Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3962/21.0T8LSB.L1-8
Relator: TERESA SANDIÃES
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
INDEFERIMENTO LIMINAR
GARANTIA BANCÁRIA
PROIBIÇÃO DE ACIONAMENTO
DISPENSA DO CONTRADITÓRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/06/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÕES
Decisão: PROCEDENTES
Sumário: - A audição das requeridas inviabilizará não só o efeito surpresa, como induzirá, com elevada probabilidade, a 2ª requerida a accionar de imediato as garantias bancárias – salientando-se que a citação não tem como efeito a paralisação dos efeitos jurídicos do que é peticionado até à decisão final.
- Tal conduzirá inevitavelmente ao pagamento das respectivas quantias pela entidade bancária ora 1ª requerida e consequente dever de reembolso por parte da requerente, com os efeitos patrimoniais daí advenientes, o que, de forma irremediável nesta fase (estamos perante uma providência antecipatória), impede o efeito útil, a eficácia de qualquer decisão a proferir nestes autos, pelo que se impõe o afastamento do contraditório (art. 366º, n.º 1 do CPC).
- Não suscitando dúvidas a maior exigência quanto à prova do direito invocado neste tipo de providências, que não se deve bastar com juízos de verosimilhança, antes devendo ser a respectiva prova inequívoca, segura, já no que respeita à exigência de prova pré-constituída, não sujeita a instrução, resumindo-se a mesma a prova documental (ou quiçá pericial) se nos afigura excessiva e sem qualquer correspondência no disposto no artº 362º e ss. do CPC.
- Na medida em que a paralisação do accionamento de garantia bancária não constitui um procedimento cautelar específico, com regras próprias, está sujeito ao regime geral, não se justificando que a peculiaridade, adveniente da natureza autónoma da garantia, imponha uma derrogação daquele regime no que respeita aos meios de prova. Nem se vislumbra que os factos integrantes do comportamento abusivo, da má fé, da fraude, não possam ser sujeitos a instrução, mormente mediante prova testemunhal, sujeita à livre apreciação pelo juiz.
- A prova líquida e inequívoca de fraude manifesta ou de abuso evidente do beneficiário da garantia bancária on first demand pode ser efetuada pelos meios legalmente admissíveis, designadamente documental e testemunhal.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

M., S.A., intentou procedimento cautelar comum, nos termos do disposto nos artigos 362º, nº 1 e 366º, nº 1 do C.P.C., contra Banco, S.A., K. e BANQUE X, requerendo que seja ordenada a notificação:
a) Da 1.ª Requerida para se abster imediatamente de qualquer pagamento à 2ª e 3ª Requeridas ao abrigo (i) da Garantia Bancária G 301395 emitida em dezembro de 2012 pelo valor de € 870.496,00, (ii) da Garantia Bancária G 302328 emitida em abril de 2014 pelo valor de € 165.493,38 e (iii) da Garantia Bancária G 302114 emitida em janeiro de 2014 pelo valor de € 90.842,00; 
b) Das 2ª e 3ª Requeridas no sentido de suspenderem imediatamente o acionamento das referidas Garantias Bancárias.
Em 23/02/2021 foi proferida decisão de indeferimento liminar do requerimento inicial, do seguinte teor:
“(…)Da documentação apresentada resulta evidente que a pedido da Requerente a 1ª Requerida emitiu a garantia bancária a Garantia Bancária G 301395 emitida em Dezembro de 2012 pelo valor de € 870.496,00, a Garantia Bancária G 302328 emitida em Abril de 2014 pelo valor de € 165.493,38 e a Garantia Bancária G 302114 emitida em Janeiro de 2014 pelo valor de € 90.842,00, à  primeira solicitação a favor da 2ª Requerida, para garantia do pontual cumprimento pela Requerente das obrigações emergentes dos contratos celebrados entre a Requerente e a 2ª Requerida, obrigando-se o Garante a pagar à Beneficiária recebido qualquer pedido desta até esse limite sem poder opor qualquer motivo para o não fazer.  
A própria Requerente aceita a qualificação dessas garantias como sendo autónomas e à primeira solicitação. (…)
A Requerente pugna pela má fé e pelo abuso de direito por parte da 2ª Requerida para afastar a obrigação de pagamento da garantia bancária e sustentar a pretendida paralisação do direito de accionar a garantia bancária.
Na verdade, "a autonomia de garantia não se sobrepõe à eventualidade de má fé ou abuso de direito (...) por parte do beneficiário da garantia. Como em geral resulta dos artigos 762º e 334º do Código Civil também aqui a actuação das partes se deve pautar pelas regras da boa fé, sendo ilegítimo exercer um direito em manifesto desrespeito pelos limites impostos pela boa fé, bons costumes ou pelo fim económico ou social desse direito." (in Acórdão do S.T.J. de 21 / 04 / 2010, Relator Maria dos Prazeres Beleza, disponível nas bases de dados do M.J.).  
Por outro lado tanto a doutrina como a jurisprudência admitem "a instauração pelo Mandante de providências cautelares, urgentes e provisórias, em sede judicial, destinadas a impedir o garante de entregar a quantia pecuniária ao beneficiário ou este de a receber, desde que o Mandante apresente prova líquida e inequívoca de fraude manifesta ou de abuso evidente do beneficiário". (Francisco Cortez, "A Garantia Bancária Autónoma", in ROA, ano 52, II, Julho, 1992).  
Isto porque "no âmbito da garantia autónoma, sempre que a providência cautelar seja requerida como forma de obstar a um aproveitamento abusivo da posição do beneficiário, deve ser exigida prova pronta e líquida. Pois, defender o contrário, seria negar a especificidade que a prática, a doutrina e a jurisprudência têm tentado identificar na garantia autónoma (...) autonomia que não se coaduna com o deferimento de providências se não em condições excepcionais, e que seria excessivamente relativizada, caso nos bastássemos com uma prova meramente sumária ou indiciária, com base na qual o juiz pudesse fazer um simples juízo de probabilidade." (Mónica Jardim, "A Garantia Autónoma", páginas 336 e 337).  
