Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
58/12.0TTVFX.L1-4
Relator: DURO MATEUS CARDOSO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
SINISTRADO
DEPOIMENTO DE PARTE
ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO JUIZ
DESCARACTERIZAÇÃO DE ACIDENTE
VIOLAÇÃO DAS REGRAS DE SEGURANÇA
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/03/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: I- Destinando-se o depoimento de parte ao reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária, a confissão só é eficaz se for feita por pessoa com poder para dispor do direito a que o facto confessado se refira II- Sendo os direitos às prestações e créditos infortunísticos, inalienáveis e irrenunciáveis, não pode o sinistrado ser admitido a prestar depoimento de parte, pelo que o reconhecimento que faça de factos desfavoráveis não valem como confissão mas tão só como elemento probatório a apreciar livremente pelo Tribunal III- O Tribunal da Relação, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontrando motivo para tal, deve, oficiosamente, introduzir as modificações que se justifiquem nos casos em que tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente, retirando o facto que foi ilegitimamente considerado provado IV- Os poderes indagatórios do juiz laboral (e do juiz processual civil), têm vários limites entre os quais se conta a impossibilidade de criar ou ficcionar a alegação de excepções peremptórias que favoreçam os réus, tal como lhe está vedado criar novas causas de pedir para o autor, mesmo que no decurso do julgamento se apurem factos que tal permitissem V- Existindo base instrutória, o aproveitamento de novos factos relevantes implica a ampliação da base instrutória nos termos do art. 72º-1 do CPT VI- Se o apelante, aquando da audiência de julgamento, não suscitou a questão da ampliação da base instrutória, requerendo-a e o Mmº Juiz a quo não usou dessa faculdade estaremos perante nulidade secundária que deveria ter sido tempestivamente arguida, reiterando ao juiz a essencialidade das diligências probatórias pretensamente omitidas, nos termos dos arts. 195º, 197º e 199º do CPC/2013, sob pena de a mesma se considerar precludida nesta fase de recurso VII- Não é suficiente que um Manual de Segurança elaborado pela empregadora esteja acessível ao sinistrado, sendo necessário demonstrar-se que o mesmo dele teve efectivo conhecimento e as normas dele constante não podem ter carácter genérico ou conter proibições implícitas VIII- A negligência do sinistrado susceptível de descaracterizar um acidente tem de ser grosseira, indesculpável, inadmissível, uma temeridade inútil, ou uma falta de gravidade excepcional.
         (Elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa


I- AA, intentou no Tribunal do Trabalho de Vila Franca de Xira a presente acção declarativa de condenação, com processo especial, emergente de acidente de trabalho, CONTRA,
COMPANHIA DE SEGUROS BB, S.A.

II- PEDIU a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de €714,24 a título de indemnização por incapacidade temporária, o capital de remição de uma pensão no valor de €414,66 com início em 27 de Dezembro de 2011, a quantia de €6,00 a título de transportes e juros de mora legais.

III- ALEGOU, em síntese, que:

- No dia 26 de Novembro de 2011, quando exercia funções enquanto trabalhador da “CC, S.A.” mediante a retribuição anual de €11.847,36, nas instalações desta e durante o seu horário de trabalho, sofreu uma queda que lhe determinou incapacidades temporárias e uma incapacidade permanente parcial;

- À data do acidente, a “CC, S.A.” tinha a sua responsabilidade emergente de acidente de trabalho transferida para a ré seguradora;

