Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
15/14.1GTALQ.L1-9
Relator: CRISTINA BRANCO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
CONCURSO DE CRIMES
CRIMES NEGLIGENTES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/04/2019
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Sumário: I- A construção dos crimes dolosos e dos crimes negligentes é, pela sua própria natureza, fundamentalmente diversa. O tipo de crime negligente e a qualificação da conduta negligente incluem, como elemento base, o desvalor de acção, com a infracção de dever objectivo de cuidado, a que podem acrescer a previsibilidade, a cognoscibilidade e a evitabilidade do resultado. A violação do dever de cuidado, ou a contrariedade ao cuidado devido, constitui o desvalor de acção, discutindo-se na doutrina o lugar dogmático do resultado nos crimes negligentes de resultado: se pertence ainda ao tipo de crime negligente ou se constitui unicamente uma condição objectiva de punibilidade que se situa fora do tipo de injusto;
II-O elemento estrutural e estruturante do crime negligente (acção ou omissão negligente) é o dever objectivo de cuidado. O ilícito negligente supõe sempre a violação de um dever objectivo de cuidado valorada por um critério individual e geral, mas também a exigência de uma conexão de condições objectivas e subjectivas entre a violação de dever e o resultado, sendo que nos factos negligentes surgem algumas especialidades para a aceitação da unidade e pluralidade de infracções quer na doutrina quer na jurisprudência;
III- Na negligência, em que o elemento estrutural e estruturante (acção ou omissão negligente) é a violação do dever objectivo de cuidado, a pluralidade de processos resolutivos depende da forma como o acontecimento exterior se desenvolveu, atendendo fundamentalmente à conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente, que revele externamente se o agente renovou ou não renovou os respectivos processos de motivação pela norma de determinação;
IV-À violação do dever de cuidado no exercício da condução automóvel está unicamente associada, pela cognoscibilidade geral decorrentes das regras da experiência e da vida, e das exigências decorrentes da ponderação do cuidado devido, a possibilidade de ocorrer a morte ou lesões de outra pessoa. Todavia, não podendo ser, e não sendo, em concreto, representados os resultados, o juízo de censura, dirigido unicamente à violação de dever de cuidado, não se projecta em relação a todos os resultados. É que será precisamente pela unidade de acção constituída apenas pela unidade de violação do dever de cuidado que é objecto do juízo de censura, que se determina a unidade do juízo de censura; havendo unidade (um único juízo de censura) não poderá haver nas acções negligentes mais do que o preenchimento de um único tipo subjectivo e objectivo, pelo que “ in casu “, a arguida deverá ser condenada não pela pratica de em autoria material, de um crime de homicídio por negligência e de um crime de ofensas à integridade física por negligência, previsto e punido pelo artigo 137º nº 1 do Código Penal, por referência ao artigo 24º, nº 1 do Código da Estrada, na pena de 2 (dois) anos de prisão, mas tão só pela pratica de um crime de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art. 137.º, n.º 1, do CP;
V- Relevante doutrina, no entanto, assume perspectiva diversa sobre este tema, assim, Figueiredo Dias no “Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial”, Tomo I, pág. 114, p. 1009-1010, e em comentário ao artigo 137º, considera que «se através de uma mesma acção são mortas várias pessoas estar-se-á perante uma hipótese de concurso efectivo, sob a forma de concurso ideal, com absoluta indiferença por que a negligência tenha sido consciente ou inconsciente”. E em “Direito Penal - Parte Geral, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2007”, explicita que «relativamente a todos os tipos que protegem bens de carácter eminentemente pessoal, a pluralidade de vítimas - e, consequentemente, a pluralidade de resultados típicos - deve considerar-se sinal seguro da pluralidade de sentidos do ilícito e conduzir à existência de um concurso efectivo», tendo esta posição apoio também, quer na jurisprudência, quer na doutrina, se bem que de forma menos exuberante.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
1. No âmbito do Processo Comum Singular n.º 15/14.1GTALQ do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Juízo Local Criminal de Vila Franca de Xira – Juiz 3, o Ministério Público deduziu acusação contra a arguida M…, pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art. 137.º, n.º 1, do CP, e um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art 148.º do mesmo diploma.
2. Realizado o julgamento, foi proferida sentença, na qual foi decidido, para além do mais (transcrição):
«a) Condeno a arguida M…, pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo artigo 137º, n.º 1 do Código Penal, por referência ao artigo 24º, n.º 1 do Código da Estrada, na pena de 2 (dois) anos de prisão;
b) Condeno a arguida M…, pela prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física por negligência p. p. pelo artigo 148º do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão;
c) Condeno a arguida em cúmulo jurídico na pena única de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;
d) Suspendo a execução da pena de prisão mencionada em c) por igual período de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses, condicionada ao pagamento pela arguida da quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros), ao Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão, a ser pago durante o período da suspensão, nos termos determinados;
e) Condeno a arguida na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 6 (seis) meses – artº 69º, nº 1, al. a) do Código Penal. (…)»
3. Inconformada com esta decisão, interpôs a arguida o presente recurso, que termina com as seguintes conclusões (transcrição):
«A) Vem o presente recurso interposto da sentença proferida em 20.06.2017, a qual decidiu condenar a Arguida M…:
a) pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio por negligência e de um crime de ofensas à integridade física por negligência, previsto e punido pelo artigo 137º nº 1 do Código Penal, por referência ao artigo 24º, nº 1 do Código da Estrada, na pena de 2 (dois) anos de prisão;
b) pela prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punido pelo artigo 148º do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão.
c) em cúmulo jurídico na pena única de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão
d) na suspensão da execução da pena de prisão mencionada em c) por igual período de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses, condicionada ao pagamento pela arguida da quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros) ao Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão, a ser pago durante o período da suspensão;
e) na pena acessória de proibição de conduzir veiculas motorizadas pelo período de 6 (seis) meses – artigo 69º, nº 1, al. a) do Código Penal
f) no pagamento das custas do processo.
B) A Arguida permite-se colocar em crise as duas seguintes decisões da sentença: I - Uma primeira relativa à forma como aos crimes que lhe foram imputados e à medida da pena aplicada; II - Outra relativa à medida da sanção acessória p. e p. no art.º 69º, n.º 1 alínea a) do Código Penal;
C) o Tribunal, entendeu e concluiu que:
... da prova produzida em sede de julgamento dúvidas não existem de que a arguida praticou os factos que lhe são imputados, ... resultou provado que a mesma conduzia de forma desatenta e sem os cuidados que lhe eram exigidos atento o local em que circulava e que lhe exigiam uma atenção redobrada, devendo adequar a velocidade ao local dos factos ...
D) A Meritíssima Juíza a quo assumiu como certo de que está perante uma conduta negligente, de acordo com o prescrito no artº 15º do Código Penal, considerando que a imputação feita à arguida assenta na violação de um dever de cuidado delineado em disposição legal que prevê infracções estradais, a saber, a prevista no artigo 24º, n.º 1 do Código da Estrada.
E) Com os fundamentos que em síntese acima se referem, e por aplicação das regras relativas à culpa e à prevenção expostas na douta sentença, a Meritíssima Juiz considera: ... o grau de ilicitude dos factos o qual se mostra elevado, em função dos bens jurídicos tutelados, as respectivas consequências, de elevada gravidade; o grau de violação dos deveres impostos, as exigências de prevenção geral que se mostram elevadas face ao elevadíssimo número de acidentes rodoviários ocorridos em Portugal responsáveis por inúmeros feridos graves e mortos, consabido que a sinistralidade estradal com consequências gravosas tem persistido, entre nós; as exigências de prevenção especial revelam-se também prementes as necessidades de se efectuar uma resposta punitiva que promova uma eficaz recuperação da arguida, prevenindo a prática de comportamentos da mesma natureza, de modo a que passe a comportar-se de forma responsável, designadamente no que tange à vida humana, fazendo-lhe sentir a anti juridicidade e gravidade da sua conduta; no mais, a arguida mostra-se social e familiarmente inserida e não possui antecedentes criminais e/ou estradais registados. Mais se atenderá à postura assumida em julgamento, denotando sentido crítico face à sua conduta.
F) Tudo visto e ponderado, o Tribunal julga adequada a aplicação à arguida: - pela prática de um crime de homicídio por negligência, na pena de 2 (dois) anos de prisão e,- pela prática de um crime de ofensas à integridade física por negligência, na pena de 1 (um) ano de prisão.
G) A Arguida não pode concordar com esta decisão, quer quanto aos crimes imputados que lhe foram imputados e pelos quais se viu condenada, quer quanto à medida da pena aplicada porquanto a presente situação, como antes referido, enquadra-se numa conduta negligente que a arguida, aqui recorrente, perpetrou, num momento de infelicidade, da qual esta - com todo o respeito pela vida e integridade dos ofendidos - foi e será a primeira e grande vítima da sua conduta.
H) A arguida circulava a uma velocidade não concretamente apurada, mas certamente superior a 60 km/hora (facto provado 6) e a dada altura, encontrando-se o veículo …-59 parado junto à cabine da portagem, e o seu condutor a retirar o respectivo título, foi embatido por trás, pelo veículo de matrícula 81-…, conduzido pela arguida, originando que o veículo …-59 fosse embater com a parte frontal nos separadores em betão que delimitam a cabine de portagem, ficando o veículo totalmente destruído na parte da frente (facto provado 7);Em consequência directa do embate, o referido DS sofreu as lesões descritas no relatório de autópsia de fls. 108-112, que aqui se dão por integralmente reproduzidas, nomeadamente, "lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas, raquimedulares e toraco- abdominais (…)", lesões essas que lhe determinaram directa e necessariamente a morte (facto provado 8);Por seu turno JC veio a sofrer as lesões descritas nos registos de ffs.611-626 e relatório de fls. 636-638, que aqui se dão por integralmente reproduzidas, designadamente traumatismo do membro superior esquerdo com fractura do úmero e fractura de 173 proximal das diáfises dos ossos do antebraço e traumatismo do olho esquerdo, lesões estas que foram causa directa e necessária de 90 dias de doença, 30 dos quais com incapacidade para o trabalho (facto provado 9); O acidente e as consequências dele resultante, para as vítimas, ficaram a dever-se à conduta da arguida, que circulava sem os cuidados e precauções que são exigidos a qualquer condutor prudente, e a uma velocidade que não lhe permitiu controlar o veículo e imobilizá-lo no espaço visível à sua frente (facto provado 10); A arguida agiu de forma imprevidente e sem o cuidado a que, segundo as circunstâncias, estava obrigada e de que era capaz (facto provado 11).