Na verdade, na ponderação da verificação in casu dos requisitos de que o artigo 362º, nº 1 do CPC faz depender o decretamento de providência cautelar não especificada o tribunal terá de ter em consideração essa exigência no que respeita a probabilidade de existência do direito invocado pela requerente da providência.  
Sustenta a Requerente a existência de abuso de direito por parte da 2ª Requerida, traduzida no accionamento da garantia bancária apesar inexistir incumprimento por parte da Requerente, porque é a Requerente credora da mesma pelo valor de 834.414,00 euros, e porque a entidade adjudicante rescindiu os contractos de empreitada celebrados com a 2ª Requerida o que determinou a extinção dos contractos de sub-empreitada celebrados entre a última e a Requerente.  
No entanto os documentos juntos aos autos apenas demonstram a emissão de garantias bancárias nos termos atrás descritos, e a celebração dos contratos nos termos invocados pela Requerente. 
 Com efeito, não está de forma alguma demonstrado pela documentação junta que por conseguinte é ilícito e abusivo o pretendido accionamento das garantias bancárias.  
Doutrina e jurisprudência fazem equivaler em regra a prova certa, líquida e segura do abuso de direito por parte do beneficiário da garantia a prova documental que inequivocamente ateste essa realidade, ou quando muito, e caso isso não seja possível, a outro meio de prova de equivalente força probatória (neste sentido ver Acórdãos do S.T.J. de 21 / 4 / 2010 - Rel. Mª Prazeres Beleza; relação do Porto de 4 / 11 / 2008 - Rel. Cândida Lemos, disponíveis em www.dgsi.pt; Menezes Cordeiro, "Direito Bancário", págs. 386 a 389).  
Ora, considerando que a documentação junta não demonstra de modo inequívoco a existência dos factos e das afirmações conclusivas e argumentativas em que a Requerente estribou o abuso de direito invocado "de modo algum estariam reunidas as condições para o decretamento da medida cautelar inibitória, tendo em conta o grau de incerteza que persiste e o facto dessa incerteza não ser susceptível de ser ultrapassada por elementos de prova ténue e inseguras como são os depoimentos de testemunhas."  (Acórdão da Relação de Lisboa de 23 / 02 / 2010 - Relator Abrantes Geraldes, disponível em www.dgsi.pt; no mesmo sentido ver Duarte Pinheiro, ROA, ano 52, pág. 460).  
Como tal, tão pouco se reveste de natureza idónea para lograr essa prova a inquirição das testemunhas para o efeito arroladas pela Requerente. 
Consequentemente, e não estando demonstrados de forma "pronta, clara e líquida" invocada pela Requerente os factos que invocaram para sustentar o comportamento abusivo da 1ª Requerida soçobra a probabilidade de existência do direito à paralisação da execução da garantia bancárias autónomas que invocou.  
Deste modo, e afastado um dos requisitos de que depende o decretamento do procedimento cautelar, não especificado, é manifesta a improcedência do mesmo pelo que se indefere o presente procedimento cautelar (artigos 226º, nº 4, b), 362º e 590º, nº 1, do C.P.C.).  
Custas pela Requerente, fixando-se o valor da causa naquele indicado no requerimento inicial.”
A requerente interpôs recurso desta decisão, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
“A) Não pode o Tribunal proferir uma decisão liminar de indeferimento de uma providência cautelar, concluindo pela insuficiência da prova apresentada, quando não admitiu a produção de prova testemunhal requerida pela Requerente, tanto mais que a Requerente referiu que as testemunhas arroladas tinham conhecimento direto e pessoal dos factos; 
B) Também não pode o Tribunal considerar que a prova testemunhal é inidónea para se demonstrar o carácter abusivo e de má fé de um acionamento de uma garantia bancária que se pretende suspender através de uma providência cautelar; 
C) A ponderação da relevância de um meio de prova não pode ser feita em termos “abstratos” ou a partir de juízos apriorísticos, devendo ser aferida em termos concretos e casuísticos e após a sua produção, até porque a lei manda atender a todas as provas produzidas – cfr. art. 413º do C. P. Civil para assegurar a boa decisão da causa – cf. art. 602º, nº 1 do C. P. Civil. 
 D) A prova líquida do acionamento de uma garantia bancária com abuso de direito e/ou má fé pode ser feita através de prova testemunhal. 
 E) Caso se admita apenas a produção da prova resultante do texto do contrato e de documentos autênticos, dificilmente será viável (se não mesmo impossível) a prova da má fé ou abuso de direito do beneficiário da garantia, já que não é expectável que o autor do abuso de direito ou da má fé assuma documentalmente essa atuação ilícita. 
 F) Pelo que, tendo a Requerente apresentado prova testemunhal e cabendo-lhe o ónus da prova a obrigação de apresentar a prova necessária (arts. 342.º do Código Civil), em particular o rol de  testemunhas (art. 229.º do CPC), tem a Requerente da providência o direito potestativo de produzir a prova testemunhal arrolada, bem se sabendo que o Tribunal apreciará livremente a prova.  
G) Ao proferir a sentença aqui em crise, o Tribunal recorrido violou princípios e regras elementares tais como: 
a. Princípio do Estado de Direito,  
b. Princípio da Justiça; 
c. Princípio relativo à garantia de acesso aos tribunais – art. 20.º da CRP; 
d. Princípio do inquisitório; 
e. Princípio da oralidade e da imediação; 
f. Princípio da descoberta da verdade material; 
g. O disposto nos arts. 2.º, 295.º, 411.º e 413.º do CPC e 
h. O disposto nos arts. 334º, 342.º, 392.º e 762º, n.º 2, do Código Civil  
 H) Pelo que deve a sentença recorrida ser revogada, determinando-se ao Tribunal recorrido que proceda à produção de prova requerida: audição de 4 testemunhas, proferindo-se subsequentemente decisão final, sem prejuízo das seguintes conclusões. 