- Despendeu €6,00 em deslocações ao tribunal e a exames obrigatórios.
IV- A ré foi citada e CONTESTOU, dizendo, no essencial, que:
- Tem dúvidas sobre a efectiva ocorrência de um acidente de trabalho;
- A ter-se verificado, está descaracterizado, porquanto o A. violou, sem causa justificativa, as condições de segurança estabelecidas pela entidade empregadora, além do que agiu com negligência grosseira, únicas razões porque se deu o putativo acidente.
V- Foi proferido despacho saneador e elaborou-se matéria de Facto Assente e Base Instrutória.
Constituiu-se Apenso para fixação de incapacidade e, realizada Junta Médica, esta atribuiu-lhe, por unanimidade, ITA entre 27/11/2011 e 26/12/2011 e uma IPP de 4% desde a data da alta (27/12/2011), tendo o Tribunal proferido decisão no mesmo sentido (fols. 14, 15, 16 e 20 do apenso A).
O processo seguiu os termos e foi proferida sentença em que se julgou pela forma seguinte: “Pelo exposto, julgo a presente ação parcialmente procedente e, em consequência, condeno a R., “Companhia de Seguros BB, S.A”, a pagar ao A.:
a) a quantia de €625,38 (seiscentos e vinte e cinco euros e trinta e oito cêntimos), acrescida de juros, à taxa legal, contados desde 31 de Dezembro de 2011;
b) o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia de €331,73 (trezentos e trinta e um euros e setenta e três cêntimos), devida desde 27 de Dezembro de 2011, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde esta data;
c) a quantia de €6,00 (seis euros), acrescida de juros, à taxa legal, contados desde 22 de Novembro de 2012.  
Custas pela R., na proporção de 72,26%, uma vez que o A. delas está isento (art. 527.º do Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, aplicável por força do art. 5.º n.º 1 deste último diploma e ex vi art. 1.º n.º 2 al. a) do Código de Processo do Trabalho).”.
Dessa sentença, a ré interpôs recurso de Apelação (fols. 212 a 231), apresentando as seguintes conclusões:
(…)
O autor contra-alegou (fols. 240 a 254) pugnando pela improcedência do recurso e a confirmação da sentença recorrida.
Correram os Vistos legais.

VII- A matéria de facto considerada provada em 1ª instância é a seguinte:

1- Em 30 de agosto de 2004, o A. foi admitido a trabalhar para a “CC, S.A.” com a categoria profissional de caixeiro ajudante, detendo ultimamente a categoria de operador superior de 1.ª. (al. A) da mat. de facto assente);

2- O A. exercia as funções referidas em a) nas instalações da “CC, S.A.”, em 40 horas semanais, por turnos rotativos, sendo o primeiro das 10h00 às 19h00 e o segundo das 11h00 às 20h00, com intervalo de uma hora para almoço, de segunda a domingo. (al. B) da mat. de facto assente);

3- No dia 26 de Novembro de 2011, de manhã, quando se encontrava no armazém/despensa das instalações referidas em b), a procurar um candeeiro, o A. subiu para cima de um carro de transportar mercadoria. (resposta ao quesito 1.º);

4- No momento em que o A. descia, o carro deslizou, tendo-se o A. desequilibrado e caído no pavimento, onde embateu com o lado direito do corpo. (resposta ao quesito 2.º);

5- A chefe de sector, RM, encontrava-se, então, igualmente no armazém/despensa das instalações referidas em 2). (resposta ao quesito 3.º);

6- O carro, com quatro rodas, era próprio para transportar material, tem 30 a 40 centímetros de altura e encontra-se encostado a uma estante de armazenamento de material. (resposta ao quesito 10.º);

7- O carro referido em 3) tinha rodas e destinava-se unicamente ao transporte de materiais de decoração da despensa para a exposição da loja. (resposta ao quesito 19.º);

8- O que o A. sabia. (resposta ao quesito 20.º);

9- O A. sabia que o carro de rodas podia deslizar e provocar o seu desequilíbrio e queda. (resposta ao quesito 24.º);

10- Na “CC, S.A.” existia o manual de segurança cuja cópia se mostra junta a fls. 161 e ss. dos autos, que estava acessível ao A.. (resposta aos quesitos 21.º e 22.º);

11- No dia 26 de Novembro de 2011, cerca das 11h30, o A. dirigiu-se ao gabinete da gerência da loja, a comunicar que havia caído na despensa sobre o braço. (resposta ao quesito 17.º);

12- O A. continuou a trabalhar até à hora do almoço, no atendimento a clientes, o que era uma das suas tarefas habituais. (resposta ao quesito 18.º);

13- No dia 26 de Novembro de 2011, o A. telefonou à sua companheira, que o transportou, nesse mesmo dia, pelas 17h00, ao hospital Curry Cabral. (resposta ao quesito 13.º);

