Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7/19.4TNLSB-B.L1-7
Relator: JOSÉ CAPACETE
Descritores: ARRESTO
APARÊNCIA DE DIREITO
CLÁUSULA PENAL MORATÓRIA
JUSTO RECEIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Sumário: 1. O decretamento da providência cautelar de arresto depende da alegação e prova de concretos factos jurídicos, materiais, que tornem provável a existência do crédito e a justificação do receio invocado, competindo ainda ao requerente relacionar os bens que devem ser apreendidos e com todas as indicações necessárias à realização da diligência.
2. A cláusula penal é uma forma de liquidação prévia do dano, que dispensa o recurso às normas estabelecidas para efeito do cálculo da indemnização, ou seja, trata-se de uma forma de fixação antecipada e convencional do “quantum respondeatur”, em caso de inadimplemento (cláusula penal “compensatória”) ou de mora (cláusula penal “moratória”) do devedor.
3. A lei portuguesa não permite cumular a cláusula penal compensatória com a indemnização, determinada segundo as regras gerais, do dano relativo ao não-cumprimento definitivo da obrigação (indemnização compensatória), nem a cláusula penal moratória com a indemnização segundo as regras gerais, do dano correspondente ao atraso no cumprimento da obrigação (indemnização moratória).
4. O justo receio de extravio ou dissipação dos bens a arrolar mais não é do que uma conclusão de facto, devendo assentar em factos reais, em índices apreensíveis pelo comum das pessoas, que mostrem que o alegado receio é objectivamente fundado.
5. Assim, para que seja decretado o arresto é indispensável que o credor alegue e prove concretos factos jurídicos, reais, materiais, demonstrativos, ainda que indiciariamente, que o devedor praticou atos ou assumiu atitudes que inculquem a suspeita de que ele pretende subtrair os seus bens à acção dos credores.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa
I – RELATÓRIO:
RM, Lda, intentou contra a MN, Lda., o presente procedimento cautelar de arresto, alegando, em suma, que celebrou com a requerida um contrato de empreitada nos termos do qual esta se comprometeu a reparar, num prazo determinado, a embarcação de recreio dada em comodato à requerente.
Tal prazo não foi observado, tendo as partes acordado na sua prorrogação por diversas vezes e, a partir de certa altura, no pagamento pela requerida à requerente, de uma indemnização por cada dia de atraso na conclusão da obra.
Os sobreditos prazos não foram cumpridos, tendo a requerida devolvido a embarcação à requerente sem ter terminado a obra, computando-se aquela indemnização no montante global de € 31.200,00.
A requerida não quer pagar quantia alguma à requerente e pretende encerrar o seu estabelecimento, sendo certo que não lhe é conhecido qualquer outro património.
A requerente tem fundado receio de perder a garantia patrimonial do crédito que detém sobre a requerida.
Conclui assim o requerimento inicial que introduziu em juízo o presente procedimento cautelar de arresto:
«Termos em que e nos mais de Direito, deve a presente providência cautelar de arresto ser julgada procedente por indiciariamente provada e, consequentemente, ser ordenado o arresto de todos os bens móveis que compõem o recheio do estabelecimento MN, o qual é explorado pela Requerida, bem como de contas bancárias de que a Requerida seja titular em quaisquer instituições bancárias portuguesas, para garantia do crédito da Requerente no valor de pelo menos € 31.200,00 (trinta e um mil e duzentos euros).»
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O procedimento cautelar foi liminarmente admitido, procedendo-se à inquirição das testemunhas arroladas pela requerente, diligência na qual foi requerido que o arresto incidisse ainda sobre o crédito de que a requerida é detentora na DGPC, no montante de € 5.268,34, em consequência da adjudicação de um contrato público para a manutenção de duas embarcações, tendo o juiz a quo relegado, indevidamente, a nosso ver, para sede de decisão final, a apreciação de tal pretensão, no caso de o arresto vir a ser decretado.
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Após a inquirição das testemunhas indicadas pela requerente foi proferida sentença que julgou improcedente, por não provado, o presente procedimento cautelar, com a consequente absolvição da requerida do pedido de arresto contra si formulado.