 II.2) DA PROLAÇÃO DE DECISÃO LIMINAR E SUA NOTIFICAÇÃO À 1.ª REQUERIDA, A FIM DE EVITAR A INSOLVÊNCIA DA REQUERENTE 
 I) Da factualidade alegada e documentalmente suportada decorre uma multiplicidade tão grande de fundamentos para operar a limitação à autonomia das garantias bancárias “on first demand” que se afigura que este é um dos casos típicos de acionamento motivado por razões subjetivas, fora do âmbito contratual e manifestamente abusivo; sendo, assim, incompatível com os ditames da boa fé, devendo ser paralisado! 
J) Ora, foi perante este cenário dantesco relativo aos graves e irreparáveis danos, máxime o encerramento e subsequente insolvência da Requerente, que esta expôs o seguinte e formulou um pedido de decisão liminar a ser notificada à 1ª Requerida (Banco emitente das garantias e a única Requerida com sede em Portugal) antes da audição das testemunhas arroladas: 
 12. Todavia, no caso concreto, tendo em conta a natureza e a urgência do presente procedimento, bem como as especificidades próprias do respetivo contexto e à necessidade de uma decisão em tempo útil com a maior urgência; 
 13. Requer-se que o Tribunal ordene, desde já, e antes da produção da prova testemunhal adiante arrolada e da citação das Requeridas, a notificação provisória e meramente intercalar da 1.ª Requerida (Banco Português) para se abster de qualquer pagamento por conta das Garantias Bancárias, conforme peticionado a final; 
 14. Invocando-se, para o efeito, o princípio da adequação e da gestão processual e da simplificação e agilização processual; 
 15. Assim como o disposto no n.º 5 do art. 879.º do CPC no que respeita à prolação de decisão provisória, sujeita a posterior alteração ou confirmação, relativamente à tutela dos direitos da personalidade de pessoas singulares que, no caso concreto, também justifica o deferimento do supra requerido, conforme se demonstra no capítulo 9.1 infra; 
 41. E, ainda, atenta a muito grave, iminente e irreparável lesão dos direitos de personalidade da Requerente, igualmente relevantes, designadamente o direito ao crédito e ao bom nome em geral, especificamente perante as instituições financeiras, que ficará irremediavelmente prejudicado em caso de pagamento das Garantias Bancárias. 
16. Veja-se, também, o disposto no n.º 3 do art. 381.º do CPC que obsta à execução de deliberações sociais impugnadas enquanto não for proferida decisão em 1.ª instância; 
17. Sob pena de assim não acontecendo, haver que se proceder ainda à audição das testemunhas da Requerente com o risco muito provável do presente procedimento se poder tornar irremediavelmente inútil. 
18. Tudo sem prejuízo da subsequente audição das testemunhas adiante arroladas que têm conhecimento direto e pessoal da factualidade aqui narrada; 
19. E, naturalmente, sem prejuízo dos direitos de defesa das Requeridas e da manutenção da validade das Garantias Bancárias. 
20. A insistência da Requerente no sentido da 1ª Requerida ser imediatamente notificada para se abster de qualquer pagamento à 2ª e 3ª Requeridas de qualquer quantia titulada pelas Garantias Bancárias deve-se ao facto de, se tal pagamento vier a ocorrer, a Requerente se ver obrigada a pagar à 1ª Requerida o correspondente, situação que será objetivamente impossível e que conduzirá quer ao bloqueio da sua atividade, conforme se demonstrará adiante no capítulo 9.1 relativo ao requisito “periculum in mora”, quer ao seu encerramento e insolvência! 
21. A assim se não entender, requer que o presente procedimento seja decretado sem audição prévia das Requeridas, designando-se data para a audição das testemunhas adiante arroladas que, como se referiu, têm conhecimento direto e pessoal dos factos que justificam o decretamento da presente providência. 
 K) Perante a materialidade alegada e o evidente abuso de direito e manifesta má fé da 2.ª Requerida, afigura-se que seria expectável o deferimento do pedido formulado face à manifesta urgência visando impedir o acionamento das Garantias Bancárias, o pagamento do correspondente valor pela 2ª Requerida e, assim, se prevenir a inutilidade superveniente da lide com a consequente insolvência e encerramento da Requerente. 
 L) Ora, a desconsideração da referida factualidade e o indeferimento liminar do pedido de decisão liminar constitui um caso de violação dos princípios e regras invocadas pela Requerente para suportar o pedido acima referido, a saber:   
M) Princípio da Justiça,  
N) o disposto no art. 6º do CPC consagrando o princípio da adequação e da gestão processual e da simplificação e agilização processual e  
O) o disposto no n.º 2 do art. 2.º do CPC relativo à garantia de acessos aos tribunais,   P) o disposto no n.º 2 do art. 3.º do CPC; 
Q) o disposto no n.º 5 do art. 879.º do CPC no que respeita à prolação de decisão provisória, sujeita a posterior alteração ou confirmação, relativamente à tutela dos direitos da personalidade de pessoas singulares que, também, por aplicação extensiva (ou por analogia resultante de lacuna da lei) pode ser aplicado aos casos das pessoas coletivas. 
R) Pelo que também por este motivo se pode concluir que andou mal o Tribunal “a quo” 
S) Termos em que deve a decisão de 1.ª instância ser revogada e substituída por outra decisão: 
a) De carácter liminar que, com fundamento nos princípios e regras referidos em L) supra: 
i. Determine à 1.ª Requerida que se abstenha de proceder ao pagamento de quaisquer montantes titulados pelas Garantias Bancárias e 
ii. Determine que se proceda, sem audição das Requeridas, à produção da prova testemunhal requerida pela Requerente, proferindo-se a correspondente decisão e seguindo-se os ulteriores termos até final  
OU, assim se não entendendo:  
 b) Que determine a realização da produção da prova testemunhal apresentada pela Requerida, sem audição das Requeridas, proferindo-se a correspondente decisão e seguindo-se os ulteriores termos até final  
 Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida e proferindo-se nova decisão conforme o supra em exposto em S), seguindo-se os ulteriores trâmites até final, com o que se fará a costumada Justiça!”