14- Como consequência do descrito em 4), o A. sofreu traumatismo do cotovelo direito com fractura de tacícula do rádio direito. (resposta ao quesito 14.º);

15- O facto referido em 14) determinou para o A. uma incapacidade temporária absoluta desde 27 de Novembro de 2011 a 26 de dezembro de 2011, data da alta. (resposta ao quesito 15.º);

16- As sequelas decorrentes do facto referido em 14) determinaram para o A. uma incapacidade permanente parcial de 4%. (resposta ao quesito 16.º);

17- Em 26 de Novembro de 2011, o A. auferia €560,50 mensais, pagos 14 vezes por ano, acrescidos de subsídio de alimentação no valor de €137,06 mensais, pago 11 vezes ao ano, €24,00 mensais de abono para falhas, pago 11 vezes ao ano, €51,68 a título de trabalho prestado em feriados, pago 6 meses por ano, €1.085,28 anuais a título de subsídio de domingo e €833,34 anuais a título de comissões de vendas. (al. C) da mat. de facto assente);

18- A “CC, S.A.” tinha a sua responsabilidade emergente de acidentes de trabalho transferida para a R., mediante seguro de acidentes de trabalho na modalidade de folhas de férias. (al. D) da mat. de facto assente);

19- A R. não pagou ao A. qualquer quantia a título de indemnização por incapacidades temporárias. (al. E) da mat. de facto assente);

20- O A. despendeu € 6,00 em transportes com as deslocações ao tribunal e para a realização de exame médico. (al. A) da mat. de facto assente).
VIII- Nos termos dos arts. 635º-4, 637º-2, 608º-2 e 663º-2, todos do CPC/2013, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação; os tribunais de recurso só podem apreciar as questões suscitadas pelas partes, salvo se importar conhecê-las oficiosamente.

Tratando-se de recurso a interpor para a Relação, como este pode ter por fundamento só razões de facto ou só razões de direito, ou simultaneamente razões de facto e de direito, assim as conclusões incidirão apenas sobre a matéria de facto ou de direito ou sobre ambas (v. Fernando Amâncio Ferreira, "Manual dos Recursos em Processo Civil", 3ª ed., pag. 148).
Atento o teor das conclusões das alegações apresentadas pela apelante, as questões que se colocam no presente recurso são as seguintes:
            A 1ª, se a matéria de facto fixada em 1ª instância pode ser alterada conforme pretende a ré Seguradora.
A 2ª, se a sentença pode ser alterada, descaracterizando-se o acidente de trabalho por o mesmo se ter produzido por culpa do sinistrado.

IX- Decidindo.

