Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8524/2006-1
Relator: RUI VOUGA
Descritores: NULIDADE DE SENTENÇA
DEFESA POR EXCEPÇÃO
IMPUGNAÇÃO
GARANTIA DE BOM FUNCIONAMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/18/2007
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA A DECISÃO
Sumário: 1 - A reclamação por nulidade tem cabimento quando as partes ou os funcionários judiciais praticam ou omitem actos que a lei não admite ou prescreve; mas se a nulidade é consequência de decisão judicial, se é o tribunal que profere despacho ou acórdão com infracção de disposição da lei, a parte prejudicada não deve reagir mediante reclamação por nulidade, mas mediante interposição de recurso. É que, na hipótese, a nulidade está coberta por uma decisão judicial e o que importa é impugnar a decisão contrária à lei; ora as decisões impugnam-se por meio de recursos (art. 677º) e não por meio de arguição de nulidade do processo.
2 – O R. defende-se por excepção (e não por impugnação) quando alega (na sua contestação) que as reparações cujo preço é reclamado pelo A. foram feitas na pendência do período de garantia de bom funcionamento a que o A. estava obrigado.
3 - Tais factos servem, no plano substantivo, de causa impeditiva do direito que o A. se arroga, a obter do R. o pagamento do preço das reparações que aquele, a pedido deste, efectuou.
4 - A garantia de bom funcionamento tem o significado e os efeitos de uma obrigação de resultado, na medida em que, durante a sua vigência, o vendedor assegura o regular funcionamento da coisa vendida.
5 - Para o exercício dos direitos cobertos pela garantia, o comprador apenas terá de alegar e provar o mau funcionamento da coisa, durante o prazo da garantia, sem necessidade de alegar e provar a específica causa do mau funcionamento e a sua existência à data da entrega. Ao vendedor, para se ilibar da responsabilidade, incumbirá alegar e provar que a causa do mau funcionamento é posterior à entrega da coisa vendida e imputável ao comprador, a terceiro ou devida a caso fortuito.~
F.G.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível da Relação de Lisboa:

"R LDA.", intentou acção declarativa de condenação, com processo comum na forma sumária, contra "G, LDA.", pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 13.668,47, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, contados à taxa anual de 12% e devidos desde o vencimento de cada uma das facturas até integral pagamento.
Para tanto, alegou, nuclearmente:
- que efectuou reparações, a pedido da Ré, em três veículos automóveis e pagou, a pedido da Ré, o custo da reparação dum veículo automóvel, no montante global de € 13.668,47;
- que a Ré não pagou o custo das reparações, apesar de a A. lhe ter enviado as concernentes facturas.

A Ré contestou, por excepção e por impugnação.
Defendendo-se por excepção, alegou que todas as reparações efectuadas pela A. nos veículos identificados na petição inicial estavam cobertas pela garantia de veículos usados da A.
Defendendo-se por impugnação, alegou que uma das viaturas (a de matrícula 65-75-DO) pretensamente reparadas pela A.não pertence sequer à Ré.

A A. não respondeu à contestação.

