgência, perante circunstâncias que exigem uma resposta pronta da entidade policial, pautada pelo princípio de eficácia, balizada por pressupostos legais, vinculada ao dever de ser transmitida imediata notícia à autoridade judiciária. (Mesquita, Paulo Dá (2003) Direcção do Inquérito e Garantia Judiciária, Coimbra Ed., 2003, pp. 120-143)
Trata-se da caracterização e exigências a que se sujeitam as medidas de polícia. Previstas no artigo 249.º do CPP, que as elenca de forma exemplificativa, no que concerne à preservação (mormente), e recolha (mais limitada legalmente) dos meios de prova.
Da competência da POLMUN, a Lei n.º 19/2004 enumera a identificação de suspeitos, a revista aos mesmos e nos casos em que a fiscalização lhes está directamente cometida (para instrução de processos administrativos de natureza contraordenacional), a apreensão de objectos que serviram ou estivessem destinados a servir à prática da infracção.
Releva perguntar se a submissão ao teste do alcoolímetro quantitativo se insere ainda no âmbito das medidas cautelares urgentes e necessárias para preservação ou obtenção da prova, no caso concreto que aqui apreciamos.
Não podemos desligar a resposta do entendimento pacífico da jurisprudência dos tribunais superiores que vêem entendendo que os exames de pesquisa de álcool no sangue, realizados no mesmo analisador quantitativo, ordenados (...), constituem prova pericial pré-constituída, por irrepetível em julgamento. (Ac. STJ, de 11.07.2017, proc. n.º 3397/14.1T8LLE.E1.S1).
E mais, do cotejo dos artigos 153.º e 156º do Código da Estrada com a Lei nº 18/2007 resulta que a taxa de alcoolemia se pode demonstrar por teste ao ar expirado (em equipamento qualitativo, a despistagem, e em equipamento quantitativo, a prova ou a contraprova), por análise ao sangue (a prova ou contraprova) e por exame médico (a prova ou contraprova), e que existe uma obrigatoriedade de notificação do condutor após teste de alcoolemia, por escrito ou verbalmente, do resultado, das sanções legalmente decorrentes daquele resultado e de que pode, de imediato, requerer contraprova e que, caso positivo, deve suportar todas as despesas originadas por essa contraprova. Acordão do TRE de 05.07.2016 (Processo n.º 265/15.3PAVRS.E1)
Será possível entender que o iter de procedimentos que envolve a recolha de prova (pericial) bastante para submissão de arguido a julgamento pela prática de crime de condução de veículo em estado de embriaguez, e que implica a advertência da possibilidade de se sujeitar a contraprova e a explicação das finalidades e consequências inerentes aos resultados apurados não importa o exercício de funções de polícia criminal?!
É que, não sendo a POLMUN um OPC nem sequer uma força de segurança que legitimidade tem para os empreender, tal qual, surgem espelhados no auto aludido junto ao processo e elaborado pela POLMUN?
A nosso ver, nenhuma, legalmente, tudo salvo supino entendimento.
Haveria aqui necessidade efectiva e urgência ponderosa que pudesse justificar a actuação da POLMUN tal qual apurada?
Numa circunstância em que, verificado o flagrante delito quer pela admissão de condução com carta apreendida à ordem do Tribunal, quer pela submissão do arguido ao teste qualitativo, havia a possibilidade prática de cumprir a lei e conduzi-lo ao OPC competente, onde poderiam ser salvaguardados os direitos constitucionais do arguido ab initio, realizada a instrução competente e, igualmente, sujeitar-se o suspeito a tal exame (quantitativo), num tempo razoavelmente idêntico?
A conclusão é óbvia: ao deslocar o arguido, detido, para o Departamento Municipal, tentar sujeitá-lo a recolha de prova pericial, quando o OPC competente no local da prática dos factos já havia confirmado a prática de crime de violação de proibições, agiu a POLMUN num afrontoso desvio ao quadro legal a que está vinculada, abusando da autoridade conferida para fiscalizar o trânsito e ultrapassando as competências que lhe estão deferidas por lei, substituindo-se ao OPC competente na instrução material do processado.
Senão vejamos em lugar comum: a lei limita expressa e claramente a sua competência no âmbito da investigação criminal - seja excluindo-a tout cour no caso de acidentes de viação, seja atribuindo-a limitadamente para identificação de suspeitos e revistas de suspeitos no local do cometimento do ilícito - equaciona-se porventura que a permitisse neste caso concreto?
Fará sentido conceder que não possam intervir numa situação clara de acidente de viação (que implique procedimento criminal) mas, em alternativa, permitir a sua instrução quanto à realização de meios de obtenção de prova (necessariamente enquadrados também eles num procedimento criminal)?
Estamos em crer pela resposta negativa, até pela sensibilidade e necessário cuidado com a limitação de liberdade e actuação no quadro de uma fiscalização que, após sujeição a exame qualitativo de despiste de álcool no sangue com resultado positivo, igual ou superior a 1,2 g/l, se impõe, necessariamente, ulterior investigação criminal.
f)   Da algemagem e demais consequências legais da actuação da POLMUN.
Tudo compulsado, importa, pois, que se analisem das consequências jurídicas da forma como foi instruído o processo, da cominação da prática de crime de desobediência e da algemagem ao mesmo.
Esclareça-se desde já que, no que respeita ao tipo da violação de proibições, imposições ou interdições, nenhuma questão se suscita, dado que a prova é meramente documental e, não obstante a actuação dos agentes da POLMUN, a realidade é que se não discute que o arguido estivesse a conduzir no circunstancialismo de tempo e lugar em que foi interceptado, pelo que nenhuma mácula se impõe na prova carreada para o processo.
Já naquilo que se refere à prática do crime de desobediência teremos necessariamente uma posição diversa.