I) Maioritariamente os Tribunais superiores têm entendido que, quando do mesmo acidente resulte a morte de uma ou mais pessoas e ferimentos noutras, estamos perante um crime de resultado múltiplo, em que se pune o mais grave, funcionando os outros como agravantes a atender na fixação concreta da pena, pelo que se deverá concluir que a conduta da arguida integra apenas a prática de um crime, no sentido de que é um ilícito criminal resultante de uma acção negligente, com resultado múltiplo, em que, no caso em concreto, deverá ser punido pelo mais grave, ou seja, pelo crime de homicídio por negligência p. e p. pelo art.º 137º, nº1 do C. Penal.
J) Em face desta avaliação da conduta da arguida/recorrente, a pena concreta a aplicar deverá fazer-se dentro dos limites definidos na lei, em função da sua culpa e das exigências de prevenção, atendendo a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a seu favor ou contra ela, tudo nos termos do art.º 71º, nºs1 e 2 do C. Penal, atendendo a que a)O crime em questão é punido com pena de prisão até 3 anos ou multa; b) A arguida circulava a uma velocidade não concretamente apurada, mas certamente superior a 60 km/hora; c)A arguida agiu de forma imprevidente e sem o cuidado a que, segundo as circunstâncias, estava obrigada e de que era capaz; d) A arguida não tem antecedentes criminais e/ou estradais registados, está inserida social, familiar e profissionalmente, o que atenua as exigências de prevenção especial quanto às necessidades da sua socialização; e) assumiu uma postura em julgamento denotando sentido crítico e de arrependimento face à sua conduta, e preocupação relativamente às vítimas; f) A arguida reconheceu os factos, mas não soube explicar a causa do embate.
K) Considerando, que a arguida, já com 67 anos de idade, é primária, está integrada social, familiar e profissionalmente, mostrou arrependimento e, quer antes quer após os factos dos autos teve uma conduta irreprovável, mostram-se esbatidas as necessidades de ressocialização pelo que atrevemo-nos a dizer que uma pena não privativa de liberdade seria suficiente e perfeitamente adequada.
L) Contudo, não esquecendo nem por um momento a gravidade das consequências da conduta da arguida, sempre se dirá que a advertência que constituirá uma condenação numa pena de 18 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, será, quanto a nós, um factor mais do que suficiente, de acordo com um juízo normal de prognose, de que no futuro a arguida irá ser uma condutora mais prudente e diligente e que os factos ocorridos terão sido um acto isolado na sua vida, já que a suspensão da execução da pena de prisão constitui, ela própria, uma verdadeira pena (de substituição).
M) Neste particular exige a mais elementar justiça, que se sublinhe a boa decisão da Meritíssima Juíza de condicionar a suspensão da execução da pena de prisão, para além do demais, ao pagamento da quantia de 1.500,00€, ao Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão, que a arguida pretende cumprir de imediato.
N) No que à pena acessória diz respeito, considera a Arguida, ora Recorrente que, também esta é excessiva, uma vez que, a proibição de conduzir veículos motorizados como pena acessória que é deve ser graduada, tal como a pena principal, segundo os critérios gerais de determinação das penas que decorrem dos artigos 40.º e 71.º do Código Penal, pelo que a pena acessória a aplicar ao arguido será a que resultar da concretização dos critérios enunciados no artigo 71.º do Código Penal, ou seja, num primeiro momento apura-se a moldura abstracta da pena e num segundo momento a medida concreta da mesma.
O) Deste modo, havemos de considerar o elevado grau de ilicitude emergente dos factos, numa conduta meramente negligente, sem descurar as prementes necessidades de prevenção geral e as necessidades de prevenção especial que, in casu, não se afiguram particularmente relevantes, pois a arguida não tem antecedentes criminais e encontra-se inserida familiar, social e profissionalmente, sendo que este acto foi comprovadamente um acto isolado e de uma infelicidade extrema.
P) Certo é que, fazendo a aproximação deste entendimento, e analisando meticulosamente o caso da recorrente, verificamos que estamos muito longe de possuir elementos conducentes a aplicação de uma pena acessória de inibição de conduzir em 6 meses.
Q) A Arguida, filha única, vive numa aldeia, - Ladeira … - situada a cerca de 30 Kms de um aglomerado populacional com serviço de saúde, que de automóvel se percorre em mais de 30 minutos, e tem a seu cargo o seu Pai, viúvo, actualmente com 93 anos de idade, com as dificuldades de mobilidade e debilidades derivadas da idade, sendo a Arguida o seu único apoio.
R) Em face de todos os considerandos e atentos todos os factos provados, a sanção acessória de inibição de condução haveria de ser reduzida para o seu limite mínimo correspondente a 3 meses.
S) E, atendo às circunstâncias do caso, com implicações a nível familiar, e à personalidade da arguida, sobejamente espelhada nos presentes autos, a sanção de inibição de conduzir, seja em que medida for a final aplicada, deverá ser suspensa na sua execução.
Pelo que, face ao que vem de expor-se e nos termos que V. Exas. entendam mui doutamente suprir, deverá ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se parcialmente a douta sentença de que se recorre, e substituindo-se por outra em conformidade com o alegado.
Pois só assim será feita JUSTIÇA»
4. O recurso foi admitido, por despacho de fls. 930 dos autos.
5. Respondeu ao recurso o Ministério Público junto do Tribunal recorrido, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
«1. ª Os crimes estão em concurso real efectivo, pese embora o esforço prolixo da recorrente em pretender demonstrar o contrário.
2. ª Não existe qualquer norma que preveja a suspensão da pena acessória, em processo penal, pelo que, a inibição de condução terá mesmo de ser cumprida de forma efectiva, logo que transite a condenação.
3. ª Carece, pois, de fundamento e relevância jurídica o alegado pela recorrente.
4.ª Termos em que deve o recurso interposto ser julgado totalmente improcedente, com a consequente manutenção da decisão recorrida.
Por todo o exposto, e uma vez que nada encontramos que mereça qualquer censura ou reparo na sentença recorrida, pugnamos pela sua confirmação integral.
V. Exas. Senhores Desembargadores, porém, encontrarão a decisão que for justa
6. Nesta Relação, o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu o seu parecer, conforme consta de fls. 951-952, no qual acompanha a resposta ao recurso produzida pelo Ministério Público junto do Tribunal recorrido, à qual acrescenta doutas considerações, e se pronuncia pela sua improcedência.
7. Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, não foi oferecida resposta.
8. Colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
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II. Fundamentação
1. Delimitação do objecto do recurso
Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (art. 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
In casu, a divergência da recorrente prende-se, em primeiro lugar, com a qualificação jurídica dos factos apurados, sustentando que devia ter sido punida por um único crime de homicídio por negligência.
Discorda ainda da escolha da pena privativa da liberdade e da determinação da medida concreta das penas, principal e acessória, aplicadas, considerando que as mesmas são excessivas e que a segunda deverá ser suspensa na sua execução.
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2. Da decisão recorrida
Previamente à apreciação das questões acima enunciadas, vejamos qual a fundamentação de facto que consta da sentença recorrida.
«Produzida a prova e discutida a causa resultam os seguintes:
FACTOS PROVADOS:
1 No dia 13 de Fevereiro de 2014, cerca das 13h45m, na A1 no sentido sul/norte, no largo das portagens, em Alverca do Ribatejo, JC seguia ao volante do veículo ligeiro de passageiros, marca Citroen, modelo C1, matrícula …-59, transportando no lugar do pendura o falecido DS.
2 Nesse mesmo sentido e pela via, seguia o veículo de marca VW, modelo Passat matrícula 81-…, conduzido pela arguida M….
3 As condições climatéricas eram boas.
4 A via no local do acidente, encontrava-se seca e em bom estado de conservação.
5 O trânsito era pouco intenso.
6 A arguida circulava a uma velocidade não concretamente apurada, mas certamente superior a 60 km/hora.
7 A data altura, encontrando-se o veículo …-59 parado junto à cabine da portagem, e o seu condutor a retirar o respectivo título, foi embatido por trás, pelo veículo de matrícula 81-…, conduzido pela arguida, originando que o veículo -59 fosse embater com a parte frontal nos separadores em betão que delimitam a cabine de portagem, ficando o veículo totalmente destruído na parte da frente.
8 Em consequência directa do embate, o referido DS sofreu as lesões descritas no relatório de autópsia de fls. 108-112, que aqui se dão por integralmente reproduzidas, nomeadamente, "lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas, raqui-medulares e toraco-abdominais ( ... )", lesões essas que lhe determinaram directa e necessariamente a morte.
9 Por seu turno JC veio a sofrer as lesões descritas nos registos de fls.611-626 e relatório de fls. 636-638, que aqui se dão por integralmente reproduzidas, designadamente traumatismo do membro superior esquerdo com fractura do úmero e fractura de 173 proximal das diáfises dos ossos do antebraço e traumatismo do olho esquerdo, lesões estas que foram causa directa e necessária de 90 dias de doença, 30 dos quais com incapacidade para o trabalho.
10 O acidente e as consequências dele resultante, para as vítimas, ficaram a dever-se à conduta da arguida, que circulava sem os cuidados e precauções que são exigidos a qualquer condutor prudente, e a uma velocidade que não lhe permitiu controlar o veículo e imobilizá-lo no espaço visível à sua frente
11 A arguida agiu de forma imprevidente e sem o cuidado a que, segundo as circunstâncias, estava obrigada e de que era capaz.
Mais se provou que:
12 A arguida reside, em casa própria, com marido, reformado, auferindo este uma pensão de reforma de € 1.000,00.
13 A arguida aufere uma pensão de reforma de € 640,00.
14 A arguida não possui antecedentes criminais.
FACTOS NÃO PROVADOS:
1 - Que aquando os factos descritos em 7., a arguida circulava a uma velocidade não concretamente apurada mas superior a 107 km/hora.