Findos os articulados, o processo foi saneado, organizou-se a base instrutória (contra a qual a Ré reclamou oportunamente, mas sem êxito) e teve lugar a audiência de discussão e julgamento, finda a qual foi proferida sentença (datada de 24/3/2004) que julgou a acção procedente, por provada e, consequentemente, condenou a Ré "G, Lda." a pagar à Autora "R, LDA." as seguintes quantias:
- € 1.104,04, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, contados à taxa anual de 12% até 30/04/2003 e de 9% desde 01/05/2003, devidos desde 07/11/2000 até integral pagamento;
- € 908,18, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, contados à taxa anual de 12% até 30/04/2003 e de 9% desde 01/05/2003, devidos desde 07/11/2000 até integral pagamento;
- € 2.455,04, acrescida de furos de mora vencidos e vincendos, contados à taxa anual de 12% até 30/04/2003 e de 9% desde 01/05/2003, devidos desde 18/10/2001 até integral pagamento;
- € 781,12, acrescida de furos de mora vencidos e vincendos, contados à taxa anual de 12% até 30/04/2003 e de 9% desde 01/05/2003, devidos desde 21/11/2000 até integral pagamento;
- € 1.425,49, acrescida de furos de mora vencidos e vincendos, contados à taxa anual de 12% até 30/04/2003 e de 9% desde 01/05/2003, devidos desde 28/11/2000 até integral pagamento;
- € 1.470,52, acrescida de furos de mora vencidos e vincendos, contados à taxa anual de 12% até 30/04/2003 e de 9% desde 01/05/2003, devidos desde 12/12/2000 até integral pagamento;
- € 313,95, acrescida de furos de mora vencidos e vincendos, contados à taxa anual de 12% até 30/04/2003 e de 9% desde 01/05/2003, devidos desde 05/01/2001 até integral pagamento; e;
- € 5.210,12, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, contados à taxa anual de 12% até 30/04/2003 e de 9% desde 01/05/2003, devidos desde 08/02/2001 até integral pagamento.
Inconformada com o assim decidido, a Ré apelou da referida sentença, tendo rematado as concernentes alegações com as seguintes conclusões:
(…)
Previamente à interposição do mencionado recurso de Apelação, já a Ré havia interposto recurso do despacho (datado de 26FEV2004) que lhe indeferiu um seu requerimento no qual pedira a declaração de nulidade daqueloutro despacho (este datado de 12DEZ2003) que ordenara a rectificação (solicitada pela Autora) do teor do Quesito 1º da Base Instrutória – recurso esse que foi admitido como de Agravo, a subir com o primeiro que depois dele houvesse de subir imediatamente, com efeito devolutivo.
A Ré extraiu das alegações respeitantes a esse recurso de Agravo as seguintes conclusões:
(…)
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
O OBJECTO DOS RECURSOS
Como se sabe, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintéctica, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 690º, nº 1, do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (1)(2).
Efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 684º, nº 2, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (nº 3 do mesmo art. 684º) (3)(4).
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
No caso sub judice, emerge das conclusões da alegação de recurso apresentada pela Ré ora Apelante que o objecto da presente Apelação está circunscrito a uma única questão:
1) Se devem dar-se por não escritas (nos termos do artigo 646º, nº 4, do Código de Processo Civil) as respostas dadas pelo tribunal “a quo” aos quesitos 2º e 3º da base instrutória, já que os factos neles indagados estão plenamente provados por terem sido admitidos por acordo das partes, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 463°, 493°, n° 3, 785º, 505° e 490º, todos do Cód. Proc. Civil, porquanto a Autora não respondeu à excepção peremptória invocada pela Ré na sua contestação, ao alegar que as reparações cujo preço é reclamado pela Autora na presente acção foram feitas na pendência do período de garantia de bom funcionamento a que a Autora estava obrigada.
Por sua vez, resulta das conclusões da alegação de recurso apresentada pela Ré que o objecto do recurso de agravo por ela interposto do despacho (interlocutório, datado de 26FEV2004)) que lhe indeferiu um seu requerimento anterior no qual arguíra a nulidade daqueloutro despacho (este datado de 12DEZ2003) que ordenara a rectificação (solicitada pela Autora) do teor do Quesito 1º da Base Instrutória, está circunscrito a uma única questão:
1) Se o despacho (datado de 12DEZ2003) que ordenou a rectificação (solicitada pela Autora) do teor do quesito 1º da base instrutória, enferma de nulidade, nos termos do art. 201º, n° 1 e n° 2 do Cód. Proc. Civil, por isso que: a) o requerimento da Autora de 4/12/2003 devia ter sido liminarmente indeferido, por não existir qualquer erro ostensivo ou lapso de escrita susceptível de correcção ao abrigo do art. 249° do Cód. Civil; b) a "rectificação" requerida pela Autora ora Agravada foi decidida favoravelmente a esta, antes de expirar o prazo de que dispunha a Ré ora Agravante para poder exercer e deduzir o direito a contestar o articulado em 7° da petição inicial, de acordo com a versão objecto de correcção, com fragrante violação do princípio do contraditório consagrado no art. 3º, nº 3, do Cód. Proc. Civil.
