Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2160/22.0T8SNT-E.L1-1
Relator: ISABEL FONSECA
Descritores: CASA DE HABITAÇÃO
INSOLVENTE
DIFERIMENTO DA DESOCUPAÇÃO
OPORTUNIDADE DO PEDIDO
INDEFERIMENTO LIMINAR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. Tendo o pedido de diferimento da desocupação da casa de habitação dos insolventes sido formulado por estes ao abrigo do disposto no art.º 864.º do CPC, invocando “razões sociais imperiosas”, na sequência do que dispõe o art.150.º nº5 do CIRE, o pedido só é oportuno quando formulado na fase da apreensão de bens, a que aludem os art.ºs 149.º a 152.º, do CIRE, preceitos inseridos no Capítulo I (“[p]rovidências conservatórias) do Título VI desse diploma.

2. Sendo esse pedido formulado depois de encetada a fase da liquidação e no decurso desta, tendo já sido realizadas diligências de venda do bem imóvel, por leilão eletrónico, impõe-se o indeferimento liminar da petição de diferimento da desocupação, nos termos do art.º 865.º, nº1, alínea a) do CPC, isto é, com base na intempestividade do pedido.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as Juízas da 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa 
 
I. RELATÓRIO
Ação
Insolvência pessoa singular (Apresentação).
Insolventes
BO e marido, DO.
Requerentes/apelantes
Em 20-10-2022 os insolventes apresentaram requerimento com o seguinte teor:
“(…) Insolventes nos autos à margem identificados e nos mesmos melhor i.d., vêm, nos termos do art.ºs 862.º e 864.º do CPC, aplicáveis ex vi pelo n.º 5 do artigo 150.º do CIRE, requerer o
 DIFERIMENTO DE DESOCUPAÇÃO DE IMÓVEL
 Nos termos e com os fundamentos seguintes:
 1. Os insolventes foram declarados insolventes por sentença, já transitada em julgado, proferida em 08 de Fevereiro de 2022, ou seja, há pouco mais de 10 meses.
 2. Os insolventes residem no imóvel aprendido nos presentes autos: Prédio Urbano - Fração autónoma (…). Valor Patrimonial de €59.682,00 (cinquenta nove mil seiscentos oitenta dois euros).
 3. O imóvel acima identificado constitui a única casa de habitação dos insolventes desde o momento em que o adquiriram no ano de 2001, pois é no mesmo que estes habitam, pernoitam, recebem visitas, fazem a sua higiene e tomam as suas refeições. 
 4. O imóvel dos autos é a efectiva e única residência dos Insolventes e constitui o seu centro de vida.
 5. O imóvel sub judice foi licitado por €125.184,85 através da plataforma e-leilões em 14 de Setembro de 2022 – Cfr. doc. 1.
 6. Ainda não foi outorgada a escritura pública do imóvel sub judice, nem há previsão de quando se irá realizar. 
 7. Apesar dos seus esforços - Cfr. doc. 2, 3 e 4, os insolventes ainda não conseguiram uma outra habitação onde possam residir.
 8. Os insolventes ainda não obtiveram qualquer resposta às comunicações supra referidas.
 9. Os insolventes são pessoas idosas, ambos reformados.
 10. A insolvente BO aufere uma pensão mensal no valor de €296,28, e o insolvente DO, seu marido, aufere uma pensão mensal no valor de €626,55 – Cfr. consta da sentença (facto provado) a fls.., não tendo, qualquer um deles, outra fonte de rendimento.
 11. Os insolventes ainda não conseguiram uma habitação para arrendar quer porque o mercado de arrendamento está com pouca oferta e muita procura, quer porque os senhorios além de exigirem rendas elevadas ainda exigem o pagamento adiantado de 2 rendas e fiadores, e muitos deles exigem ainda a análise da situação financeira dos arrendatários através do seu IRS.
 12. Na maior parte dos casos, muitos senhorios exigem que os insolventes declarem que não estão em situação de insolvência ou mesmo de pré-insolvência, o que dificulta ainda mais a procura de uma habitação.
 13. Às dificuldades económicas dos insolventes, acrescem ainda problemas de saúde de ambos, são ambos hipertensos, necessitando de medicação diária e permanente.