 Em 11/03/2012 foi proferido o seguinte despacho:
“Por tempestivo, sendo a decisão recorrível, e tendo a recorrente legitimidade admito o recurso interposto, que é de apelação, com efeito suspensivo, e ordeno a oportuna subida dos autos ao Tribunal da Relação de Lisboa –artigos, 629º, nº 1, 644º, nº 1, a) ,638º, 645º, nº1, a), 647º nº 3, d), 641º, todos do C.P.C.”  
Em 15/03/2021 foi proferida a seguinte decisão:
“Atenta a admissão do recurso e face ao disposto no artigo 641º, nº 7, do C.P.C. incumbe apreciar o pedido de dispensa da audiência prévia das Requeridas formulado pela Requerente do procedimento cautelar. 
Funda a mesma a respectiva pretensão na alegação de que está iminente o accionamento da garantia bancária (“se é que a 2ª e 3ª Requeridas não formalizaram tal pedido “) e de que essa audição retirará a eficácia da providência pretendida atenta a necessidade de citação das Requeridas, duas delas de nacionalidade W e sede nesse país. 
Dispõe o artigo 366º, nº 1, do C.P.C. que em sede de procedimento cautelar não especificado o tribunal ouvirá o requerido excepto quando a audiência puser em risco sério o fim ou a eficácia da providência. 
Impôs assim o legislador a regra da audição contrária no âmbito de procedimento cautelar, aliás de harmonia com o princípio do contraditório consagrado no artigo 3º do C.P.C.. 
Sendo o princípio do contraditório um dos princípios estruturantes do nosso processo civil o respectivo afastamento impõe a averiguação e a conclusão que no caso concreto a audiência da parte contrária põe em risco sério o fim ou a eficácia da providência. 
Ora tal conclusão terá necessariamente que radicar nos factos para tanto invocados pela requerente da providência. 
A este propósito Abrantes Geraldes fala  na “ (…) adopção de um critério objectivo , (…) não bastando ,  por isso , um simples temor não concretizado suficientemente em factos (…) “ , acrescentando ainda que “ (…) o risco de ocorrência de prejuízos resultantes da audição do requerido deve deduzir-se dos factos alegados no requerimento inicial que , face aos elementos constantes do processo , analisados à luz da experiência comum, permitam concluir pela desvantagem da audiência do requerido “.( Temas da Reforma do Processo Civil , III volume , 1998, pág.162 ) 
Para além da alegação de que está iminente o accionamento da garantia bancária (“se é que a 2ª e 3ª Requeridas não formalizaram tal pedido “e das demoras decorrentes da citação das Requeridas e da eventual dedução de oposição pelas mesmas, não invoca factos para sustentar a pretendida dispensa. 
Sucede que ao impor em regra a audiência do requerido em sede de procedimento cautelar - meio processual que se destina a assegurar a efetividade do direito mediante a demonstração pelo  requerente de justo receio de lesão grave e dificilmente reparável a esse direito – o legislador não pôde deixar de considerar que esse receio não justifica sem mais a dispensa do contraditório. 
Deste modo as conjecturas e hipóteses em que estriba a requerida dispensa da audiência das requeridas não constituem “(…) elementos que permitam concluir, com razoável grau de segurança, que a audição do requerido pode colocar em risco sério o fim ou a eficácia da providência.” (Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, III volume, 1998, pág.160) 
Tão pouco pode lograr esse desiderato o cumprimento de um principio – o do contraditório – cujo afastamento o legislador só excepcionalmente permitiu que ocorresse, nem a nacionalidade e domicilio de algumas das Requeridas. 
Em face do exposto indefere-se a dispensa da audição das requeridas. 
 Cumpra-se o disposto no artigo 641º, nº 7, do C.P.C. citando as Requeridas para os termos do recurso e do procedimento cautelar.”
 A requerente interpôs recurso desta decisão, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
“A) A prévia audição das requeridas com sede no país Y, implicando a sua citação por carta rogatória, com a necessariamente prévia tradução para y do requerimento inicial e de extensa documentação, podendo demorar 3 meses ou mais meses, a que acrescem os prazos de defesa e dilação respetiva e ainda a subsequente produção de prova e o período subsequente para a prolação da decisão final, tornam inviável o cumprimento do prazo de 60 dias estabelecido no n.º 2 do art. 363.º do CPC para a decisão em 1ª instância; 
B) Tais circunstâncias constituem fundamento manifestamente suficiente para justificar a dispensa da prévia audição das Requeridas, de forma a se salvaguardar o efeito útil e a eficácia da providência cautelar que visa evitar a produção de um dano grave e irreparável, qual seja o encerramento da Requerente e a sua insolvência; sem prejuízo do direito ao contraditório diferido nos termos do disposto no n.º 1 do art. 372.º do CPC. 
 Ademais,  
C) Tendo sido alegados vários factos relacionados com a iminência do acionamento das Garantias Bancárias de mais de um milhão de euros, cuja intenção foi comunicada pessoalmente à Requerente, sendo tal acionamento pela 2ª Requerida movido e motivado por interesses exclusivamente subjetivos dessa mesma 2ª Requerida visando dotar, de forma ilícita e abusiva, a sua tesouraria da correspondente liquidez de que passou a carecer, em virtude dos seus diretores e acionistas terem sido presos pelo cometimento de vários crimes que determinaram a rescisão dos contratos de empreitada (e perda da respetiva receita),  no quadro dos quais a Requerente foi por aquela subcontratada; 
D) Tal circunstancialismo associado ao facto de se estar perante garantias bancárias à primeira solicitação, cujo pagamento em caso de acionamento deve ser feito pela 1ª Requerida num prazo relativamente curto (1 semana), aumenta exponencialmente o risco de perigo da lesão grave e de difícil reparação, tornando-se lógico e forçoso concluir pela urgência do presente procedimento e, necessariamente, pela dispensa da audição prévia das Requeridas, visando a prolação de uma decisão que garanta o efeito útil e a eficácia da providência cautelar de modo a  evitar a produção de tal dano grave e irreparável, qual seja o encerramento da Requerente e a sua insolvência. 