MATÉRIA DE FACTO
Factos Considerados Provados na 1ª Instância:
A sentença recorrida elenca como provados os seguintes factos:
1. A Autora "R, Lda." efectuou, a pedido da Ré "G, Lda.", reparações no veículo automóvel de matrícula 28-99-FP cujo valores importaram em E 1.104,04 e em E 908,18, tendo para tanto, sido enviadas à Ré as facturas n.° 53.584 datada de 07/11/2000 e n.° 53385 datada de 07/11/2000 (alínea A) dos factos assentes).
2. A Autora pagou, a pedido da Ré, à "C Rodoviária, Lda." o custo de reparação do veículo automóvel de matrícula 28-99-FP no montante de E 2.455,04, tendo para tanto, sido enviada à Ré a factura n.° J010189 datada de 02/02/2001 (alínea B) dos factos assentes).
3. A Autora reparou para a Ré o veículo automóvel de matrícula RQ-00-80, tendo para tanto, enviado as facturas n.° 53.766, n.° 53.938, n.° 50.036 e n.° 50.364 datadas de 28/11/2000, de 12/12/2000, de 05/01/2001 e de 08/02/2001, nos valores de f 1.425,49, de f 1.470,52, de e 313,95 e de e 5.210,12 (alínea C) dos factos assentes)
4. A Autora reparou, a pedido da Ré, o veículo automóvel de matrícula 65-75-I0, tendo para tanto, enviado a factura n.° 53.626 datada de 21/11/2000 no valor de 781,12 (resposta ao quesito 1.°).
O MÉRITO DOS RECURSOS
A) O MÉRITO DO AGRAVO
O despacho (datado de 26FEV2004) que constitui o objecto do presente recurso de agravo indeferiu um requerimento da Agravante no qual esta pedira a declaração de nulidade daqueloutro despacho (este datado de 12DEZ2003) que ordenara a rectificação (solicitada pela Autora) do teor do Quesito 1º da Base Instrutória.
Por requerimento entrado em juízo a 4/12/2003, a Autora/Agravada, invocando a existência dum lapso de escrita no teor do artigo 7º da petição inicial, no que concerne à identificação da matrícula da viatura automóvel nele referida, solicitou a rectificação de tal lapso e a consequente rectificação do teor do Quesito 1º da Base Instrutória.
A Ré ora Agravante foi notificada de tal requerimento deduzido pela Autora/Agravada, mediante carta registada remetida pelo mandatário da Autora/Agravada em 5/12/2003, considerando-se a Ré notificada de tal requerimento em 9/12/2003, pelo que podia exercer o contraditório até à data de 19/12/2003 - art. 153° do Cód. Proc. Civil (parte final).
Porém, por despacho datado de 12/12/2003, a "rectificação" requerida pela Autora ora Agravada foi decidida favoravelmente a esta, antes mesmo de expirar o prazo de que dispunha a Ré ora Agravante para poder exercer e deduzir o direito a contestar o articulado em 7° da petição inicial, de acordo com a versão objecto de correcção.
Confrontada com este despacho, a Ré agravante não interpôs recurso do mesmo, tendo antes apresentado em juízo um requerimento (constante de fls. 103 e 104) no qual invocou a nulidade processual inerente à não obediência do princípio do contraditório quanto ao requerimento da Autora/Agravada em que pretende ver corrigido o seu art. 7° da petição inicial, concluindo da seguinte forma:
Termos em que:
- requer a V. Exa. se digne declarar a nulidade nos termos do art. 201°, nºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil do douto despacho de V. Exa de fls. (..) em que ordenou a rectificação requerida a fls. 76 e dar sem efeito consequentemente a ordenada rectificação do quesito 1 ° da base instrutória tudo face à violação do princípio do contraditório art. 3° n°3 do Cód. Proc. Civil e art. 153° n°, 1 e n °2 do Cód. Proc. Civil ”.
