Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
324/14.0TELSB-CJ.L1-5
Relator: ARTUR VARGUES
Descritores: SEGREDO DE JUSTIÇA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/21/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: - O regime regra é, actualmente (após a redacção dada pela Lei nº 48/2007, de 29/08) o da publicidade, constituindo o segredo de justiça a excepção.
- O segredo de justiça, tal como regulado nos artigos 86º e seguintes CPP, apresenta-se em duas vertentes : a interna (respeitando aos intervenientes processuais directamente envolvidos na relação processual concretamente em causa) e a externa (reportado à generalidade das pessoas, estranhas a essa relação processual).
- Não tendo no processo ocorrido ainda o encerramento da fase de inquérito, verifca-se apenas uma cessação do segredo de justiça na sua dimensão interna (relativamente ao arguido, assistente e ofendido) do que não resulta que, mesmo quanto a eles, tenha sido retomada ope legis a regra da publicidade sem restrições, pois, como se extrai do nº 4, do artigo 89º CPP, o exame (gratuito) dos autos fora da secretaria só é admissível quando o processo se torna público “nos termos dos nºs 1, 4 e 5 do artigo 86º”, não se prevendo a situação contemplada no nº 6 do artigo 89º de estarem “findos os prazos previstos no artigo 276º”.
- Se o arguido, o assistente e o ofendido podem consultar todos os elementos de processo que se encontre em segredo de Justiça (sublinhado nosso) findos os prazos previstos no artigo 276ºCPP, é porque o processo, mesmo decorridos esses prazos, é susceptível de continuar ainda em segredo de justiça, não se tendo tornado público, nomeadamente para efeitos do aludido nº 4, do artigo 89º.
- Não estando vedada ao recorrente a consulta do processo na secretaria, querendo, e podendo assim tomar conhecimento do respectivo conteúdo em ordem à organização da sua defesa, não se vê qualquer obliteração, ou mesmo tão só a compressão, das suas garantias de defesa consagradas no artº 32º, 1, CRP.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I - RELATÓRIO

1. No Tribunal Central de Instrução Criminal, aos 06/12/2018, foi proferido despacho pelo Mmº JIC que indeferiu o pedido “de obtenção de extractos, cópias e certidões” formulado pelo arguido J..
2. Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso o arguido, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):

1. O Recorrente é arguido neste processo, sobre o qual impendeu segredo de justiça que foi levantado c cessou em finais de setembro de 2018.
2.  O douto despacho impugnado indeferiu o pedido do Arguido/Recorrente — formulado ao abrigo do artº 89º, 4, CPP, após ter cessado o segredo de justiça - de que lhe fosse facultado o exame gratuito do processo fora da secretaria.
3. Para ultrapassar eventuais dificuldades práticas, operacionais ou funcionais que a satisfação do requerido pudesse suscitar, o Recorrente admitiu (e admite) que o exame dos autos lhe fosse (seja) facultado, sempre a título restitutivo, através de fotocópia ou cópia digital.
4. O douto despacho impugnado não invoca qualquer espécie de dificuldade prática impeditiva da satisfação do pedido do Recorrente,
5. tendo-se limitado a recusá-lo, aderindo à promoção do titular da ação penal que defende uma especiosa e descabida distinção entre segredo de justiça interno e externo, de todo inaplicável ao caso e à pretensão do Arguido,
6. posto que o segredo de justiça que impendia sobre o processo foi levantado, repete-se, em setembro de 2018, e só ele poderia impedir o exame gratuito dos autos fora da secretaria pelo Arguido/Recorrente.
7. O Arguido/Recorrente esteve sob obrigação de permanência na habitação entre junho de 2017 e maio de 2018 e, desde então, está sujeito à medida de proibição de ausência para o estrangeiro, que o impede de trabalhar, uma vez que reside e trabalha no DUBAI.
8. Tem, por outro lado, todos os seus bens arrestados desde junho de 2017: primeiro, por força de um despacho que foi anulado duas vezes por esta Relação, e, desde janeiro de 2019, por força de um despacho que, desprezando e incumprindo o acórdão da Relação que decretou o imediato levantamento do arresto, ordenou novo arresto sobre os mesmos bens.
9. O douto despacho coarta o exercício pelo Arguido/Recorrente dos direitos de defesa que lhe assistem,
10. até porque, não obstante múltiplos requerimentos que formulou, nunca lhe foi facultada cópia do primeiro despacho de arresto nem do segundo, agora executado,
11.    nem pode contraditar os fundamentos indiciários que foram invocados contra si para justificar as medidas de coação e de garantia patrimonial que lhe foram impostas.
12. O douto despacho recorrido ofende e viola o disposto nos arts 86º, 1, 4 e 5, e 89º, 1 e 4, CPP, pelo que deve ser revogado.
13. O conjunto normativo integrado pelos arts 86º, 1, 4 e 5, e 89º, 1 e 4, do CPP, interpretado, como foi, no sentido de que o arguido não tem o direito de, na fase do inquérito, examinar os autos (no original ou em cópia) fora da secretaria, quando o processo não se encontra em segredo de justiça, sem que seja sequer invocada qualquer dificuldade prática, operacional ou funcional impeditiva desse exame, é inconstitucional, por ofensa das garantias de defesa consagradas no artº 32º, 1, CRP.
TERMOS EM QUE,
concedendo provimento ao recuso e revogando o douto despacho recorrido, farão Vossas Excelências a habitual JUSTIÇA!