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A requerente não se conformou com tal decisão, pelo que dela interpôs o presente recurso de apelação, concluindo assim as respetivas alegações:
I - A resolução de um contrato de empreitada de obra de reparação de um navio, por incumprimento definitivo por parte do reparador, verificada muito para lá do prazo de conclusão da obra contratualizado, não obsta a que o dono de obra peticione, cumulativamente com aquela resolução, a indemnização pela mora, traduzida na satisfação de cláusulas penais contratualmente assumidas pelo reparador para o caso de atrasos sobre a data prevista de entrega da obra pronta.
II. Consequentemente, constatado o atraso na entrega da obra pronta, constitui-se a favor do dono de obra um direito de crédito pela morada traduzido na aplicação dessa cláusula penal, pelo que provado que esteja também o periculum in mora, o que ocorre nos autos, deverá ser decretado o arresto dos bens do empreiteiro inadimplente.
III. O despacho-sentença recorrido viola assim os art.º 810.º e 811.º do Código Civil e art.º 391.º do Código de Processo Civil.
IV. Deve, assim, ser revogada a douta sentença, julgando-se procedente o procedimento cautelar de arresto, nos termos peticionados no requerimento inicial, completados por requerimento apresentado oralmente na data da audiência de inquirição.
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II – ÂMBITO DO RECURSO:
Nos termos dos arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do CPC, é pelas conclusões da recorrente que se define o objeto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objeto do recurso.
Assim, perante as conclusões da alegação da apelante, a única questão que se coloca neste recurso consiste em saber se estão reunidos os pressupostos de que a lei faz depender o decretamento da providência cautelar requerida.
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III – FUNDAMENTOS:
3.1 – Fundamentação de facto:
A sentença recorrida considerou indiciariamente provada a seguinte factualidade:
a) A requerente é uma sociedade comercial que se dedica à actividade marítima turística, pesca desportiva, aluguer de barcos com e sem tripulação e malacologia.
b) A Requerida é uma sociedade comercial que se dedica, além do mais, à reparação de barcos.
c) A Requerente é comodatária da embarcação HGD 35, actualmente denominada por PRM, registada sob o n.º _____ (anteriormente denominada PRM e com o conjunto de identificação _____), tendo como obrigação mantê-la em perfeito estado de conservação, suportando as despesas necessárias à reparação e manutenção da referida embarcação, nos termos da alínea a) da Cláusula 4.ª de contrato celebrado com a sua proprietária, a CVS, Lda.;
d) A embarcação PRM destinava-se a ser utilizada pela Requerente no âmbito da sua actividade comercial.
e) A Requerente não é proprietária de outras embarcações e a PRM era a única que poderia utilizar para o efeito.
f) Devido à necessidade de reparação desta embarcação, a Requerente contactou a Requerida, tendo-a questionado se tinha conhecimentos e disponibilidade para levar a cabo obras de reparação necessárias a colocar a embarcação em perfeito estado de funcionamento para os fins para que seria utilizada.
g) Nesta conformidade, a Requerida apresentou o seu orçamento, com a discriminação de valores e prazos para a dita reparação.
h) O orçamento compunha-se de quatro fases de obra, sendo que apenas a primeira vinha orçamentada (nos termos do documento n.º 6 junto com a petição inicial), ficando as demais para apresentação futura, após desmontagem parcial da embarcação.
i) O prazo para realização da obra seria de 4 (quatro) meses, indicando a Requerida que a embarcação estaria pronta em Abril de 2017.
j) A Requerente aceitou o orçamento em apreço.
k) Em Janeiro de 2017, entregou a embarcação PRM à Requerida e pagou a primeira fase da obra, entregando-lhe € 13 000, com IVA incluído à taxa de 23%, para que a mesma iniciasse a obra de reparação.
l) Em 11 de Maio de 2017, já decorrido o prazo indicado pela Requerida e aceite pela Requerente, esta deslocou-se ao estaleiro daquela na Marina de Cascais, onde pôde constatar que a primeira fase da obra não estava concluída.
m) A 15 de Maio de 2017, a Requerente deu conhecimento, por escrito, do seu descontentamento pelo estado da obra à Requerida, mediante correio electrónico (nos termos do documento n.º 8 junto da petição inicial) no qual alertava que o prazo de conclusão da obra não fora cumprido e aludindo ao facto do atraso lhe estar a causar sérios prejuízos financeiros.
n) Em 26 de Junho de 2017, a Requerente enviou novo correio electrónico (nos termos do documento n.º 9 junto com a petição inicial) à Requerida demonstrando, uma vez mais, o seu descontentamento pelo continuado atraso, agora já próximo dos dois meses.