Este requerimento da Ré ora Agravante foi objecto do seguinte despacho (ora recorrido):
Requerimento de fls. 103/104:
Vistos os autos, afigura-se que a 1ª parte do despacho de Fls. 77 de 12-12-2003, não padece do vício de nulidade apontado pela Ré. Com efeito, tendo sido proferido sobre requerimento da Autora antes da resposta da Ré, sem observância do princípio do contraditório, a omissão desta formalidade processual, atenta a simplicidade da questão em causa, não teve influência na apreciação do objecto processual.
Configurando-se assim uma mera irregularidade e não nulidade apontada pela Ré.
Pelo que indefiro o requerido.
Custas do incidente a cargo da Ré. Taxa de justiça – mínima.
Quid juris ?
Desde que a Ré ora Agravante não interpôs recurso do despacho (datado de 12/12/2003) que deferiu favoravelmente o requerimento da Autora/Agravada de 4/12/2003, no qual esta, invocando a existência dum lapso de escrita no teor do artigo 7º da petição inicial, no que concerne à identificação da matrícula da viatura automóvel nele referida, solicitara a rectificação de tal lapso e a consequente rectificação do teor do Quesito 1º da Base Instrutória, o mesmo despacho transitou em julgado, nos termos do art. 677º do Cód. Proc. Civil.
Ora, os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual - como o referido despacho datado de 12/12/2003 – têm força obrigatória dentro do processo, salvo se por sua natureza não admitirem o recurso de agravo (o que não é o caso).
Consequentemente, tal despacho, independentemente do seu acerto ou desacerto, não podia (em lugar de tempestivamente posto em crise por meio de recurso) ser arguido de nulo, nos termos do art. 201º, nºs 1 e 2, do CPC – como fez a ora Agravante, no seu requerimento (constante de fls. 103 e 104) no qual invocou a nulidade processual inerente à não obediência do princípio do contraditório quanto ao requerimento da Autora/Agravada em que pretendera ver corrigido o seu art. 7° da petição inicial, e pediu ao próprio tribunal “a quo” que declarasse a nulidade do seu despacho de 12/12/2003, que ordenara a rectificação solicitada pela Autora (a fls. 76) e, consequentemente, ordenara a rectificação do quesito 1º da base instrutória.
Efectivamente, constitui, desde há muito, orientação doutrinal e jurisprudencial uniforme que a violação das normas processuais, sempre que directa ou indirectamente, esteja coberta ou resulte de uma decisão judicial, da qual caiba recurso ordinário, é no âmbito deste recurso, e não através de reclamação perante o autor da decisão, que deve ser atacada tal violação: «se é o tribunal que profere despacho ou acórdão com infracção de disposição da lei, a parte prejudicada não deve reagir mediante reclamação por nulidade, mas mediante interposição de recurso»(5)(6).
Isto porque: «A reclamação por nulidade tem cabimento quando as partes ou os funcionários judiciais praticam ou omitem actos que a lei não admite ou prescreve; mas se a nulidade é consequência de decisão judicial, se é o tribunal que profere despacho ou acórdão com infracção de disposição da lei, a parte prejudicada não deve reagir mediante reclamação por nulidade, mas mediante interposição de recurso»(7). «É que, na hipótese, a nulidade está coberta por uma decisão judicial e o que importa é impugnar a decisão contrária à lei; ora as decisões impugnam-se por meio de recursos (art. 677º) e não por meio de arguição de nulidade do processo»(8).