Quanto à 1ª questão.
Verifiquemos então se há lugar à alteração da matéria de facto considerada pelo tribunal de 1ª instância, como pretendido pela ré seguradora.
Foi ouvida a prova gravada, designadamente a indicada pela apelante para os efeitos indicados.
Importa desde logo referir que, por despacho de fols. 127, foi admitido o depoimento de parte do autor, requerido pela ré à matéria dos quesitos 17º a 24º, ali se escrevendo que se reporta “...a factos de que o A. deve ter conhecimento e quanto aos mesmos é admitida a confissão, que lhe seria desfavorável...”.
Todavia, este depoimento de parte foi mal admitido pela Mmª Juíza a quo, pois destinando-se tal depoimento ao reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária (art. 352º do CC), tem de se ter em conta que a confissão só é eficaz se for feita por pessoa com poder para dispor do direito a que o facto confessado se refira (art. 353º-1 do CC).
Ora, sendo os direitos à prestações e créditos infortunísticos, inalienáveis e irrenunciáveis (art. 78º da LAT/2009), não devia o sinistrado ter sido, sequer, admitido a prestar depoimento de parte para “confessar” qualquer factualidade que lhe fosse desfavorável.
Assim sendo, as “confissões” que tivessem sido produzidas nos autos pelo sinistrado, só poderiam valer como elemento probatório que o tribunal aprecia livremente (art. 361º do CC).
Verifica-se, todavia, resultar do despacho de fols. 186 a 189 que o tribunal recorrido fundamentou as respostas dadas aos quesitos 19º, 20º e 24º, unicamente com a confissão do autor em depoimento de parte, correspondendo aos factos considerados provados nºs 7, 8 e 9.
Dispõe o art. 662º-1 do CPC/2013 que “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Relativamente ao alcance desta norma esclarece o Cons. António Santos Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, a pag. 225 que “...a Relação deve assumir-se como verdadeiro tribunal de instância e, por isso, desde que, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal, deve introduzir as modificações que se justificarem.
E acrescenta, ainda a pags. 225 e 226, “...a modificação continuará a justificar-se...ainda nos casos em que tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente...Em qualquer destes casos, a Relação, limitando-se a aplicar regras vinculativas extraídas do direito probatório material, deve integrar na decisão o facto que a 1ª instância considerou não provado ou retirar o facto que ilegitimamente foi considerado provado (sem prejuízo da sua sustentação noutros meios de prova), alteração que nem sequer depende da iniciativa da parte.
...Por outro lado, continua a ser impedido que sejam considerados como provados factos relativamente aos quais foram violadas regras de prova vinculada, como aquelas que impõem a apresentação de prova documental.
Tal como o tribunal de 1ª instância, também a Relação tem poderes que tanto podem determinar a assunção de factos segundo regras imperativas de direito probatório, como a desconsideração de outros factos cuja prova tenha desrespeitado essas mesmas regras.”
Portanto, tendo o Tribunal a quo fundamentado as respostas dadas aos quesitos 19º, 20º e 24º somente com o depoimento de parte do sinistrado, em violação do disposto no art. 352º e 353º-1 do CC, determina-se a eliminação dos factos nºs 7, 8 e 9 do elenco dos provados.
Vejamos agora a impugnação efectuada pela apelante.
Pretendendo que se altere a resposta ao quesito 9º ou se adite à matéria de facto de forma a que conste que “o armazém/dispensa onde se encontrava o autor existia um escadote que permitia a elevação do autor e que estava visível e acessível ao autor “, insurge-se a apelante quanto ao facto de se ter dado como não provado o teor do quesito 9º onde se perguntava se “No local não se encontravam escadas ou qualquer outro dispositivo que permitisse a elevação do autor ?
O tribunal “a quo” fundamentou a resposta de não provado com os depoimentos das testemunhas RM e SC, que reputou de conhecedoras da matéria a que responderam.
Dos depoimentos de ambas as testemunhas retira-se que, na realidade, existia no local, logo à entrada da dispensa, um escadote elevatório para acesso ao rack inferior enquanto para os racks superiores é usada uma empilhadora.
Percorrendo a petição inicial do autor, constata-se que o que consta do seu artigo 16º é o plasmado no quesito 9º. Daí que a resposta que foi dada ao quesito 9º se mostra perfeitamente adequada, pois havendo evidência que havia um escadote no local, não se podia dar como provado que no local não havia um escadote.
Por outro lado a existência do escadote no local era matéria, óbvia, de excepção, com vista a proporcionar a descaracterização do acidente como de trabalho, pelo que era a mesma de alegação e prova a cargo da ré nos termos do art. 342º-2 do CC.
 Daí, também, que a formulação do quesito 9º foi perfeitamente desnecessária ou inútil. O sinistrado não precisa de alegar e provar que não existiram razões para a descaracterização do acidente de trabalho.