 14. “O prazo de diferimento da desocupação se destina a permitir ao requerente que se encontra em situação de particular carência ou dificuldade, e que terá necessariamente que desocupar o local, um último prazo minimamente razoável para obter um alojamento alternativo - cfr. Maria Olinda Garcia, "A Ação Executiva para Entrega de Imóvel Arrendado segundo a Lei 6/2006, de 27 de fevereiro", 2ª ed., 2008, pág. 92.
15. O prazo deverá ser fixado por V. Exa. em função do tempo que, nas específicas circunstâncias sócio-económicas dos insolventes, bem como do mercado de arrendamento e/ou da habitação social com que os mesmos se deparas, se deve entender como o adequado para resolver a situação de carência de habitação que a venda do imóvel coloca.
 16. Infelizmente, os Insolventes não estão em condições económicas de obter nos próximos meses de uma nova habitação que não seja por meio de subsidiação ou ajuda social organizada, sendo certo que há falta de casas socias disponíveis no concelho de Sintra (os insolventes esperam um agendamento), o que tudo aponta para a necessidade de lhes ser facultado um prazo não inferior a 5 (cinco) meses para desocupar o imóvel dos autos.
 17. O prazo de 5 meses afigura-se como perfeitamente razoável em face das circunstâncias acima referidas.
 18. Dentro das exigências da boa-fé a que a lei manda atender neste particular, não será imputável aos insolventes o insucesso até agora verificado na resolução do problema habitacional, não sequer se poderá afirmar que os insolventes negligenciaram na busca de uma alternativa.
 19. Perante as circunstâncias acima descritas, é de concluir que, no caso dos insolventes, a desocupação da habitação num prazo inferior a 5 meses causaria aos insolvente um prejuízo muito superior à vantagem conferida aos credores, tanto mais que, para além de o prédio já ter sido licitado, a concessão do prazo de 5 meses para desocupar o imóvel não se apresenta como obstáculo à celebração da escritura, certo que não é pelo facto de os insolentes ainda o não terem desocupado que o imóvel deixará de ser vendido desonerado.
 20. Sem prejuízo da apreensão, o n.º 5 do art.º 150º do CIRE estatui que “À desocupação de casa de habitação onde resida habitualmente o insolvente é aplicável o disposto no artigo 862.º do Código de Processo Civil.”.
21. Pretendeu assim o legislador do CIRE que o insolvente (que presumivelmente encontra-se numa situação de maior gravidade do que a do executado) beneficiasse dos direitos concedidos aos inquilinos de habitação nos termos dos artigos 863.º a 866.º do CPC., como salvaguarda do direito à habitação previsto no art.º 65º da Constituição da República.
 22. Na apreciação do pedido deve o Tribunal ter em consideração as exigências da boa fé, a circunstância do insolvente não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que com ele habitam, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas – cfr. Art.º 864.º n.º 2, 1.ª parte, do CPC.
 23. Os insolventes não dispõem de outra habitação – Cfr. doc. 5 e 6.
 24. O prazo de deferimento da desocupação destina-se a permitir aos insolventes que se encontra em situação de particular carência ou dificuldade (que é exactamente o caso dos autos), e que terá necessariamente que desocupar o local, um último e derradeiro prazo minimamente razoável para obter alojamento alternativo.
 25. Este “prazo é determinante para estabelecer o termo da ocupação, pois uma vez atingido o seu termo o insolvente tem que proceder à entrega do local, ainda que se mantenha o seu problema de natureza pessoal. Por outro lado, sem se estabelecer um termo final não pode ser ordenada a restituição à posse do adquirente.”  Acórdão da Relação do Porto de 14.9. 2015, processo 5582/12.1TBMTS-F.P1 
 Termos em que muito respeitosamente, e sempre com o Mui Douto suprimento de V. Exa., se requer a V. Exa. se digne a conceder aos Insolventes um prazo de diferimento de desocupação do imóvel dos autos por um período não inferior a cinco meses nos termos e ao abrigo do art.º 862.º, 864.º, aplicáveis por via do n.º 5 do art.º 150.º do CIRE
Testemunha: a apresentar.