o) Face à ausência de respostas às preocupações demonstradas pela Requerente, esta agendou uma reunião com a Requerida, a qual teve lugar no dia 24 de Outubro de 2017 no estaleiro da Requerida na Marina de Cascais e na qual a Requerida se comprometeu a concluir a obra até ao dia 22 de Dezembro de 2017 e acordou então no pagamento à Requerente de uma indemnização no valor de € 50 por cada dia de atraso na conclusão da obra.
p) Perante o novo atraso no prazo de conclusão da reparação, no dia 23 de Janeiro de 2018, e dado que reservara já um lugar para a embarcação na Doca de Belém, que não poderia perder, a Requerente passou a pagar dois estacionamentos, um na Marina de Cascais, onde a embarcação PRM permanecia à guarda da Requerida e outro na Doca de Belém.
q) E dado que tal resultava do novo atraso, a Requerente informou por e-mail a Requerida de que iria debitar o custo de € 505,21 (IVA incluído), que assim em duplicado era obrigada a suportar.
r) Sucede que a Requerida não só não respondeu a este e-mail nem tão pouco pagou à Requerente a mensalidade referente ao estacionamento na Doca de Belém, no valor de € 505,21 por mês, ou a penalização que a própria aceitara, de € 50,00 por dia de atraso.
s) Assim, a Requerente e a Requerida reuniram-se de novo no dia 07 de Março de 2018, tendo-se a Requerida comprometido com o novo prazo, de 31 de Março de 2018, para entrega da embarcação, pronta e apta a navegar.
t) No dia 19 de Março de 2018, a duas semanas do fim novo do prazo de entrega, a Requerente, alertou a Requerida para o facto de ter acordado uma parceria da qual iria depender a utilização da embarcação.
u) Demonstrou ainda à Requerida os montantes que iria realizar com a operação, € 1.900,00/semana, apelando à sensibilidade desta, não só quanto ao cumprimento do prazo, como à qualidade dos trabalhos a efectuar na obra embarcação.
v) Verificando que o novo prazo acordado seria, uma vez mais, desrespeitado, a Requerente convocou a Requerida para nova reunião, a qual se realizou no dia 27 de Março de 2018 e a se fixou o novo prazo de entrega em 26 de Abril de 2018.
w) Mais se acordou então que, ultrapassado este prazo, seria actualizado o valor da indemnização, fixado na acta da reunião realizada a 24 de Outubro de 2017, por cada dia de atraso na conclusão da obra, para o montante diário de € 100,00.
x) No dia 17 de Maio de 2018, a Requerida deu a obra por concluída, tendo entregue a embarcação à Requerente.
y) No dia 26 de Junho de 2018, a Requerente declarou que não aceitava a conclusão da obra, identificando diversos defeitos documentados com as respectivas fotografias.
z) No espaço das últimas duas semanas, tomou a Requerente conhecimento por informações de fornecedores e prestadores de serviços da Requerida, de que esta estaria a encerrar o seu estabelecimento.
aa) A Requerente apenas conhece à Requerida o equipamento, maquinaria, peças e embarcações propriedade da Requerida que se encontram no seu estabelecimento.
bb) A Requerida não tem qualquer intenção de pagar voluntariamente quaisquer montantes à Requerente por conta da reparação da embarcação ajuizada.
A sentença recorrida considerou indiciariamente não provada a seguinte factualidade:
1. Resultou indiciariamente não provado que a Requerida foi formalmente interpelada no dia 30 de Outubro de 2018.
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3.2 – Enquadramento jurídico:
Uma primeira nota para salientar que muitos são os enunciados de facto considerados indiciariamente provados em que é feita referência aos documentos que lhes servem como fonte de conhecimento.
Ora, o teor dos enunciados de facto correspondentes aos juízos probatórios deve ser depurado de referências aos meios de prova ou às respectivas fontes de conhecimento.
As referências aos meios de prova, quando muito, podem constituir argumento probatório, a consignar na motivação, para fundamentar um juízo afirmativo ou negativo, pleno ou restritivo, do facto em causa[1].
Dispõe o art. 619.º, n.º 1, do C.C.:
«1. O credor que tenha justo receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor, nos termos da lei de processo.»
Dispõe o art. 391º do CPC:
«1. O credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor.
2. O arresto consiste numa apreensão judicial de bens, à qual são aplicáveis as disposições relativas à penhora, em tudo quanto não contrariar o preceituado nesta subsecção.»