*
Motivação da decisão de facto
O Tribunal formou a sua convicção na análise, crítica e global, de toda a prova produzida em audiência e constante dos autos, com recurso a juízos de experiência comum e da livre convicção do julgador, nos termos do artigo 127°, do Código de Processo Penal.
Na formação da sua convicção, o Tribunal atendeu ao teor da documentação junta aos autos a fls. 16 (auto de noticia), 17/18 (participação de acidente de viação), 54/59 (fotografias), 62/85 (auto de exame directo), 149, 157/159 (relatório final toxicologia forense), 279/292 (relatório técnico de peritagem ao sistema de travagem), em conjugação com os depoimentos das testemunhas inquiridas, IP, CP e, RS, testemunhas estas que atenta a forma isenta e objectiva com que depuseram lograram obter credibilidade junto do Tribunal
Nesta sede importará ainda referir que, as supra referidas testemunhas lograram esclarecer o Tribunal quanto à dinâmica dos factos, de forma objectiva e isenta, pelo que mereceram credibilidade para com o ora Tribunal. De salientar que estas testemunhas não obstante não terem logrado concretizar a qua velocidade circulava a arguida, foram unânimes em afirmar que a arguida circulava a uma velocidade excessiva para o local onde se encontrava. Aliás terá sido este aspecto que chamou a atenção às testemunhas CP e RS, que circulavam no local em causa.
Por sua vez, a arguida confrontada com os factos que lhe são imputados, e não obstante reconhecer os mesmos, não soube explicar a causa do embate. Questionada, referiu que, não saber o que se passou, tendo negado que na ocasião estivesse a circular a uma velocidade excessiva. Mais prestou declarações quanto às suas condições sócio económicas.
Em sede de audiência de julgamento, foram ainda inquiridas as testemunhas AG, AL, GD e MV cujos depoimentos mostraram-se relevantes na descrição do impacto emocional sofrido pela arguida em consequência dos factos descritos, nada mais esclarecendo quanto à dinâmica dos factos, pois nada assistiram, tendo apenas descrito a arguida como um condutora zelosa e cumpridora.
Finalmente, os factos dados como não provados resultam da ausência de produção de prova acerca da sua ocorrência.
Ora, da prova produzida em sede de julgamento dúvidas não existem de que a arguida praticou os factos que lhe são imputados, na verdade resultou provado que a mesma conduzia de forma desatenta e sem os cuidados que lhe eram exigidos atento o local em que circulava e que lhe exigiam uma atenção redobrada, devendo adequar a velocidade ao local dos factos. Nesta sede, assumiu particular relevância a visualização, em sede de julgamento, das imagens captadas pelo sistema de vigilância da Brisa, constantes de fls. 204, e que permitiram ao tribunal ter a real percepção da velocidade em que o veículo da arguida circulava e quanto à força do embate ocorrido.
Ora, estes elementos, directamente comprovados, quando conjugados, coincidem na formulação de um resultado unívoco, permitindo inferir, com segurança, o resultado factual alcançado. Tal é a natural consequência, ou resulta com uma probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, do conjunto de dados expostos.
Finalmente, os factos dados como não provados resultam da ausência de produção de prova acerca da sua ocorrência.
A verdade objecto do processo não é uma verdade ontológica ou científica, é uma convicção prática firmada em dados objectivos que, directa ou indirectamente, permitem a formulação de um juízo de facto.»
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3. Da análise dos fundamentos do recurso
Como é sabido, e resulta do disposto nos arts. 368.º e 369.º, ex vi art. 424.º, n.º 2, todos do CPP, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem o objecto do recurso pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão.
Seguidamente das que a este respeitem, começando pelas atinentes à matéria de facto e, dentro destas, pela impugnação alargada, se tiver sido suscitada e, depois, dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP.
Por fim, das questões relativas à matéria de direito.
Será, pois, de acordo com estas regras de precedência lógica que serão apreciadas as questões suscitadas.
*
Apesar de não vir posta em causa a matéria de facto, importará, antes de mais, averiguar se a sentença recorrida enferma de nulidade insanável ou de algum dos vícios a que se reporta o n.º 2 do art. 410.º do CPP, ainda que não invocados, posto que é oficioso o conhecimento de tais matérias.
Analisado o texto decisório, nele não vislumbramos qualquer desses vícios, pois que a decisão se mostra lógica, coerente, harmónica, destituída de lacunas ou antagonismos factuais, de factos contrários às regras da experiência comum ou de erro patente para qualquer cidadão, nela inexistindo também qualquer inconciliabilidade na fundamentação ou entre esta e a decisão, sendo, por outro lado, a fundamentação de facto suficiente para a solução de direito a que se chegou.
Encontra-se, assim, definitivamente fixada a matéria de facto.

A recorrente discorda da sua condenação pela prática, em concurso real, de um crime de homicídio por negligência e de um crime de ofensa à integridade física por negligência, sustentando que, estando em causa uma única conduta praticada com negligência inconsciente, configura-se um crime de resultado múltiplo, a punir unicamente pelo mais grave, no caso concreto pelo crime de homicídio por negligência p. e p. pelo art. 137.º, n.º 1, do CP.
A sentença recorrida optou pela aludida condenação em concurso real (qualificação jurídica que constava da acusação) sem se deter na análise da questão da unidade ou pluralidade de infracções, que, contudo, em casos como o presente, está longe de concitar a unanimidade da jurisprudência, que há décadas a vem debatendo.
Não se desconhecendo que tal solução legal tem vasto apoio doutrinário e na jurisprudência[1], sobretudo dos Tribunais da Relação, subscrevemos, no entanto, o entendimento maioritário na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, segundo o qual nas acções negligentes, não sendo previstos os resultados, o juízo de censura, que se dirige unicamente à violação do dever de cuidado, não se projecta em relação a todos resultados.
Este raciocínio vem detalhadamente plasmado no acórdão do STJ de 13-07-2011[2], de cuja exaustiva e proficiente fundamentação nos permitimos extrair alguns excertos:
«(i) Nos termos do artigo 30.º, n.º 1, do Código Penal, «o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crimes efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente».
(…)
O critério teleológico que a lei acolhe no tratamento do concurso de crimes, condensado na referência a crimes «efectivamente cometidos», é adequado a delimitar os casos de concurso efectivo (pluralidade de crimes através de uma mesma acção ou de várias acções) das situações em que, não obstante a pluralidade de tipos de crime eventualmente preenchidos, não existe concurso efectivo de crimes (os casos de concurso aparente e de crime continuado).
Poder-se-á dizer que a lei consagra o chamado critério teleológico ou normativo para distinguir entre unidade e pluralidade de infracções, que já vinha sendo perfilhado na vigência do Código Penal de 1886, na sequência da tese de Eduardo Correia em “Unidade e Pluralidade de Infracções”.
Por aplicação do critério teleológico com esta formulação, o número de crimes determina-se, em princípio, pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos (concurso heterogéneo), ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente (concurso homogéneo) – artigo 30.º, n.º 1, do Código Penal.
A jurisprudência, seguindo o critério teleológico, tem todavia, utilizado metodicamente as categorias formuladas pela doutrina germânica, que, trabalhando com base no § 52, 1 do Código Penal alemão, considera maioritariamente existir concurso ideal, com o correspondente tratamento penal, quando a mesma acção lese várias normas penais ou várias vezes a mesma norma penal; o concurso ideal caracterizado como unidade de facto com uma pluralidade de lesões típicas de bens jurídicos – homogéneo com pluralidade de realização do mesmo tipo por uma acção; e heterogéneo com a realização de vários tipos penais com a mesma acção (cf., v. g., R. Maurach, K. H. Gössel, H. Zipf, “Derecho Penal”, 2, 1995, p. 565, ss.; H. H. Jescheck (“Tratado de Derecho Penal, Parte General”, 5ª ed., p. 773, ss.).
«Segundo o critério distintivo do artigo 30.º, quanto à determinação do número de infracções, há que considerar que haverá pluralidade de delitos quando o agente, com a sua acção, preencher mais do que um tipo de ilícito ou o mesmo tipo por mais do que uma vez».
E, como consequência, haveria «concurso legal, aparente, impróprio ou impuro, também chamado de mero concurso de normas, em que as leis penais concorrem só na aparência e em que a aplicação de uma norma punitiva que prevalece, exclui a das demais, por força dos princípios da especialidade, da consunção, da subsidiariedade ou da impunibilidade do facto posterior; no fundo o que se pretende evitar é uma dupla incriminação - situações em que não obstante a pluralidade de tipos de crime eventualmente preenchidos, não existe efectivo concurso de crimes, casos de concurso aparente e de crime continuado, ou ao concurso efectivo, verdadeiro, próprio ou puro (pluralidade de crimes através de uma mesma acção ou de várias acções, que pode ser meramente ideal, se decorrente de uma só acção violadora de tipos diferentes, ou seja, quando através de uma mesma acção se violam várias normas penais ou a mesma norma repetidas vezes - unidade de acção - concurso ideal heterogéneo – ou do mesmo tipo por mais do que uma vez – concurso ideal homogéneo; ou real se resultante de uma pluralidade de acções, quando o agente pratica vários actos que preenchem autonomamente vários crimes ou várias vezes o mesmo crime» (cf., v. g., acórdão de 23-10-2002, processo n.º 2133/02, da 3.ª Secção, in CJSTJ, 2002, tomo 3, pág. 217).
(ii) A matéria de concurso de crimes não é, porém, tratada no artigo 30.º de forma abrangente e esgotante, na medida em que as soluções indicadas na norma se limitam a estabelecer um critério mínimo de distinção entre unidade e pluralidade de crimes, tratando-se, por isso, tão-só, de um ponto de partida estabelecido pelo legislador a partir do qual caberá à doutrina, e à jurisprudência em última análise, encontrar soluções adequadas, tendo em vista a multiplicidade de casos e situações sobre que tenha de apreciar e decidir.
Estabelecendo um critério, assumidamente distintivo, o artigo 30.º contém a indicação de um princípio geral de solução do problema do concurso de crimes, sendo também uma base de decisão, a partir da qual há que olhar outras dimensões da violação de bens jurídicos, do conteúdo global da norma incriminadora e do conceito de crime.