Importa que a mesma seja analisada neste âmbito porquanto o juízo a respeito fundamenta precisamente a resposta fáctica acima assumida.
O tipo de ilícito da desobediência a função de "autoridade pública", a autonomia intencional do Estado e, bem assim, a não colocação de entraves à actividade administrativa por parte dos destinatários dos seus actos (Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, §4 dos comentários ao artigo 348.º, Coimbra Editora, 2001.
A acção/omissão consubstancia a violação de um dever de obediência a uma ordem ou mandado legítimos emanados de autoridades competentes e regularmente comunicados. De estrutura normativa, o tipo de crime tem como elementos objectivos: um comando da autoridade, sob a forma de ordem ou mandado, impondo uma determinada conduta, um dever de acção ou de omissão, nos termos concretamente definidos; a sua legalidade material e formal; a competência da autoridade que o emite; a violação do dever emergente desse comando (ob. cit. p. 429).
Estando aqui em causa uma intervenção policial de fiscalização de um condutor, que se inscreve neste âmbito, é tão-só esta a abordagem que interessa no caso presente.
Coloca-se legitimamente, até em face de tudo o que acima se expôs, a questão da qualidade e competência dos agentes da POLMUN quando actuam diante de um flagrante delito (sempre precário e carecido de ulterior comprovação, consoante acima já se explanou) e, em detrimento de imediatamente conduzirem o suspeito à autoridade judiciária ou ao órgão de polícia criminal competente, para instrução processual, decidem eles mesmos agir, empreendendo discricionariamente os actos que consideram mais relevantes diante da conduta do suspeito (de que eles próprios deram nota em Juízo). Não se nos afigura que detivessem poderes de autoridade para o efeito, nem que a deslocação que fizeram do agora arguido para o Departamento Municipal em causa o tivesse sido a coberto da legalidade. Donde, a "ordem" contida para realização da prova pericial processual penal, cuja materialidade não se inscreve nas suas atribuições e competências, não pode ter-se, efectiva e verdadeiramente como legítima.
É que o "comando" dado e a cominação respectiva são questionáveis a vários títulos: o primeiro relativamente ao dever concretamente imposto (recorde-se, até em virtude do forte indício da prática de crime, extraído de um exame qualitativo de álcool evidenciador de 2,20 g/l de sangue, não já se cinge ao âmbito contra-ordenacional) mas antes a verdadeira e própria instrução criminal;
O segundo porquanto a lei prevê a cominação pela POLMUN da prática de crime de desobediência num enquadramento normativo muito específico: o da identificação de suspeitos e apresentação de documentos (art. 14.º, n.º 2 da aludida lei habilitante), mas já não, acrescentamos nós numa actuação no quadro da recolha de prova criminal cuja actuação, por natureza e finalidade está subtraída às funções cometidas às POLMUN.
Ora, tal actuação, em concreto, tem efeitos óbvios para o julgamento subjacente:
O crime de desobediência, que se inclui na categoria dos “crimes de dever”, constitui um caso de lei penal aberta ou de lei penal em branco, que impõe particulares precauções na determinação do tipo incriminador perante as exigências decorrentes do princípio da legalidade em matéria penal. (...)
A concreta qualificação de um comportamento como crime de desobediência deve equacionar-se em três momentos: em primeiro lugar, pela verificação da subsunção a uma norma que preveja um ilícito próprio; em segundo lugar, pela verificação da subsunção a uma norma que concretamente comine a punição de um comportamento como desobediência, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 348º; finalmente, pela subsunção à alínea b) do n.º 1 do mesmo preceito, que requer a cominação de desobediência pelo agente de autoridade. (...)
O crime de desobediência, que protege a função de autoridade pública, reconduz-se à violação de um dever de obediência a uma ordem ou mandado legítimos emanados de autoridades competentes e regularmente comunicados. De estrutura normativa, o tipo de crime tem como elementos objectivos: um comando da autoridade, sob a forma de ordem ou mandado, impondo uma determinada conduta, um dever de acção ou de omissão, nos termos concretamente definidos; a sua legalidade material e formal; a competência da autoridade que o emite; e a violação do dever emergente desse comando. (Ac. STJ de 24.01.2018, proc. n.º 388/15.9GBABF.S1)
Melhor concretizando: que efeitos se extraem de emissão de um comando de uma autoridade incompetente para a realização de um exame pericial de alcoolemia na sequência de uma detenção ilegal (em razão das finalidades da mesma)?
Citamos, ainda o aresto subsequente, que nos parece lapidar e relativo a matéria coincidente com o que aqui tratamos:
Com efeito, o art. 126º do Código de Processo Penal disciplina nos nºs 1 e 2 as provas absolutamente proibidas e no nº 3 as provas relativamente proibidas. As primeiras não podem ser utilizadas nunca, as segundas podem ser utilizadas nos casos previstos na lei, ou seja, desde que respeitadas as regras estabelecidas na lei para a intromissão nos direitos tutelados.
As proibições de prova estabelecem limites à actividade de investigação e constituem fundamentalmente um meio ou instrumento de tutela dos direitos individuais dos cidadãos que visam impedir ou dissuadir intromissões abusivas e desnecessárias das autoridades judiciais e policiais. Sendo este um campo onde se afirma com particular relevo o princípio da ponderação de interesses, impõe-se estabelecer níveis de concordância prática entre os direitos individuais que poderão ser atingidos ou sacrificados e a prevenção e repressão da criminalidade: “entre o interesse público na perseguição penal e o interesse público também da tutela de determinados interesses, a ordem jurídica opta por uns ou outros, conforme considere que devem predominar. Com efeito, a perseguição penal não é, necessariamente, o interesse preponderante da vida em sociedade. Por isso, os meios utilizados em ordem à repressão penal têm de acomodar-se aos princípios jurídicos que predominam num dado momento e aos valores fundamentais da nossa civilização” (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Verbo, II, 1993, pag. 103). (...)