Acrescenta o art. 392º, nº 1 do mesmo código que «o requerente do arresto deduz os factos que tornam provável a existência do crédito e justificam o receio invocado, relacionando os bens que devem ser apreendidos, com todas as indicações necessárias à realização da diligência.»
Decorre dos citados preceitos que o decretamento do arresto, providência cautelar conservatória especificada, consistente na apreensão judicial de bens do devedor, visando a garantia de um direito de crédito, depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos
a) a probabilidade séria do requerente ser titular de um direito de crédito sobre o requerido;
b) a existência de um fundado receio de que este venha a dissipar o seu património, assim inutilizando, consequentemente:
- o efeito útil da sentença condenatória a ser proferida na ação principal respetiva; ou
- a efetividade da execução.
Ou seja, para que o arresto seja decretado, é necessário que o requerente alegue e prove concretos factos jurídicos, materiais, que tornem provável a existência do crédito e a justificação do receio invocado, competindo-lhe ainda relacionar os bens que devem ser apreendidos e com todas as indicações necessárias à realização da diligência, conforme previsto no art. 392.º, n.º 1, do C.P.C.
Vejamos, então, se, in casu, se mostram verificados ambos os referidos requisitos, sendo que a providência cautelar solicitada é dependente de uma ação já proposta, e visa acautelar os efeitos da providência definitiva requerida em tal ação, na pressuposição, obviamente, por parte da requerente de que lhe será favorável a decisão final a proferir no processo principal.
Quanto ao primeiro dos referidos requisitos, ou seja, a probabilidade séria do requerente ser titular de um direito de crédito sobre o requerido:
Os arts. 619.º, n.º 1, do C.C., e 392.º, n.º 1, do C.P.C., não exigem a prova da existência certa do crédito, mas apenas a sua existência provável.
Outrossim, tais disposições também não exigem um crédito declarado, antes se contentando com um crédito a declarar.
Por outro lado, há que distinguir entre crédito ilíquido e crédito futuro.
Neste procedimento cautelar a ora apelante afirma ter celebrado com a ora apelada um contrato de empreitada nos termos do qual esta comprometeu para com aquela, mediante o pagamento de um preço, a proceder à reparação de uma embarcação, tendo sido de quatro meses o prazo inicialmente acordado para a realização da obra, o qual não foi cumprido pela apelada.
Em 24 de outubro de 2017, após o decurso do prazo inicialmente acordado para a conclusão da obra, a apelada comprometeu-se a concluí-la até ao dia 22 de dezembro de 2017, tendo, então, ficado acordado que esta indemnizaria aquela à razão de € 50,00, por cada dia de atraso na conclusão da obra após esta última data.
Sucede que a apelada não concluiu a obra na referida data de 22 de dezembro de 2017.
Em nova reunião ocorrida entre as partes no dia 27 de março de 2018, a apelada comprometeu-se a concluir a obra até ao dia 26 de abril de 2018, tendo, então, ficado acordado que esta indemnizaria aquela à razão de € 100,00, por cada dia de atraso na conclusão da obra após esta última data.
No dia 17 de maio de 2018, ultrapassado o prorrogado prazo, a apelada deu a obra por concluída e entregou a embarcação à apelante, a qual, no dia 26 de junho de 2018, declarou que não aceitava a conclusão da obra.
A apelante considera indiciariamente verificado o seu direito a exigir da apelada a quantia de € 31.200,00, correspondente à indemnização que a apelada se comprometeu a pagar-lhe, «pela estrita mora na entrega da obra».
Assim, prossegue, «de 22.12.2017 de 2017 até 30.10.2018, data em que a Requerida foi formalmente interpelada, somam-se 312 dias que, multiplicados pelo valor fixado de € 100,00 (cem euros) se traduz no montante de € 31.200,00 (trinta e um mil e duzentos euros.»
É este o crédito de que a apelante se considera titular sobre a apelada e relativamente ao qual afirma ter justificado receio de perder a respetiva garantia patrimonial[2].
Sucede que a apelante, na ação principal, após invocar, tal como o veio a fazer neste procedimento cautelar, o incumprimento contratual por parte da requerida, pede:
a) que seja «declarado como resolvido o contrato celebrado entre a Autora e a Ré, bem como»,
b) que a ré seja «condenada no pagamento à Autora da quantia de € 104.612,23 (...), em sede de responsabilidade civil contratual, ou assim não se entendendo»,
c) «Subsidiariamente, caso V. Exa. não julgue não ser devida uma indemnização pelo proveito não obtido durante o tempo de imobilização, ainda então ser a Ré condenada no pagamento da “quantia de”[3] € 79,785,32, valor referente aos pagamentos feitos por serviços não cumpridos e indemnização pela mora»,
c) «Tudo acrescido de juros que se venham a vencer desde a data da citação para os presentes autos (...)».