O critério teleológico, que a lei acolhe na definição da categoria de concurso de crimes como indicação ou princípio e solução - mas, naturalmente, porque não é função da lei, sem marcados ou definitivos compromissos dogmáticos - é fundado na consideração dos tipos legais violados através da (de uma) acção ou omissão ou da pluralidade de acções ou de omissões.
Deste modo, no critério da lei, como já resultava das construções dogmáticas que influenciaram a escolha e a delimitação do critério, a realização dos tipos legais - materialmente a violação de bens jurídicos – constitui um instrumento metodológico adequado como princípio de determinação da unidade ou a pluralidade de crimes.
Numa perspectiva que tem sido aceite de modo quase unânime pela jurisprudência, decisiva da unidade ou da pluralidade de crimes, na integração e densificação do conteúdo categorial do artigo 30º, nº 1 do CP, a unidade ou pluralidade de crimes não é unidade ou pluralidade material de acção, mas unidade ou pluralidade de tipos legais de crime violados pelo mesmo agente.
(…)
Nesta proposição metodológica, o primeiro critério da unidade ou pluralidade de crimes, e independentemente de algumas modulações doutrinais, reporta-se, pois, ao tipo legal violado – unidade ou pluralidade de violações.
No entanto, o tipo legal de crime apresenta-se não como uma entidade abstracta, mas, antes, como entidade concreta, portadora de um concreto juízo de censura, sendo o interposto da valoração jurídico-criminal, ante o qual se acham colocados o tribunal e o intérprete (Eduardo Correia, in “A Teoria do Concurso em Direito Criminal”, Almedina, Colecção Teses, 1996, pág. 90).
O que tem de contar para determinação da unidade ou pluralidade de crimes não são, por uma parte, acções externas, como tal indiferentes ao sentido do comportamento; nem, por outro lado, tipos legais de crime como entidades abstractas, mesmo que concretamente aplicáveis ao caso. O que se tem de considerar são sentidos da vida jurídico-penalmente relevantes que vivem no comportamento global. Seja o facto punível como violação de bens jurídico-penais que integram um tipo legal, seja o critério da pluralidade de valores jurídicos negados com a formulação várias vezes de um concreto juízo de reprovação, não se trata de entidades abstractas, mas concretizadas em determinado contexto, situação objectiva, e numa específica e individualizada relação subjectiva com um agente concreto.
(iii) Segundo a concepção actual da doutrina do crime, para que exista infracção criminal a realização do tipo pressupõe que uma determinada conduta seja anti-jurídica, que se verifique o desvalor de acção como o desvalor de resultado, e também que possa ser reprovada ao agente, isto é, que seja culposa. O injusto consiste sempre numa união de todos estes elementos.
Assim, a acção só é antijurídica quando seja obra de um determinado agente; a anti-juridicidade é sempre a desaprovação de um facto referido a um determinada autor. Por isso, injusto é o “injusto pessoal” da acção referido ao autor (Claus Roxin, “Derecho Penal, Parte General”, Tomo I, § 89, 90, p. 319 s.).
Ao lado do juízo que refere a actuação do agente a bens ou valores jurídico-criminais, outro juízo de valor se exige como pressuposto do crime e que se analisa ou compreende na censura de um certo facto à pessoa de um determinado agente.
A violação do bem jurídico através de uma acção ou omissão não pode ser puramente objectivada e separada de um concreto juízo de reprovação que tenha de ser formulado apenas uma ou várias vezes.
O todo, enquanto encerra a violação do mesmo bem jurídico, só se fragmenta na medida em que algumas das suas partes são objecto de um juízo autónomo de censura, adquirindo desse modo independência e individualidade.
(iv) É bem de ver, porém, que as construções da doutrina do concurso e da unidade ou pluralidade de infracções foram sendo elaboradas e densificadas em relação aos crimes dolosos.
A teoria geral, condensada nas Partes Gerais dos códigos penais, refere-se em princípio a crimes dolosos. Os crimes negligentes constituem verdadeiramente excepções, sendo construídos como prolongamento de um tipo já existente que é um tipo doloso - v. g., homicídio, ofensas à integridade física, sendo a negligência punida apenas nos casos especialmente previstos na lei - artigo 13.º do Código Penal.
A moderna construção da doutrina do crime, compreendida na conjugação de todos os elementos objectivos e subjectivos – acção material mais ou menos vinculada; ilicitude; culpa – influenciará necessariamente, e não pode estar ausente como critério da definição e delimitação da unidade ou da pluralidade de crimes.
As normas penais, com efeito, são normas de valoração objectiva, mas também normas de determinação subjectiva (normas de dever). Na função de determinação (subjectiva) da norma, na violação que se verifique várias vezes, hão-de ser plúrimos os juízos concretos de censura - uma pluralidade de resoluções e de resoluções no sentido da vontade a comandar a actividade do agente.
A construção dos crimes dolosos e dos crimes negligentes é, pois, pela sua própria natureza, fundamentalmente diversa.
O tipo de crime negligente e a qualificação da conduta negligente incluem, como elemento base, o desvalor de acção, com a infracção de dever objectivo de cuidado, a que podem acrescer a previsibilidade, a cognoscibilidade e a evitabilidade do resultado. A violação do dever de cuidado, ou a contrariedade ao cuidado devido, constitui o desvalor de acção, discutindo-se na doutrina o lugar dogmático do resultado nos crimes negligentes de resultado: se pertence ainda ao tipo de crime negligente ou se constitui unicamente uma condição objectiva de punibilidade que se situa fora do tipo de injusto.
Mas o elemento estrutural e estruturante do crime negligente (acção ou omissão negligente) é o dever objectivo de cuidado. O ilícito negligente supõe sempre a violação de um dever objectivo de cuidado; a acção negligente de resultado pressupõe uma violação de um dever objectivo de cuidado, valorada por um critério individual e geral, mas também a exigência de uma conexão de condições objectivas e subjectivas entre a violação de dever e o resultado.
A norma de valoração e a norma de determinação nos tipos legais negligentes apresentam uma construção complexa; o crime negligente, embora teoreticamente uno, é um tipo de crime complexo. A complexidade da construção da negligência manifesta-se acentuadamente nos intrincados problemas dogmáticos que se colocam nos crimes negligentes de resultado.
A complexidade é manifestada em particular precisamente na construção dos suportes teóricos respeitantes à unidade e pluralidade infracções nos crimes negligentes de resultado.
Nas diversas formulações doutrinais que têm procurado definir modelos dogmáticos na construção de soluções para o problema da unidade e pluralidade de infracções, o que está presente é sempre o crime doloso, que constitui e tem sido o modelo referencial. As formulações compreendem-se e assumem coerência intramodelar quando estejam presentes tipos de crimes dolosos.
Mas o problema, como expressamente já advertia Eduardo Correia (in “A Teoria do Concurso em Direito Criminal”, Almedina, Colecção Teses, 1996, p. 95, nota (1)), tem uma «cor própria» na negligência. E também H. H. Jescheck (“Tratado de Derecho Penal, Parte General”, 5ª ed., p. 768, ss) salienta que nos factos negligentes surgem algumas especialidades para a aceitação da unidade e pluralidade de infracções.
Este é, porventura até mais do que outros, um acentuado nó problemático, sem consensos nem clareza na dogmática dos crimes negligentes. E, como Roxin salienta, não obstante a intensidade dos esforços científicos e a formação de conceitos, a teoria dos crimes negligentes, tanto na ordenação sistemática, como nos resultados práticos, não produziu tanto consenso e clareza como na dogmática do crime doloso.
É que a infracção da norma de determinação analisa-se diferentemente no caso de negligência.
Nos crimes cometidos por negligência a pluralidade dos juízos de censura em que se analisa a culpa há-de derivar também da pluralidade de resoluções tomadas e executadas que causaram as violações jurídico-criminais. Mesmo na negligência por violação do dever de cuidado a que o agente, «segundo as circunstâncias e os seus conhecimentos pessoais e capacidade era obrigado», a norma deixou de ter a força determinadora que queria alcançar, e tantas vezes quantas as resoluções tomadas ou que poderia esperar que o agente tomasse; nestas circunstâncias, outros tantos juízos de censura são possíveis, pois às diversas resoluções corresponde uma reiteração da ineficácia da vontade de determinação.
Na presença de vários resultados típicos, ou um mesmo resultado várias vezes, haverá que atender à circunstância de o agente estar novamente em situação de cumprir o dever de diligência no intervalo que medeia entre a produção dos diversos resultados.
Na negligência, em que o elemento estrutural e estruturante (acção ou omissão negligente) é a violação do dever objectivo de cuidado, a pluralidade de processos resolutivos depende da forma como o acontecimento exterior se desenvolveu, atendendo fundamentalmente à conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente, que revele externamente se o agente renovou ou não renovou os respectivos processos de motivação pela norma de determinação.
A especificidade e as particularidades do crime negligente determinam, mas são também consequência da complexa construção da norma que define o tipo legal negligente. Faria Costa (“O Perigo em Direito Penal”, Coimbra Editora, 1992, p. 495 ss, nota (68)), salienta que a estrutura normativa complexa do tipo legal nas acções negligentes de resultado danoso «consubstancia duas realidades normativas»: a definição das condutas e resultados proibidos de realização não vinculada e a ideia da necessária violação do dever objectivo de cuidado.
Mas, ao contrário dos casos de dolo em que o agente representa e quis o facto e o resultado, nas acções negligentes de resultado «o agente em caso algum quer o facto»; «o agente, quando viola o dever de cuidado, não pode controlar, em termos de cognoscibilidade, os resultados, porque, precisamente, desde logo, não os quis».
As metódicas de imputação subjectiva nas acções dolosas e das acções negligentes são, pois, estruturalmente diversas.
Por isso, não existe nem pode existir uma inteira relação de «comunidade dogmática» entre os crimes dolosos e os crimes negligentes, quando os segmentos estruturantes dos tipos são radicalmente diferentes. A (não) previsão e a (não) cognoscibilidade do resultado (rectius, da exacta configuração final de um resultado) que não foi previsto e muito menos foi representado como possível, que constitui um elemento estrutural e estruturante da concepção global do tipo de crime negligente – facto típico, ilícito, com violação do dever de cuidado e juízo de censura pela ausência do cuidado devido a que o agente, nas circunstâncias, estava obrigado e de que era capaz – afasta a «comunidade» da formulação de princípios e dos elementos estruturantes das acções dolosas.