(Ac. TRG proc. n.º 2541/14.3PBBRG.G1 - sublinhados nossos)
Denote-se que não se tratou de obviar a forma regulamentar devida de um acto processual, mas antes de restringir a liberdade pessoal de um cidadão, através de uma detenção que se revelou ilegal (porque orientada não propriamente à entrega imediata ao OPC competente, consoante a lei impunha, mas antes à instrução processual de cariz manifestamente criminal, para cuja função o órgão detentor é incompetente) e retomando o raciocínio do Ac. TRC de 28.05.2008 (proc. n.º 1792/04.3 PBAVR.C1), já citado:
O dever de identificação do responsável da infracção estradal (...) tem como pressuposto a verificação imediata pelo funcionário autuante de quem foi o autor da conduta ilícita.
Iniciado o procedimento (...) esgotou-se esse dever funcional.
Os agentes das polícias municipais não integram as forças ou serviços de segurança.
- Excede os respectivos poderes, constituindo ordem ilegítima, a conduta de agente de polícia municipal que ordena a cidadão a entrega dos documentos de identificação e documentos de veículo, sem ligação funcional à elaboração de auto ou acção de fiscalização e, subsequentemente, profere voz de detenção quando tal não acontece.
Mostra-se justificada, porque no exercício de direito de resistência constitucionalmente consagrado contra ordem ilegítima atentatória da liberdade, a conduta de cidadão que recusa acatar tal ordem de detenção.
Essa resistência pode ser passiva ou activa mas, em ambos os casos, deve respeitar o princípio da proibição do excesso, nas suas três dimensões: adequação, necessidade e proporcionalidade.
O crime de desobediência tutela a autonomia intencional do Estado;
Visando-se com a tutela contida no artigo 348.º, nº1, alínea b) do Código Penal um interesse exclusivamente público não tem legitimidade para recorrer o funcionário que no exercício das suas funções vê ser desobedecida uma ordem por si transmitida e comunicada.
(...)
Ora, e como salienta a decisão recorrida, os agentes das polícias municipais não constituem agentes de forças ou serviços de segurança contemplados na Lei 20/97, de 12/6, o que significa que nunca poderia a assistente exercer os poderes previstos na Lei 5/95, de 21/2. Acrescente-se que não colhe o argumento de que o diploma que define as competências das polícias municipais é posterior àquelas Leis, na medida em que o legislador poderia ter procedido à sua alteração ou à inscrição na Lei 19/2004, de 20/5, da equiparação às forças ou serviços de segurança elencados na Lei 20/97, de 12/6. Se não o fez, foi porque quis excluir do seu âmbito de aplicação os agentes das polícias municipais.
E, mesmo que essa capacidade tivesse sido conferida aos agentes das polícias municipais, ainda assim encontrava-se ausente qualquer suspeita criminal ou de infracção ao regime de estrangeiros.
Face ao exposto, cumpre concluir que a assistente excedeu os poderes funcionais conferidos aos polícias municipais quando ordenou ao arguido que, sem ligação funcional à elaboração de auto ou a acção de fiscalização, lhe entregasse os seus documentos de identificação e os documentos do veículo.
Assim, porque confrontado com ordem ilegítima, a recusa do arguido não encontra tipificação nas disposições conjugadas dos artsº 348º, nº 1, al. a) e 14º, nº 1, da Lei 19/2004, de 20/5. Concomitantemente, porque a ordem de detenção teve como fundamento a prática de crime de desobediência, que não se verificava, então também ela foi ilegitima, como ilegítimos foram, face ao artº 16º da Lei 19/2004, de 20/5, os meios coercivos empregues para atingir a imobilização do arguido.
Ac. TRC de 6-02-2013, CJ, 2013, T1, pág.45: A recusa de identificação não consubstancia a prática de um crime de desobediência - ainda que efectuada a cominação - porquanto a consequência da referida recusa é a condução do sujeito a identificar ao posto policial mais próximo, aí permanecendo pelo tempo indispensável à sua identificação.
Estamos em crer que, ilegítima que foi a ordem e respectiva cominação, quer pela natureza e finalidades atinentes à mesma (que o órgão administrativo POLMUN não detém), e em que funda fulcralmente a imputação da prática de crime de desobediência, com o recurso à força (não propriamente física, mas inerente à autoridade ostentada enquanto órgão de polícia devidamente uniformizado e armado), que culminou numa algemagem, tudo nitidamente fora do que a lei permite à POLMUN e em ultrapassagem dos limites claros e acima melhor densificados, terá ajuizar-se em consonância.
De todo o modo, serve a boa doutrina jurisprudencial supra citada para abordar o tema da colocação de algemas no cidadão aqui arguido.
Na realidade, é pacífico constatar-se que a colocação de algemas a um cidadão não pode nortear-se por um qualquer "achar por bem" (testemunhas POLMUN), nem tão pouco tal descrição, da forma leviana como foi expressada, até pelo coarctar de movimentos e pelo inerente cariz de exercício da força do Estado, materializada através da actuação daqueles agentes, pode tolerar-se singelamente no Estado de Direito Democrático em que vivemos.
Aliás, o modo como os agentes da POLMUN expressaram com naturalidade (jamais observada pela signatária em qualquer caso em que a GNR ou a PSP tenham lançado mão de tais meios coercivos) que como o arguido estava a ter uma altercação com os agentes e não queria aceitar a fiscalização para "a segurança dele e para a nossa" algemaram-no e assim o entregaram mais de meia hora depois à PSP (?!);
Como se fossem detentores de um qualquer poder insindicável que, com estupefacção observámos nas suas descrições e, porquanto o recurso a tais meios de força efectiva não lhes suscitou qualquer ponderação ou cuidado, parecendo que, no fundo (sejamos honestos e transmitamos o que resultou de toda a comunicação não verbal em julgamento, da forma como se dirigiram ao Tribunal, como responderam quando questionados na sua actuação, das expressões, do "à vontade"), "faziam o que queriam":
Interceptado o cidadão, a partir daí são os próprios que decidem o que e como fazer, se e quando o entregam ao OPC ou força de segurança que eles próprios "escolhem", depois de recolherem a prova que julgam ser importante e necessária e de elaborar o expediente que entendem dever ser de sua lavra e não do OPC (vide depoimento da testemunha MG).