E) Neste mesmo circunstancialismo, existe um elevado risco e elevada probabilidade, praticamente certa, da 2ª e 3ª Requeridas reagirem à sua citação contendo a comunicação da pretensão da Requerente, através da prática de atos suscetíveis de inutilizar o fim ou a eficácia das medidas cautelares pretendidas, aproveitando-se a dedução do contraditório para objetivos alheios à preparação da oposição, que só o decretamento da providência cautelar sem audição prévia das Requeridas poderá impedir, assim se garantindo a devida Justiça ao caso concreto; 
F) Sob pena de violação dos normativos legais supra invocados e se quebrar o efeito surpresa e frustrar a finalidade e a eficácia do presente procedimento, com produção de dano grave e irreparável que se pretende evitar. 
G) O Tribunal recorrido violou, com a sentença aqui em crise, os normativos invocados. 
H) Pelo que deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que determine a dispensa da audição prévia das Requeridas, seguindo-se os ulteriores trâmites até final e sem prejuízo do direito ao contraditório diferido nos termos do disposto no n.º 1 do art. 372.º do CPC. 
 Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida e proferindo-se nova decisão conforme o supra exposto, seguindo o processo os ulteriores trâmites sem a audição prévia das Requeridas, com o que V. Exas. farão a costumada Justiça!”
 A factualidade com relevo para o conhecimento do objeto do presente recurso é a que consta do relatório antecedente.
 Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela apelante e das que forem de conhecimento oficioso (arts. 635º e 639º do NCPC), tendo sempre presente que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (art.º 5º, nº3 do NCPC).
Assim, as questões a decidir são as seguintes:
A) Recurso da decisão proferida em 23/02/2021:
- Aferir se no presente procedimento cautelar é admissível prova testemunhal
B) Recurso da decisão proferida em 15/03/2021:
- aferir se, em face do recurso identificado em A), a audição das requeridas deve ser dispensada (ou se há que cumprir o disposto no artº 641º, nº 7 do CPC).
*
A tramitação do recurso interposto em 1º lugar (nomeadamente a citação das requeridas para os termos do recurso e do procedimento cautelar – artº 641º, nº 7 do CPC, como ordenado pelo tribunal recorrido) depende da decisão a tomar relativamente ao recurso interposto em 2º lugar, pois caso este seja improcedente, fica prejudicado o conhecimento imediato do 1º, pelo que passamos à sua análise.
Estabelece o artº 641º, nº 7 do CPC que “no despacho em que admite o recurso referido na alínea c) do n.º 3 do artigo 629.º, deve o juiz ordenar a citação do réu ou do requerido, tanto para os termos do recurso como para os da causa, salvo nos casos em que o requerido no procedimento cautelar não deva ser ouvido antes do seu decretamento.”
Este preceito tem direta conexão com o estabelecido no artº 366º, nº 1 do CPC, nos termos do qual “o tribunal ouve o requerido, exceto quando a audiência puser em risco sério o fim ou a eficácia da providência.” E este, por sua vez, está em consonância com o disposto no artº 3º, nº 2 do CPC. 
A regra no procedimento cautelar comum é, pois, a da audição do requerido, permitindo-se excecionalmente a dispensa do contraditório antes do decretamento da providência, quando a audiência puser em risco sério o fim ou eficácia da providência.
“Serve este bosquejo retrospectivo do alcance dos incisos legais atinentes para referir que utilidade, fim ou eficácia apontam no mesmo sentido: a audiência do requerido não deve ter lugar quando, com ela, haja o risco de se frustrar o efeito prático que concretamente se pretende atingir, isto é, quando o conhecimento da pretensão cautelar pelo requerido ou a demora no deferimento da providência resultante da observância da contraditoriedade aumente o perigo da lesão grave e de difícil reparação que a providência visa evitar (…)
Não obstante, e, em todo o caso, continua a sustentar-se que o critério legal (correcto) de conceder um amplo poder de apreciação ao juiz deve ser aplicado considerando as regras gerais da experiência e as particularidades do caso concreto, equacionando o equilíbrio a observar entre os valores da contraditoriedade e os da eficácia da Justiça e não esquecendo que, se o princípio do contraditório é a regra (art. 3-1), o domínio das providências cautelares é, já ele, de excepção (art. 3-2).
Como decorrência do disposto no art. 385º, CPC, a audiência do requerido não deve ter lugar quando, com ela, haja o risco de se frustrar o efeito prático que concretamente se pretende atingir, isto é, quando o conhecimento da pretensão cautelar pelo requerido, ou a demora no deferimento da providência resultante da observância da contraditoriedade, aumente o perigo da lesão grave e de difícil reparação que a providência visa evitar.” (1)
“O contraditório só deve ser dispensado quando a audiência do requerido puser em sério risco o fim ou a eficácia da providência, e tal se compreende porque a audiência retarda o decretamento da providência, potencia o periculum in mora, eliminando a audiência o efeito surpresa da medida, bem podendo o requerido, nesse interim, agir por forma a inutilizar todo o interesse da medida cautelar.” (2)
 “O cumprimento ou não do contraditório em matéria de acompanhamento do recurso dependerá das circunstâncias legais ou factuais, de acordo com o disposto no artº 234º-A, nº 3. (…)
Se nada for alegado pelo requerente a tal respeito, nem resultarem dos autos elementos que desaconselhem a audição do requerido, deve ser-lhe dada a oportunidade de se pronunciar sobre os fundamentos e conteúdo da providência requerida. (…)
Assim, o risco de ocorrência de prejuízos resultante da audição do requerido deve deduzir-se dos factos alegados no requerimento inicial que, face aos elementos constantes do processo, analisados à luz da experiência comum, permitam concluir pela desvantagem da audiência do requerido.” (3)
Nos presentes autos foi proferido despacho de indeferimento liminar do procedimento cautelar. 