O conteúdo interior da relação de «comunidade dogmática» com o crime doloso não pode chegar ao ponto de conjunção de um juízo unificador dos elementos precisamente estruturantes na negligência, que são essencialmente diversos – o juízo de censura é radicalmente diferente, de todos os modos possíveis de abordagem, no dolo e na negligência: o juízo de censura pela vontade do facto e do resultado, no dolo; e na negligência, a não previsão do resultado concreto, com o juízo de censura apenas a poder ser dirigido à violação de dever de cuidado, que, numa perspectiva natural-circunstancial, por acidente, veio a causar resultados não previstos e não queridos.
Lobo Moutinho (“Da unidade à pluralidade dos crimes no Direito Penal Português”, p. 524-525) entende, segundo se interpreta a sua posição, que «o excesso advindo da indeterminação não pode, por si só, trazer pluralidade ao facto criminoso», nem determinar a existência de «crimes independentes».
Este posicionamento intra-dogmático entre a natureza do juízo de censura apenas em relação à violação do dever objectivo de cuidado, e a não previsibilidade do resultado, tem consequências determinantes na solução do problema da unidade e pluralidade de infracções nos crimes negligentes de resultado.
A construção do crime negligente, vista a natureza estruturante do juízo de censura nos crimes negligentes de resultado, tem razoavelmente de evitar as situações de «simbolismo expiatório» e afastar o pensamento «arbitrariamente consequencial inerente ao versari in re illicita» (cf. Faria Costa, cit., p. 485-486).
Relevante doutrina, no entanto, assume perspectiva diversa sobre o problema.
Figueiredo Dias (“Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial”, Tomo I, pág. 114, p. 1009-1010), em comentário ao artigo 137º, considera que «se através de uma mesma acção são mortas várias pessoas estar-se-á perante uma hipótese de concurso efectivo, sob a forma de concurso ideal, com absoluta indiferença por que a negligência tenha sido consciente ou inconsciente».
E em “Direito Penal - Parte Geral, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2007”, explicita que «relativamente a todos os tipos que protegem bens de carácter eminentemente pessoal, a pluralidade de vítimas - e, consequentemente, a pluralidade de resultados típicos - deve considerar-se sinal seguro da pluralidade de sentidos do ilícito e conduzir à existência de um concurso efectivo».
«Esta ideia da pluralidade de eventos típicos ligados a uma pluralidade de vítimas, se é importante em caso de concurso de crimes dolosos, assume particular relevo no concurso de crimes negligentes, trate-se de negligência consciente ou inconsciente, trate-se de concurso homogéneo ou heterogéneo. Uma doutrina muito difundida sustenta que nos crimes negligentes deve concluir-se pela unidade do facto, ainda que este contenha uma pluralidade de resultados (e de vítimas), sempre que aquele seja consequência de uma única acção: ou porque o resultado, nos crimes negligentes, não constituiria senão uma condição objectiva de punibilidade, ou porque, na impossibilidade de se recorrer aqui à unidade ou pluralidade do processo resolutivo (processo que, nos crimes negligentes, a ter existido, não pode relacionar-se tipicamente com o resultado), o agente seria, nestes casos, passível de um único juízo de culpa; ou – e essencialmente – porque à unidade de acção corresponderia a unidade da violação do dever objectivo de cuidado. Quanto a estes argumentos, já o nosso tratamento da negligência revela as razões de discordância. Nomeadamente, quanto ao último, parece esquecer que o dever objectivo de cuidado de que na negligência se trata não é um dever geral, mas o dever tipicamente referido a um certo evento (…). Esta circunstância deve conduzir à conclusão de que também em casos como os de que agora curamos são individualizáveis tantos sentidos de ilícito quantas as vítimas da lesão do dever objectivo de cuidado tipicamente corporizado em cada um dos resultados ou evento típicos, verificando-se por consequência, em princípio, um concurso efectivo».
(v) A jurisprudência nacional, especialmente do STJ, desde há mais de 60 anos, tem expressivamente considerado que nas acções negligentes de resultado a pluralidade de resultados não conduz a uma pluralidade crimes, em identidade e identificação dogmática da construção dos crimes dolosos de resultado com os crimes negligentes de resultado.
Embora com modulações argumentativas, a jurisprudência tem entendido como uma unidade, e em consequência que constitui um só crime, a acção negligente típica com violação do dever objectivo de cuidado com resultados circunstanciais e acidentais múltiplos.
Os fundamentos e a metodologia da argumentação e construção das decisões, com referência consistente ao precedente como factor de estabilidade da jurisprudência, têm sido, com uma ou outra especificidade, a natureza (e a consequente unidade) do juízo de censura nos crimes negligentes e a qualificação do concurso como concurso ideal.
Para tanto, a jurisprudência maioritária tem aceite, no essencial, as formulações da doutrina germânica sobre a construção do concurso ideal, com o auxílio metodológico e argumentativo retirado da inexistência de uma pluralidade de resoluções na violação do dever de cuidado.
(…)[3]
(vi) Consideradas as posições doutrinais e jurisprudências sobre a questão, não se considera que estejam reunidos fundamentos que decisivamente façam apontar para a inversão das formulações largamente maioritárias na jurisprudência do Supremo Tribunal.
As novas (outras) formulações doutrinais e a reconstrução dogmática são apenas isso mesmo, referenciais e tentativas, ainda não sedimentadas: como Roxin salientou, na negligência não se alcançaram consensos e certezas como na dogmática do crime doloso.
Não obstante alguma reconfiguração nas teorias tradicionais sobre o concurso real e o concurso ideal, que tem sido fundamentada numa leitura do artigo 30º, nº 1 do Código Penal, a moderna construção da doutrina do crime com a concepção do tipo total, objectivo e subjectivo, pressupõe na pluralidade de crimes sempre a existência de vários juízos de censura para a pluralidade de resultados, seja nos crimes dolosos seja nos crimes negligentes de resultado.
O preenchimento efectivo de um tipo de crime, na totalidade dos respectivos elementos constitutivos e integradores, pressupõe a acção típica, com o resultado nos crimes de resultado, a imputação ao agente e o juízo de censura; o juízo de censura não pode ser independente do resultado, e tem de ser também referido ao resultado e ao resultado concreto nos crimes de resultado.
Esta formulação e esta construção, típicas e próprias dos crimes dolosos, não se estendem ou podem ser aplicadas, tal qual, aos crimes negligentes, em que o juízo de censura é unitário e apenas pode ser formulado em relação à concreta violação do dever objectivo de cuidado ou à omissão do cuidado devido em concreto pelo agente. Nos crimes negligentes de resultado plural não podem ser dirigidos vários juízos de censura relativamente à mesma e única acção negligente, que consista numa única violação do dever de cuidado. Não existindo possibilidade de formular uma pluralidade de juízos de censura, não está configurada uma pluralidade de crimes. De outro modo nos crimes negligentes produzir-se-ia um corte na construção da doutrina do crime, com tratamento dogmaticamente diferenciado em relação aos crimes dolosos, até com maiores exigências ao nível do juízo de censura nos crimes negligentes do que nos crimes dolosos.
Entendimento diverso, que, no rigor, faria reverter a negligência e o dolo a uma (total) «comunidade dogmática», não estará, apesar da actualização funcional da negligência como categoria penal nas sociedades de risco e da exigência da ética do cuidado e do princípio da precaução, suficientemente densificado e com suporte consensual bastante para servir de fundamento a uma reconfiguração jurisprudencial.
Aliás, o enunciado nuclear do fundamento da assimilação da doutrina sobre a unidade e pluralidade de infracções na negligência e nos crimes dolosos de resultado, que respeita muito à particularidade do juízo de censura, explicitado por Pedro Caeiro e Cláudia Santos (“Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 6.º, Fasc. 1.º, Jan-Mar (1996) págs. 133 a 142), dá por adquirido e como base da construção crítica que existe nas acções negligentes de resultado múltiplo «uma (incontestável) pluralidade de tipos preenchidos». E que, por isso, seria necessário «mostrar que a falta de representação dos factos só permite a formulação de um juízo de censura».
No entanto, esta fórmula parece dar por adquirido o que se pretende ou deveria metodologicamente demonstrar. É que será precisamente pela unidade de acção constituída apenas pela unidade de violação do dever de cuidado que é objecto do juízo de censura, que se determina a unidade do juízo de censura; havendo unidade (um único juízo de censura) não poderá haver nas acções negligentes mais do que o preenchimento de um único tipo subjectivo e objectivo.
À violação do dever de cuidado no exercício da condução automóvel está unicamente associada, pela cognoscibilidade geral decorrentes das regras da experiência e da vida, e das exigências decorrentes da ponderação do cuidado devido, a possibilidade de ocorrer a morte ou lesões de outra pessoa. Todavia, não podendo ser, e não sendo, em concreto, representados os resultados, o juízo de censura, dirigido unicamente à violação de dever de cuidado, não se projecta em relação a todos os resultados.»[4]

Revertendo ao caso dos autos, à luz destas considerações, que subscrevemos, constatamos que, de acordo com a factualidade fixada pelo Tribunal a quo, a arguida ora recorrente, no exercício da condução do seu veículo automóvel, foi embater num outro veículo, no interior do qual se encontravam as duas vítimas, causando a morte de uma e ofensas na integridade física de outra, o que sucedeu por circular «sem os cuidados e precauções que são exigidos a qualquer condutor prudente, e a uma velocidade que não lhe permitiu controlar o veículo e imobilizá-lo no espaço visível à sua frente», tendo agido «de forma imprevidente e sem o cuidado a que, segundo as circunstâncias, estava obrigada e de que era capaz.»
A ora recorrente agiu, assim, em violação do dever de cuidado que lhe era exigido no exercício da condução, e essa violação é objecto de um juízo de censura.
Mas, não tendo sequer representado o resultado, o juízo de censura não pode ser plural em relação aos concretos resultados que se verificaram.