Ou seja, a aqui apelante pede, na ação principal, a condenação da aqui apelada:
- a restituir-lhe a quantia que lhe pagou pelos trabalhos realizados no âmbito do contrato de empreitada;
- a pagar-lhe a quantia de € 4.726,89, correspondente à quantia que pagou pelo estacionamento da embarcação na marina de Belém durante nove meses;
- a pagar-lhe a quantia de € 51.300,00, «pela expetativa de faturação semanal de € 1.900,00 (...), contados desde a data de incumprimento do 24.04.2018 até à data em que a Ré foi interpelada»;
- a pagar-lhe a quantia de € 31.200,00[4], neste caso com a seguinte fundamentação: «Caso não se entenda devido o valor da expetativa de faturação, que a Autora não pôde receber entre a data prevista para a conclusão da reparação e a data da entrega da do barco, sempre a Ré deve ser condenada no pagamento das indemnizações que se comprometeu a pagar, pela estrita mora a entrega da obra. Assim, de 22.12.2017 até 30.10.2018, data em que a Ré foi formalmente interpelada, somam-se 312 dias que, multiplicados pelo valor fixado de € 100,00 (...) se traduz no montante de € 31.200,00 (...).».
Dispõe o art. 810.º, n.º 1, do C.C., que «as partes podem fixar por acordo o montante da indemnização exigível: é o que se chama cláusula penal.»
A cláusula penal é, assim, a convenção através da qual as partes fixam o montante da indemnização a satisfazer em caso de eventual incumprimento do contrato, incumprimento esse que pode ser definitivo ou traduzir-se em simples mora.
Com ela é previamente fixado o montante da indemnização devida.
Em tais casos não há que averiguar se o credor sofreu ou não prejuízos e muito menos qual o seu montante, em caso afirmativo.
Conforme refere Pessoa Jorge, «pela cláusula penal opera-se a liquidação antecipada e convencional dos prejuízos que resultariam do não cumprimento, evitando indagação e prova dos mesmos.»[5].
Para Pinto Monteiro «cláusula penal é a estipulação mediante a qual as partes convencionam antecipadamente - isto é, antes de ocorrer o facto constitutivo de responsabilidade - uma determinada prestação, normalmente uma quantia em dinheiro, que o devedor deverá satisfazer ao credor em caso de não cumprimento perfeito (“máxime” em tempo) da obrigação.
Constitui, deste modo, uma forma de liquidação prévia do dano, dispensando o recurso às normas estabelecidas para efeito do cálculo da indemnização. A cláusula penal é uma forma de fixação antecipada e convencional do “quantum respondeatur”, em caso de inadimplemento (cláusula penal “compensatória”) ou de mora (cláusula penal “moratória”) do devedor.»[6].
No caso concreto, tal como a apelante estrutura o requerimento inicial com que introduziu em juízo o presente procedimento cautelar de arresto, estamos efetivamente, tal como referido na sentença recorrida, perante uma cláusula penal moratória.
Dispõe o art. 811.º, n.º 2, do C.C., que «o estabelecimento da cláusula penal obsta a que o credor exija indemnização pelo dano excedente, salvo se outro for a convenção das partes.»
Portanto, em princípio, estabelecida uma cláusula penal, não pode o credor exigir uma indemnização pelo dano excedente.
Pronunciando-se sobre a citada disposição legal, afirma Calvão da Silva que «a nossa lei não permite, assim, cumular a cláusula penal e a indemnização segundo as regras gerais, justamente porque aquela é indemnização “à forfait” fixada preventivamente. Permitir o seu cúmulo significaria uma de duas coisas: ou admitir uma cláusula penal puramente compulsória-sancionatória (“penality clause”) ou admitir, duas vezes a indemnização do credor: uma, a cláusula penal, que é uma indemnização “à forfait”; a outra, a indemnização segundo as regaras gerais. Foi tudo isto que o legislador não quis: nem cláusula penal puramente coercitiva nem indemnização por duas vezes.