A requerente interpôs recurso, que foi admitido em 11/03/2021. Por despacho proferido em 15/03/2021 foi indeferida a dispensa da audição das requeridas e determinado o cumprimento do citado artº 641º, nº 7 do CPC. Entendeu-se, para tanto, em suma, que para além da alegação de que está iminente o acionamento da garantia bancária e das demoras decorrentes da citação das Requeridas e da eventual dedução de oposição pelas mesmas, a requerente não invocou factos para sustentar a pretendida dispensa. 
A requerente/apelante insurge-se contra esta decisão por, no seu entendimento, ter alegado e se verificarem factos que impõem a dispensa da audição, como requereu.
Vejamos.
A requerente interpôs procedimento cautelar comum pedindo a notificação:
“a) Da 1.ª Requerida para se abster imediatamente de qualquer pagamento à 2ª e 3ª Requeridas ao abrigo (i) da Garantia Bancária G 301395 emitida em dezembro de 2012 pelo valor de € 870.496,00, (ii) da Garantia Bancária G 302328 emitida em abril de 2014 pelo valor de € 165.493,38 e (iii) da Garantia Bancária G 302114 emitida em janeiro de 2014 pelo valor de € 90.842,00; 
b) Das 2ª e 3ª Requeridas no sentido de suspenderem imediatamente o acionamento das referidas Garantias Bancárias.”
Com o presente procedimento cautelar a requerente pretende obstar ao acionamento e pagamento de três garantias bancárias “on first demand”, no valor global de € 1.126.832,38, de que é beneficiária a 2ª requerida, com fundamento na sua atuação manifestamente abusiva e de má fé. Tais garantias foram emitidas pela 1ª Requerida a pedido da Requerente em benefício da 2ª Requerida, para garantia de cumprimento dos contratos celebrados entre esta e a Requerente, e foram transmitidas à 2.ª Requerida através da 3.ª Requerida, enquanto instituição financeira do pais Y correspondente da 1.ª Requerida. Os referidos contratos são de fornecimento de equipamentos e de execução dos correspondentes trabalhos de instalação (“Subcontratos”) integrados em empreitadas gerais de construção de dois hospitais, um localizado em R. e outro em S, no país Y, que foram adjudicados à 2.ª Requerida, na qualidade de empreiteiro geral, pelo Ministério … daquele país, enquanto entidade adjudicante e dono da obra. Alegou a requerente que os referidos contratos de empreitada foram resolvidos pelo dono de obra, por razões a que a requerente é alheia, tornando impossível a execução e conclusão dos subcontratos; as garantias bancárias, destinadas a garantir a boa execução dos subcontratos, deixaram de ter objeto e propósito, inexistindo quaisquer atos ou obrigações que possam ser por aquelas garantidos; sendo que a requerente não é devedora de qualquer quantia à 2ª requerida.
A requerente alegou, ainda, que a 2ª Requerida já acionou as garantias em junho e agosto de 2020, tendo conseguido evitar a consumação de tal acionamento, através da prorrogação da validade das garantias bancárias; o recente acionamento das garantias bancárias foi transmitido à Requerente por comunicação telefónica ocorrida no dia 10 de Fevereiro de 2021 e deverá estar iminente, se é que a 2ª e 3ª Requeridas não formalizaram tal pedido; tal acionamento comportará prejuízos graves e irreparáveis à requerente, que conduzirão inevitavelmente ao encerramento da atividade e à sua insolvência; acionamento que será abusivo porquanto não só o valor das garantias não é devido, como a requerente ainda é credora da 2ª requerida no montante de € 830.414, dívida que esta admite em grande parte. Mais alegou que a audição prévia das Requeridas implicará que, no caso das 2ª e 3ª Requeridas, a citação terá de ser feita por carta rogatória dado terem sede no país Y, o que acarreta as inerentes demoras, quer na tradução de todo o processado, envio por mala diplomática ou através dos tribunais judiciais daquele país, a que acrescerá o prazo de oposição que será objeto de uma dilação adicional de 10 dias, seguindo-se audiência final a que se seguirá o necessário período para a prolação da decisão cautelar. Por outro lado, o prazo de cumprimento pela 1ª requerida em face do respetivo pedido é um prazo muito curto (cerca de uma semana). A não ocorrer dispensa de audição das requeridas, quando for proferida a decisão cautelar, a 1.ª Requerida já terá certamente desembolsado o montante garantido, ficando a Requerente confrontada com a obrigação do respetivo reembolso, tornando-se o presente procedimento cautelar inútil. 
Para prova do alegado destacam-se os documentos juntos pela requerente atinentes aos contratos celebrados entre a requerente e a 2ª requerida, às garantias bancárias emitidas, troca de correspondência entre a requerente e a 2ª requerida relativa a trabalhos executados e pagamentos em falta por parte da 2ª requerida (que esta admite em parte substancial), cartas enviadas pela 1ª requerida à requerente, em junho e agosto de 2020, informando dos pedidos de acionamento das três garantias em causa nos autos por parte da 2ª requerida (cfr. doc. nºs 6, 13 e 21), bem como cartas datadas de 09/07/2019, dirigidas pelo Ministério … do país Y à requerente informando-a de que os contratos de empreitada geral relativos ao Hospital de R. e Hospital de S., celebrados com a 2ª Requerida, tinham sido resolvidos e a solicitar o envio de toda a documentação relativa aos contratos de fornecimento e de subempreitada (cfr. doc. nºs 27 a 29).