Todavia, observado em rigor o seu comportamento e até por referência ao regular nas forças de segurança (de que tomamos como exemplo a PSP, somente por se tratar de OPC civil e onde a hierarquia não é tão rígida quanto na GNR) temos que se nos assomou à exaustão que estes Srs. Agentes da POLMUN (eram cinco e tinham deslocado um cidadão ao seu departamento de polícia, de madrugada, onde se encontravam) não faziam a mais pequena ideia de que existem procedimentos, regras, normas que fundamentam, justificam e disciplinam este tipo de condutas por banda da autoridade e não ficam na arbitrariedade das polícias, estão sujeitas a estritos pressupostos objectivos e a uma avaliação pessoal fundada:
A este respeito, e para que melhor fique elucidado, citamos a título de exemplo o regulamento interno de 01.06.2004:
"Gravidade da Infracção
A seriedade e grau de perigosidade da ameaça ou ofensa para a integridade física dos elementos policiais ou de terceiros são o critério determinante da natureza e intensidade da força a utilizar.
4.2 Relativamente aos intervenientes não policiais:
a. Número de indivíduos envolvidos;
b. Grau de cooperação/resistência;
c. Utilização de qualquer objecto ou arma e o seu tipo;
d. Envergadura, força física e capacidade para ofender;
e. Idade;
f. Eventual influência de álcool ou drogas;
g. Antecedentes conhecidos."
Adiante, no ponto 3 do mesmo normativo e desta feita quanto ao procedimento da imobilização por algemas:
“O procedimento de algemagem é obrigatório nas seguintes situações:
1) Sempre que o detido oponha qualquer resistência à abordagem inicial, às acções de detenção ou durante o processo de condução ao local da custódia ou de comparência perante autoridade judiciária;
2) Sempre que existam indícios ou suspeitas razoáveis de que o infractor possa reagir com violência contra o agente policial ou tentar a fuga;
3) Sempre que seja oferecida resistência física, relativamente à execução de serviço ou ordens policiais legais e legítimas;
4) Transporte em viaturas policiais,
5) Enquanto os suspeitos/detidos permaneçam nas instalações policiais fora dos quartos de detenção ou fora dos compartimentos especificamente destinados à permanência de suspeitos agressivos ou detidos, excepto quando participarem em actos ou diligências processuais que se justifiquem designadamente interrogatórios ou reconhecimentos.
h. Devem ser ponderados os seguintes parâmetros, no que respeita à decisão de proceder ou não à algemagem:
1) O grau de risco para os agentes policiais ou terceiros, quanto à possibilidade de virem a ser alvo de agressão ou dominados pelo detido ou infractor;
2) Efectivo policial presente no local;
3) Risco de fuga;
4) Gravidade e circunstâncias em que o crime foi cometido;
5) Possibilidade de o detido ter apoio de terceiros que visam obstar à manutenção da detenção;
6) Habilidades ou capacidades físicas do visado.
i. Os procedimentos de execução da algemagem devem ser aplicados conforme as técnicas em vigor na PSP e classificam-se de risco desconhecido ou de alto risco, atendendo à avaliação do grau de ameaça em questão".
Donde, e por tudo, importa que seja melhor averiguado uma vez que nos pareceu que, pelo menos por ora, inexistem normas orientadoras (procedimentais e de execução) na POLMUN de Cascais quanto às situações em que os suspeitos devem ser algemados e de como o agente policial deve proceder.
Desconhecemos, porque os Srs. Agentes inquiridos o não explicaram mesmo diante da nossa surpresa relativamente à conduta, se algum procedimento de algemagem lhes foi ministrado. Se o mesmo foi deviamente treinado e exemplificado com os respectivos orientadores.
Sucede que, aparentemente, o recurso a tal meio de coacção física nos pareceu insustentado, já em razão do tipo de crime em causa, já em virtude de o cidadão ter sido transportado na viatura policial do Estoril para Cascais sem incidentes.
Ademais, no enquadramento acima descrito e no iter procedimental da POLMUN neste caso parece-nos que não pode deixar de se denunciar a situação pela virtualidade que uma actuação desta jaez tem na colisão com direitos fundamentais relevantíssimos na ordem jurídica.
Apreciemos
Verificação do vício previsto no artigo 410º, nº 2, alínea b), do CPP
Conforme estabelecido no artigo 428º, nº 1, do CPP, os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito, de onde resulta que, em regra e quanto a estes Tribunais, a lei não restringe os respectivos poderes de cognição.
A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do CPP, no que se denomina de “revista alargada”, cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento – neste sentido, por todos, Ac. do STJ de 05/06/2008, Proc. nº 06P3649 e Ac. do STJ de 14/05/2009, Proc. nº 1182/06.3PAALM.S1, in www.dgsi.pt. - ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se reporta o artigo 412º, nºs 3, 4 e 6, do mesmo diploma legal.
Sustenta o recorrente/Ministério Público que a sentença recorrida padece do vício elencado na alínea b), do nº 2, do artigo 410º, do CPP (a menção ao nº 1 constitui, evidentemente, um mero lapso de escrita), “quer no que respeita à decisão da matéria de facto, quer quanto ao enquadramento jurídico-penal.”