Como assim, no caso dos autos, tendo transitado em julgado, por não ter sido tempestivamente posto em crise por meio de recurso, o despacho (datado de 12/12/2003) que deferiu favoravelmente o requerimento da Autora/Agravada de 4/12/2003, no qual esta, invocando a existência dum lapso de escrita no teor do artigo 7º da petição inicial, no que concerne à identificação da matrícula da viatura automóvel nele referida, solicitara a rectificação de tal lapso e a consequente rectificação do teor do Quesito 1º da Base Instrutória, o requerimento no qual a Ré ora Agravante veio posteriormente arguir a pretensa nulidade em que incorrera aquele despacho, por violação do princípio do contraditório quanto ao requerimento da Autora/Agravada em que solicitara a correcção do seu art. 7° da petição inicial, só podia – como foi – ter sido indeferido.
A esta luz, o despacho ora agravado não merece qualquer censura, pelo que o agravo não logra obter provimento.

B) O MÉRITO DA APELAÇÃO
Sustenta a Ré/Apelante que devem dar-se por não escritas (nos termos do artigo 646º, nº 4, do Código de Processo Civil) as respostas dadas pelo tribunal “a quo” aos quesitos 2º e 3º da base instrutória, já que os factos neles indagados estão plenamente provados por terem sido admitidos por acordo das partes, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 463°, 493°, n° 3, 785º, 505° e 490º, todos do Cód. Proc. Civil. Isto porque a Autora não respondeu àquela excepção peremptória invocada pela Ré na sua contestação, ao alegar que as reparações cujo preço é reclamado pela Autora na presente acção foram feitas na pendência do período de garantia de bom funcionamento a que a Autora estava obrigada.
Quid juris ?
Afigura-se incontroverso que a Ré ora Apelante se defendeu por excepção (e não por impugnação) quando alegou (na sua contestação) que as reparações cujo preço é reclamado pela Autora na presente acção foram feitas na pendência do período de garantia de bom funcionamento a que a Autora estava obrigada e também que a reparação aludida na factura nº 53.585 está coberta pelo seguro.
Tais factos servem, efectivamente, no plano substantivo, de causa impeditiva do direito que a Autora/Apelada se arroga, na presente acção, a obter da Ré/Apelante o pagamento do preço das reparações que aquela, a pedido desta, efectuou em três veículos automóveis, bem como o reembolso, por si pago a um terceiro a pedido da Ré, do custo da reparação dum outro veículo automóvel, tudo no montante global de € 13.668,47 (cfr. o artigo 487º, nº 2, do Cód. Proc. Civil).
Assim sendo, a ora Apelada podia, nos termos do art. 785º do C.P.C., ter respondido à contestação, quanto à matéria da aludida excepção.
Como, porém, o não fez, a consequência da não apresentação desse articulado de resposta à contestação é, nos termos do artigo 505º do C.P.C. (aplicável ao processo sumário de declaração ex vi do art. 463º, nº 1, do mesmo diploma), a prevista no artigo 490º do mesmo Código: terem-se por provados por admissão, em termos idênticos e com as mesmas excepções previstas no art. 490º, os factos que a Ré alegou como fundamento da excepção que deduziu na sua contestação.
Efectivamente, «o autor e o réu estão, na réplica e na tréplica, sujeitos ao ónus de impugnação especificada, quanto aos factos alegados em articulado anterior, em sede, respectivamente, de excepção, reconvenção ou alegação dos factos constitutivos do direito ou facto negado pelo autor (réplica) ou de excepção à reconvenção ou modificação do pedido ou da causa de pedir (tréplica)»(9).
«Por isso, a não apresentação do articulado, quando este é admissível, ou a falta de impugnação, nele, dos factos do articulado anterior respeitantes a esses domínios tem, em regra, o mesmo efeito de admissão que a não impugnação em contestação apresentada, com as mesmas excepções que para esta vigoram» (10).
Assim sendo, as respostas (de “não provado”) dadas pelo tribunal “a quo” aos quesitos 2º e 3º da Base Instrutória (nos quais se indagavam precisamente os aludidos factos alegados pela Ré, na sua contestação, configuradores duma excepção peremptória inominada, à qual a Autora não respondeu, como lhe era facultado pelo art. 785º do C.P.C.), não podem deixar de ser consideradas não escritas, ex vi do cit. art. 646º, nº 4, do Cód. Proc. Civil.