Junta: 6 documentos”.
 
Decisão recorrida
Sobre esse requerimento recaiu decisão, com o seguinte teor, proferida em 22-10-2022:
“(…) Prescreve o art.º 150º, n.º 5, do CIRE que “À desocupação de casa de habitação onde resida habitualmente o insolvente é aplicável o disposto no artigo 862.º do Código de Processo Civil.”.
 Sistematicamente, o preceito em causa integra-se no capítulo dedicado à apreensão de bens em sede de insolvência, não sendo viável o recurso ao mecanismo em causa no domínio do decurso liquidação do ativo.
Como se refere no Ac. do TRP, de 14.05.2020, proc. 3910/06 TBSTS-L.P1, in www.dgsi.pt (pesquisa através do motor de pesquisa Google, mediante a utilização dos termos: “diferimento de desocupação do locado insolvência prazo”)
“Portanto, quando o n.º 5 do artigo 150.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas prevê a aplicação do disposto no artigo 862.º do Código de Processo Civil à desocupação de casa de habitação onde resida habitualmente o insolvente, o seu campo de aplicação é o do momento da realização da apreensão dos bens para a massa insolvente quando o administrador da insolvência pedir a entrega do bem para concretizar essa apreensão.
Ao invés do que está pressuposto no pedido da insolvente, essa disposição legal já não se aplica na fase da liquidação dos bens, isto é, quando a entrega for pedida para fazer a entrega do bem ao adquirente do mesmo na venda realizada na liquidação da massa insolvente e obtenção do produto para distribuir pelos credores.”
No caso em apreço, os devedores apresentaram-se voluntariamente à insolvência em 04 fevereiro, o imóvel foi apreendido em a liquidação decorreu com a aceitação de proposta apresenta no âmbito de leilão eletrónico, com aceitação da melhor proposta e depósito da caução pelo aquirente, mantendo-se os mesmos a residir no imóvel desde aquela data, sem pagamento de qualquer contrapartida.
Neste contexto de final da liquidação do ativo, a dedução em 20.10.2022, do incidente de diferimento de desocupação, no quadro do processo de insolvência, mostra-se extemporânea, nos termos do disposto no art.º 865º, n.º1, al. a), ex vi do art.º 150º, n.º 1 e n.º 5, do CIRE.
Pelo que, indefere-se liminarmente o requerido – art.º 865º, n.º1, al. a), ex vi do art.º 150º, n.º1 e n.º 5, do CIRE.
Notifique”.

Recurso
Não se conformando, os insolventes apelaram, formulando as seguintes conclusões:
“1. Entendeu o Tribunal “a quo” no Despacho recorrido que o pedido de diferimento de desocupação do imóvel deve ser efectuado no momento da apreensão dos bens quando o administrador da insolvência pedir a entrega do bem para concretizar essa apreensão e não na fase de liquidação da messa insolvente.
2. Com o devido respeito, que é muito e com muita vénia, os Recorrentes não concordam nem se conformam com tal entendimento, pois, sem prejuízo do disposto no art.º 150º do CIRE, conforme dispõem os art.º 755.º do CPC, aplicável ex vi art.º 17.º do CIRE, apreensão para a massa insolvente de bens sujeitos a registo realiza-se pelo registo da sentença de declaração da insolvência no serviço de registo competente.       
3. Não consta dos autos qualquer documento comprovativo do registo da declaração da sentença da insolvência no serviço de registo competente, tampouco está nos autos a certidão comprovativa do mesmo ou o código de acesso a tal registo.
Donde, em bom rigor
4. não se pode considerar que o imóvel dos autos esteja efectivamente apreendido.
5. Pelo exposto, e contrariamente ao referido no Despacho recorrido, a apreensão do imóvel dos autos não se efectivou com o pedido de entrega do bem por parte do Administrador da Insolvência.
De todo o modo…
6. nos termos do art.º 150.º do CIRE, ao efectuar a apreensão dos bens da massa insolvente, o Administrador da Insolvência tem obrigatoriamente de elaborar um auto, constituindo este título constitutivo da apreensão.