3. Respondeu o Magistrado do Ministério Público junto do tribunal a quo à motivação de recurso, pugnando pela sua rejeição e, subsidiariamente, por lhe ser negado provimento.

4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da rejeição do recurso ou, se assim se não entender, pela sua improcedência.

5. Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, nº 2, do CPP, tendo sido apresentada resposta pelo recorrente, em que reafirma, no essencial, a posição anteriormente assumida na motivação de recurso.

6. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO
1.   Âmbito do Recurso
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/1999, CJ/STJ, 1999, tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.

No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, a questão que se suscita é a de saber se o arguido, na presente fase processual de inquérito, tem direito ao exame gratuito dos autos (no original ou em cópia) fora da secretaria.

2. Elementos relevantes para a decisão
2.1 Por despacho de 13/08/2014, o Mmº Juiz de Instrução Criminal validou a determinação do Ministério Público desse mesmo dia de aplicação aos autos, durante a fase de inquérito, do segredo de justiça.
2.2 Posteriormente, o Ministério Público requereu o adiamento do acesso aos autos pelos intervenientes processuais por três meses e depois a prorrogação até ao dia 30 de Setembro de 2018, nos termos do estabelecido no artigo 89º, nº 6, do CPP.
2.3 Aos 8 de Novembro de 2018, o arguido J., pelo seu ilustre mandatário, veio, em peça dirigida à Exmª Senhora Procuradora, invocando o disposto no artigo 89º, nº 4, do CPP, reiterar o requerimento de confiança de uma fotocópia gratuita do processo, ou de uma sua cópia digital que o seu mandatário constituído e subscritor do presente requerimento formulou (por fax do dia 9 de Outubro de 2018, e remessa do original no mesmo dia pelo seguro do correio), no exercício dos direitos em que está investido pelo artº 63º, 1, CPP.
2.4 Em 05/12/2018, o Ministério Público pronunciou-se nos seguintes termos: opõe-se à extracção de cópias, certidões, extractos, no que respeita a todos os elementos solicitados, ou seja, a todo o processo e seus apensos. Perante tal oposição, ora deduzida pelo Ministério Público, apresentam-se os autos ao Exmº. JIC para apreciação e decisão.
2.5 Em 06/12/2018 – fls. 36764/36765 - foi proferida a decisão recorrida, que apresenta o seguinte teor (transcrição):

Fls. 36745 a 36746 - Atenta a oposição manifestada pelo detentor da acção penal e a jurisprudência citada, com a qual se concorda e aqui se acolhe, na íntegra, dando-se por reproduzida a douta promoção de fls. 35896 a 35902 (ponto XX a)), não por falta de ponderação própria da questão, mas por simples economia processual e, à imagem do já anteriormente decidido a respeito, por despacho proferido em 06/11/2018, indeferem-se os pedidos de obtenção de extractos, cópias e certidões, formulados pelos arguidos J. os assistentes e os ofendidos (texto nos exactos termos do original).
2.6 Em 27/12/2018, o arguido requereu a aclaração do despacho de 06/12/2018, referindo que o despacho em causa permite a leitura de que pressupôs, no que lhe diz respeito, que o arguido pretende obter uma cópia do processo, para fazê-la sua.

Afigura-se relevante esclarecer se é esse de facto o sentido da decisão. Porque não é esse o sentido do requerimento do arguido.
O Arguido não requereu, isto é, uma cópia dos autos para a fazer sua.
Exerceu o direito ao “exame gratuito do processo fora da secretaria (“confiança do processo” na designação da praxe) em que considerava e considera estar investido, face ao disposto no artº 89º, 4, CPP.

Simplesmente, porque admite que a consulta do processo original pode causar dificuldades práticas, devido ao número de intervenientes a quem a lei confere igual direito, formulou o pedido de que a confiança do processo, a título restitutivo, fosse efectivada mediante cópia analógica ou digitalizada.

2.7 Em 07/02/2019 (já depois de ter sido interposto o recurso sob apreciação), o Mmº JIC despachou decidindo que nada havia a aclarar.