Da conjugação do alegado e dos documentos juntos, resulta que os contratos celebrados entre o Ministério ….. do país Y e a 2ª requerida foram rescindidos/resolvidos, pelo menos em 2019, o que inviabiliza o prosseguimento da execução dos subcontratos celebrados entre a requerente e a 2ª requerida, tendo aquele Ministério manifestado interesse junto da requerente para que esta prosseguisse os trabalhos no âmbito de um contrato direto; existem valores em dívida pela 2ª requerida à requerente (v.g. trabalhos executados) e que, não obstante este enquadramento factual, a 2ª requerida acionou as garantias bancárias em junho e agosto de 2020 (ou seja, em data posterior à rescisão dos contratos que celebrou com o Ministério … do país Y), tendo a requerente conseguido uma prorrogação do prazo de validade das mesmas, que já tentou junto da 2º requerida cancelar as garantias bancárias e obter o pagamento das quantias que aquela lhe deve, que imputa no valor de € 840.414, sem êxito. Mais alegou que, em contacto telefónico feito no dia 10 de fevereiro de 2021, pelo representante da Requerente junto do ex-diretor geral da 2.º Requerida, este informou que o atual administrador da 2ª requerida estava prestes a proceder ao acionamento das garantias bancárias para proceder ao recebimento das quantias por estas tituladas e que, a concretizar-se o acionamento das garantias bancárias, atento os respetivos montantes, por referência à dimensão da requerente e aos reflexos daí decorrentes, cuja  conotação negativa por ser interpretada como um indicador fortemente negativo da capacidade técnica e saúde financeira, causadora de uma lesão do seu bom nome e crédito à solidez profissional e financeira, tendo outros encargos com financiamentos e linhas de crédito, que discriminou, o que conduzirá direta e necessariamente ao encerramento da sua atividade e à sua insolvência.  
Estes elementos, avaliados à luz da experiência comum, apontam para que a audição das requeridas inviabilizará não só o efeito surpresa, como induzirá, com elevada probabilidade, a 2ª requerida a acionar de imediato as garantias bancárias (o que, aliás, já fez anteriormente), sendo do conhecimento comum que o prazo de cumprimento por parte da entidade bancária emitente das mesmas - ora 1ª requerida - é curto, o que conduzirá inevitavelmente ao pagamento das respetivas quantias pela entidade bancária ora 1ª requerida e consequente dever de reembolso por parte da requerente.
O sério risco de as garantias serem acionadas pela 2ª requerida a qualquer momento e inerente dever de pagamento do respetivo montante pela requerente, com os referidos efeitos patrimoniais daí advenientes, é agravado com a previsível delonga na citação das 2ª e 3ª requeridas, com sede no país Y, e dilação do prazo para a apresentação da oposição (cfr. artºs 245º, nº 3 e 366º nº 3 do CPC).
Como já ensinava Alberto dos Reis (4) “o critério de orientação do magistrado deve ser este: ordenará a providência sem citação do adversário quando reconheça que a audiência dele pode pôr em risco a utilidade da providência ou comprometer o fim que com ela se pretenda conseguir. O requerente está sob a iminência de um dano; o dano traduz-se em determinada actuação da pessoa com está em conflito; se esta pessoa for ouvida antes de decretada e efetuada a providência, pode suceder   que se frustre a utilidade desta, porque o arguido, avisado do que se requereu, praticará, antes de tomada a providência, os actos que com ela se pretendem evitar.”
Por seu turno, a não audição prévia das requeridas e eventual procedência das providências solicitadas apenas causará uma “suspensão” no acionamento das garantias, que pode ser revertida, levantando-se a medida decretada, mediante apresentação de oposição. 
Em suma, conhecendo a existência do presente procedimento – salientando-se que a citação não tem como efeito a paralisação dos efeitos jurídicos do que é peticionado até á decisão final -, a 2ª requerida pode, querendo, de imediato acionar as garantias bancárias, o que, de forma irremediável nesta fase (estamos perante uma providência antecipatória), impede o efeito útil, a eficácia de qualquer decisão a proferir nestes autos. 
Entendemos que a audição das requeridas põe em sério risco o fim ou a eficácia da presente providência cautelar, razão pela qual, nesta fase, se impõe o afastamento do contraditório (art. 366º, n.º 1 do CPC), pelo que deve ser revogada a decisão que determinou a audição das requeridas.
*
O Tribunal recorrido indeferiu liminarmente o procedimento cautelar por manifesta improcedência, considerando não se verificar um dos requisitos do seu decretamento – o comportamento abusivo da 2ª requerida – por o mesmo não ser suscetível de prova testemunhal, dado que o mesmo não resulta dos documentos juntos pela requerente.
Nos termos do art. 362º e ss. do CPC, são requisitos do decretamento de procedimentos cautelares não especificados que se verifique a existência de um direito, já existente ou emergente, na esfera jurídica do requerente e que é o objeto da ação declarativa ou executiva conexionada com o procedimento instaurado; que haja um fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável a esse direito; que a providência requerida seja adequada a remover o perigo de lesão existente e ainda que o prejuízo resultante da providência não exceda o dano que se pretende evitar.
A requerente pretende obter a suspensão do acionamento de garantias autónomas on first demand, que prestou.
Neste tipo de garantia o garante (o banco) fica constituído na obrigação de pagar imediatamente, a simples pedido do beneficiário, sem poder discutir os fundamentos e pressupostos que legitimam o pedido de pagamento, designadamente, sem poder discutir o incumprimento do devedor nem invocar em seu benefício qualquer meio de defesa relacionado com o contrato base, celebrado entre o ordenador e o beneficiário. É, pois, exequível mediante simples, imotivada, ou potestativa comunicação pelo beneficiário do incumprimento da obrigação principal do mandante.
A obrigação garantida é devida "mesmo que a relação principal se mostre inválida e sem que o garante possa opor ao beneficiário os meios de defesa do devedor, visto que o garante assume uma obrigação própria, independente (desligada) do contrato base. Nem o devedor pode, por isso, impedir o garante de prestar a soma acordada logo que o beneficiário a solicite " (cfr. Almeida Costa e Pinto Monteiro, in “Garantias Bancárias. O contrato de garantia à primeira solicitação”, C.J. 1986. t. V, págs. 15 e segs).
Conforme escrevem estes autores pode haver recusa a pagar de imediato a garantia nos seguintes casos: a) de prova inequívoca de fraude manifesta; b) de abuso evidente por parte do beneficiário.
Nessa medida – escrevem os referidos autores –, o devedor pode impedir o pagamento ou execução da garantia através de medidas de natureza cautelar se possuir provas inequívocas do abuso evidente por parte do beneficiário.