Como vimos, o apontado vício só releva se resultar do texto (e do contexto) da decisão recorrida apreciado na sua globalidade, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum. É um vício da decisão, não do julgamento, como frisa Maria João Antunes, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Janeiro/Março de 1994, pág. 121.
Este vício de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, como se salienta no Ac. do STJ de 29/10/2015, Proc. nº 230/10.7JAAVR.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt, ocorre quando se dá como provado e não provado determinado facto; quando ao mesmo tempo se afirma ou nega a mesma coisa; quando simultaneamente se dão como assentes factos contraditórios e ainda quando se estabelece confronto insuperável e contraditório entre a fundamentação probatória da matéria de facto ou contradição entre a fundamentação e a decisão, quando a fundamentação justifica decisão oposta ou não justifica a decisão.
Ou seja, resulta da oposição entre factos provados entre si incompatíveis; entre a matéria de facto provada e a não provada ou quando se dá como provado um determinado facto e da motivação da convicção resulta, face à valoração probatória e ao raciocínio dedutivo explanado, que seria outra a decisão de facto correcta.
E, importa se diga, antes de mais, que os vícios elencados no nº 2, do artigo 410º, do CPP, são vícios relativos à matéria de facto (assim, por todos, vd. Acs. do STJ de 12/11/1997, Proc. nº 97P1203, 20/06/2002, Proc. nº 01P4250 e 24/04/2008, Proc. nº 06P3057, disponíveis em www.dgsi.pt), pelo que a chamada à colação pelo recorrente do previsto na alínea b) relativamente ao enquadramento jurídico-penal efectuado pelo tribunal a quo se mostra completamente deslocada.
Mas, encontra o recorrente contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão porquanto o Tribunal a quo deu, por um lado, como provado que o arguido recusou realizar o teste quantitativo, e “advertido de que incorreria na prática de um crime de desobediência, o arguido recusou submeter-se à realização dessa prova”, bem como que “ao agir do modo acima descrito o arguido previu e quis recusar submeter-se ao teste de pesquisa de álcool no sangue não acatando ordens transmitidas por elemento da Policia Municipal”, Porém, por outro lado e simultaneamente, deu como não provado que o arguido tenha agido “com o propósito logrado de se furtar à realização do teste quantitativo de pesquisa de álcool no sangue, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei.”
Na verdade, numa primeira singela leitura do exposto parece existir a contradição assinalada entre factos provados e o não provado.
Porém, numa apreciação mais fina e tendo em atenção todo o teor da sentença, concluímos que não tem o recorrente a razão pelo seu lado.
Efectivamente, o tribunal deu como assente que:
- O arguido recusou realizar o teste quantitativo – ponto 9.
- Advertido de que incorreria na prática de um crime de desobediência, o arguido recusou submeter-se à realização dessa prova – ponto 10.
- Ao agir do modo acima descrito o arguido previu e quis recusar submeter-se ao teste de pesquisa de álcool no sangue não acatando ordens transmitidas por elemento da Policia Municipal - ponto 11.
E considerou como não provado os seguintes factos:
a) No enquadramento do descrito em 11., o arguido agiu apesar de saber que este (agente da POLMUN) tinha poderes para o efeito e quais as conseqências legais do seu não acatamento.
b) De igual modo, o arguido agiu com o propósito logrado de se furtar à realização do teste quantitativo de pesquisa de ácool no sangue, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei.
Ora, o que decorre da interpretação da sentença no seu todo é que o julgador da 1ª instância pretendeu considerar como não se tendo provado a consciência da ilicitude, que se prende com a falta de conhecimento de que a ordem para efectuar o teste quantitativo emanava de autoridade competente, muito embora o tribunal não afirme, entre os factos provados, de forma positiva como seria normal, que o arguido agiu na convicção de que a ordem provinha de autoridade incompetente.
Na verdade, o crime é doloso e o dolo exige consciência e vontade de falta à obediência que é devida, o que pressupõe que a ordem que se incumpre seja legítima e proveniente de autoridade ou funcionário competente.
Mas, se apenas desse como não provado o desconhecimento desta proibição e punição não se tornaria compreensível a que comportamento do arguido o mesmo se reportava, uma vez que ficaram também provados os factos relativos ao incumprimento da proibição de conduzir.
Termos em que, não se verifica o invocado vício, nem aliás qualquer outro, pelo que improcede o recurso neste segmento.
Enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido
O arguido foi absolvido da prática do crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348º, nº 1, alínea a), do Código Penal ex vi artigo 152º nº 3, do Código da Estrada, de que se encontrava acusado, fundando-se o tribunal a quo em que os agentes da Polícia Municipal de Cascais não tinham legitimidade para determinar ao arguido PM que realizasse o teste quantitativo para detecção da presença de álcool no sangue através do ar expirado e, face à sua recusa, cominar-lhe esse crime, pelo que inexiste preenchimento dos elementos objectivos deste tipo de ilícito.
Analisemos então.
Considera o tribunal a quo na decisão revidenda que (…) neste circunstancialismo, conclui (e bem) a POLMUN que está diante de sujeito em flagrante delito da prática de crime de condução de veículo em estado de embriaguez e de violação de proibições e bem assim que é a abordagem, aquando da condução de veículo pelo cidadão, da sua intercepção pela POLMUN, da submissão ao teste de despiste de álcool (a coberto do disposto no art. 153.º do CE) e do resultado imediato que legitima e tutela, acto contínuo, a detenção deste sujeito pela POLMUN, na referência de que abandone a sua viatura e os acompanhe no carro de patrulha está, em nosso entendimento, e salvo o devido respeito por opinião diversa, acertado e parametrizado com o prescrito legalmente.