Porque a cláusula penal - seja compensatória ou moratória - tem (ainda) por objectivo, segundo a nossa lei, a fixação prévia da indemnização, não é admitida cumulação de ambas, tomando aquela apenas o lugar desta. Não é possível, precisemos, cumular a cláusula penal compensatória com a indemnização, determinada segundo as regras gerais, do dano relativo ao não-cumprimento definitivo da obrigação (indemnização compensatória), nem a cláusula penal moratória com a indemnização segundo as regras gerais, do dano correspondente ao atraso no cumprimento da obrigação (indemnização moratória).»[7].
Perante isto, e como bem se refere na sentença recorrida, «(...) revestindo-se de natureza de cláusula penal moratória, isto é, constituindo a previsão de uma pena para os casos de simples mora no cumprimento da obrigação, não se vislumbra como é que as sobreditas estipulações[8] podem ser accionadas num caso em que, à luz do alegado pela Requerente (quer nestes autos, quer nos principais), a Requerida incumpriu definitivamente o contrato celebrado entre as partes, dada a suposta recusa manifesta em concluir os trabalhos acordados, sendo, aliás, esta a razão pela qual na acção declarativa foi peticionada a declaração de resolução do negócio ajuizado.
Com efeito, a resolução do negócio, para além de ser contraditória com a compulsão do devedor ao cumprimento, típica das cláusulas penais moratórias, obsta à exigibilidade da pena por três ordens de motivos.
Primeiro, sendo a cláusula penal um elemento acessório, a resolução do contrato, que a lei equipara à invalidade (art. 433.º do CC), implica a sua caducidade.
Depois, o dano consequente à resolução é de natureza distinta do dano decorrente do atraso no cumprimento: naquele, a indemnização visa reparar o dano que o credor não sofreria se o contrato não tivesse sido celebrado; neste, a mora obriga o devedor a reparar os danos causados ao credor pelo atraso culposo no cumprimento, ou seja, aqueles que o credor não sofreria se o contrato tivesse sido pontualmente cumprido.
Finalmente, a resolução liberta o credor da contraprestação ou permite-lhe reavê-la, o que está em manifesta contradição com a exigência da pena moratória, pois esta não o dispensa da sua obrigação.»
Por isso, e continuamos a acompanhar a sentença recorrida, «neste contexto, é patente que a Requerente não dispõe do direito de que se arroga contra a Requerida, atenta a sua contrariedade com a pretensão principal que deduziu na acção declarativa e da qual o presente procedimento depende instrumental e acessoriamente.»
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E quanto ao segundo dos referidos requisitos de que a lei faz depender a procedência da providência cautelar de arresto, ou seja, a existência de um fundado receio de que a apelada venha a dissipar o seu património, assim inutilizando, consequentemente:
- o efeito útil da sentença condenatória a ser proferida na ação principal respetiva; ou
- a efetividade da execução?
Sucede que, ainda que se mostrasse verificado o primeiro dos requisitos em que a lei faz assentar o deferimento da providência, sempre teríamos de concluir pela não verificação do segundo requisito.
Na verdade, ao longo do requerimento inicial, a ora apelante não alegou factos jurídicos concretos dos quais, a provarem-se, ainda que indiciariamente, pudesse resultar verificado o justificado receio da perda da garantia patrimonial.
Como se sabe, não basta o receio subjetivo de ver insatisfeita a pretensão a que se tem ou se julga ter direito.
O que é decisivo é que o credor fique ameaçado de lesão por ato do devedor e seja razoável e compreensível o seu receio de ver frustrado o pagamento do seu crédito.
Numa palavra, o receio, para ser considerado justificado (por exigência da lei), há-de assentar em factos concretos, que o revelem, à luz de uma prudente apreciação[9].
A este propósito, refere Abrantes Geraldes, que o justo receio «pressupõe a alegação e prova, ainda que perfunctória, de um circunstancialismo fáctico que faça antever o perigo de se tornar difícil ou impossível a cobrança do crédito.
(…).
Como é natural, o critério de avaliação deste requisito não deve assentar em juízos puramente subjectivos do juiz ou do credor (isto é, em simples conjecturas, como refere Alberto dos Reis), antes deve basear-se em factos ou em circunstâncias que, de acordo com as regras da experiência, aconselhem uma decisão cautelar imediata como factor potenciador da eficácia da acção declarativa ou executiva.»[10].