Também na jurisprudência se tem entendido que é possível instaurar procedimento cautelar com vista a obter a suspensão do pagamento deste tipo de garantias desde que se produza prova líquida e inequívoca que o beneficiário atua com má fé, abuso de direito, fraude à lei, ou em caso de extinção da garantia por cumprimento ou outra causa similar (dação em cumprimento, compensação), resolução ou caducidade, tendo em conta as características específicas dessas garantias, com especial realce para a sua autonomia em relação ao contrato subjacente, reservando o decretamento de tais providências para situações excecionais, sob pena desse  desvirtuar a finalidade da obrigação autónoma automática. (5)
Não suscitando dúvidas a maior exigência quanto à prova do direito invocado neste tipo de providências, que não se deve bastar com juízos de verosimilhança, antes devendo ser a respetiva prova inequívoca, segura, já no que respeita à exigência de prova pré-constituída, não sujeita a instrução, resumindo-se a mesma a prova documental (ou quiçá pericial) se nos afigura excessiva e sem qualquer correspondência no disposto no artº 362º e ss. do CPC.
Na medida em que a paralisação do acionamento de garantia bancária não constitui um procedimento cautelar especifico, com regras próprias, está sujeito ao regime geral, não se justificando que a peculiaridade, adveniente da natureza autónoma da garantia, imponha uma derrogação daquele regime no que respeita aos meios de prova. Nem se vislumbra que os factos integrantes do comportamento abusivo, da má fé, da fraude, não possam ser sujeitos a instrução, mormente mediante prova testemunhal, sujeita à livre apreciação pelo juiz.
Seguimos, pois, a corrente jurisprudencial menos restritiva, segundo a qual a prova líquida e inequívoca de fraude manifesta ou de abuso evidente do beneficiário pode ser efetuada pelos meios legalmente admissíveis, designadamente documental e testemunhal. (6)
“Enunciadas estas especificidades e sendo admissível o recurso ao procedimento cautelar cremos que a análise da prova e a sua admissibilidade terá de ser vista neste contexto – o contexto das providencias cautelares – não se impondo as limitações enumeradas na decisão recorrida.
“Essa restrição aos meios de prova admissíveis concretizar-se-ia na exigência de que o garante demonstre a falta de cabimento material da pretensão do beneficiário exclusivamente através de “provas líquidas”, quando essa carência não resulte de factos notórios. Contudo, o que seja de entender por “meios de prova líquidos” é altamente controvertido: alguns defendem que líquida é exclusivamente a prova documental, outros admitem ainda a prova pericial, debate-se acerca da “liquidez” da prova testemunhal e da possibilidade da valoração dos depoimentos das partes. Por outro lado, alguns autores sustentam que apenas seria admissível o recurso pelo garante a provas pré – constituídas. Só através destas restrições – invoca-se – seria respeitado o “fim da liquidez” da garantia autónoma à 1ª solicitação, pois só assim se permitiria ao beneficiário uma rápida obtenção da soma de garantia”, Miguel Brito Bastos, in Recusa licita da prestação pelo garante na garantia autónoma “on first demand”, Estudos em homenagem ao Prof Doutor Sérvulo Correia, Vol. III, p.547.
Entendemos que a prova líquida, pronta e inequívoca pode extrair-se de qualquer meio de prova permitido em direito e não apenas da prova documental, sendo por isso possível o recurso a prova testemunhal.” (7)
Soçobra, assim, o fundamento da inidoneidade da prova testemunhal requerida para prova do requisito da providência solicitada, em que se estribou a decisão recorrida para concluir pela manifesta improcedência do procedimento cautelar.
A apelante havia requerido, previamente à produção de prova testemunhal e citação das requeridas – posição que mantém no recurso –, a notificação provisória e meramente intercalar da 1.ª  Requerida (Banco Português) para se abster de qualquer pagamento por conta das Garantias Bancárias, conforme peticionado a final.
Para tanto invocou os princípios da adequação e da gestão processual, da simplificação e agilização processual, bem como o disposto nos artºs 879º, nº 5 e 381º, nº 3 do CPC.
Cremos, todavia, que não lhe assiste razão. 
Em primeiro lugar, os preceitos citados não são aplicáveis ao caso dos autos, pois regulam situações jurídicas diferentes.
Em segundo lugar, os apontados princípios não permitem dar cobertura a toda e qualquer alteração à tramitação processual legalmente prevista – como é o caso.
Não existe, pois, fundamento para determinar a notificação da 1ª requerida, nos termos peticionados, que mais não constitui que uma antecipação da decisão, em sede liminar, que se pretende seja proferida a final, ainda que de natureza provisória.
Subsidiariamente, a apelante requereu a produção de prova testemunhal sem audição prévia das requeridas – o que é atendido na presente decisão.
***
Pelo exposto, julgam-se procedentes os recursos interpostos pela requerente e, em consequência, decide-se:
-  revogar a decisão recorrida que determinou o cumprimento do disposto no artº 641º, nº 7 do CPC, para os termos do recurso e do procedimento cautelar, dispensando-se a citação prévia das requeridas;
- revogar a decisão de indeferimento liminar e determinar o prosseguimento dos autos para produção da prova apresentada, designadamente a inquirição das testemunhas arroladas pela requerente.
Sem custas.
Notifique.
 Lisboa, 6 de maio de 2021
Teresa Sandiães
Ferreira de Almeida
António Valente
____________________________
(1) Ac. da Relação de Coimbra de 02/10/2007, in www.dgsi
(2) Ac. da Relação de Coimbra de 04/12/2007, in www.dgsi.pt
(3) Ac. da Relação de Coimbra de 04/12/2007, in www.dgsi.pt
(4) CPC Anotado, vol. I, pág. 689   
(5) Neste sentido v. Ac. STJ de 23/06/2016, Ac. da Relação de Lisboa de 10/11/2016 e de 09/06/2016, todos disponíveis em www.dgsi.pt
(6) Neste sentido Ac. da Relação de Lisboa de 25/10/2012 e de 09/06/2016, in www.dgsi.pt
(7) Ac. da Relação do Porto de 23/02/2012, in www.dgsi.pt