Só que, este entendimento não tem suporte, nem na matéria de facto que provada se encontra (de onde, a propósito, apenas consta que, face ao valor registado no teste qualitativo de despistagem de alcool no sangue, foi então determinado ao arguido que acompanhasse os agentes da POLMUN ao Departamento Camarário respectivo), nem da elucidação que se faz na sentença recorrida da formação da convicção do julgador quanto a ela, atento os depoimentos das testemunhas e as declarações do arguido.
Na verdade, da transposição que se mostra efectuada na dita peça dos depoimentos das testemunhas MG, JR  e PC , bem como das declarações do arguido PM – podendo quanto a este ler-se que respondeu de forma objectiva e espontânea, no sentido de que quando interceptado havia acompanhado os agentes (uniformizados e armados, acrescentamos nós) porque lhe ordenaram que o fizesse e, consoante o próprio mencionou, “quando a Polícia dá uma ordem não temos alternativa que não cumprir”, da compreensão que teve era seu dever acompanhá-los, não lhe sendo dada outra alternativa - não se extrai que tenha o arguido sido detido após a realização do teste, fosse por registar um valor de 2,20 g/l, fosse por constatação da prática de um crime de violação de proibições, porquanto a determinação dada pelo agente da Polícia Municipal foi para que os acompanhasse ao Departamento Municipal em razão de ter acusado taxa considerada crime (2,20 g/l).
E, o “Auto de Notícia por Detenção” –  de fls. 15/16 dos autos, a que se faz referência expressa na sentença – é claro ao descrever a ocorrência, concretamente que “o condutor foi submetido a teste qualitativo ao ar expirado (…) tendo dado resultado de 2,20 g/l. Perante esta taxa, foi o condutor informado de que teria de realizar novo teste ao ar expirado nas instalações policiais, para onde foi em seguida transportado. O condutor foi transportado ao Departamento de Polícia Municipal e Fiscalização, sito em Cascais, para efectuar teste ao ar aspirado através de Analizador quantitativo, ao que o condutor, enquanto lhe era explicado os procedimentos para efectuar o teste, afirmou em voz alta…NÃO FAÇO TESTE NENHUM”. Perante estes factos e devido ao estado alterado em que se encontrava, foi-lhe explicado calmamente que se não efectuasse o teste incorria na prática de um crime de desobediência, ao que o condutor voltou a afirmar …NÃO FAÇO TESTE NENHUM”…seguido de outras palavras impercetíveis em dialeto ou língua estrangeira. Posto isto, dei voz de detenção ao agora arguido, pelo crime de desobediência, consagrado no art.º 348º do Código Penal”.
Aliás, nem a detenção do arguido seria legalmente admissível apenas por o teste qualitativo de pesquisa de álcool no sangue através do ar expirado ter registado um valor positivo (in casu de 2,20 g/l).
Com efeito, de acordo com o estabelecido no artigo 152º, nº 1, alínea a), do Código da Estrada, “devem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas: os condutores (…)”.
O nº 1, do artigo 153º, do mesmo, diz-nos que o exame de pesquisa de álcool no ar expirado é realizado por autoridade ou agente de autoridade mediante a utilização de aparelho aprovado para o efeito.
A regulamentação da fiscalização da condução sobre influência de álcool consta do Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, aprovado pela Lei nº 18/2007, de 17/05, consagrando-se no seu artigo 1º, que “presença de álcool no sangue é indiciada por meio de teste no ar expirado, efectuado em analisador qualitativo” – nº 1; sendo que “a quantificação da taxa de álcool no sangue é feita por teste no ar expirado, efectuado em analisador quantitativo, ou por análise de sangue.”
E, no artigo 2º, nº 1, dispõe-se que “quando o teste realizado em analisador qualitativo indicie a presença de álcool no sangue, o examinando é submetido a novo teste, a realizar em analisador quantitativo, devendo, sempre que possível, o intervalo entre os dois testes não ser superior a trinta minutos”, sendo que “para efeitos do disposto no número anterior, o agente da entidade fiscalizadora acompanha o examinando ao local em que o teste possa ser efectuado, assegurando o seu transporte, quando necessário.” – nº 2
Resulta, assim, que o analisador qualitativo visa uma primeira despistagem da presença de álcool no sangue em ordem à selecção dos visados a submeter ao exame por analisador quantitativo. Este, sim, que determina a concreta taxa de alcoolemia de que é portador quem a ele se submete.
A sujeição aos exames é obrigatória para os condutores (bem assim, peões, sempre que sejam intervenientes em acidentes de trânsito e as pessoas que se propuserem iniciar a condução, nos termos das alíneas b) e c), do artigo 152º, do Código da Estrada), sendo punida com o crime de desobediência a recusa aos mesmos dos condutores e peões mencionados, conforme estabelecido no nº 3.
Mas, realça-se, após a realização do teste qualitativo, se este registar positivo, o agente da entidade fiscalizadora acompanha o examinando ao local em que o teste (ou exame) quantitativo possa ser efectuado, o que, manifestamente, inculca a ideia de que o cidadão em causa o faz voluntariamente (após a pertinente comunicação pela entidade fiscalizadora) e não se encontra sob detenção.
O que acentuado está ainda por se regular também que o agente assegura o transporte para esse local de quem se vai submeter ao teste quantitativo, o que seria pouco racional de mencionar se estivesse prevista uma possível situação de detenção.
Como o seria também, quando se sabe, porque consagrado nos nºs 3 e 4 do artigo 2º, do referido Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas que “sempre que para o transporte referido no número anterior não seja possível utilizar o veículo da entidade fiscalizadora, esta solicita a colaboração de entidade transportadora licenciada ou autorizada para o efeito”, sendo o pagamento deste transporte da responsabilidade da entidade fiscalizadora, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 158º do Código da Estrada (deste constando que “quando os exames referidos tiverem resultado positivo as despesas são da responsabilidade do examinando”).
Não se vê que a despesa com o transporte de um detido – desde logo, em flagrante delito, como se sustenta na decisão revidenda – tenha, em situação alguma, de por este ser paga.