Assim, a recorrente só pode ser punida pela prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art. 137.º, n.º 1, do CP, sem prejuízo de, na avaliação da ilicitude da sua conduta, ser considerado o concreto resultado desse comportamento na sua globalidade (ou seja, tendo também em conta a ofensa à integridade física causada, por negligência, à segunda vítima).
*
A recorrente discorda da escolha da pena principal, afirmando que uma pena não privativa da liberdade «seria suficiente e perfeitamente adequada».
Mais considera que, se assim não se entender, a pena de prisão aplicada fixada se mostra excessiva face às exigências de prevenção geral e especial, devendo ser fixada em 18 meses (mantendo-se a suspensão da execução já decretada), atendendo a que a arguida «já com 67 anos de idade, está integrada social, familiar e profissionalmente, mostrou arrependimento e, quer antes quer após os factos dos autos teve uma conduta irreprovável» pelo que se mostram esbatidas as necessidades de ressocialização.
Vejamos.

O art. 70.º do CP refere que «Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa de liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição».
Esta regra, que se reporta às penas alternativas, vale para as penas substitutivas da pena de prisão, ao abrigo do art. 43.º, n.º 1, do CP (na redacção vigente à data da prática dos factos e da sentença recorrida, constando agora do seu art. 45.º, n.º 1): «A pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano é substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável, excepto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes».
Por outro lado, dispõe o art. 40.º do CP que «a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade» (n.º 1), e que «em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa» (n.º 2).
É, pois, de acordo com as proposições fundamentais de política criminal sobre a função e os fins das penas condensadas nesta norma, que estabelece um modelo de prevenção, que haverá que interpretar e aplicar os critérios de determinação da medida da pena.
Como se escreve no Ac. do STJ de 16-01-2008 (Proc. n.º 4565/07 - 3.ª)[5], «O modelo de prevenção acolhido – porque de protecção de bens jurídicos – estabelece que a pena deve ser encontrada numa moldura de prevenção geral positiva, e concretamente estabelecida também em função das exigências de prevenção especial ou de socialização, não podendo, porém, na feição utilitarista preventiva, ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
Dentro desta medida de prevenção (protecção óptima e protecção mínima – limite superior e limite inferior da moldura penal), o juiz, face à ponderação do caso concreto e em função das necessidades que se lhe apresentem, fixará o quantum concretamente adequado de protecção, conjugando-o a partir daí com as exigências de prevenção especial em relação ao agente (prevenção da reincidência), sem poder ultrapassar a medida da culpa.
Nesta dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e critérios do art. 71.º do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente».
Assim, dentro dessa linha de orientação, o Tribunal terá de atender, de acordo com o disposto no n.º 2 do art. 71.º do CP, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele.
«Na escolha da pena, considera Figueiredo Dias, a prevalência não pode deixar de ser atribuída a considerações de prevenção especial de socialização, por serem sobretudo elas que justificam, na perspectiva político-criminal, todo o movimento de luta contra a pena de prisão.
Essa prevalência opera a dois níveis diferentes:
- em primeiro lugar, o tribunal só deve negar a aplicação de uma pena alternativa ou de uma pena de substituição quando a execução da prisão se revele, do ponto de vista da prevenção especial de socialização, necessária ou, em todo o caso, provavelmente mais conveniente do que aquelas penas, coisa que só raramente acontecerá se não se perder de vista o carácter criminógeno da prisão, em especial da de curta duração;
- em segundo lugar, sempre que, uma vez recusada pelo tribunal a aplicação efectiva da prisão, reste ao seu dispor mais do que uma espécie de pena de substituição (v.g., multa, prestação de trabalho a favor da comunidade, suspensão da execução da prisão), são ainda considerações de prevenção especial de socialização que devem decidir qual das espécies de penas de substituição abstractamente aplicáveis deve ser a eleita.
Por seu turno, a prevenção geral surge aqui sob a forma do conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico, como limite à actuação das exigências de prevenção especial de socialização: desde que impostas ou aconselhadas à luz de exigências de socialização, a pena alternativa ou a pena de substituição só não serão aplicadas se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias.»[6]
Diga-se, desde já, que, apesar de as necessidades de prevenção especial não serem de particular relevo no caso vertente, (dada a primariedade da recorrente e a sua parcial assunção dos factos), o grau de ilicitude dos factos e das suas consequências é significativo, sendo também prementes as exigências de prevenção geral neste tipo de ilícito, dada a elevada sinistralidade rodoviária de que o nosso país padece, pelo que não seria adequada às finalidades preventivas da punição a imposição de uma «mera» sanção patrimonial.

Depois de enunciar os critérios que presidem à determinação da medida concreta da pena, o Tribunal referiu:
«Aplicando agora as regras sumariamente expostas ao caso sub judice, importa considerar: o grau de ilicitude dos factos o qual se mostra elevado, em função dos bens jurídicos tutelados, as respectivas consequências, de elevada gravidade; o grau de violação dos deveres impostos, as exigências de prevenção geral que se mostram elevadas face ao elevadíssimo número de acidentes rodoviários ocorridos em Portugal responsáveis por inúmeros feridos graves e mortos, consabido que a sinistralidade estradal com consequências gravosas tem persistido, entre nós; as exigências de prevenção especial revelam-se também prementes as necessidades de se efectuar uma resposta punitiva que promova uma eficaz recuperação da arguida, prevenindo a prática de comportamentos da mesma natureza, de modo a que passe a comportar-se de forma responsável, designadamente no que tange à vida humana, fazendo-lhe sentir a anti juridicidade e gravidade da sua conduta; no mais, a arguida mostra-se social e familiarmente inserida e não possui antecedentes criminais e/ ou estradais registados. Mais se atenderá à postura assumida em julgamento, denotando sentido crítico face à sua conduta.
Tudo visto e ponderado, o Tribunal julga adequada a aplicação à arguida:
- pela pratica de um crime de homicídio por negligência, na pena de 2 (dois) anos de
prisão e,
- pela pratica de um crime de ofensas à integridade física por negligência, na pena de 1 (um) ano de prisão.»
Verifica-se assim que foram tomadas em consideração as exigências de prevenção geral, sopesadas as de prevenção especial – que foram tidas por prementes, apesar da ausência de outras condenações criminais, da inserção social e familiar da arguida e do sentido crítico que evidenciou em julgamento –, e assinalado o grau de ilicitude dos factos, no qual foi sopesado o grau de violação dos deveres impostos e a gravidade das suas consequências.
No essencial, as considerações e a fundamentação da decisão recorrida não merecem reparo.
Com efeito, as específicas circunstâncias do caso, quer ao nível do grau de violação do dever de cuidado quer ao dos resultados que dela advieram, bem como o elevado índice de sinistralidade rodoviária que se regista no nosso país, que torna muito elevadas as necessidades de prevenção geral positiva ou de integração, justificam uma pena adequada a satisfazer a necessidade comunitária de afirmação da validade da norma jurídica violada.
Já as necessidades de prevenção especial não podem ter-se por significativas, contrariamente ao que considerou o Tribunal recorrido, dada a primariedade da arguida, quase aos setenta anos de idade, e a postura por ela adoptada em audiência de julgamento, elementos atenuativos que não poderão deixar de ter adequado reflexo na medida da pena.

O Tribunal a quo, após ponderar os factores relevantes para a determinação da medida concreta da pena, aplicou à recorrente uma pena de 2 anos de prisão pelo crime de homicídio por negligência, único que agora importa sancionar, mas sem olvidar, na avaliação global da ilicitude da sua conduta, também a ofensa à integridade física causada, por negligência, à segunda vítima.
Consabido ser a moldura penal abstracta correspondente ao crime de homicídio por negligência em presença a de 1 mês a 3 anos de prisão, ponderados todos os elementos reunidos nos autos, em conformidade com o disposto no art. 71.º, n.º 2, do CP, e tendo em consideração que a medida da tutela dos bens jurídicos, correspondente à finalidade de prevenção geral positiva ou de integração, é referenciada por um ponto óptimo, consentido pela culpa, e por um ponto mínimo que ainda seja suportável pela necessidade comunitária de afirmar a validade da norma ou a valência dos bens jurídicos violados com a prática do crime, entre esses limites se devendo satisfazer, quanto possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização, às quais cabe, em última análise, a função de determinação da medida da pena dentro dos limites supra assinalados, considera-se equilibrada e ajustada à culpa concreta da recorrente uma pena de 2 (dois) anos de prisão.

De seguida, o Tribunal recorrido decidiu-se pela suspensão da execução da pena imposta, por ser possível formular um juízo de prognose favorável sobre o desenrolar do comportamento futuro da arguida, condicionando, contudo, essa suspensão ao cumprimento do dever de a mesma entregar, no período da suspensão, ao Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão a quantia de 1500,00€ (mil e quinhentos euros), opção e condicionamento que merece a nossa concordância e que a recorrente expressamente declara aceitar.

A recorrente pretende, ainda, em virtude das circunstâncias já acima referidas e de ter a seu cargo o pai, com 93 anos de idade, e de viver a cerca de 30 km de um aglomerado populacional com serviço de saúde, que a pena acessória de proibição de conduzir seja reduzida para o seu mínimo legal e suspensa na sua execução.
Diga-se, antes de mais, que não resultam da factualidade assente – e por isso não podem ser atendidas – estas últimas circunstâncias a que a recorrente alude.
Acerca da determinação da pena acessória, lê-se na sentença recorrida:
«À pena ora determinada acresce, ainda, a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados por um período fixado entre três meses e três anos de prisão, nos termos do disposto no artigo 69.º, n.º 1, al. a) do Código Penal ou, em alternativa, se em face do facto praticado e da personalidade do agente houver fundado receio de que este possa vir a praticar outros factos da mesma espécie ou deva ser considerado inapto para a condução de veículo com motor, a medida de segurança de cassação do título de condução e interdição de concessão do título de condução de veículo com motor pelo período de um a cinco anos, nos termos dos artigos 101.° e 102.°, ambos do aludido código.