7. Ora, no caso dos autos não existe um auto de apreensão do imóvel sub judice.
8. É só a partir da data da realização da diligência de apreensão do imóvel dos autos (com a elaboração do respectivo auto) que eventualmente começa a contar o prazo para os Insolventes requererem o diferimento de desocupação do imóvel.
9. Assim, não tendo o Administrador da Insolvência elaborado o competente Auto de Apreensão do imóvel dos autos, o pedido de diferimento de desocupação do imóvel sub judice é tempestivo.
10. O Mm.º Juiz do Tribunal “a quo” violou no Despacho recorrido o disposto nos art.ºs 862.º, 864.º, 865.º, ex vi do art.º 150.º, n.º 5, do CIRE.
Termos em que, com o Mui Douto Suprimento de V. Exas., Meritíssimos Juízes Desembargadores, deverá o presente recurso, que é de Apelação, ser admitido e ser-lhe atribuído efeito suspensivo por força do disposto na alínea na 2ª parte da alínea b) do n.º 3 do artigo 647.º do Cód. Proc. Civil, por respeitar “à posse da casa de habitação”.
Apreciando o mérito do presente recurso, deverão V. Exas., Meritíssimos Juízes Desembargadores, com a devida vénia, e com muito respeito por este Tribunal, que é muito, considerar procedente o presente recurso, por provado, revogando a decisão recorrida e ordenando a baixa do processo para o Tribunal “a quo” e impondo o prosseguimento dos ulteriores termos para apreciação do incidente de diferimento de desocupação do imóvel formulado pelos ora Recorrentes.
Agindo assim, farão V. Exas. Juízes Desembargadores a costumada e desejada JUSTIÇA”

Não foram apresentadas contra-alegações [ [1] ].
Cumpre apreciar.

II. FUNDAMENTOS DE FACTO
O tribunal de primeira instância deu por assente o seguinte circunstancialismo:
1. BO e seu marido, DO, apresentaram-se à insolvência em 04.02.2022 e requereram, simultaneamente, a concessão do benefício de exoneração do passivo restante.
2. Por sentença proferida em 08.02.2022 foi declarada a insolvência dos requerentes.
3. Em 24.03.2022 o administrador da insolvência apresentou o relatório previsto no art.º 155.º do CIRE e propôs o prosseguimento dos autos para a liquidação do ativo.
4. Em 24.03.2022 o administrador da insolvência apresentou o auto de apreensão de bens, descrevendo como verba n.º 1 o imóvel acima descrito [ [2] ].
5. Por carta registada, remetida a 25.03.2022, recebida pelos devedores em 29.03.2022, o administrador da insolvência notificou-os para procederem à entrega do imóvel no prazo máximo de 30 dias.
6. O registo da declaração de insolvência mostra-se efetuado na descrição predial desde 31.03.2022 [ [3] ] [ [4] ].
7. Por requerimento apresentado a 06.04.2022, na sequência do recebimento da carta supra aludida, os devedores solicitaram que o teor da carta remetida pelo administrador da insolvência ficasse destituída de efeito e fossem os mesmos nomeados depositários até à data da concretização da compra e venda do mesmo (por se tratar da casa de habitação).
8. Mais mencionaram que a entrega do imóvel encontra-se prejudicada na sequência do teor da alínea b) do n.º 7 do art.º 6-E da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março (RESPOSTA À SITUAÇÃO EPIDEMIOLÓGICA PROVOCADA PELO CORONAVÍRUS SARS-COV-2), com a redação que lhe foi dada pela Lei n.º 13- B/2021, de 05 de Abril, cujo teor abaixo se transcreve, que determinou a suspensão de todos os atos a realizar em sede de processo de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família, razão pela qual também se deverá considerar a carta em apreço sem qualquer efeito.
9. Por despacho proferido a 02.05.2022 foi determinado o prosseguimento dos autos para liquidação do ativo, foi proferido despacho inicial no âmbito da exoneração do passivo restante, fixando o montante a ceder pelos devedores em tudo o que exceda o equivalente a 2 RMMG, bem como, a quantia que exceder o correspondente a 75% dos subsídios de férias e de Natal recebidos pelos insolventes.