Acontece que a ré, na sua contestação, não alegou factos integradores da excepção em causa, bastando-se com expressões conclusivas, vagas e genéricas como as referências a “equipamentos apropriados”. Motivo pelo qual o questionário não contemplou, e bem, quesitos com matéria extraída com tal tipo de alegações, aliás, sem objecto de qualquer posterior reclamação por parte da ré.
Assente, pois, que o quesito 9º foi bem respondido como não provado.
Refere a apelante nas suas alegações que esta factualidade, em alternativa, deve “...ser considerada na decisão da matéria de facto, porquanto sobre essa factualidade houve discussão (a testemunha RM  foi aliás indicada por ambas as partes, havendo por isso possibilidade de ambas as partes questionarem a testemunha e instarem a mesma sobre a matéria).- cfr. Art.º 72.º CPT.”
Avaliemos assim se, mesmo assim, a apurada existência do escadote no local, em função dos referidos depoimentos testemunhais, deve ser aditada ao conjunto dos factos provados.
Como acima já referimos, esta matéria é de excepção com alegação e prova a cargo da ré, que, como também já vimos, nada alegou a propósito da existência do escadote.
Os poderes indagatórios do juiz laboral (e do juiz processual civil), têm vários limites entre os quais se conta a impossibilidade de criar ou ficcionar a alegação de excepções peremptórias para os réus. Tal como lhe está vedado criar novas causas de pedir para o autor, mesmo que no decurso do julgamento se apurem factos que tal permitissem.
Note-se até que, se para o sinistrado os direitos aqui em causa são irrenunciáveis e indisponíveis, o mesmo já não se passa para a seguradora (ou para a entidade empregadora) que pode perfeitamente renunciar à invocação dessa excepção peremptória ou de qualquer outra.
No limite, mesmo que se aditasse o facto relativo ao escadote, depois não se poderia fazer uso do mesmo para se enquadrar numa eventual descaracterização do acidente de trabalho, por tal não ter sido oportunamente alegado e invocado.
Ao fim e ao cabo, vir agora somente em sede de recurso, falar da existência de um escadote que levaria à descaracterização do acidente de trabalho, configura a colocação de questão nova, não anteriormente suscitada, o que, como é sabido, não é admissível.
Mas existe ainda outra razão que impede, agora, a pretendida aplicação do art. 72º do CPT.
Ao contrário do que a apelante sustenta, não basta ter havido discussão sobre tais factos durante a audiência de julgamento para que o facto relativo ao escadote possa ser considerado na decisão da matéria de facto.
O art. 72º do CPT versa sobre situações de aproveitamento de matéria probatória produzida em audiência de julgamento, relativamente a factos não articulados e que sejam relevantes para a boa decisão.
Existindo base instrutória não há qualquer controvérsia que terá de ser ampliada a base instrutória e dar oportunidade às partes de indicar as respectivas provas. E o art. 72º-1 é muito claro quando, por um lado refere a "ampliação de base instrutória" e, por outro, a consideração "na decisão da matéria de facto". Neste caso, a ampliação pode ocorrer antes mesmo do encerramento dos debates.
No caso dos autos existe base instrutória e não se vislumbra das actas de audiência de julgamento que a agora apelante tenha suscitado a questão da ampliação da base instrutória.
Também não se retira das actas de julgamento que a Mmª Juíza a quo tenha usado dessa faculdade.
As regras procedimentais, não sendo um fim em si mesmo, procuram o equilíbrio e igualdade de armas entre os litigantes e visam a obtenção da verdade material (art. 4º do CPC/2013). No entanto, esse desiderato não se alcança anarquicamente, sem respeito por quaisquer regras.
De acordo com os arts. 6º e 411º do CPC/2013 incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é licito conhecer.
Da formulação do preceito constante do art. 411º do CPC/2013 resultará que ao juiz mais do que um “poder” (eventualmente discricionário) foi cometida uma “incumbência” que se configurará como o exercício de um “poder-dever” de indagação oficiosa. Assim sendo, constituirá nulidade a injustificada e ostensiva omissão de diligência essencial e patentemente necessária ao apuramento a verdade dos factos; tratando-se, contudo, de nulidade secundária cumprirá à parte interessada reclamá-la tempestivamente, reiterando ao juiz a essencialidade das diligências probatórias pretensamente omitidas, nos termos dos arts. 195º, 197º e 199º do CPC/2013, sob pena de a mesma se considerar naturalmente precludida (neste sentido, Lopes do Rego, «Comentários ao Código de Processo Civil», 1999, pags. 207-208, tendo em consideração o anterior art. 256º do CPC).
Assim, não tendo a ré arguido oportunamente a nulidade relativa à falta de ampliação da base instrutória, agora, em sede de recurso de apelação da sentença final, a pretensão em causa sempre estaria irremediavelmente perdida.
Improcede, deste modo, o pretendido aditamento de factualidade referente à existência de escadote.
Quanto ao quesito 2º (facto considerado provado sob o n º 4).