Apreciemos.
O artigo 86º, do CPP, estabelece:
“1- O processo penal é, sob pena de nulidade, público, ressalvadas as excepções previstas na lei.
2- O juiz de instrução pode, mediante requerimento do arguido, do assistente ou do ofendido e ouvido o Ministério Público, determinar, por despacho irrecorrível, a sujeição do processo, durante a fase de inquérito, a segredo de justiça, quando entenda que a publicidade prejudica os direitos daqueles sujeitos ou participantes processuais.
3- Sempre que o Ministério Público entender que os interesses da investigação ou os direitos dos sujeitos processuais o justifiquem, pode determinar a aplicação ao processo, durante a fase do inquérito, do segredo de justiça, ficando essa decisão sujeita a validação pelo juiz de instrução no prazo máximo de setenta e duas horas (…)”.
O regime regra é, pois, actualmente (após a redacção dada pela Lei nº 48/2007, de 29/08) o da publicidade, constituindo o segredo de justiça a excepção.
Nos presentes autos de inquérito foi aplicado o segredo de justiça, que vigora por força da decisão judicial de validação proferida em 13/08/2014, nos termos do artigo 86º, nº 3, do CPP.
O segredo de justiça, tal como regulado nos artigos 86º e seguintes, se apresenta em duas vertentes. A interna (respeitando aos intervenientes processuais directamente envolvidos na relação processual concretamente em causa) e a externa (reportado à generalidade das pessoas, estranhas a essa relação processual).

O artigo 89º, nº 6, estatui o seguinte:
“Findos os prazos previstos no artigo 276.º, o arguido, o assistente e o ofendido podem consultar todos os elementos de processo que se encontre em segredo de Justiça, salvo se o Juiz de instrução determinar, a requerimento do Ministério Público, que o acesso aos autos seja adiado por um período máximo de três meses, o qual pode ser prorrogado, por uma só vez, quando estiver em causa a criminalidade a que se referem as alíneas i) a m) do artigo 1.º, e por um prazo objectivamente indispensável à conclusão da investigação.”
Pois bem, não tendo no presente processo ocorrido ainda o encerramento da fase de inquérito, o que se verifica é uma cessação do segredo de justiça na sua dimensão interna (relativamente ao arguido, assistente e ofendido) em virtude de ter decorrido integralmente o prazo legal de duração máxima previsto no artigo 276º, do CPP, bem como o do adiamento e a prorrogação mencionados no artigo 89º, nº 6, do mesmo – cfr. Ac. R. de Lisboa de 17/03/2010, Proc. nº 121/08.1TELSB-B.L1-3, disponível em www.dgsi.pt.
Mas, ainda assim, daqui não resulta que, mesmo quanto a eles, tenha sido retomada ope legis a regra da publicidade sem restrições, pois, como se extrai do nº 4, do artigo 89º, o exame (gratuito) dos autos fora da secretaria só é admissível quando o processo se torna público “nos termos dos nºs 1, 4 e 5 do artigo 86º”, não se prevendo a situação contemplada no nº 6 do artigo 89º de estarem “findos os prazos previstos no artigo 276º”.
Acresce que, se o arguido, o assistente e o ofendido podem consultar todos os elementos de processo que se encontre em segredo de Justiça (sublinhado nosso) “findos os prazos previstos no artigo 276º”, é porque o processo mesmo decorridos esses prazos é susceptível de continuar ainda em segredo de justiça, não se tendo tornado público, nomeadamente para efeitos do aludido nº 4, do artigo 89º, ao invés do que sustenta o recorrente.
Ainda no entender do recorrente, “o conjunto normativo integrado pelos arts 86º, 1, 4 e 5, e 89º, 1 e 4, do CPP, interpretado, como foi, no sentido de que o arguido não tem o direito de, na fase do inquérito, examinar os autos (no original ou em cópia) fora da secretaria, quando o processo não se encontra em segredo de justiça, sem que seja sequer invocada qualquer dificuldade prática, operacional ou funcional impeditiva desse exame, é inconstitucional, por ofensa das garantias de defesa consagradas no artº 32º, 1, CRP”.
Não vemos, porém, em que medida é que se verifica in casu obliteração ou mesmo tão só a compressão das suas garantias de defesa.
Na verdade, não está vedada ao recorrente a consulta do processo na secretaria, querendo, como reconhece até o Ministério Público, pelo que pode assim tomar conhecimento do respectivo conteúdo em ordem à organização da sua defesa.

Termos em que cumpre negar provimento ao recurso.

III – DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os Juízes da 5ª Secção desta Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido J. e confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC.

Lisboa, 21 de Maio de 2019

(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário – artigo 94º, nº 2, do CPP)

Artur Vargues
Jorge Gonçalves