Ora, no caso concreto, não tendo a arguida averbada no seu certificado de registo criminal ou no RIC qualquer condenação e tendo em conta não resultaram provados quaisquer outros factos que permitam aferir do perigo de voltar a cometer o crime temos por não verificados os requisitos de aplicação previstos nos artigos 101.° e 102.° do Código Penal, pelo que, deve ser-lhe aplicada, em obediência ao disposto no artigo 69.°, n.º 1, al. b) do mesmo diploma legal, a pena acessória de inibição de conduzir veículos motorizados e não aqueloutra de cassação do título de condução.
São elementos a ter em conta na aplicação de uma pena acessória: a aplicação de uma pena principal; e as exigências de prevenção geral e especial que se fazem sentir no caso concreto exigirem a aplicação da pena acessória.
Face ao exposto, há que ponderar a factualidade apurada em sede de audiência de julgamento e considerada como provada, mormente as consequências por demais gravosas da conduta da arguida, a função limitadora da culpa e as referidas exigências de prevenção, designadamente, que esta pena acessória tem um carácter dissuasor e o facto de o arguido não ter antecedentes criminais registados.
Face ao exposto, tudo visto e ponderado, o Tribunal julga adequado e proporcional a fixação em 6 (seis) meses a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados a aplicar à arguida nos presentes autos

A determinação da pena acessória, tal como a da pena principal, deve efectuar-se mediante aplicação dos critérios gerais constantes do art. 71.º do CP, tendo-se em atenção que a sua finalidade se centra sobretudo na vertente da prevenção especial, ou seja, na necessidade de influir na personalidade do agente.
Esta pena acessória tem, em particular, um carácter dissuasor, na prossecução de uma política criminal de defesa dos bens pessoais e sociais e dos valores da segurança rodoviária, procurando contrariar os elevados índices de sinistralidade rodoviária do nosso país.
O art. 69.º, n.º 1, do CP, não permite ao juiz apreciar a necessidade ou desnecessidade de aplicação da pena acessória da proibição de conduzir veículos com motor, no caso, designadamente, de prática do crime de homicídio cometido no exercício da condução de veículo motorizado com violação das regras de trânsito rodoviário, o que não significa que aquela constitua um efeito automático da pena.
O que sucede é que o legislador fixou, em função de certos tipos de ilícito, uma pena acessória por a considerar adequada à ilicitude que o tipo de crime indicia. Ou seja, a opção do legislador relativamente a este tipo de crime foi no sentido de o mesmo dever ser sempre punido com uma pena principal e uma pena acessória, ambas necessárias, na perspectiva daquele.
Assim, o juiz tem de aplicar a pena acessória quando, como no presente caso, o arguido é condenado pelo crime p. e p. pelo art. 137.º do CP, devendo fixá-la, de acordo com os critérios gerais de determinação da medida da pena, dentro da moldura prevista no art. 69.º, n.º 1, do CP, ou seja, entre 3 meses e 3 anos.
Foi esse o procedimento do tribunal recorrido, que, ponderando aqueles critérios, entendeu fixá-la em 6 meses.
Embora de forma sucinta, foram devidamente tomadas em consideração as exigências de prevenção geral e sopesadas as de prevenção especial, ponderado o grau de ilicitude da conduta e o grau de culpa, e consideradas as condições pessoais e económicas do agente.
Devendo a sanção acessória ser graduada num plano que promova a consciencialização, por parte da arguida, da necessidade de conformar as suas condutas posteriores com a vigência da norma, e se revista do necessário efeito dissuasor de idênticos comportamentos, não tem qualquer cabimento pretender ver fixada no seu mínimo legal a medida de tal sanção, num caso com a gravidade do presente, sob pena de serem postas em causa as finalidades visadas pelo legislador com a sua consagração.
E essa ponderação foi efectuada de forma proporcional e adequada, mostrando-se a medida concreta da sanção acessória fixada ajustada à culpa concreta do agente, mesmo perante a alteração da qualificação jurídica agora operada, não se justificando qualquer intervenção correctiva por parte deste Tribunal.
Os incómodos ou dificuldades que a imposição da pena acessória de proibição de conduzir acarretará à recorrente, segundo a mesma alega, não são mais que uma decorrência natural do ilícito praticado, não comportando, por si só, virtualidade para determinar a sua redução.

Por fim, a recorrente pretende ver suspensa a execução da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor.
Ora, tal suspensão carece de fundamento legal, uma vez que a suspensão da execução da pena, prevista no art. 50.º do CP, só respeita à pena de prisão, não abrangendo as penas acessórias.
Este entendimento, que se nos afigura unívoco face ao teor do mencionado preceito, colhe também o apoio da doutrina, explicando Germano Marques da Silva[7] que: «(…) ainda que a pena principal seja substituída ou suspensa na sua execução, o mesmo não pode suceder relativamente à pena acessória de proibição de conduzir», e Paulo Pinto de Albuquerque[8] que «não é admissível a suspensão da pena de proibição de conduzir, nem a sua substituição por caução no processo penal, independentemente do destino da pena principal, uma vez que aquela suspensão e esta substituição só estão previstas no CE no âmbito do direito contra-ordenacional».

Por todo o exposto, procede apenas parcialmente o recurso.
*
III. Decisão
Em face do exposto, acordam os Juízes da 9.ª Secção Criminal da Relação de Lisboa em:
- concedendo parcial provimento ao recurso interposto pela arguida M…, condená-la, pela prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art. 137.º, n.º 1, do CP, na pena de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, condicionada ao cumprimento do dever de a mesma entregar, no período da suspensão, ao Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão a quantia de 1500,00€ (mil e quinhentos euros);
- no mais, negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
Sem tributação (art. 513.º, n.º 1, do CPP, a contrario).
Notifique.
*
(Certifica-se, para os efeitos do disposto no art. 94.º, n.º 2, do CPP, que o presente acórdão foi elaborado e revisto pela relatora, a primeira signatária)
*
Lisboa, 4 de Abril de 2019

Cristina Branco
António Trigo Mesquita (Presidente da secção em desempate)
Filipa Costa Lourenço (segue declaração de voto)

DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencida  quer quanto ao sentido, quer quanto aos fundamentos da decisão  no tocante à qualificação jurídica dos crimes imputados à arguida, pelas razões que, sucintamente, se passam a explicitar, pelo que teria mantido a decisão recorrida nos seus precisos termos, confirmando-a na integra.
Explicitando direi:
A arguida M…, foi condenada na 1ª instância arguida, pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo artigo 137º, n.º 1 do Código Penal, por referência ao artigo 24º, n.º 1 do Código da Estrada, na pena de 2 (dois) anos de prisão, pela prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física por negligência p. p. pelo artigo 148º do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão e em cúmulo jurídico na pena única de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão e ainda suspensa a execução da pena de prisão mencionada em c) por igual período de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses, condicionada ao pagamento pela arguida da quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros), ao Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão, a ser pago durante o período da suspensão, nos termos determinados.
No acórdão do qual se discorda, nos termos supra e infra referidos e remetendo-se para sua fundamentação, a arguida veio a ser condenada só pela prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art. 137.º, n.º 1, do CP, na pena de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, condicionada ao cumprimento do dever de a mesma entregar, no período da suspensão, ao Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão a quantia de 1500,00€ (mil e quinhentos euros).
O “leiv motiv” da nossa discordância estriba-se no seguinte:
Apontando-se o óbvio, e que é existir uma clivagem, neste particular conspecto (crimes negligentes / acidentes de viação), quer na doutrina, quer na jurisprudência, a qual é amplamente conhecida por todos os operadores judiciários, aderimos no entanto e incondicionalmente à posição de Figueiredo Dias no “Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial”, Tomo I, pág. 114, p. 1009-1010), em comentário ao artigo 137º, considera que «se através de uma mesma acção são mortas várias pessoas estar-se-á perante uma hipótese de concurso efectivo, sob a forma de concurso ideal, com absoluta indiferença por que a negligência tenha sido consciente ou inconsciente».
E em “Direito Penal - Parte Geral, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2007”, o mesmo autor explicita que «relativamente a todos os tipos que protegem bens de carácter eminentemente pessoal, a pluralidade de vítimas - e, consequentemente, a pluralidade de resultados típicos - deve considerar-se sinal seguro da pluralidade de sentidos do ilícito e conduzir à existência de um concurso efectivo». «Esta ideia da pluralidade de eventos típicos ligados a uma pluralidade de vítimas, se é importante em caso de concurso de crimes dolosos, assume particular relevo no concurso de crimes negligentes, trate-se de negligência consciente ou inconsciente, trate-se de concurso homogéneo ou heterogéneo. Uma doutrina muito difundida sustenta que nos crimes negligentes deve concluir-se pela unidade do facto, ainda que este contenha uma pluralidade de resultados (e de vítimas), sempre que aquele seja consequência de uma única acção: ou porque o resultado, nos crimes negligentes, não constituiria senão uma condição objectiva de punibilidade, ou porque, na impossibilidade de se recorrer aqui à unidade ou pluralidade do processo resolutivo (processo que, nos crimes negligentes, a ter existido, não pode relacionar-se tipicamente com o resultado), o agente seria, nestes casos, passível de um único juízo de culpa; ou – e essencialmente – porque à unidade de acção corresponderia a unidade da violação do dever objectivo de cuidado.
Quanto a estes argumentos, já o nosso tratamento da negligência revela as razões de discordância.
Nomeadamente, quanto ao último, parece esquecer que o dever objectivo de cuidado de que na negligência se trata não é um dever geral, mas o dever tipicamente referido a um certo evento (…). Esta circunstância deve conduzir à conclusão de que também em casos como os de que agora curamos são individualizáveis tantos sentidos de ilícito quantas as vítimas da lesão do dever objectivo de cuidado tipicamente corporizado em cada um dos resultados ou evento típicos, verificando-se por consequência, em princípio, um concurso efectivo». 
Assim, verificamos que, relativamente ao concurso de crimes negligentes, quer esteja em causa negligência consciente ou inconsciente, (e é este o argumento válido para Figueiredo Dias e também para nós que o secundamos), uma vez que “são individualizáveis tantos sentidos de ilícito quantas as vítimas da lesão do dever objetivo de cuidado tipicamente corporizado em cada um dos resultados ou eventos típicos, verificando-se por consequência, em princípio, um concurso efetivo” .
Na verdade, tanto o crime de homicídio negligente previsto no art.º 137.º, como o crime de ofensas à integridade física por negligência, previsto no art.º 148.º, ambos do C. Penal, são crimes materiais ou de resultado e de dano, pelo que no nosso ordenamento jurídico-penal a morte e a ofensa à integridade física fazem parte dos respectivos tipos legais, não as configurando o legislador como meras condições de punibilidade alheias ao núcleo do ilícito típico. Ilícito típico que nestes crimes negligentes que nos ocupam (homicídio e ofensa) abrange, assim, tanto o desvalor de acção, traduzido na violação do dever objectivo de cuidado que enforma a conduta negligente, como o desvalor do resultado, pelo que consistindo este resultado – tipicamente – na violação de bem jurídico eminentemente pessoal, são tantas as negações de valores jurídico-penais autónomos, quantas as pessoas atingidas, o que significa que são tantos os crimes de homicídio negligente e/ou de ofensa á integridade física por negligência, quantas as vítimas;
A mesma posição é seguida por, PAULA RIBEIRO DE FARIA, na anotação § 32 ao art 148 do Código Penal, em Maio de 2012, a propósito da questão “O Concurso”, que: Existe concurso efectivo entre as ofensas à integridade física negligentes causadas a pessoas diferentes através de uma acção do agente praticada com negligência inconsciente “.
Também no AC STJ 22.11.2007, in www.dgsi.pt, refere-se que “não pode deixar de se considerar que, resultando dum acidente de viação, em que o condutor violou o dever objectivo de cuidado, a morte de alguém e ferimentos em duas pessoas, será imputável ao arguido a prática, não de um crime de homicídio por negligência, mas um concurso ideal heterogéneo, dada a comissão, além do homicídio, de mais dois crimes de ofensas corporais involuntárias.”
O acórdão de 11-11-1998, processo n.º 891/98 - 3.ª Secção constitui, pode dizer-se, o case leading da jurisprudência que considera a existência de pluralidade de infracções nas acções negligentes de resultados múltiplos. Considerou que «não há, em suma […], razão válida para se continuar a defender que, ainda que só nos casos de negligência inconsciente, o concurso ideal heterogéneo deve ser punido como um único crime. Logo, o que se impõe concluir, é que, qualquer tipo de concurso ideal – homogéneo ou heterogéneo, doloso ou negligente – se integra na previsão do art. 30.º, n.º 1, do actual Código Penal, o que significa que o agente que, com uma só acção, realiza diversos tipos legais ou realiza diversas vezes o mesmo tipo legal de crime, independentemente de agir com dolo ou com negligência (consciente ou inconsciente), comete tantos crimes quantos os tipos preenchidos ou o número de vezes que o mesmo tipo foi realizado», a punir nos termos do art. 77.º, do Código Penal. A posição que sustenta, nos casos de culpa inconsciente, que não se pode fragmentar o juízo de censura correspondente à única actividade do agente em tantos quantos os tipos legais realizados, por a cada um destes não corresponder uma resolução autónoma daquele, é, no entender da decisão, «equívoca, pois a pluralidade de infracções não tem de assentar necessariamente ou ser função da pluralidade de resoluções».
De modo essencialmente idêntico, no acórdão de 08-07-1998, processo n.º 343, CJSTJ 1998, tomo 2, pág. 237, decidiu-se que existe pluralidade de juízos de censura «sempre que seja possível desdobrar o elemento da culpa constituído pelo elo psicológico entre o agente e o resultado. Elo que é característico dos crimes dolosos (com consistência variável consoante o dolo seja directo, necessário ou eventual), mas que, embora mais ténue, também existe nas infracções praticadas com culpa consciente (conf. art. 15.º a) do CP), ou seja, nas infracções em que o agente prevê o resultado mas actua confiado em que este não irá acontecer», concluindo que «em matéria de crimes involuntários praticados com negligência consciente e violadores de bens jurídicos eminentemente pessoais, o agente comete tantos crimes quantos os resultados que previu e, injustificadamente, confiou que se não produziriam» e extensível quanto a nós aos crimes cometidos com culpa inconsciente e como acima já se deixou expresso. E como também se refere no Ac STJ de 11.11.1998, in DGSI: «I. Não há razão válida para se defender que, ainda que só nos casos de negligência inconsciente, o concurso ideal heterogéneo deva ser punido como um único crime. II. O que se impõe concluir é, antes, que qualquer tipo de concurso ideal – homogéneo ou heterogéneo, doloso ou negligente – se integra na previsão do art. 30º nº 1 do C. Penal vigente, o que significa que o agente, com uma só acção, realiza diversas tipos legais ou realiza diversas vezes o mesmo tipo de crime, independentemente de agir com dolo ou negligência (consciente ou inconsciente), comete tantos crimes vezes quantos os tipos preenchidos ou o número de vezes que o mesmo tipo foi realizado, a punir nos termos do art. 77 daquele Código»
Decidiram também neste sentido os acórdãos de 25-11-1993, processo n.º 45169, da 2.ª Subsecção Criminal; acórdão de 16-11-1995, processo n.º 47437, da 2.ª Subsecção Criminal; acórdão de 02-06-1999, processo n.º 257/99 – 3.ª Secção; acórdão de 11-12-2002, processo n.º 2104/02 - 3.ª Secção, SASTJ , n.º 66, pág. 48; e acórdão de 22-11-2007, processo n.º 3638/05-5.ª Secção.
Também o Sr. Juiz Conselheiro Raul Borges em voto de vencido que proferiu no processo Acr. STJ 1659/07.3GTABSF.S1,in www.dgsi.pt refere, e a cuja posição aderimos na integra exarou que:
Na distinção entre unidade e pluralidade de infracções, o art. 30.º do CP 82 elege o critério teleológico. No que respeita à qualificação jurídica dos crimes negligentes, em sentido contrário ao tradicional na jurisprudência, entende-se que, existindo resultados múltiplos, e estando em causa bens jurídicos eminentemente pessoais, haverá tantos crimes quantos os resultados verificados, quanto os ofendidos, a punir pelas regras do concurso de infracções – concurso ideal equiparado ao concurso real – operando a punição à luz dos arts. 30.º e 77.º do CP, quer se esteja perante a lesão plúrima do mesmo preceito legal, quer a violação se dirija a diversos preceitos incriminadores. À posição tradicional, que nos casos de negligência esgota numa única infracção o resultado plúrimo da conduta do agente, acolhendo como categoria agravante a atender na graduação da pena os demais resultados emergentes dessa actuação, assinala-se a dificuldade de eleição do bem jurídico efectivamente protegido, num quadro em que está presente mais de que uma violação dum bem jurídico e quando na realidade todos os eventos típicos assume relevância ímpar, tratando-se de bens pessoais.
No caso específico dos acidentes de viação, a consideração da unicidade do evento, contraria a concreta existência de um dano social de maior amplitude provocado pelo condutor, não se atendendo ao desvalor de resultado.
A vida, a honra, a integridade física e a liberdade são bens jurídicos tutelados pelo legislador, não como valores comuns, mas como valores encarnados em cada uma das individualidades e personalidades dos seus portadores.
O bem jurídico tutelado nas normas incriminadoras de homicídio é a vida humana inviolável, refletindo o art. 24.º da CRP, que confere sentido ao princípio da dignidade da pessoa humana e ao direito à liberdade que estruturam e densificam o Estado de Direito.
Na actuação negligente, a censura coloca-se na produção de resultado, incidindo sobre a capacidade ou possibilidade do agente de prever correctamente a realização do tipo legal de crime e de não ter querido preparar-se para representar tais resultados ou não os querer representar correctamente. De facto, o que se pune na negligência não é a vontade do resultado que, por definição falta, mas sim o resultado ou a lesão do bem ou bens jurídicos violados com a conduta negligente. O mesmo é dizer que, actuando com negligência, se pune o agente por não ter querido, em face do conhecimento de que certos resultados são puníveis, preparar-se para, perante certa conduta perigosa, os representar justamente (negligência consciente) ou mesmo para os representar (negligência inconsciente).
Quanto ao caso em concreto destes autos e aderindo ao atrás exposto e face ao atrás exarado deixamos claro que discordamos, quer dos fundamentos quer da posição assumida no presente acórdão, pelo que teríamos concluído pela condenação da arguida M…, pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo artigo 137º, n.º 1 do Código Penal, por referência ao artigo 24º, n.º 1 do Código da Estrada, na pena de 2 (dois) anos de prisão e de um de um crime de ofensa à integridade física por negligência p. p. pelo artigo 148º do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão e em cúmulo jurídico na pena única de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Nestes termos e ao contrário, do decidido, manteria a decisão recorrida proferida pelo Tribunal “ a quo” e, com ela, a condenação da arguida nos seus exactos termos.

Filipa Costa Lourenço

[1] Cf., a propósito, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 09-10-2017, Proc. n.º 103/15.7GTVCT.G2, in www.dgsi.pt.
[2] Proferido no Proc. n.º 1659/07.3GTABF.S1, ibidem.
[3] Neste ponto consta do aresto uma extensa indicação de acórdãos do STJ sobre o tema, a qual nos dispensamos de transcrever e para a qual remetemos.
[4] Cf. neste sentido, mais recentemente, o acórdão da Relação de Guimarães de 09-10-2017 acima identificado na nota 1, bem como o da Relação do Porto de 28-10-2015, Proc. n.º 3/13.5GCAGD.P1, in www.dgsi.pt (no qual se referem, com idêntico entendimento, os da mesma Relação de 08-05-2013, Proc. n.º 1825/08.4TAVCD.P1, e de 02-10-2013, Proc. n.º 831/10.3PTPRT.P1, ambos inéditos).
[5] In www.dgsi.pt.
[6] Cf. Ac. do STJ de 29-04-2009, Proc. n.º 939/07.2PYLSB.S1 - 3.ª, in www.stj.pt (Jurisprudência/Sumários de Acórdãos).
[7] In Crimes Rodoviários, Lisboa, 1.ª ed., pág. 28.
[8] In Comentário do Código Penal, Lisboa, UCE, 2.ª ed., pág. 264.