Ora, o que se pode concluir dos normativos legais em presença, conjugados entre si é que o condutor (e os demais mencionados, mas que ao caso não concernem) tem total liberdade de não querer submeter-se aos testes, quer qualitativo, quer quantitativo, de pesquisa de álcool no sangue através do ar expirado (que é a situação aqui em causa) manifestando a sua recusa perante a entidade fiscalizadora.
Claro que a recusa implica a punição pelo crime de desobediência, como se disse, mas a entidade fiscalizadora não pode proceder à sua detenção para o coagir à realização desse teste, só sendo admissível essa detenção após a recusa e então pela prática daquele crime.
Dito isto, temos que o arguido PM se deslocou, sem expressar oposição (e sem se encontrar sob detenção) acompanhado por agentes da Polícia Municipal de Cascais, ao Departamento de Polícia e Fiscalização Municipal com o objectivo de ser submetido a exame quantitativo para detecção da taxa concreta de álcool no sangue através do ar expirado.
Pois bem.
Conforme decorre do artigo 1º, nº 1, da Lei nº 19/2004, de 20/05, as polícias municipais são serviços municipais especialmente vocacionados para o exercício de funções de polícia administrativa na área da jurisdição municipal.
E, exercem funções, entre o mais, nos seguintes domínios, de acordo com o seu artigo 3º, nº 2:

- “a) Vigilância de espaços públicos ou abertos ao público, designadamente de áreas circundantes de escolas, em coordenação com as forças de segurança;
b) Vigilância nos transportes urbanos locais, em coordenação com as forças de segurança;
c) Intervenção em programas destinados à acção das polícias junto das escolas ou de grupos específicos de cidadãos;
d) Guarda de edifícios e equipamentos públicos municipais, ou outros temporariamente à sua responsabilidade;
e) Regulação e fiscalização do trânsito rodoviário e pedonal na área de jurisdição municipal.”
Nos termos do nº 5 deste artigo 3º, está vedado às polícias municipais o exercício de competências próprias dos órgãos de polícia criminal, excepto nas situações referidas nos nºs 3 e 4.
Quanto às competências, estabelece-se no artigo 4º:
“1 - As polícias municipais, na prossecução das suas atribuições próprias, são competentes em matéria de:
a) Fiscalização do cumprimento dos regulamentos municipais e da aplicação das normas legais, designadamente nos domínios do urbanismo, da construção, da defesa e protecção da natureza e do ambiente, do património cultural e dos recursos cinegéticos;
b) Fiscalização do cumprimento das normas de estacionamento de veículos e de circulação rodoviária, incluindo a participação de acidentes de viação que não envolvam procedimento criminal;
c) Execução coerciva, nos termos da lei, dos actos administrativos das autoridades municipais;
d) Adopção das providências organizativas apropriadas aquando da realização de eventos na via pública que impliquem restrições à circulação, em coordenação com as forças de segurança competentes, quando necessário;
e) Detenção e entrega imediata, a autoridade judiciária ou a entidade        policial, de suspeitos de crime punível com pena de prisão, em caso de flagrante delito, nos termos da lei processual penal;
f) Denúncia dos crimes de que tiverem conhecimento no exercício das suas funções, e por causa delas, e competente levantamento de auto, bem como a prática dos actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova, nos termos da lei processual penal, até à chegada do órgão de polícia criminal competente;
g) Elaboração dos autos de notícia, autos de contra-ordenação ou transgressão por infracções às normas referidas no artigo 3.º;
h) Elaboração dos autos de notícia, com remessa à autoridade competente, por infracções cuja fiscalização não seja da competência do município, nos casos em que a lei o imponha ou permita;
i) Instrução dos processos de contra-ordenação e de transgressão da respectiva competência;
j) Acções de polícia ambiental;
l) Acções de polícia mortuária;
m) Garantia do cumprimento das leis e regulamentos que envolvam competências municipais de fiscalização.
2 - As polícias municipais, por determinação da câmara municipal, promovem, por si ou em colaboração com outras entidades, acções de sensibilização e divulgação de matérias de relevante interesse social no concelho, em especial nos domínios da protecção do ambiente e da utilização dos espaços públicos, e cooperam com outras entidades, nomeadamente as forças de segurança, na prevenção e segurança rodoviária.”
Ora, como se elucida no Acórdão deste Tribunal da Relação de 29/07/2020, Proc. nº 34/20.9PBCSC.L1-3, que pode ser lido em www.dgsi.pt (em que, na verdade, se considera terem os agentes da Polícia Municipal de Cascais competência para efectuar o teste quantitativo de pesquisa de álcool no sangue, no que divergimos, mas certo é que a asserção agora transcrita alicerça também o nosso entendimento e a decisão que lhe corresponde) “observado que seja todo este procedimento legal para a obtenção de uma medição juridicamente válida da TAS, o resultado deste exame, expresso no talão do alcoolímetro de modelo aprovado e com verificação válida, deve ser considerado prova vinculada, preconstituída (o que implica que não poderá ser repetida), dotada do especial valor probatório estabelecido para a prova pericial, no art. 163º do CPP, como também resulta do preceituado nos arts. 6º e 7º da Lei 18/2007 de 17 de Maio (cfr. nesse sentido, Carlos Durán Climent, “La Prueba Penal”, Tomo II, Tirant lo Blanch, Valência, 2005, 2183 a 2195 e, entre muitos outros, os Acs. da Relação de Évora de 26.02.2013, proc. 279/09.2GDFAR.E1, Relação de Coimbra de 13.07.2016, proc. 73/14.9GAPNL.C1, da Relação de Guimarães de 5.12.2016, proc. 82/15.0GBPVL e da Relação de Coimbra de 11.10.2017, proc. 188/17.1PAMGR.C1, in http://www.dgsi.pt).”.