Pretende a recorrente que se adite ao facto provado nº 2 que “O autor subiu aos racks (prateleiras) para ir buscar um candeeiro, tendo-se pendurado num rack e que no momento....”.

Esclarece a apelante que tal, como facto complementar ou instrumental, se destina à descaracterização do acidente.

Desde já se diga que o pretendido pela ré é de desatender por não ter qualquer interesse para a boa decisão da causa.

É que a queda não se deu por o sinistrado ter alegadamente estado pendurado no rack mas, porque ao descer para o carro, este deslizou. Se esteve pendurado, ou não, no rack, tal é totalmente indiferente e alheio à dinâmica do acidente. Não retira, nem acrescenta, gravidade ao comportamento do sinistrado.

Depois, vale aqui, na íntegra, o que se disse atrás a propósito da existência da escada: matéria de excepção não alegada pela ré (nem pelo sinistrado); questão nova colocada somente em recurso; ausência de oportuna arguição de nulidade relativa à falta de ampliação da base instrutória durante o julgamento.

Improcede também a alteração da resposta dada ao quesito 2º.

Quanto à 2ª questão.

Vejamos, finalmente, se o sinistrado agiu com negligência grosseira, de forma a levar à descaracterização do acidente de trabalho.

Invocou o apelante a descaracterização do acidente por violação por parte do sinistrado das condições de segurança estabelecidas pelo empregador e por culpa grave e indesculpável do sinistrado, nomeadamente por o mesmo ter utilizado um carro de transporte de mercadoria, com rodas, para aceder a uma prateleira de uma estante e, quando desceu, o carro deslizou e o sinistrado desequilibrou-se e caiu. Isto apesar de o carro destinar-se exclusivamente ao transporte de materiais, o sinistrado saber que o carro podia deslizar e provocar o seu desequilíbrio e queda, e haver no local de trabalho um manual de segurança que estava acessível ao sinistrado.

Do enquadramento legal, jurisprudencial e doutrinal da descaracterização por violação das condições de segurança e por negligência grosseira do sinistrado, nos termos do art. 14º-1-a)-b) da LAT/2009, já a sentença recorrida se debruçou com suficiência e acerto, sendo despropositado estar aqui a fazer meras repetições.

Ocupemo-nos pois da subsunção dos factos provados para saber-mos se o acidente resultou de violação das condições de segurança e/ou de negligência grosseira do sinistrado.

Tendo presente que os factos provados nºs 7, 8 e 9 já foram eliminados, com relevância para a questão da violação das condições de segurança apurou-se que o sinistrado utilizou um carro próprio para de transporte de mercadorias, do qual caiu por o mesmo ter deslizado quando para ele descia, provocando o seu desequilíbrio (factos provados nºs 3, 4 e 6). Apurado também que existia na entidade empregadora um manual de segurança que estava acessível ao autor (facto provado nº 10).

Do manual em causa, consta a pag. 3 (fols. 163), ser norma de segurança estabelecida “utilizar de forma adequada os instrumentos, utensílios e mobiliário de trabalho”. E a pag. 4 (fols. 163 v.) se o posto de trabalho for no armazém ou loja é norma de segurança “utilizar os carrinhos de transporte, exclusivamente para esse efeito”.

Resulta do art. 281º-1-2-3-7 do CT/2009 a imposição ao empregador do garantir de condições de segurança em todos os aspectos relacionado com o trabalho, devendo o trabalhador também cumprir as prescrições de segurança determinadas pelo empregador.

Porém, estabelece o art. 282º-1-3 do CT/2009 que o empregador deve informar os trabalhadores sobre os aspectos relevantes da sua segurança e saúde e a de terceiros e assegurar formação adequada que habilite os trabalhadores a prevenir os riscos associados à respectiva actividade.