A esta luz, a sentença ora sob censura não pode subsistir intocada.
Efectivamente, uma vez assente (por acordo das partes, nos termos das citadas disposições conjugadas dos arts. 463°, 493°, n° 3, 785º, 505° e 490º, todos do Cód. Proc. Civil) que as reparações cujo preço é reclamado pela Autora na presente acção foram feitas na pendência do período de garantia de bom funcionamento a que a Autora estava obrigada e também que a reparação aludida na factura nº 53.585 está coberta pelo seguro, é manifesto que a Ré/Apelante não está obrigada a pagar à Autora/Apelada o custo das mencionadas reparações.
Na verdade, pode acontecer que, por convenção ou por força dos usos, o vendedor esteja obrigado a garantir o bom funcionamento do bem vendido – art.921º do C.Civil. Neste caso, o comprador tem direito a exigir a reparação da coisa ou, se for necessário e tiver natureza fungível, a sua substituição, independentemente de culpa do vendedor ou de erro seu (do comprador).
Como assim, a garantia de bom funcionamento tem o significado e os efeitos de uma obrigação de resultado, na medida em que, durante a sua vigência, o vendedor assegura o regular funcionamento da coisa vendida (11).
Por isso, dessa garantia resulta uma presunção ilidível de que o vício ou defeito que a coisa venha a revelar após a entrega já existia nessa data, o que tem importantes reflexos na questão do ónus da prova.
Assim, para o exercício dos direitos cobertos pela garantia, o comprador apenas terá de alegar e provar o mau funcionamento da coisa, durante o prazo da garantia, sem necessidade de alegar e provar a específica causa do mau funcionamento e a sua existência à data da entrega. Ao vendedor, para se ilibar da responsabilidade, incumbirá alegar e provar que a causa do mau funcionamento é posterior à entrega da coisa vendida e imputável ao comprador, a terceiro ou devida a caso fortuito (cfr., neste sentido, os Acs. do STJ de 3/4/1991 e de 10/7/2001, sumariados em http://www.dgsi.pt/jstj, respectivamente, 00008744 e 00041923 e de 3/4/2003, no mesmo sítio, processo n.º 03B809) (12).
Consequentemente, no caso dos autos, a Ré/Apelante apenas está obrigada a pagar à Autora/Apelada o preço da reparação, feita por esta a pedido daquela, do veículo automóvel de matrícula 65-75-IO, no valor de 781,12 Euros, a que se refere a factura nº 53.626, datada de 21/11/2000 (cfr. a resposta afirmativa dada ao Quesito 1º da Base Instrutória).
Eis por que a presente Apelação procede, em parte, no que concerne às reparações aludidas nas facturas nºs J010189 (no montante de 2.455,04 Euros), 53.584 (no montante de 1.101,04 Euros), 53.766 (no montante de 1.525,49 Euros), 53.938 (no montante de 1.470,52 Euros), 50.036 (no valor de 313,95 Euros), 50.364 (no montante de 5.210,12 Euros) e 53.585 (no valor de 908,18 Euros), apenas podendo subsistir a sentença recorrida, no segmento em que condenou a Ré a pagar à Autora a quantia de 781,12 Euros, acrescida de juros moratórios, vencidos e vincendos, contados à taxa anual de 12% até 30/04/2003 e de 9% desde 01/05/2003, desde 21/11/2000 até integral pagamento.
DECISÃO
Acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao Agravo e em conceder parcial provimento à Apelação, alterando a sentença recorrida, no segmento em que condenou a Ré/Apelante no pagamento à Autora/Apelada das facturas nºs J010189 (no montante de 2.455,04 Euros), 53.584 (no montante de 1.101,04 Euros), 53.766 (no montante de 1.525,49 Euros), 53.938 (no montante de 1.470,52 Euros), 50.036 (no valor de 313,95 Euros), 50.364 (no montante de 5.210,12 Euros) e 53.585 (no valor de 908,18 Euros), quantias de cujo pagamento a Ré/Apelante é absolvida, apenas se mantendo a sua condenação no pagamento à Autora/Apelada da quantia de 781,12 Euros, acrescida de juros moratórios, vencidos e vincendos, contados à taxa anual de 12% até 30/04/2003 e de 9% desde 01/05/2003, desde 21/11/2000 até integral pagamento.
Custas da acção a cargo da Autora e da Ré, na proporção dos respectivos decaimentos.
A Apelante suportará 1/20 das custas da Apelação.
Lisboa, 18/9/2007
Rui Torres Vouga (Relator)
Paulo Rijo Ferreira (1º Adjunto): voto a decisão quanto ao agravo
Afonso Henrique (2º Adjunto)
___________________________________
1 - Cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363.
2 - Cfr., também neste sentido, os Acórdãos do STJ de 6/5/1987 (in Tribuna da Justiça, nºs 32/33, p. 30), de 13/3/1991 (in Actualidade Jurídica, nº 17, p. 3), de 12/12/1995 (in BMJ nº 452, p. 385) e de 14/4/1999 (in BMJ nº 486, p. 279).
3 - O que, na alegação (rectius, nas suas conclusões), o recorrente não pode é ampliar o objecto do recurso anteriormente definido (no requerimento de interposição de recurso).
4 - A restrição do objecto do recurso pode resultar do simples facto de, nas conclusões, o recorrente impugnar apenas a solução dada a uma determinada questão: cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 308-309 e 363), CASTRO MENDES (in “Direito Processual Civil”, 3º, p. 65) e RODRIGUES BASTOS (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. 3º, 1972, pp. 286 e 299).
5 - ALBERTO DOS REIS in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. V, p. 424.
6 - Cfr., igualmente no sentido de que, «se a nulidade está coberta por uma decisão judicial (despacho) que ordenou, autorizou ou sancionou o respectivo acto ou omissão, em tal caso o meio próprio para a arguir não é a simples reclamação, mas o recurso competente, a deduzir (interpor) e tramitar como qualquer outro do mesmo tipo. É a doutrina tradicional, condensada na máxima: dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se», MANUEL DE ANDRADE in “Noções Elementares de Processo Civil”, 1979, p. 183.
7 - ALBERTO DOS REIS, ibidem.
8 - ALBERTO DOS REIS, ibidem.
9 - LEBRE DE FREITAS-MONTALVÃO MACHADO-RUI PINTO in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, 2001, p. 337.
10 - LEBRE DE FREITAS-MONTALVÃO MACHADO-RUI PINTO, ibidem.
11 - Cfr., neste sentido, o Ac. da Rel. do Porto de 19/2/2004, proferido no Proc. nº 0326797 e relatado pelo Desembargador FERNANDO SAMÕES, cujo texto integral pode ser acedido, via Internet, no sítio http://www.dgsi.pt.
12 - Cfr., também no sentido de que, «na compra e venda, o facto de o vendedor assumir a garantia de um resultado, tem importância no domínio do ónus probandi: ao comprador basta fazer a prova do mau funcionamento da coisa no período de duração da garantia, sem necessidade de identificar ou individualizar a causa concreta impeditiva de resultado prometido e assegurado, nem de provar a sua existência no momento da entrega; ao vendedor que queira ilibar-se da responsabilidade é que cabe a prova de que a causa concreta do mau funcionamento é posterior à entrega da coisa, assim ilidindo a presunção da anterioridade ou contemporaneidade do defeito que caracteriza a garantia convencional», o Ac. da Rel. do Porto de 18/6/2007, proferido no Proc. nº 0751464 e relatado pelo Desembargador ABÍLIO COSTA, cujo texto integral pode ser acedido, via Internet, no sítio http://www.dgsi.pt.