E, como resulta do artigo 4º, alínea b), da aludida Lei nº 19/2004, a Polícia Municipal tem competência para a fiscalização do cumprimento das normas de estacionamento de veículos e de circulação rodoviária, mas está excluída a participação de acidentes de viação que envolvam procedimento criminal.
Ora, se a Lei não permite que a Polícia Municipal participe acidentes de viação que envolvam procedimento criminal (por, manifestamente, tal competência ser das forças de segurança com que estão em coordenação), como é que podemos sustentar que admite a recolha de prova em ordem à perseguição criminal de pessoa que exerce a condução influenciado pelo álcool?
Porque assim é, estando vedado às polícias municipais o exercício de competências próprias dos órgãos de polícia criminal, não podemos deixar de concluir que lhe faltava competência para determinar ao arguido a realização do exame para quantificação da taxa de álcool no sangue através do ar expirado, que se traduz numa recolha de prova em ordem à sua apresentação a julgamento pela prática de crime de condução de veículo em estado de embriaguez, com observância das formalidades previstas no artigo 153º, do Código da Estrada e que nestas se incluem, manifestamente
Conforme se dispõe no artigo 348º, nº 1, do Código Penal, comete o crime de desobediência quem faltar à obediência devida a ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, se “uma disposição legal cominar, no caso, a punição de desobediência simples” – alínea a); ou “na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação” – alínea b).
Relativamente ao caso em apreço, rege a norma contida na alínea a), sendo a disposição legal cominatória o artigo 152º, nº 3, com referência ao seu nº 1, alínea a), do Código da Estrada.
De onde, pratique o crime de desobediência o condutor que, quando lhe seja intimada ordem legítima por entidade de fiscalização rodoviária para se submeter às provas de detecção de álcool, a tal se recusar, sem necessidade de qualquer cominação da mesma ao não cumprimento da ordem – neste sentido, entre outros, Ac. R. de Coimbra de 03/11/2010, Proc. nº 327/08.3GTLRA.C1; Acs. R. de Évora de 12/09/2017, Proc. nº 36/17.2PBSTB.E1 e 07/05/2019, Proc. nº 442/16.0GGSTB.E1; Acs. R. do Porto de 09/05/2018, Proc. nº 173/17.3GFPRT.P1 e de 04/11/2020, Proc. nº 69/20.1GBAND.P1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Não obstante, só é devida obediência a ordem ou mandado legítimos, sendo certo que condição necessária de legitimidade é a competência, no caso concreto, da entidade donde emana a ordem ou mandado.
Como se deixou retro explicitado, aos agentes da Polícia Municipal faltava competência para intimar ao arguido a ordem para se submeter ao exame para quantificação da taxa de álcool no sangue através do ar expirado, pelo que a recusa do mesmo não se enquadra no crime de desobediência, por falta daquele pressuposto objectivo do tipo de ilícito – legitimidade da ordem.
Acresce que, como já se disse, o crime em questão é doloso e o dolo exige consciência e vontade de falta à obediência que é devida, o que pressupõe que a ordem que se incumpre seja legítima e proveniente de autoridade ou funcionário competente.
Se no que respeita à demonstração da consciência da ilicitude, considera-se, normalmente, que a mesma fica implícita no próprio facto, desde que seja do conhecimento geral que ele é proibido e punível, já quanto a saber o arguido que a polícia municipal era competente para lhe dar a ordem em causa, a questão não é tão singela, tanto mais que o próprio tribunal de 1ª instância considerou que a polícia municipal carecia dessa competência e que a ordem foi ilegítima. E o mesmo Tribunal deu como não provado que o arguido agiu com o propósito logrado de se furtar à realização do teste quantitativo de pesquisa de álcool no sangue, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei, e bem assim como não provado que o arguido agiu apesar de saber que este (agente da POLMUN) tinha poderes para o efeito e quais as legais consequências do seu não acatamento.
Do que resulta que, entendendo-se, como se viu, não haver vício decisório dos previstos no artigo 410º, nº 2, mas não tendo sido deduzida impugnação ampla da decisão de facto, a factualidade provada também não consente a condenação.
Destarte, não merece censura a sua absolvição.
Cumpre, pois negar, provimento ao recurso.
III - DISPOSITIVO
Nestes termos, acordam os Juízes da 5ª Secção desta Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e confirmar a decisão recorrida.
Sem tributação.

Lisboa, 23 de Março de 2021
(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário – artigo 94º, nº 2, do CPP)                     
Artur Vargues
Jorge Gonçalves
*
(Voto a decisão, em função do último fundamento apresentado, por si bastante para manter a absolvição, mas expressando a minha discordância no que toca ao entendimento das funções/competências da polícia municipal.
As polícias municipais são, de acordo com o disposto no artigo 1.º, n.º 1, da Lei n.º 19/2004, de 20 de Maio, serviços municipais especialmente vocacionados para o exercício de funções de polícia administrativa no espaço territorial correspondente ao do respectivo município. Nos termos do artigo 3.º, n.º 2, al. e), exercem funções no domínio da regulação e fiscalização do trânsito rodoviário e pedonal na área de jurisdição municipal, com competência, de harmonia com o artigo 4.º, n.º1, al. b), para a fiscalização do cumprimento das normas de estacionamento de veículos e de circulação rodoviária, incluindo a participação de acidentes de viação que não envolvam procedimento criminal. São, por isso, autoridades com competência para regular e fiscalizar o trânsito, nos termos do artigo 4.º do Código da Estrada.
Não vislumbro razão para que, podendo a polícia municipal proceder a teste qualitativo de detecção do estado de influenciado pelo álcool, não possa proceder, também, dispondo para o efeito de equipamento aprovado, ao subsequente teste em analisador quantitativo, agindo, depois, em conformidade com o resultado obtido.)