E foi determinado que os insolventes ficassem depositários do imóvel até à concretização da venda, conquanto não criassem entraves no exercício de funções pelo administrador da insolvência, sendo ainda certo que, tendo promovido a própria apresentação à insolvência estavam cientes da necessidade de entrega do imóvel a breve prazo.
10. Mediante requerimento de 09.06.2022, o administrador da insolvência comunicou que, apesar de ter combinado previamente com os devedores uma visita de interessados na aquisição do imóvel, não foi dado o acesso ao imóvel, apesar de várias tentativas de comunicação com os insolventes estes não permitiram a efetivação das diligências.
11. Mediante requerimento de 22.06.2022, os devedores justificaram a ocorrência relatada com a ida a urgência hospitalar, juntando declaração de comparência.
12. Em 28.07.2022 os requerentes solicitaram a destituição do administrador da insolvência com fundamento em justa causa.
13. Por requerimento de 05.09.2022, os devedores requereram a suspensão do leilão eletrónico em curso, e a suspensão imediata do processo de venda do imóvel dos autos nos termos e ao abrigo do n.º 8 do art.º 6.º-E da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, ao que os credores se opuseram.
14. Mediante requerimento de 21.09.2022, os devedores informaram que, por carta de 19.09.2022, o administrador da insolvência solicitou-lhes que procedessem à entrega das chaves do imóvel no prazo máximo de 20 dias, entregando-o mesmo livre de pessoas e bens, e solicitaram ao tribunal que desse sem efeito o teor da carta, declarando que o imóvel constitui a casa de morada de família dos insolventes e que, por via do disposto na alínea b) do n.º 7 do art.º 6.º-E da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, se encontram suspensos todos os atos relacionados com a entrega do imóvel dos autos, desobrigando, por consequência, os insolventes de entregar as chaves do mesmo até que seja revogada a disposição legal atrás referida.
15. Por despacho de 30.09.2022, foi indeferido o pedido de destituição do administrador da insolvência, decisão da qual foi interposto recurso, bem como indeferiu o pedido de ser declarada sem efeito a carta remetida e ordenou a notificação dos insolventes para, no prazo de 30 dias, procederem à entrega do imóvel apreendido e objeto de liquidação neste processo ao administrador da insolvência, decisão que se encontra pendente de recurso.
16. O leilão eletrónico para venda do imóvel terminou no dia 14 de setembro de 2022, com os seguintes resultados: A Verba n.º 1, (…) Sintra, teve a melhor proposta no valor de €125.184,85 (cento vinte cinco mil cento oitenta quatro euros e oitenta cinco cêntimos) apresentada po Q Lda, (…).
17. A proposta para a Verba n.º 1 foi aceite e lavrado o Auto de Aceitação da Proposta, depositado na conta da massa Insolvente o valor de 20% do preço da proposta, ou seja, a quantia de € 25. 036,97 (vinte cinco mil trinta seis euros noventa e sete cêntimos) como caução e princípio de pagamento.
18. O montante dos créditos reclamados ascende ao montante de € 220.106,17.
19. A Insolvente recebe uma pensão de sobrevivência no valor mensal de €296,28.
20. O Insolvente recebe uma pensão de reforma por velhice no valor mensal de €626,55.
21. Os insolventes residem no imóvel sem se encontrarem a pagar qualquer quantia.
*
Esta Relação dá ainda por assente, ao abrigo do disposto nos art.ºs 607.º, nº4, 2ª parte, ex vi do disposto no art.º 663.º nº2 e 662.º nº1 do CPC, o circunstancialismo que a seguir se indica, ponderando os elementos constantes do apenso C:
22. Em 19-01-2023 o administrador da insolvência informou nos autos como segue:
“(…) vem, nos termos do art.º 61º, informar:
1- Na sequência do despacho proferido no processo principal, em 02/12/2022, a conceder aos insolventes o prazo de 60 dias, improrrogáveis, para desocuparem o imóvel (apreendido sob a verba n.º 1, do Auto de Apreensão de Bens), o A.I. aguarda o decurso do prazo concedido.
2- Até ao momento, o imóvel não foi entregue ao A.I.
3- A escritura de compra e venda será outorgada logo que o imóvel esteja disponível para entregar ao comprador com o recebimento do remanescente do preço.
4- É o que cumpre informar”.
 
III- FUNDAMENTOS DE DIREITO
1. Sendo o objeto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela apelante e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – art.ºs 635.º e 639.º do CPC – salientando-se, no entanto, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito – art.º 5.º, nº3 do mesmo diploma.
No caso, ponderando as conclusões de recurso, impõe-se apreciar se a pretensão de “diferimento de desocupação do imóvel” foi formulada pelos insolventes tempestivamente.

2. A primeira instância considerou intempestiva a formulação pelos insolventes da pretensão de “diferimento de desocupação do imóvel”, cremos que com razão, em face do regime legal aplicável e o estado dos autos aquando da formulação desse pedido, sendo que são aplicáveis subsidiariamente as disposições da lei processual civil, nos termos do art.º 17.º, nº1 do CIRE, diploma a que aludiremos quando não se fizer menção de origem.
Vejamos.
Na sentença que declara a insolvência o juiz “[d]ecreta a apreensão, para imediata entrega ao administrador da insolvência, dos elementos da contabilidade do devedor e de todos os seus bens, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos e sem prejuízo do disposto no n.º 1 do artigo 150.º” (art.º 36.º, nº1, alínea g).
No título VI ([“a]dministração e liquidação da massa insolvente) o legislador regula a matéria alusiva às “[p]rovidências conservatórias” – capítulo I, artigos 149.º a 152.º–-, ao “[i]nventário, lista de credores e relatório do administrador da insolvência”– artigos 153.º a 155.º – e, por último, a “[l]iquidação” –, distinguindo, pois, de forma clara entre a fase da apreensão de bens e a fase subsequente, da liquidação.
Nos termos do art.º 150.º (“[e]ntrega dos bens apreendidos”), “[o] poder de apreensão resulta da declaração de insolvência, devendo o administrador da insolvência diligenciar, sem prejuízo do disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 756.º do Código de Processo Civil, no sentido de os bens lhe serem imediatamente entregues, para que deles fique depositário, regendo-se o depósito pelas normas gerais e, em especial, pelas que disciplinam o depósito judicial de bens penhorados” (nº1); e, nos termos do nº5, “[à] desocupação de casa de habitação onde resida habitualmente o insolvente é aplicável o disposto no artigo 862.º do Código de Processo Civil”; por força dessa remissão, sempre que “razões sociais imperiosas” o justifiquem, tem o insolvente a possibilidade de deduzir pretensão de diferimento da desocupação do imóvel em que habita, “devendo logo oferecer as provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar, até ao limite de três” (nº 1 do art.º 864.º). O pedido é decidido em função dos critérios estabelecidos no nº 2 do art.º 864.º, seguindo-se, com as necessárias adaptações, a tramitação estabelecida no art.º 865.º [ [5] ].
O art.º 865,º, nº 1 do CPC dispõe como segue:
“1 - A petição de diferimento da desocupação assume caráter de urgência e é indeferida liminarmente quando:
a) Tiver sido deduzida fora do prazo;
b) O fundamento não se ajustar a algum dos referidos no artigo anterior;
c) For manifestamente improcedente”.
Em sede de execução – salientando-se que se trata de execução para entrega de coisa certa –, o pedido de diferimento da desocupação deve ser formulado no prazo para dedução da oposição (art.º 864.º, nº1 do CPC), não tendo cabimento reverter diretamente esta estipulação para o processo de insolvência, desde logo porque esta pode ser requerida pelo próprio devedor, como aqui aconteceu; assim, a aferição do pedido formulado pelo insolvente deve ser feita, necessariamente, em função da fase em que o processo de insolvência se encontra, afigurando-se-nos evidente, atenta a inserção sistemática do preceito, na Capítulo I, que o pedido de diferimento da desocupação só pode/deve ser formulado na fase da apreensão de bens; ultrapassada essa fase e abrindo-se a fase da liquidação, com as diligências encetadas pelo administrador da insolvência com vista à venda do imóvel habitado pelo insolvente, não mais tem cabimento, nem oportunidade, a dedução do pedido de diferimento da desocupação do imóvel habitado pelo insolvente.
Como bem se referiu no acórdão do TRP de 14-05-2020, mencionado na decisão recorrida [ [6] ]:
“Não é impeditiva da apreensão a aplicação dos n.ºs 1 e 2 do artigo 756.º do Código de Processo Civil, nos termos do qual se o bem constituir a casa de habitação do executado (por remissão, do insolvente) é ele que deve ser nomeado depositário. O que sucede é que embora continue a poder habitar a casa o executado/insolvente passa a fazê-lo na qualidade de depositário e por isso está obrigado a entregar a casa assim que tal lhe for pedido (artigo 1185.º do Código Civil).
Portanto, quando o n.º 5 do artigo 150.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas prevê a aplicação do disposto no artigo 862.º do Código de Processo Civil à desocupação de casa de habitação onde resida habitualmente o insolvente, o seu campo de aplicação é o do momento da realização da apreensão dos bens para a massa insolvente quando o administrador da insolvência pedir a entrega do bem para concretizar essa apreensão.
Ao invés do que está pressuposto no pedido da insolvente, essa disposição legal já não se aplica na fase da liquidação dos bens, isto é, quando a entrega for pedida para fazer a entrega do bem ao adquirente do mesmo na venda realizada na liquidação da massa insolvente e obtenção do produto para distribuir pelos credores”.
No caso em apreço, como resulta da factualidade relevante supra indicada, aquando da dedução do pedido de diferimento da desocupação (em 20-10-2022) já o administrador havia encetado as diligências de liquidação, tendo sido realizada a venda do imóvel (verba nº1) por leilão eletrónico, realizado em 14-09-2022, tendo o prédio sido objeto de proposta de compra, lavrado o respetivo “Auto de Aceitação da Proposta” e depositado na conta da massa Insolvente o valor de 20% do preço da proposta (€ 25. 036,97).
Ou seja, os insolventes não deduzem pedido de diferimento da desocupação com vista a obstar à entrega imediata e efetiva do imóvel que habitam, apreendido para a massa, ao administrador da insolvência, deduzem o pedido formulado com vista a obstar à entrega do imóvel ao adquirente do bem, em temos que, como a seguir se verá, não são aceitáveis.
Acrescente-se que os insolventes não deduziram o pedido em causa em tempo devido porquanto, porventura, esse pedido se afigurava desnecessário considerando a situação que os autos patenteiam: os insolventes/apelantes apresentaram-se à insolvência em 04-02-2022, a sentença que declarou a insolvência foi proferida em 08-02-2022 e os insolventes, pese embora a apreensão do imóvel para a massa tenha sido realizada em março de 2022, mantiveram-se no imóvel, nomeadamente a coberto do despacho proferido em 02-05-2022, em que “foi determinado que os insolventes ficassem depositários do imóvel até à concretização da venda, conquanto não criassem entraves no exercício de funções pelo administrador da insolvência” – cfr. a factualidade indicada sob o número 9 [ [7] ] [ [8] ].
Noutro contexto, diremos que o regime processual consagrado para a fase da liquidação, seja esta realizada no âmbito da execução (singular) para pagamento de quantia certa, seja no âmbito da insolvência, não se compadece com a formulação de pedidos de diferimento da desocupação como o que ora está em análise, “por razões sociais imperiosas”. Assim, o adquirente do bem em venda coerciva tem direito a receber os bens que adquire livre de ónus e encargos, devendo o bem ser entregue acompanhado do título de transmissão (art.º 824.º do Código Civil e art.º 827.º, nº1 do CPC); nos termos do art.º 828.º do CPC, o adquirente pode agir contra o detentor no próprio processo, podendo este obstar à entrega apenas por via do mecanismo a que alude o art.º 861.º, nº6 do CPC – atenta a remissão feita no citado preceito para o regime do referido art.º 861.º do CPC–, com a consequente possibilidade de suspensão da diligência executória no estrito condicionalismo indicado nos números 3 a 5 do art.º 863.º do CPC, que não se confunde com a ratio subjacente ao incidente de diferimento da desocupação.
Em suma, tendo o pedido de diferimento da desocupação da casa de habitação dos insolventes sido formulado por estes ao abrigo do disposto no art.º 864.º do CPC, invocando “razões sociais imperiosas”, na sequência do que dispõe o art.150.º nº5 do CIRE, o pedido só é oportuno quando formulado na fase da apreensão de bens, a que aludem os art.ºs 149.º a 152.º, inseridos no Capítulo I (“[p]rovidências conservatórias) do Título VI do CIRE; sendo esse pedido formulado depois de encetada a fase da liquidação e no decurso desta, tendo já sido realizadas diligências de venda do bem imóvel, por leilão eletrónico, impõe-se o indeferimento liminar da petição de diferimento da desocupação, nos termos do art.º 865.º, nº1, alínea a) do CPC. 
*
Pelo exposto, julgando improcedente a apelação, decide-se manter a decisão recorrida.
Custas pelos apelantes (art.º 527.º, nº1 do CPC).
Dê conhecimento deste acórdão aos recursos que estão em tramitação nesta Relação sob os apensos G) e H), se ainda aqui estiverem pendentes. 
Notifique.

Lisboa, 28-02-2023
Isabel Fonseca
Fátima Reis Silva
Amélia Sofia Rebelo
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[1] Notificado das alegações de recurso por comunicação de 28-10-2022, o administrador da insolvência apresentou requerimento, em 08-11-2022, peticionando a condenação dos insolventes como litigantes de má-fé, requerimento que foi, na sequência de despacho judicial de 02-12-2022, notificado aos insolventes e ao respetivo mandatário para estes responderem, o que fizeram, tendo o pedido do administrador da insolvência sido objeto de despacho de indeferimento.   
[2] Auto de apreensão que, conforme requerimento junto aos autos (apenso B) em 24-03-2022 pelo administrador da insolvência, foi realizado em 23-03-2022 e, além do imóvel ora em causa aí identificado, sob a verba nº1, abrange ainda um bem móvel (veículo automóvel com a matrícula xx-xx-xx, conforme correção do auto feita posteriormente, por requerimento de 28-03-2022) identificado sob a verba nº2.
[3] Conforme certidão junta pelo administrador da insolvência em 11-05-2022 (apenso B), mostra-se inscrita na CR Predial alusiva ao imóvel em causa, descrito nessa Conservatória sob o nº 97/20020722, a declaração de insolvência dos apelantes, proferida no presente processo de insolvência com o nº 2160/22.0T8SNT, mediante Ap 5215 de 2022/03/31 às 16:27:04. 
Quanto ao veículo apreendido, por requerimento de 12-05-2022 (apenso B) o administrador da insolvência juntou certidão comprovativa da CR Automóvel do registo da apreensão na insolvência, conforme nº 10541 de 31-03-2022.   
[4]   No apenso B foi aposto o visto em correição em 13-06-2022.
[5] Independentemente do proémio do nº 1 do art.º 865.º do CPC, no processo de insolvência e por força do art. 9.º do CIRE o incidente sempre teria caráter urgente.
[6] Processo: 3910/06.8TBSTS-L.P1 (Relator: Aristides Rodrigues de Almeida), acessível in www.dgsi.pt.
[7] Ponderando a data em que se apresentaram à insolvência e a presente data, os insolventes mantêm-se no imóvel há mais de um ano. Saliente-se que o prazo máximo permitido por lei para a concessão do diferimento da desocupação é de cinco meses a contar da data do trânsito em julgado da decisão que o concede (art. 865.º, nº4 do CPC), sendo evidente que o preceito potencia lides recursivas meramente dilatórias, a que o legislador foi, inexplicavelmente, insensível.      
[8] Ora, perspetivando tal despacho e na economia do mesmo, entende-se que já teve início a concretização da venda, que, aliás, só não terá sido ultimada atentas as vicissitudes que a factualidade assente evidencia – cfr., nomeadamente, a factualidade dada por assente sob o número 22 -, de sorte que, para o efeito ora em causa, temos por juridicamente irrelevante que a escritura ainda não tenha sido efetuada.