Assim sendo, entendemos, como se fez na sentença recorrida, que a prova somente de que o Manual de segurança estava acessível do sinistrado não demonstra que o sinistrado dele tivesse tido efectivo conhecimento nem que a entidade empregadora tivesse cumprido as exigências estabelecidas nos arts. 281º-1 e 282º-1-3 do CT/2009.

Isto para além das referidas normas constantes do Manual serem de carácter genérico e que “apenas de forma implícita encerra uma proibição do uso dos carros de transporte para outros fins”, como se escreveu, acertadamente, na sentença recorrida.

Como ensina Carlos Alegre, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Almedina, 2.ª edição, pág. 61), referindo-se à LAT/97 e também citado na sentença recorrida, “sempre que as ordens se refiram directamente à observância de regras ou condições de segurança parece evidente que a situação cabe na previsão da alínea a). Não bastará, porém, uma ordem ou proibição que não seja acompanhada da justificação do perigo que a infracção correspondente encerra ou que, se a não tiver, não seja baseada na experiência profissional, desde que esta dê ao sinistrado suficiente conhecimento do perigo. A ordem ou proibição não terá, assim, que ser expressa, se o prefeito conhecimento dela resultar tacitamente por outros meios. Mas já não cabem os avisos genéricos ou os avisos provenientes de terceiros, por não configurarem a ponderabilidade com que devem ser estabelecidas e recebidas as condições de segurança pela entidade patronal”.

Do exposto é de concluir não estar demonstrado nos autos que o empregador tenha comunicado ao sinistrado, nos termos legalmente exigidos, que o carro de transporte de mercadorias não podia ser utilizado para outros fins, designadamente, para aquele que propiciou a queda do sinistrado.

Improcede deste modo a pretendida descaracterização do acidente por violação, sem justificação, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador.

Vejamos agora se podemos descaracterizar o acidente por ter havido culpa grave e indesculpável do sinistrado.

Desde já se diga que da factualidade provada não se consegue retirar a negligência grosseira que a apelante invoca.

É verdade que é do senso comum que um equipamento dotado de rodas para o qual se sobe, ou desce, pode deslizar se não estiver devidamente travado (no caso, se deslizou é porque não estava travado), podendo ser potenciador de quedas para quem o utilize como uma espécie de banco.

Porém, não é menos verdade que a altura que o sinistrado pretendia atingir era manifestamente reduzida, já que o carro tinha entre 30 a 40 cms de altura (facto provado nº 6). Para servir de termo de comparação tenhamos presente que um vulgar banco de cozinha, como é do conhecimento geral, tem normalmente uma altura que medeia entre os 45 e os 50 cms.

E para 30 ou 40 cms de altura, normalmente, uma pessoa média, de sensatez e prudência média não pensa em utilizar uma escada ou escadote, embora fosse recomendável e tenha alguma ideia do potencial perigo que pode correr, se bem que achando que nada vai acontecer.

De tudo já considerado não podemos deixar de concordar com a conclusão a que se chegou na sentença recorrida, ou seja, que o acidente não se deveu a negligência grosseira do sinistrado.

Diferente seria se o sinistrado, ao subir para o carro, logo este tivesse deslizado dando alerta de perigosa instabilidade e, mesmo assim, insistisse em continuar. Porém a instabilidade só se manifestou na descida.

Que a utilização do carro de transporte correu mal, é uma evidência. Que houve alguma negligência do sinistrado, também. Agora que a negligência tenha sido grosseira, indesculpável, inadmissível, uma temeridade inútil, ou uma falta de gravidade excepcional, é que não.

A bem elaborada sentença não merece, deste modo, censura, só não sendo de confirmar quanto à fundamentação de facto relativamente ao conjunto total dos factos a considerar provados, assim improcedendo totalmente a apelação da ré seguradora.

X- Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar totalmente improcedente a apelação e, embora com diferente fundamentação de facto, em confirmar a decisão proferida na sentença.

            Custas em 1ª instância, como ali fixado.

            Custas em 2ª instância, a cargo da apelante.

Lisboa, 03/12/2014

Duro Mateus Cardoso

Isabel Tapadinhas

Leopoldo Soares

Decisão Texto Integral: