Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10839/14.4T2SNT-A.L1-7
Relator: CRISTINA SILVA MAXIMIANO
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
ACTA
AUGI
LEGITIMIDADE DO EXEQUENTE
PRESCRIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/14/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I  A legitimidade singular na execução apura-se por confronto ou comparação dos sujeitos da instância com o título executivo, ou seja, entre as partes e o título executivo.

II  Apela-se, pois, para a literalidade do título executivo, seja ele sentença, contrato, título de crédito ou qualquer outro, analisando-se o documento que constitui título executivo para definir quem tem interesse directo activo ou passivo na acção executiva, sem ser, por isso, de proceder à análise, para esse efeito, da relação material controvertida.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO

A intentou contra B, na qualidade de proprietário de 514/13840 avos do prédio rústico sito em Serra Chã, concelho de Odivelas, acção executiva para pagamento da quantia certa sob a forma de processo sumário, nos termos da qual requer a cobrança coerciva da quantia total de € 17.957,58, dos quais € 7.255,24 a título de “comparticipação devida por cada lote para as obras realizadas no Bairro anteriormente à entrada em vigor da Lei 91/95, de 2 de Setembro”, e € 8.647,45 a título de juros de mora vencidos sobre aquele montante, à taxa legal, desde 01/01/1995, apresentando como título executivo a acta nº 6 da reunião de 04/05/2013 da Assembleia de Proprietários e Comproprietários dos prédios integrados na AUGI (Área Urbana de Génese Ilegal), denominada “Bairro .....”.

O executado intentou os presentes embargos de executado, insurgindo-se contra a execução desta comparticipação e respectivos juros de mora, invocando para o efeito, em síntese útil:
i)-“ilegitimidade da exequente”, porquanto: tendo a Lei nº 91/95, de 02/09 - que regulou a constituição e funcionamento dos órgãos de administração dos prédio integrados na AUGI - entrado em vigor em 07/09/1995, a exequente não dispunha antes desta data de “personalidade e capacidade jurídica e, nesta medida, também não dispunha de personalidade e capacidade judiciária”, não sendo o diploma rectroactivamente aplicável a aspectos de organização e funcionamento das AUGI nos termos do art. 55º daquela Lei, norma que não tem tal alcance;
ii)-“inexequibilidade do título”, porquanto: a deliberação dele constante relativa à aprovação dos métodos e formas de cálculo das comparticipações para as despesas de reconversão e respectivos prazos de entrega apenas tem eficácia para o futuro; as despesas alegadamente realizadas pela comissão conjunta em data anterior a 1995 não se mostram justificadas ou demonstradas, nem foram objecto de qualquer deliberação nos termos e para os efeitos do disposto no art. 10º, nº 2, als. f) e g) da Lei nº 91/95, de 02/09, não valendo como tal a mera aprovação de uma lista dos comproprietários com comparticipações em dívida;
iii)-“falta de causa de pedir conforme ao título oferecido à execução”, porquanto: o executado adquiriu 514/13840 avos indivisos do prédio rústico sito em Serra Chã, freguesia de Caneças, concelho de Odivelas apenas em 06/03/2001, pelo que “não é (nem pode ser) responsável por despesas alegadamente realizadas com vista à reconversão da AUGI por referência a uma data anterior à aquisição que realizou”; e
iv)-prescrição da dívida exequenda na parte impugnada, considerando a alegada data do seu vencimento (01/01/1995), o disposto no art. 306º, al. g), do Cód. Civil, e a data da instauração da acção executiva (23/05/2014).
A exequente/embargada apresentou contestação, defendendo a improcedência dos embargos.
As partes declararam prescindir da faculdade de discussão oral da causa prevista no art. 591º, nº 1, al. b), do Cód. Proc. Civil, e exerceram-na por escrito, apresentando alegações onde, no essencial, mantiveram as posições assumidas nos respectivos articulados.
Em 15 de Novembro de 2020, foi proferida a decisão (saneador-sentença, sob a Referência Citius nº 126998350) em recurso, que julgou improcedentes os presentes embargos.
Inconformado, o executado/embargante recorre desta decisão, requerendo a procedência do presente recurso e a revogação da “sentença recorrida, substituindo-a por outra que julgue a oposição à execução mediante embargos de executado, procedente, por provada, absolvendo-se o Recorrido do pedido e da instância executiva, devendo a responsabilidade deste limitar-se à segunda e terceira parte do pedido, e aos juros que eventualmente sejam devidos, liquidados à taxa legal supletiva para obrigações de natureza civil, confinando-se a dívida aos referidos limites, recusando a aplicação retroativa do artigo 10.º, n.º 5, da Lei n.º 91/95, de 02.09, à deliberação constante da ata n.º 6, da reunião realizada no dia 04.05.2013, da assembleia de proprietários e comproprietários dos prédios integrados na AUGI (Área Urbana de Génese Ilegal), denominada “Bairro de ....”, por referência a despesas realizadas ou consumadas em data anterior à constituição da AUGI, sob pena de violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de Direito - artigo 2.º, da Constituição da República Portuguesa”. Termina as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:
I) A personalidade e capacidade jurídica e nesta medida a personalidade e capacidade judiciária da Recorrida, é-lhe conferida nos termos previstos na Lei n.º 91/95, de 02.09.
II) A Lei n.º 91/95, de 02.09, entrou em vigor no ordenamento jurídico português em 07.09.1995.
III)De acordo com a matéria de facto trazida aos autos, apenas em 29.04.2001 a Recorrida adquiriu personalidade e capacidade jurídica e nesta medida personalidade e capacidade judiciária (cf. art. 15.º e documento n.º 1, da contestação aos embargos de executado).
IV)O crédito em causa na presente ação, a existir, constituiu-se antes da existência jurídica da Recorrida, i. é, antes de lhe ter sido reconhecida ou atribuída personalidade e capacidade jurídica.
V) O crédito que a Recorrida peticiona na ação executiva, ter-se-á constituído, admitindo a sua existência ou a verificação dos respetivos pressupostos, em data anterior ao “nascimento” jurídico da Recorrida.
VI) Como tem sido comummente reconhecido pela doutrina, a esfera jurídica de uma pessoa, para além de constituir um aglomerado de titularidade de posições jurídicas ativas e passivas, é uma manifestação da personalidade jurídica da pessoa, pelo que, o crédito em causa na presente ação não integra a esfera jurídica da Recorrida, carecendo, assim, de legitimidade para reclamar o seu pagamento ao Recorrente.
VII) Não dispondo a Recorrente na sua esfera jurídica o crédito que reclama, não o pode peticionar por via da ação executiva, não obstante a referência ao crédito em causa, constante da ata n.º 6, da reunião realizada no dia 04.05.2013, da assembleia de proprietários e comproprietários dos prédios integrados na AUGI (Área Urbana de Génese Ilegal), denominada “Bairro de .....”, por não ser tal título juridicamente idónea para fazer nascer na esfera jurídica da Recorrente o crédito que reclama, por absoluta falta de pressupostos legais.
VIII)Não pode a Recorrida fazer prevalecer a sua personalidade e capacidade jurídica e judiciária, para a formação de um título por referência a uma data anterior ao reconhecimento ou atribuição de personalidade e capacidade jurídica e judiciária, adquirida em momento posterior à alegada constituição ou nascimento do crédito em causa na presente ação, sob pena de violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de Direito (artigo 2.º, da Constituição da República Portuguesa).
IX) A interpretação dada pelo Tribunal “a quo”, deve ser considerada inconstitucional e sujeita, assim, a revogação e substituição por outra decisão que julgue a Recorrida parte ilegitima no que respeita à titularidade do crédito em causa.
X) A ilegitimidade aqui em causa sendo substantiva deve conduzir a um julgamento de absolvição do Recorrente da instância executiva, por provada a ação de embargos no que à titularidade do crédito respeita.
XI) O n.º 5, do artigo 10.º, da Lei n.º 91/95, de 02.09, deve – só pode – ser interpretado no sentido de se referir apenas às despesas de reconversão que sejam aprovadas pelos comproprietários, em reunião da respetiva assembleia, de acordo com a composição prevista no artigo 9.º, do mesmo diploma, no âmbito das competências que lhe estão atribuídas nos termos do artigo 10.º, e, ainda, conforme as regras de convocação, funcionamento e votação previstas nos artigos 11.º, 12.º e 13.º, todos do citado diploma legal.
XII) A ata dada à execução é clara ao referir-se a despesas anteriores, ou seja, a despesas de reconversão realizadas em momento anterior, quer à constituição da AUGI, não respeitou as regras relativas convocação, funcionamento e deliberação tomada pelos comproprietários, não reunindo, assim, a o título executivo os pressupostos de que depende a sua força executiva.
XIII) A aplicação retroativa da Lei n.º 91/95, de 02.09, apenas é admitida na situação prevista no artigo 55.º, i. é, este diploma é aplicável aos processos em apreciação à data da sua entrada em vigor, a requerimento dos interessados, aproveitando-se os elementos úteis já existentes (n.º 1), podendo a assembleia de comproprietários mandatar a entidade que viesse promovendo a reconversão – que, in casu, se desconhece por falta de alegação -, para exercer as funções da comissão de administração (n.º 2), podendo, ainda, [o]s titulares dos prédios que tenham sido objeto de loteamento ilegal e que já disponham de alvará de loteamento emitido nos termos do regime jurídico da urbanização e edificação, ou de legislação anterior, podem beneficiar do regime especial de divisão de coisa comum previsto nesta lei.
XIV) Nenhuma das situações previstas no artigo 55.º, da Lei n.º 91/95, de 02.09, é aplicável ao crédito em causa nos presentes autos ou à suscetibilidade da ata que reconheceu despesas anteriores, realizadas ou executadas fora do âmbito das regras previstas nos artigos 9.º a 13.º, poder servir de titulo executivo.
XV) A deliberação constante da ata a que se refere o n.º 5, do artigo 10.º da Lei n.º 91/95, de 02.09, relativa à aprovação dos métodos e formas de cálculo das comparticipações para as despesas de reconversão e respetivos prazos de entrega apenas tem eficácia para o futuro.
XVI) m momento algum a lei admite a possibilidade de aplicação retroativa da lei a despesas alegadamente realizadas em data anterior a 1995, as quais, aliás, para além de não se mostrarem justificadas ou demonstradas, não foram objeto de deliberação nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 10.º, n.º 2, alíneas f) e g) da Lei n.º 91/95, de 2 de Setembro, não valendo como tal a mera aprovação de uma lista dos comproprietários com comparticipações em dívida.
XVII) A aplicação retroativa da Lei n.º 91/95, de 02.09, como é defendido pela Recorrida e lhe foi reconhecido pelo Tribunal “a quo”, afronta o princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de Direito - artigo 2.º, da Constituição da República Portuguesa -, como ignora o disposto nos artigos 9.º a 13.º, deste diploma.
XVIII)Considerando que a Recorrida instaurou a ação executiva em 23.03.2014, referindo um alegado crédito sobre o Recorrente, constituído em 01.01.1995, acrescido de juros de mora contados desde esta data, deve entender-se que a divida aqui em causa se encontra prescrita, por força do disposto nos artigos 306.º, n.º 1, 308.º, n.º 1, e artigo 310.º, alínea d) – quanto aos juros – e alínea g), do Código Civil.
XIX)O crédito reclamado na ação executiva respeita a despesas já realizadas e não a despesas por realizar ou a realizar, não sendo, assim, subsumível ao conceito ou conceitos previstos no artigo 16.º-C, n.º 1, da Lei n.º n.º 91/95, de 02.09, ou seja, não pode ser considerada como provisão ou adiantamento para despesas a realizar, ficando sujeitas à aprovação das contas finais da administração conjunta, por corresponderem, como referido e como consta da ata que serve de título à execução, para pagamento de despesas realizadas à margem da Lei n.º 91/95, de 02.09.
XX) O crédito em causa na presente ação é, por natureza, incompatível com a posição proposta pela Recorrida e assumida pelo Tribunal “a quo”, porquanto respeita a despesas realizadas. Se o crédito em causa se destina ao pagamento de despesas realizadas, não pode corresponder ao conceito de provisão ou adiantamento e beneficiar do regime previsto no citado art. 16.º-C.
XXI) Curiosamente, uma das obrigações constantes do artigo 16.º-C, da Lei n.º 91/05, respeitante à gestão financeira da AUGI, traduz-se na disponibilização, para consulta dos interessados, pela comissão de administração na respetiva sede, da documentação da administração conjunta da AUGI, o que, como oportunamente deduzido, não foi disponibilizada ao Recorrente.
XXII) Em face das conclusões expostas, deves ser julgados procedentes, por provado, os embargos de executado, com as legais consequências, nomeadamente absolvendo-se o Recorrente da instância executiva.”.

A exequente/embargada não apresentou contra-alegações.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

IIQUESTÕES A DECIDIR

De acordo com as disposições conjugadas dos arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1, ambas do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do Recorrente que se delimita o objeto e o âmbito do recurso, seja quanto à pretensão do Recorrente, seja quanto às questões de facto e de direito que colocam. Esta limitação objectiva da actuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art. 5º, nº 3 do Cód. Proc. Civil). De igual modo, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas de todas as questões suscitadas que se apresentem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (cfr. art. 608º, nº 2 do Cód. Proc. Civil, ex vi do art. 663º, nº 2 do mesmo diploma). Acresce que, não pode também este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas, porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas - cfr., neste sentido, Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Ed., Almedina, 2018, p. 114-116.

Nestes termos, no caso em análise, as questões a decidir são as seguintes:
- (i)legitimidade da exequente – pontos I) a X) das conclusões de recurso;
- (in)existência do título dado à execução – pontos XI) a XVII) das conclusões de recurso;
- prescrição da dívida exequenda – pontos XVIII) a XXI) das conclusões de recurso.

IIIFUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A decisão recorrida considerou como provada a seguinte factualidade:
1.-Por escritura pública de compra e venda outorgada no dia 6 de Março de 2001, o executado/embargante adquiriu 514/13840 do prédio rústico denominado Serra Chã, situado em Caneças, com a área total de 13840m2, inscrito na matriz rústica da freguesia de Caneças, sob o artigo 8º da Secção C (parte) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Odivelas sob o nº 2795, da freguesia de Caneças, estando o seu direito de propriedade inscrito através da inscrição nº 86216, a folhas 131v, do Livro G-116.
2.-O identificado prédio integra a área da AUGI (Área Urbana de Génese Ilegal) do Bairro da Serra Chã, freguesia de Caneças, concelho de Odivelas, correspondendo ao lote 30 do alvará de loteamento número um barra dois mil e treze barra DRRU – AUGI (1/2013/DRRU-AUGI), emitido em 09 de Setembro de 2013, pelo Município de Odivelas, em nome da Administração AUGI do Bairro Serra Chã.
3.-A Exequente foi constituída por iniciativa dos proprietários e comproprietários dos prédios que a integram, mediante convocatória e realização da assembleia constitutiva de 29/04/2001.
4.-A Assembleia de Proprietários e Comproprietários dos prédios integrados na AUGI denominada «Bairro de ....» deliberou na reunião de 04/05/2013, além do mais, o seguinte:
- aprovar o orçamento para execução das obras de urbanização, no valor de €624.092,81 «(…), que contempla a totalidade das obras do Bairro, incluindo tanto as obras já realizadas como as obras a realizar».
-aprovar «o método e fórmula de cálculo para as comparticipações» segundo o qual «a divisão das comparticipações devidas será sempre calculado dividindo o valor total pelo número de lotes existentes, ou seja, o critério definido para as comparticipações será por lote, independentemente da metragem e da área de construção de cada um, dado ter sido sempre o critério seguido pela Associação na repartição de custos anteriormente à entrada em vigor da Lei n.º 91/95, de 2 de Setembro. Assim o total devido pelas comparticipações será sempre dividido por 43 (quarenta e três), dado ser o número de lotes que constam do projecto de loteamento aprovado pela Câmara Municipal de Odivelas, sendo o valor devido por cada lote o mesmo.

- aprovar as seguintes comparticipações:
a)- €7.255,24 (sete mil duzentos e cinquenta e cinco euros e vinte e quatro cêntimos), como comparticipação devida por cada lote para as obras realizadas no Bairro anteriormente à entrada em vigor da Lei 91/95, de 2 de Setembro. (…) ao referido valor acrescerão juros, à taxa legal, calculados desde 1 de janeiro de 1995, visto que tal valor é referente a despesas com obras de infra-estruturas iniciadas antes da aprovação da Lei n.º 91/95, de 2 de Setembro;
b)- € 1.000,00 (mil euros) como comparticipação para as despesas referentes à taxa municipal única, despesas jurídicas relativas aos anos de 2012 e 2013, projectos das especialidades, projectos de alteração da rede pluvial, escritura de divisão da coisa comum, registos na Conservatória do Registo Predial e valores gastos para a convocatória das várias assembleias gerais. (…) tal comparticipação seria devida imediatamente, dado respeitar a despesas a que a Comissão de Administração Conjunta tem que fazer face a num curto espaço de tempo;
c)- € 100,00 (cem euros) a título de comparticipação mensal para as obras de infra-estruturas que faltam realizar no Bairro, bem como para o funcionamento da Comissão de Administração, execução dos projectos e acompanhamento técnico do processo e execução das obras de urbanização. (…) tal comparticipação mensal será devida durante um período de 24 (vinte e quatro meses), com inicio no mês de Julho de 2013».
4.Na reunião de 04/05/2013, foi ainda apresentada à assembleia geral «uma lista dos comproprietários com comparticipações em dívida até 31-12-202 e respectivos juros de onde constava os seguintes valores:
(…)
Lote 30 - Proprietários: B casado com Maria .....- valor em dívida: €15.493,22;
(…)».
5.Em 23/05/2014, a exequente/embargada intentou contra o executado/embargado acção executiva para pagamento, designadamente, da quantia referida na alínea a) do ponto 4. supra, acrescida de juros de mora, à taxa legal, vencidos e vincendos.
6.O executado/embargante foi citado para os termos da execução em 12/10/2015.

IVFUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Neste recurso está em causa, desde logo, a questão suscitada ao longo do processo referente à ilegitimidade da exequente/ora apelada – cfr., máxime, pontos I) a X) das conclusões do recurso.
A este propósito, consta da decisão recorrida:
“A primeira questão que cumpre decidir é a de saber se, como defende o embargante, a exequente não pode pedir em juízo o pagamento da quantia de €15.902,69 a título de comparticipação devida por cada lote para as obras realizadas no Bairro antes da entrada em vigor da Lei 91/95, de 2 de Setembro, acrescido de juros, à taxa legal, calculados desde 1 de Janeiro de 1995.
A razão da invocada impossibilidade reside no facto de estarem em causa despesas com obras de infraestruturas que se iniciaram antes da aprovação da Lei n.º 91/95, de 2 de Setembro.
Segundo o embargante, «em data anterior à entrada em vigor deste diploma, a exequente não dispunha de personalidade e capacidades jurídica e, nesta medida, também não dispunha de personalidade e capacidade judiciária». Por outro lado, acrescenta, a rectroactividade da lei admitida pelo seu artigo 55.º não opera ao nível da constituição e funcionamento dos órgãos de administração dos prédios integrados na AUGI, mas apenas em matéria de tramitação dos procedimentos de reconversão urbanística que estivessem em curso à data da entrada em vigor da lei.
Com base em tais razões, conclui que a exequente não dispõe de «legitimidade para demandar ou reclamar do executado» o pagamento da referida quantia em dinheiro.
Para o embargante trata-se, pois, de um problema de falta de pressuposto processual respeitante à exequente, que hesitantemente qualifica ora como falta de personalidade e capacidade judiciárias, ora como falta de legitimidade.
Apreciando a questão nesta perspectiva (processual), parece claro que não assiste razão ao embargante.
É que o momento relevante para a aferição dos pressupostos processuais é o da instauração da acção judicial, sendo totalmente irrelevante, neste plano de análise, a data da realização das obras cujo pagamento/comparticipação é nela peticionado.
Ora, o embargante não alega quaisquer factos que permitam concluir que, à data da instauração da acção executiva, a exequente não tinha personalidade ou capacidade judiciárias, que a lei define respectivamente como a «suscetibilidade de ser parte» e a «susceptibilidade de estar, por sim, em juízo» (artigos 11.º, n.º 1, e 15.º, n.º 1, do CPC).
Aliás, está assente que a acção executiva ora embargada foi instaurada pela Administração Conjunta dos prédios integrados na Área Urbana de Génese Ilegal (AUGI) denominada «Bairro da Serra Chã», cuja composição orgânica foi aprovada em reunião de 29/04/2001 da assembleia de proprietários e comproprietários dos prédios nela integrados, que, além do mais, elegeu as respectivas comissões de administração e fiscalização, conforme previsto no artigo 8.º, nºs. 1, 2 e 3 da Lei n.º 91/95, de 2 de Setembro.
Ora, a Lei n.º 91/95, de 2 de Setembro, expressamente confere capacidade judiciária à administração conjunta de prédio ou prédios integrados na mesma AUGI (artigo 8.º, n.º 7).
Acresce que eventuais questões de legalidade relacionadas com a constituição da exequente à luz do disposto na citada lei - que o embargante em rigor não suscita - sempre teriam de ser colocadas em sede de acção de anulação das deliberações aprovadas pela referida assembleia geral e não nos presentes embargos.
Do mesmo modo, o embargante não invoca quaisquer factos que demonstrem a falta de legitimidade da exequente para intentar a acção executiva destinada a obter o pagamento das comparticipações nas despesas de comparticipação aprovadas na acta da reunião da assembleia geral dada em execução.
Também aqui, a lei expressamente confere à administração conjunta da AUGI legitimidade activa (e passiva) para agir em juízo nas «questões emergentes das relações jurídicas em que seja parte» (citado artigo 8.º, n.º 7).
O paralelismo com o condomínio é manifesto, pois que a lei igualmente confere aos seus administradores legitimidade para agir em juízo na execução das funções que lhe pertencem (artigo 1437.º, n.º 1, do CC).
Estando em causa, no caso, como atesta o título executivo, a cobrança coerciva de comparticipações devidas por obras de reconversão realizadas em prédios que integram a AUGI administrada pela exequente, deve, pois, reconhecer-se-lhe legitimidade para instaurar a acção executiva ora embargada, quer à luz do citado artigo 8.º, n.º 7, da Lei n.º 91/95, de 2 de Setembro, quer à luz do artigo 53.º, n.º 1, do CPC.
Por tais razões, não deve o executado, ora embargante, ser absolvido da instância executiva.”

Discorda a apelante em sede deste recurso deste entendimento, alegando que: apenas em 29/04/2001 a exequente adquiriu personalidade e capacidade jurídica e nesta medida personalidade e capacidade judiciária; por esta razão, quaisquer despesas ocorridas antes da sua constituição que originem créditos sobre os comproprietários, não integram a esfera jurídica da exequente; o crédito em causa na presente acção, a existir, constituiu-se antes da existência jurídica da exequente, isto é, antes de lhe ter sido reconhecida ou atribuída personalidade e capacidade jurídica; desta forma, o crédito ora em causa não integra a esfera jurídica da exequente, carecendo, assim, a mesma de legitimidade para reclamar o seu pagamento ao executado “por via da acção executiva, “não obstante o conceito de legitimidade processual consagrado no artigo 30.º, do CPC”. Termina, alegando que, a interpretação dada pelo tribunal a quo deve ser considerada inconstitucional por “violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de Direito (artigo 2.º, da Constituição da República Portuguesa)”, sendo substituída “por outra decisão que julgue a Recorrida parte ilegitima no que respeita à titularidade do crédito em causa”, e, sendo esta ilegitimidade “substantiva deve conduzir a um julgamento de absolvição do Recorrente da instância executiva, por provada a ação de embargos no que à titularidade do crédito respeita.”.
Apreciemos, começando com breves – mas necessárias - considerações gerais sobre as espécies de acção aqui em causa (execução e embargos de executado) e seus pressupostos processuais.
A acção principal constitui uma accção executiva, decorrendo do disposto no art. 10º, nºs 4 e 5 do Cód. Proc. Civil, que tal acção visa a implementação das providências adequadas à realização coactiva de uma obrigação que lhe é devida e tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva.
Para Antunes Varela, in “Manuel de Processo Civil”, 1985, 2ª ed., p. 78-79: “Os títulos executivos são os documentos (escritos) constitutivos ou certificativos de obrigações que, mercê da forma probatória especial de que estão munidos, tornam dispensável o processo declaratório (ou novo processo declaratório) para certificar a existência do direito do portador (…), o título executivo reside no documento e não no acto documentado, por ser na força probatória do escrito, atentas as formalidades para ele exigidas, que radica a eficácia executiva do título (quer o acto documentado subsista quer não).”.

A acção executiva pressupõe o incumprimento da obrigação que emerge do próprio título dado à execução e que o direito nele inscrito esteja definido e acertado.
Aquele título constitui, para fins executivos, condição da acção executiva e a prova legal da existência do direito exequendo nas suas vertentes fáctico-jurídicas, assumindo, por isso, autonomia em relação à realidade que prova.

Nas palavras de Anselmo de Castro, in “A Acção Executiva, Singular, Comum e Especial”, ed. 1970, p. 10, o título executivo “é condição necessária da execução, na medida em que os actos executivos em que se desenvolve a acção não podem ser praticados senão na presença dele (...)” e “condição suficiente da acção executiva, no sentido de que, na sua presença, seguir-se-á imediatamente a execução”.

O título constitui, pois, “condição da acção executiva e a prova legal da existência do direito nas suas vertentes fáctico-jurídicas. Nesta conformidade o título executivo é condição necessária e suficiente da acção. Necessária porque não há execução sem título. Suficiente porque, repete-se, perante ele, deve ser dispensada qualquer indagação prévia sobre a real existência ou subsistência do direito a que se refere. Efectivamente a obrigação exequenda tem de constar no título o qual, como documento que é, prova a existência de tal obrigação. O título executivo é um pressuposto da acção executiva na medida em que confere ao direito à prestação invocada um grau de certeza e exigibilidade que a lei reputa de suficientes para a admissibilidade de tal acção.” – cfr. Ac. TRC de 09/10/2018, Carlos Moreira, acessível em www.dgsi.pt.

Neste enquadramento pode entender-se que, sendo requisito essencial da acção executiva, o título deve constituir instrumento probatório suficiente da obrigação exequenda, ou seja, reitera-se, deve, por si só, revelar, com um mínimo aceitável de segurança, a existência do crédito em que assenta o pedido exequendo, constituindo prova do acto constitutivo da dívida, sem prejuízo da possibilidade de o executado provar que apesar do título a dívida não existe (a obrigação nunca se constituiu ou foi extinta ou modificada posteriormente) – Ac. do TRC de 12/11/2013, Fonte Ramos, acessível em www.dgsi.pt.

Tal como a causa de pedir pode ser simples ou complexa, também o título executivo o poderá ser.

O título executivo é complexo quando corporizado num acervo documental em que a complementaridade entre dois ou mais documentos se articula e complementa numa relação lógica, evidenciada no facto de, regra geral, cada um deles por si não ter força executiva, mas juntos assegurarem eficácia a um todo complexo documental como título executivo.

O art. 703º, nº 1, al. d) do Cód. Proc. Civil elenca como títulos executivos, entre outros, “Os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva.”

Para o que aqui interessa, a Lei nº 91/95, de 2 de Setembro (com as alterações introduzidas pela Lei nº 165/99, de 14/09, pela Lei nº 64/2003, de 23/08, pela Lei nº 10/2008, de 20/02, pela Lei 79/2013, de 26/12 e pela Lei nº 70/2015, de 16/07), que define o regime da Área Urbana de Génese Ilegal (doravante denominada AUGI), criou um destes títulos executivos especiais, no respectivo art. 10º, que estatui no seu nº 5 (na redacção conferida pela Lei nº 64/2013, de 23/08), sob a epígrafeCompetências da assembleia”: a fotocópia certificada da ata que contém a deliberação da assembleia que determine o pagamento de comparticipação nas despesas de reconversão constitui título executivo”.

Por seu turno, a oposição à execução por embargos – caso destes autos - constitui um incidente de natureza declarativa, enxertado no processo executivo e dele dependente, através do qual o executado requer ao tribunal a improcedência total ou parcial da execução. Pode basear-se: (i) numa oposição de mérito, com vista a obter uma simples apreciação negativa da obrigação exequenda documentada pelo título executivo, conduzindo, em última análise, à eliminação deste; (ii) ou na invocação da falta de um pressuposto processual, geral ou específico do processo executivo, mas sempre destinada a obstar ao normal prosseguimento da acção executiva. Como refere, a este propósito, Lebre de Freitas, in “A Acção Executiva”, Coimbra Editora, 1993, p. 143, os embargos de executado são uma verdadeira acção declarativa e que visa a extinção da execução, mediante o reconhecimento da actual inexistência do direito exequendo ou da falta de um pressuposto, específico ou geral, da acção executiva.

Nesta senda, é cristalino que a concreta questão suscitada referente à legitimidade da exequente/ora apelada invocada nestes embargos de executado só pode respeitar ao pressuposto processual geral de legitimidade para intentar a acção executiva. E, tal é reconhecido pelo executado/ora apelante logo em sede de petição inicial de embargos, ao peticionar expressamente a absolvição do executado da instância executiva (consequência legal da falta do pressuposto processual de legitimidade) e ao invocar como fundamento desse entendimento os arts. 576º, nºs 1 e 2, 577º, al. e), 726º, nº 1, al. b), 729º, al. c), todos do Cód. Proc. Civil (preceitos que determinam precisamente aquela consequência legal) – cfr. arts. 17º e 18º daquele articulado. E é igualmente essa pretensão do apelante neste recurso ao invocar que tal ilegitimidade “sendo substantiva deve conduzir a um julgamento de absolvição do Recorrente da instância executiva, por provada a ação de embargos no que à titularidade do crédito respeita” – cfr. ponto X) das conclusões de recurso, com sublinhado nosso.

Como é consabido, a personalidade judiciária, a capacidade judiciária e a legitimidade consubstanciam pressupostos processuais gerais: “elementos de cuja verificação depende o dever de o juiz proferir decisão sobre o pedido formulado, concedendo ou indeferindo a providência requerida” (cfr. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in “Manual de Processo Civil”, 2ª ed. revista e actualizada, Coimbra Editora, 1985, p. 104). Devem, por isso, verificar-se, quanto ao demandante, à data da propositura da acção, e, quanto ao demandado, à data da respectiva citação.

Nos termos do art. 259º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, a instância inicia-se pela proposição da acção.

A execução de que estes autos são apenso deu entrada em tribunal em 23 de Maio de 2014.

Ora, nesta última data (23/05/2014), de instauração da acção executiva, a exequente Administração Conjunta dos prédios integrados na AUGI “Bairro da Serra Chã” detinha personalidade judiciária e capacidade judiciárias, de acordo com o disposto nos arts. 11º, nº 2, e 15º, nº 1, ambos do Cód. Proc. Civil, e art. 8º, nº 7 da Lei nº 91/95, de 02/09 - personalidade e capacidade essas, que possuía desde 29/04/2001, data da reunião da assembleia de proprietários e comproprietários dos prédios nela integrados que elegeu as respectivas comissões de administração e fiscalização, conforme previsto no art. 8º, nºs 1, 2 e 3 da Lei nº 91/95, de 02/09.
Aliás, a existência de personalidade e capacidade judiciárias da exequente desde 29/04/2001 é reconhecida pela apelante em sede deste recurso (cfr. ponto III) das conclusões de recurso). Donde, é cristalino que, em 23/05/2014, data de instauração da acção executiva, a exequente era detentora de personalidade e capacidade judiciárias.

Acresce que, à data de instauração da acção executiva, a exequente é parte legítima para intentar a execução, ao contrário do entendimento da apelante.

Senão vejamos.

O art. 53º, nº 1 do Cód. Proc. Civil estabelece a regra geral sobre a legitimidade processual das partes na acção executiva – princípio da legitimidade formal ou da coincidência -, nos seguintes termos: “A execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor” (tal regra geral é afastada nas situações previstas nos arts. 54º e 55º daquele diploma, e, no que respeita aos títulos de crédito ao portador, cuja legitimidade é aferida pelas normas específicas constantes da LULL e da LUC – não se reconduzindo, de forma manifesta, o caso dos autos a nenhuma destas situações).

Por isto, a legitimidade singular na execução apura-se por confronto ou comparação dos sujeitos da instância com o título executivo (ou seja, entre as partes e o título executivo). Daqui resulta que há ilegitimidade singular na acção executiva se o exequente ou o executado, apesar de partes processuais, não são os sujeitos do título executivo. Têm legitimidade como exequente e executado, respectivamente, quem no título figura como credor e como devedor (cfr. José Lebre de Freitas, in “A Acção Executiva à luz do Código Revisto”, 2ª ed., Coimbra Editora, 1997, p. 101). Apela-se, pois, para a literalidade do título executivo, seja ele sentença, contrato, título de crédito ou qualquer outro, analisando-se o documento que constitui título executivo para definir quem tem interesse directo activo ou passivo na acção executiva, sem ser, por isso, de proceder à análise, para esse efeito, da relação material controvertida.

Na situação em apreço, o título executivo dado à execução é constituído pela acta nº 6 da reunião de 04/05/2013 da Assembleia de Proprietários e Comproprietários dos prédios integrados na AUGI “Bairro de Serra Chã”.

Da conjugação dos já citados arts. 8º, nº 7 e 10º, nº 5, ambos da Lei nº 91/95, de 02/09, com o disposto no art. 53º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, resulta que a exequente, enquanto Administração Conjunta dos prédios integrados na AUGI “Bairro da Serra Chã”, dispõe de legitimidade activa nas questões emergentes das relações jurídicas em que seja parte, nomeadamente, no que aqui releva, para intentar acção executiva para cobrança coerciva das comparticipações nas despesas de reconversão da responsabilidade dos proprietários daqueles prédios com base nas respectivas actas das reuniões de onde conste a deliberação da assembleia que determine aquele pagamento.

Desta forma, bem andou a sentença recorrida ao concluir que a exequente detém legitimidade processual activa para intentar a execução de que estes autos são apenso.

A argumentação da apelante, em sede deste recurso, no sentido de o crédito que a exequente peticiona na execução ter-se constituído em data anterior ao “nascimento” jurídico da exequente, pelo que, não integra a esfera jurídica desta, carecendo, por isto, de legitimidade substantiva para reclamar o seu pagamento, não obstante o conceito de legitimidade processual consagrado no art. 30º do Cód. Proc. Civil, não procede.

E, tal argumentação não procede, porquanto esta chamada “legitimidade substantiva”, material ou “ad actum, invocada pelo apelante, nada tem a ver com a legitimidade processual ou “ad causam” para intentar a acção, questão aqui em causa, como ensinava Antunes Varela (in ob. cit., p.128 e ss, especialmente p. 132, nota 2, e 133) e é entendimento pacífico.

Na verdade, a legitimidade substantiva respeita à relação jurídica definidora de direitos e obrigações (de natureza material ou substantiva e não formal ou adjectiva), à titularidade activa e passiva dos mesmos pelos respectivos sujeitos e ao seu exercício; “consiste num complexo de qualidades que representam pressupostos da titularidade, por um sujeito, de certo direito que o mesmo invoque ou que lhe seja atribuído, respeitando, portanto, ao mérito da causa” – Ac. do STJ de 18/10/2018, José Manuel Bernardo Domingos, acessível em www.dgsi.pt.

Castro Mendes, in “Direito Processual Civil”, Vol. II revisto e actualizado, Edição AAFDL, Lisboa, 1987, p. 215, assimilava a legitimidade substantiva às “condições subjectivas da titularidade do direito. (…) Assim, se o tribunal conclui pela ilegitimidade, entra no mérito da causa (tal pessoa não tem o direito de anular o contrato; tal pessoa não é credora de perdas e danos; etc. …) e profere uma absolvição do pedido./Estamos em presença da legitimidade em sentido material. Saliente-se, porém, que é figura diversa daquela a que se referem os artigos 24º, 26º, 288º, 494º, etc. …, e em que temos vindo falando – aquilo que designaremos sempre por legitimidade “tout court”, a legitimidade processual ou em sentido processual”.

Por conseguinte, no caso dos autos, estando em causa a legitimidade da exequente para intentar a acção executiva, importa apenas, como vimos, analisar o documento que constitui título executivo para definir quem tem interesse directo activo ou passivo na acção executiva, sem ser, por isso, de proceder à análise, para esse efeito, da relação material controvertida, como parece ser a pretensão do apelante. E, repete-se, do confronto do título executivo com as partes na acção executiva, temos como certo que a exequente - que se afigura como credora no título executivo - é parte legítima para intentar a instância executiva, ao abrigo e nos precisos termos dos já citados arts. 8º, nº 7 e 10º, nº 5, ambos da Lei nº 91/95, de 02/09, e art. 53º, nº 1 do Cód. Proc. Civil.

Sendo, desta forma, a exequente parte legitima para intentar a instância executiva, não se vislumbra que a decisão recorrida tenha desrespeitado qualquer preceito constitucional, pelo que improcede a pretensão do apelante de absolvição da instância executiva por ilegitimidade da exequente, bem como a pretensão de declaração da inconstitucionalidade da decisão recorrida, nomeadamente, por “violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de Direito (artigo 2.º, da Constituição da República Portuguesa)”. O que se decide.

*

Cumpre, agora, apreciar a suscitada questão da inexistência do título dado à execução – pontos XI) a XVII) das conclusões de recurso.

Invoca o apelante que a acta dada à execução não reúne os pressupostos de que depende a sua força executiva, alegando, para o efeito, que: aquela acta refere-se a despesas de reconversão realizadas em momento anterior, quer à constituição da AUGI, quer a qualquer convocação, funcionamento e deliberação tomada pelos comproprietários nesse sentido, pelo que não respeita as regras dos arts. 9º a 13º da Lei nº 91/95, de 02/09; nenhuma das situações previstas no art. 55º desta Lei é aplicável ao crédito em causa nos autos ou à susceptibilidade da acta que reconheceu despesas anteriores, realizadas ou executadas fora do âmbito das regras previstas nos art. 9º a 13º, poder servir de titulo executivo; a deliberação constante da acta a que se refere o nº 5 do art. 10º da mencionada Lei, relativa à aprovação dos métodos e formas de cálculo das comparticipações para as despesas de reconversão e respectivos prazos de entrega apenas tem eficácia para o futuro; aquela Lei não admite a possibilidade de aplicação retroactiva a despesas realizadas em data anterior a 1995, as quais, para além de não se mostrarem justificadas ou demonstradas, não foram objecto de deliberação nos termos e para os efeitos do disposto no art. 10º, nº 2, als. f) e g) da Lei nº 91/95, não valendo como tal a mera aprovação de uma lista dos comproprietários com comparticipações em dívida; a aplicação retroactiva da Lei nº 91/95, como é reconhecida pelo tribunal a quo, afronta o princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de Direito (art. 2º da Constituição da República Portuguesa), e viola o disposto nos arts. 9º a 13º daquela Lei.

A este propósito, consta da decisão recorrida:
“Como relatado, os embargantes alegam, em fundamento desta excepção, que a deliberação constante da acta da reunião da assembleia geral de proprietários de 6 de Maio de 2013, dada à execução, não produz efeitos retroactivos, mesmo considerando o disposto no artigo 55.º da Lei n.º 91/95, de 2 de Setembro, pelo que não pode fundamentar a cobrança coerciva de despesas alegadamente suportadas em data anterior à sua aprovação.
Para além disso, sustentam ainda, a referida deliberação não cumpre o disposto no artigo 10.º, n.º 2, alíneas f) e g), da Lei n.º 91/95, de 2 de Setembro, na parte em que fixa em €7.255,24, acrescida de juros de mora vencidos, à taxa legal, desde 01/01/995, a comparticipação devida por cada lote para as obras realizadas no Bairro anteriormente à entrada em vigor da Lei 91/95, de 2 de Setembro.
Assim, não estando o custo das referidas obras justificadas nem demonstradas, como legalmente exigido nos citados preceitos legais, a acta em causa é inexequível, sendo certo que não basta para o efeito a aprovação dos valores alegadamente em dívida por determinados condóminos a título de comparticipação nesse custo, sem enunciação do critério que presidiu à determinação desses concretos valores.
Vejamos se assiste razão aos embargantes.
O invocado artigo 10.º da Lei n.º 91/95, de 2 de Setembro, define as competências da assembleia de proprietários ou comproprietários dos prédios integrados nas áreas urbanas de génese ilegal (AUGI), atribuindo-lhe, no seu n.º 1, o poder geral de acompanhar o processo de reconversão urbanística do solo e de legalização das construções nele implantadas, regulado nos artigos 3.º e seguintes do mesmo diploma legal.
O n.º 2 do referido artigo 10.º integra especificamente nas competências daquele órgão representativo a aprovação dos «mapas e os respetivos métodos e fórmulas de cálculo e as datas para a entrega das comparticipações referidos na alínea c) do n.º 1 do artigo 15.º» e dos «orçamentos apresentados pela comissão de administração para a execução das obras de urbanização», após parecer da comissão de fiscalização - cfr. alíneas f) e g), respectivamente.
Nos termos da citada alínea c) do n.º 1 do artigo 15.º da mesma lei, compete à comissão de administração «[e]laborar e submeter à assembleia de proprietários ou comproprietários os mapas e os respetivos métodos e fórmulas de cálculo e as datas para a entrega das comparticipações e cobrar as comparticipações, designadamente para as despesas do seu funcionamento, para execução dos projetos, acompanhamento técnico do processo e execução das obras de urbanização».
Finalmente, determina o n.º 5 do artigo 10.º da Lei n.º 91/95, de 2 de Setembro, que «a fotocópia certificada da ata que contém a deliberação da assembleia que determine o pagamento de comparticipação nas despesas de reconversão constitui título executivo».
Reportando-se precisamente a normas como esta, o n.º 1 do artigo 703.º do CPC expressamente integra na categoria taxativa dos títulos executivos os «documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva» [alínea d)].
É precisamente à luz das normas conjugadas do n.º 5 do artigo 10.º da Lei n.º 91/95, de 2 de Setembro, e da alínea d) do n.º 1 do artigo 703.º do CPC, que se deve aferir a exequibilidade da acta da reunião de 04/05/2013 da assembleia de proprietários e comproprietários dos prédios integrados na AUGI denominada «Bairro de Serra Chã», que baseia a acção executiva ora embargada.
A acta dada à execução contém, além do mais, a deliberação que aprovou o orçamento para execução das obras de urbanização do referido bairro, no valor de €624.092,81 – montante que, segundo expressa menção aí exarada, contempla «a totalidade das obras do Bairro, incluindo tanto as obras já realizadas como as obras a realizar».
Contém, ainda, a deliberação que aprovou o método e fórmula de cálculo para as comparticipações, nos seguintes termos: «a divisão das comparticipações devidas será sempre calculado dividindo o valor total pelo número de lotes existentes, ou seja, o critério definido para as comparticipações será por lote, independentemente da metragem e da área de construção de cada um, dado ter sido sempre o critério seguido pela Associação na repartição de custos anteriormente à entrada em vigor da Lei n.º 91/95, de 2 de Setembro. Assim o total devido pelas comparticipações será sempre dividido por 43 (quarenta e três), dado ser o número de lotes que constam do projecto de loteamento aprovado pela Câmara Municipal de Odivelas, sendo o valor devido por cada lote o mesmo.
Em aplicação do referido critério, a assembleia geral aprovou a comparticipação devida por cada lote para as obras de infra-estruturas iniciadas e/ou realizadas antes da entrada em vigor da Lei 91/95, de 2 de Setembro», que fixou no valor de €7.255,24, acrescido de juros de mora, à taxa legal, calculados desde 1 de janeiro de 1995.
Parece, pois, não haver dúvida de que a referida acta contém a deliberação da assembleia que determina o pagamento de comparticipação nas despesas de reconversão urbanística e legalização dos prédios integrantes da AUGI administrada pela exequente.
Ora, sendo pedido contra os ora embargantes, na parte controvertida, precisamente a quantia de €7.255,24, acrescida dos juros de mora, à taxa legal, que se venceram desde 01/01/1995, a título de comparticipação para as obras de infra-estruturas realizadas no Bairro anteriormente à entrada em vigor da Lei 91/95, de 2 de Setembro, deve concluir-se que a obrigação (exequenda) tem na referida acta suficiente título de legitimação.
É que, contrariamente ao que parecem defender os embargantes, a norma legal que confere força executiva à acta da deliberação da assembleia que determina o pagamento de comparticipação nas despesas de reconversão e legalização dos prédios integrantes das AUGI não distingue entre despesas de reconversão realizadas antes e depois da entrada em vigor da referida lei.
Também o n.º 3 do artigo 3.º da Lei n.º 91/95, que faz recair sobre os proprietários ou comproprietários o dever de comparticipar nas despesas de reconversão, não restringe esta obrigação de comparticipação às despesas incorridas por obras realizadas após a entrada em vigor da lei.
Aliás, sendo dever conjunto de todos os proprietários de prédios integrados em áreas urbanas de génese ilegal o de assegurar a reconversão urbanística do solo e a legalização das construções nelas integradas (artigo 3.º, n.º 1, da mesma lei), mal se compreenderia que a lei não fizesse recair igualmente sobre todos, sem excepção, a obrigação de suportar o custo das respectivas obras, independentemente da data da sua realização.
Sublinhe-se que a preocupação do legislador com o fenómeno das construções clandestinas já vinha de longe, tendo motivado a aprovação do Decreto-Lei n.º 804/76, de 6 de Novembro, que previa para as «áreas de construção clandestina» uma série de medidas tendentes à sua legalização, manutenção temporária ou demolição (cfr. artigos 1.º e 2.º).
E já então a lei contemplava uma «comparticipação a assumir pelos proprietários ou possuidores do terreno e construções existentes na área nas despesas com a instalação ou melhoria das infra-estruturas e equipamento social», ainda que norteada por critérios de equidade social (artigo 6.º, n.º 1, alínea c), do citado decreto-lei).
É nesta lógica de continuidade e aproveitamento que se compreende a regra consagrada no n.º 1 do artigo 55.º da Lei n.º 91/95, de 2 de Setembro, segundo a qual esta lei se aplica aos processos já iniciados à data da sua entrada em vigor, a requerimento dos interessados, aproveitando-se os elementos úteis já existentes.
Ora, se é certo que o processo de legalização dos prédios integrantes da AUGI do Bairro da Serra Chã decorreu já sob a vigência desta lei, foi a própria assembleia geral de proprietários que, na acta dada à execução, reconheceu como válidas as obras executadas antes da entrada em vigor da Lei n.º 91/95, de 2 de Setembro, e aprovou o orçamento para execução das obras de urbanização do referido bairro, no valor de €624.092,81, que contemplava «a totalidade das obras do Bairro, incluindo tanto as obras já realizadas como as obras a realizar», determinando o valor da comparticipação a pagar por cada proprietário em função do número de lotes que haviam sido licenciados pela Câmara Municipal competente (43).
Neste pressuposto, fixou em €7.255,24 o valor da comparticipação respeitante às obras já realizadas à data da entrada em vigor da referida lei, que corresponde sensivelmente a metade do resultado (quociente) da divisão do custo global das obras de urbanização (€624.092,81) pelo número total de lotes (43).
A decisão de também incluir nas despesas globais de reconversão o custo das obras de urbanização realizadas antes da entrada em vigor da Lei n.º 91/95, de 2 de Setembro, e fazer recair sobre os proprietários a obrigação de nelas comparticipar, em função do número de lotes pertencentes a cada um, foi, pois, tomada pela assembleia geral, que era o órgão com competência para o efeito.
Trata-se de uma deliberação representativa da vontade maioritária dos proprietários e comproprietários dos prédios integrados na AUGI denominada «Bairro da Serra Chã», que é passível de impugnação judicial, como expressamente admitido no n.º 8 do artigo 12.º da Lei n.º 91/95, de 2 de Setembro, na redacção introduzida pela Lei n.º 10/2008, de 20 de Fevereiro.
Se o ora embargante tinha dúvidas sobre a legalidade, substantiva e/ou procedimental, da referida deliberação, designadamente na parte respeitante ao custo das obras de urbanização efectuadas antes da entrada em vigor da Lei n.º 91/95, de 2 de Setembro, e à sua imputação aos proprietários, nos concretos termos deliberados, deveriam ter desencadeado, no prazo legal, os meios legais de impugnação dessa deliberação.
Não o tendo feito, não pode agora escudar-se, em sede de embargos de executado, na alegada falta de justificação ou demonstração de tais custos para se eximir do cumprimento da obrigação de nelas comparticipar, atestada num documento que, como acima demonstrado, claramente reúne os requisitos de exequibilidade previstos no artigo 10.º, n.º 5, da Lei n.º 91/95, de 2 de Setembro.
Por tais razões, deve concluir-se pela improcedência dos embargos, também nesta parte.”.

Concordamos inteiramente com este entendimento, razão pela qual pouco mais nos resta que aderir ao mesmo, confirmando, também nesta parte, a decisão recorrida.

Não obstante, sempre acrescentaremos as seguintes notas adicionais.

Como acima já se deixou dito, o título executivo dado à execução consubstancia-se na acta que contém a deliberação da assembleia que determine o pagamento das comparticipações nas despesas de reconversão de áreas urbanas de génese ilegal por parte dos proprietários dos prédios que integram tais áreas, nos termos do nº 5 do art. 10º da Lei nº 91/95, de 02/09, na redacção conferida pela Lei nº 64/2013, de 23/08.

Dispõe precisamente este preceito que: a fotocópia certificada da ata que contém a deliberação da assembleia que determine o pagamento de comparticipação nas despesas de reconversão constitui título executivo”. Do que resulta que a qualidade de título executivo decorre unicamente da acta conter ou preencher os requisitos enunciados no nº 5 do art. 10º da Lei nº 91/95, de 02/09, ou seja, deve a mesma conter a deliberação da assembleia de proprietários ou comproprietários que determine o pagamento de comparticipação nas despesas de reconversão. Por outras palavras, a obrigação torna-se exigível com a simples tomada ou aprovação da deliberação que fixe as comparticipações nas despesas de reconversão e o respectivo prazo de pagamento, sendo que é este elemento que determina, por seu turno, o momento de vencimento da obrigação.

A acta junta como título executivo – a Acta da Assembleia de proprietários e comproprietários, de 04/05/2013 - cumpre tal desiderato, ou seja, contém a própria deliberação da assembleia cujo objecto foi a aprovação dos mapas e dos respectivos métodos e fórmulas de cálculo e das datas para a entrega das comparticipações (a saber, com sublinhados nossos:“- aprovar «o método e fórmula de cálculo para as comparticipações» segundo o qual «a divisão das comparticipações devidas será sempre calculado dividindo o valor total pelo número de lotes existentes, ou seja, o critério definido para as comparticipações será por lote, independentemente da metragem e da área de construção de cada um, dado ter sido sempre o critério seguido pela Associação na repartição de custos anteriormente à entrada em vigor da Lei n.º 91/95, de 2 de Setembro. Assim o total devido pelas comparticipações será sempre dividido por 43 (quarenta e três), dado ser o número de lotes que constam do projecto de loteamento aprovado pela Câmara Municipal de Odivelas, sendo o valor devido por cada lote o mesmo.”; “aprovar as seguintes comparticipações: a) €7.255,24 (sete mil duzentos e cinquenta e cinco euros e vinte e quatro cêntimos), como comparticipação devida por cada lote para as obras realizadas no Bairro anteriormente à entrada em vigor da Lei 91/95, de 2 de Setembro. (…) ao referido valor acrescerão juros, à taxa legal, calculados desde 1 de janeiro de 1995, visto que tal valor é referente a despesas com obras de infra-estruturas iniciadas antes da aprovação da Lei n.º 91/95, de 2 de Setembro;”) - e não somente, como entende o apelante, a mera aprovação da lista dos comproprietários com comparticipações em dívida. Donde, a improcedência da argumentação do apelante a este propósito.

O apelante sustenta que o princípio da não retroactividade da lei impede que lhe seja exigido o pagamento de qualquer débito anterior ao início da vigência da Lei nº 91/95, de 02/09. Porém, tal argumento não colhe.

Na verdade, nos termos do disposto no art. 16º-C, nº 1, da mencionada Lei nº 91/95: “As comparticipações nos encargos da reconversão são consideradas provisões ou adiantamentos até à aprovação das contas finais da administração conjunta.”. Como refere António José Rodrigues, in “Loteamentos Ilegais - Áreas Urbanas de Génese Ilegal -AUGI”, 4ª ed., Almedina, 2010, p.78, em anotação a este preceito (apud Ac. do TRL de 24/04/2019, Gabriela Cunha Rodrigues, acessível em www.dgsi.pt): “Este artigo deve ser objecto de uma interpretação extensiva, para que todos os encargos da reconversão possam ser cobrados pelas comissões de administração. O alcance da medida deve aplicar-se também aos encargos suportados antes da vigência da lei 91/95, visto que existem AUGI que têm vindo a promover a sua reconversão desde o início da década de oitenta, anteriormente através de associações de moradores, de proprietários/comproprietários, tendo realizado despesas avultadas em projectos de urbanização e obras de infra-estruturas, a que nem todos os titulares aderiram voluntariamente, pelo que agora há que cobrar a quota parte aos faltosos, nem que seja por forma coerciva pois, de outro modo, seriam premiados aqueles que nunca colaboraram. Assim, as deliberações das assembleias das associações que lideraram os processos antes da vigência da actual lei devem vincular do mesmo modo os faltosos”.

De qualquer modo, sempre estaríamos perante matéria a ser objecto de eventual impugnação judicial direccionada à respectiva deliberação (nomeadamente, por se reportar a despesas de reconversão realizadas em momento anterior, quer à Lei nº 91/95, quer à constituição da AUGI, quer a qualquer convocação, funcionamento e deliberação tomada pelos comproprietários nesse sentido, como entende o apelante), nos termos constantes do art. 12º, nºs 6 e 8 da referida Lei, para o que os presentes autos não são, manifestamente, o meio processual adequado – cfr. neste sentido, entre outros, Acórdãos do TRL de 26/01/2006, Pereira Rodrigues; desta Secção de 12/12/2013, em que é Relatora Ana Resende, ora 2ª Adjunta; e de 24/04/2019, Gabriela Cunha Rodrigues, todos acessíveis em www.dgsi.pt.

Acresce que, perante a factualidade provada e o teor da acta dada à execução, não se vislumbra, no caso dos autos, que tenha ocorrido a violação de quaisquer outras normas legais geradora de incerteza, inexigibilidade e iliquidez das comparticipações firmadas, designadamente de regras relativas à fixação destas.
Perante o ora exposto e os argumentos adiantados na decisão recorrida, que, como deixámos dito, aqui subscrevemos na íntegra, não se vislumbra que a decisão recorrida viole “o princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de Direito (art. 2º da Constituição da República Portuguesa),” e desrespeite o disposto nos arts. 9º a 13º da Lei nº 91/95, de 02/09 – ao contrário do entendimento do apelante.

Em suma, a acta dada à execução reúne os requisitos necessários para o preenchimento da natureza de título executivo no tocante às comparticipações nas despesas de reconversão concretamente postas em crise nestes embargos pelo executado/ora apelante, havendo que concluir pela verificação de título executivo nesta parte, como decidiu o tribunal a quo.Donde, improcede a pretensão do apelante a este propósito. O que se decide.

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Cumpre, agora, apreciar a suscitada questão da prescrição da concreta dívida exequenda posta em crise nestes embargos – pontos XVIII) a XXI) das conclusões de recurso.

Invoca o apelante que: a exequente instaurou a acção executiva em 23/05/2014, referindo um alegado crédito sobre o executado, constituído em 01/01/1995, acrescido de juros de mora contados desde esta data, pelo que tal dívida se encontra prescrita, por força do disposto nos arts. 306º, nº 1, 308º, nº 1, e 310º, als. d) e al. g), todos do Código Civil; o crédito reclamado respeita a despesas já realizadas e não a despesas por realizar ou a realizar, não sendo, assim, subsumível aos conceitos previstos no art. 16º-C, nº 1 da Lei nº 91/95, de 02/09, ou seja, não pode ser considerada como provisão ou adiantamento para despesas a realizar, ficando sujeitas à aprovação das contas finais da administração conjunta, por corresponderem a pagamento de despesas realizadas à margem daquela Lei; o crédito em causa é, por natureza, incompatível com a posição do tribunal a quo, porquanto respeita a despesas realizadas; e, uma das obrigações constantes do mencionado art. 16º-C da Lei nº 91/05, respeitante à gestão financeira da AUGI, traduz-se na disponibilização, para consulta dos interessados, pela comissão de administração na respectiva sede, da documentação da administração conjunta da AUGI, o que não foi disponibilizada ao Recorrente.

A propósito da excepção peremptória de prescrição, consta da decisão recorrida:
Reagindo contra a inércia do titular do direito de crédito que, podendo exercê-lo, não o faz, a lei confere ao devedor a faculdade de recusar o cumprimento da prestação uma vez decorrido o prazo que a lei fixa como sendo o razoável para o exercício do direito (artigo 304.º, n.º 1, do CC).
O decurso do prazo de prescrição, quando invocado pelo devedor, impede, pois, o exercício do direito de crédito por parte do respectivo titular, convertendo a respectiva obrigação jurídica em obrigação natural (artigo 304.º, n.º 2, do Código Civil).
A lei prevê um prazo ordinário de prescrição de 20 anos para a generalidade dos direitos de crédito (artigo 309.º do CC); contudo, estabelece para determinadas categorias de direitos de crédito, que têm em comum o facto de terem por objecto prestações periodicamente renováveis, um prazo de prescrição de 5 anos (artigo 310.º do CC).
É, por exemplo, o caso das rendas e alugueres devidos pelo locatário, do direito a juros (convencionais ou legais), das quotas de amortização do capital pagável com os juros e de «quaisquer outras prestações periodicamente renováveis» (artigo 310.º, alíneas b), d), e), e g), do Código Civil, respectivamente).
A razão de ser do maior grau de diligência que a lei exige ao credor de prestações periódicas de valor pré-determinado prende-se com o facto de a passagem do tempo ter, nesses casos, um efeito especialmente oneroso para o devedor.
Com efeito, não fosse a limitação temporal dos 5 anos, o devedor poder-se-ia ver confrontado com a exigência de pagamento integral e de uma só vez de uma dívida que, por legal ou contratualmente concebida como sendo de longa duração e pagável em prestações de montante pré-definido, exorbitaria a sua previsível capacidade económica.
No caso concreto, o executado/embargante defende que o prazo de prescrição aplicável é precisamente o previsto na alínea g) do artigo 310.º do Código Civil, que sujeita ao prazo de prescrição de 5 anos quaisquer «prestações periodicamente renováveis».
A exequente/embargada discorda. A seu ver, a comparticipação nos encargos da reconversão, legalmente configurada com uma provisão ou adiantamento (artigo 16.º-C, n.º 1, da Lei n.º 91/95, de 2 de Setembro), reveste a «natureza de prestação instantânea a pagar de forma fraccionada e não de prestações periodicamente renováveis», sendo-lhe, por isso aplicável, o prazo prescricional ordinário de 20 anos previsto no artigo 309.º do CC, e não o invocado prazo especial de prescrição previsto no invocado artigo 310.º, alínea g), do CPC.
Cumpre decidir.
Para o efeito, vale a pena recuperar a distinção, de raiz obrigacional, entre «prestações instantâneas» e «prestações duradouras» e, dentro destas, entre «prestações fraccionadas» e «prestações contínuas» ou de «execução continuada» (Almeida Costa, «Direito das Obrigações», 9.ª Edição, Almedina, 2001, pp.644-646).
De acordo com este autor, as prestações instantâneas executam-se «num só momento» enquanto as prestações duradouras se referem a «um comportamento, positivo ou negativo, que se distend[e] no tempo».
Na categoria das prestações duradouras incluem-se, por seu lado, dois subtipos de prestações: as prestações fraccionadas e as prestações contínuas ou de execução continuada, consistindo estas últimas «numa actividade ou abstenção que se prolonga ininterruptamente (…) durante um período mais ou menos longo».
Na primeira hipótese, está em causa «uma única prestação a realizar por partes»; na segunda, «diversas prestações (isto é, prestações repetidas) a satisfazer regularmente (…) ou sem regularidade exacta», embora decorrentes de «uma só relação obrigacional»; é aqui que se inserem as chamadas «prestações reiteradas, repetidas, com trato sucessivo ou periódicas».
No caso concreto, está assente entre as partes que a comparticipação devida pelas despesas de reconversão aqui em discussão, incluindo as que respeitam às obras realizadas antes da entrada em vigor da Lei n.º 91/95, de 2 de Setembro, deveria ser paga em prestações e não de uma só vez.
É, pois, de afastar a sua qualificação como prestação instantânea.
Estando em causa por exclusão de partes uma prestação duradora, subsiste, contudo, o problema de saber se se trata de «prestações fraccionadas» ou, diferentemente, de «prestações contínuas» ou de «execução continuada», como tipicamente sucede com as quotas ordinárias de condomínio.
Afigura-se que está em causa uma única prestação, de conteúdo unitário pré-definido, a realizar por partes, e não várias prestações periodicamente renováveis (neste sentido, cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 20/03/2014, proferido no processo n.º 295/07.9TCLRS-AL1-2, invocado pela embargada), pelas seguintes ordens de razões.
A Lei n.º 91/95, de 2 de Setembro, assume estruturalmente uma natureza transitória.
Com efeito, ela visa resolver o problema concreto das urbanizações de génese ilegal, impondo às partes o dever de promover e implementar, em determinado prazo, as medidas de reconversão necessárias à sua legalização.
Ora, uma vez atingido o objectivo legal, cessa o dever imposto aos proprietários de comparticipar nessas despesas, que, como sublinhado pela exequente/embargada, são legalmente consideradas «provisões» ou «adiantamentos» até à aprovação das contas finais da administração conjunta (artigo 16.º-C, n.º 1, da referida lei).
O confronto com as dívidas de condomínio, que são pacificamente consideradas como prestações periodicamente renováveis, é sugestivo.
Contrariamente ao que sucede com as despesas de reconversão urbanística ora em apreciação, as quotas de condomínio têm uma marca genética de longevidade, que lhes advém do facto de ser a própria lei a impor a aprovação anual do orçamento das despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e ao pagamento de serviços de interesse comum seja aprovado anualmente (artigo 1431.º, n.º 1, do Código Civil).
Ora, não há equivalente normativo no regime consagrado pela Lei n.º 91/95, de 2 de Setembro, que diversamente contém indicadores claros contrários à possibilidade renovação periódica das despesas de reconversão, que são despesas fixas e objecto de aprovação final, como acima demonstrado.
Assim sendo, não lhes é aplicável o prazo especial de prescrição previsto no invocado artigo 310.º, alínea g), do Código Civil, mas o prazo ordinário de prescrição de 20 anos consagrado no artigo 309.º do mesmo código.
Tendo a obrigação exequenda vencido em 01/01/1995, parece claro que em 29/05/2014 - data em que ocorreu a interrupção do prazo de prescrição, considerando a data de instauração da acção executiva (23/05/2020) e o disposto no artigo 323.º, n.º 2, do Código Civil - ainda não havia decorrido o prazo prescricional previsto no citado artigo 309.º do CC.”.

Concordamos com este entendimento, razão pela qual pouco mais nos resta que aderir ao mesmo, confirmando, também nesta parte, a decisão recorrida.

Não obstante, sempre acrescentaremos as seguintes notas adicionais.

De harmonia com o art. 3º, nºs 1 e 3 da Lei nº 91/95, de 02/09, sendo a reconversão urbanística do solo e a legalização das construções integradas em áreas urbanas de génese ilegal (AUGI) um dever dos respectivos proprietários ou comproprietários, tal dever inclui também o de comparticipar nas despesas de reconversão, nos termos fixados na lei. Estas comparticipações mais não são do que pagamentos parcelares do valor global da responsabilidade de cada comproprietário nas despesas de reconversão. Como estipula o nº 1 do art. 16º-C da Lei 91/95, que dispõe sobre a gestão financeira da AUGI, “As comparticipações nos encargos da reconversão são consideradas provisões ou adiantamentos até à aprovação das contas finais da administração conjunta.”.

Nas palavras do Acórdão do TRL de 20/03/2014, Magda Geraldes, acessível em www.dgsi.pt:
“Estas despesas previstas destinam-se, a fazer face à instalação e melhoramento das infra-estruturas projectadas, bem como à construção de equipamentos colectivos, e outras, designadamente melhoramentos que se apresentem necessários, e deverão ser comparticipadas pelos proprietários ou possuidores das parcelas a constituir em lotes.
São estas comparticipações nos encargos da reconversão, a efectuar pelos titulares dos prédios no decurso do respectivo dever de comparticipar nas despesas de reconversão, que são consideradas provisões ou adiantamentos até à aprovação das contas finais da administração conjunta, de acordo com o nº1 do artº 16º-C da Lei 91/95 supra citado.
Como é sabido, os adiantamentos de verbas tanto podem respeitar à antecipação de rendimentos como à dotação de meios, com vista à prestação de serviços, para fazerem face a despesas antes de elas ocorrerem.
Por seu turno, a provisão é uma reserva constituída com o objectivo de reconhecer responsabilidades cuja natureza esteja claramente definida e que à data do balanço contabilístico sejam de ocorrência provável ou certa, mas cujo valor ou data de ocorrência permaneçam incertas, destinando-se a que se constituam reservas financeiras para acontecimentos incertos mas prováveis.”.

Por isto, em nosso entender, no caso dos autos, encontramo-nos perante uma prestação unitária fraccionada ou repartida, estando sujeita ao regime prescricional de 20 anos (cfr. art. 319º do Cód. Civil) e não de 5 anos (cfr. art. 310º, al. g) do Cód. Civil), acompanhando a jurisprudência firmada no citado Acórdão do TRL de 20/03/2014, Magda Geraldes, e nos Acórdãos do mesmo Tribunal de: 16/09/2008, João Aveiro Pereira; 14/11/2017, Manuel Marques; e 17/06/2021, Laurinda Gemas – todos acessíveis em www.dgsi.pt.

Por outras palavras: a dívida exequenda (capital e juros, porquanto quer a comparticipação devida por cada lote para as obras realizadas no Bairro anteriormente à entrada em vigor da Lei 91/95, no valor de € 7.255,24, quer os respectivos juros, à taxa legal, calculados desde 01/01/1995, foram aprovados na mesma deliberação tomada na reunião da assembleia cuja acta constitui o título executivo dado à execução) reveste a natureza de uma prestação instantânea, unitária, não se estando perante “quaisquer outras prestações periodicamente renováveis”. Donde, não ocorreu a prescrição quinquenal como pretende o apelante, não sendo de aplicar o regime da prescrição de curto prazo, previsto no art. 310º, nº 1, al. g), do Cód. Civil, mas sim, o prazo ordinário de 20 anos contemplado no art. 309º deste diploma legal, pelo que o crédito exequendo (capital e juros, como vimos) posto em crise pelo apelante não se encontra prescrito, tal como decidiu a decisão recorrida.

Relativamente às demais considerações feitas pelo apelante em sede deste recurso a propósito da excepção da prescrição ora em análise, máxime, atinentes à alegada falta de disponibilização ao apelante, para consulta, pela comissão de administração na respectiva sede, da documentação da administração conjunta da AUGI, remetemos para o que acima deixámos dito sobre a sede processual própria para impugnação da deliberação em causa ser a acção de impugnação judicial de tal deliberação nos termos do mencionado art. 12º, nºs 6 e 8 da Lei nº 91/95, de 02/09, e não estes embargos de executado.

Assim, improcede a apelação quanto à excepção de prescrição, sendo de manter também nesta matéria, a decisão recorrida. O que se decide.

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Por todo o exposto, são improcedentes todas as conclusões do apelante, sendo de manter, in totum, a decisão recorrida.

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As custas devidas pela presente apelação são da responsabilidade do apelante – cfr. art. 527º, nºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil e art. 1º, nºs 1 e 2 do Regulamento das Custas Processuais.

V.DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa em julgar a presente apelação improcedente, e, em consequência, manter a decisão recorrida.
Custas pelo apelante.

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Lisboa, 14 de Setembro de 2021

Cristina Silva Maximiano
Maria Amélia Ribeiro
Ana Resende