O justificado receio de perda da garantia patrimonial identifica-se com o chamado «periculum in mora» inerente a todo o procedimento cautelar - evitar a lesão grave e dificilmente reparável proveniente da demora na tutela da situação jurídica.
Quanto ao «periculum in mora», o legislador exige a formação de um juízo de segurança de iminência de sofrer um dano, isto é, o justo receio de prejuízo terá de se apresentar evidente e real.
É lógico que o critério de avaliação de tal requisito não deve conduzir à certeza inequívoca quanto à existência da situação de perigo, dificilmente obtida em processos com as características das providências cautelares.
Mas é necessário que se mostre suficientemente fundado esse pressuposto.
Significa isto que o requerente tem de alegar e provar factos concretos, objetivos e precisos que o revelem à luz de uma prudente apreciação, não bastando o receio subjetivo, fundado em simples conjeturas.
Como refere o Ac. da R.P. de 18-05-1993, Proc nº 9220796 (acessível em www.dgsi.pt), «o justo receio de extravio ou dissipação dos bens a arrolar é uma conclusão de facto, sendo necessário que os factos alegados e provados denotem que tal receio é sério e real, pois não basta a componente subjectiva do justo receio de extravio ou dissipação para se detetar o arrolamento.»
De igual modo, como decidiu o Ac. da R. C. de 30-04-2002 (Proc. nº 1448/02, acessível em www.dgsi.pt), «o justo receio de perda da garantia patrimonial do credor tem que assentar em factos reais, em índices apreensíveis pelo comum das pessoas, que mostrem que o alegado receio é objectivamente fundado. Para que seja decretado o arresto é indispensável que o devedor tenha praticado actos ou assumido atitudes que inculquem a suspeita de que ele pretende subtrair os seus bens à acção dos credores.»[11].
A verdade, como se referiu, é que «in casu» não vem alegado qualquer facto jurídico concreto suscetível de, uma vez provado, ainda que indiciariamente, permitir a conclusão de que a ora apelada vem praticando atos ou assumindo atitudes no sentido do extravio ou delapidação do seu património, e que inculquem a suspeita de que pretenda subtrair os seus bens, nomeadamente os indicados pela apelante no requerimento inicial, à ação dos seus credores, no caso concreto, da própria apelante, pois limita-se a alegar:
- «Já na pendência dos autos de ação de que o presente procedimento é apenso e mais precisamente no espaço das últimas duas semanas, tomou a Requerente conhecimento por informações de fornecedores e prestadores de serviços da Requerida, de que esta estaria a encerrar o seu estabelecimento»[12] - art. 37.º do requerimento inicial;
- «Como é bom de ver, a única garantia de que a Requerente beneficia de que o seu crédito - caso reconhecido, como espera - virá a ser satisfeito e pago pela Requerida, resulta da garantia patrimonial geral oferecida pelo equipamento, maquinaria, peças e embarcações propriedade da Requerida que se encontram no referido estabelecimento» - art. 38.º;
- «Se a Requerida encerrar o estabelecimento, necessariamente disporá de tais bens, vendendo-os a terceiros ou, até, eventualmente, a outra sociedade detida, direta ou indiretamente, pelos mesmos sócios, por valores eventualmente inferiores aos praticados pelo mercado» - art. 39.º;
- «Facilmente dissipando o valor do preço auferido» - art. 40.º;
- «Acresce que durante o mês de Julho, está previsto o encerramento do estabelecimento explorado pela Requerida, não se lhe conhecendo quaisquer outros negócios ou outra fonte de rendimentos» - art. 47.º;
- «O que é o mesmo que dizer que, ressalvada a presente providência cautelar, a Requerente inevitavelmente verá perdido e incobrável o seu crédito» - art. 48.º;
«Do mesmo modo, também não se conhecem à Requerida quaisquer outros bens que possam responder pela quantia em dívida» - art. 49.º.
A sentença recorrida considerou indiciariamente provado que:
- «No espaço das últimas duas semanas, tomou a Requerente conhecimento por informações de fornecedores e prestadores de serviços da Requerida, de que esta estaria a encerrar o seu estabelecimento»[13] – ponto de facto z);
- «A Requerente apenas conhece à Requerida o equipamento, maquinaria, peças e embarcações propriedade da Requerida que se encontram no seu estabelecimento» - ponto de facto aa)[14].
Ora, nada disto constitui a alegação e prova de factos concretos, materiais, reais, demonstrativos de que é objetivamente fundado o receio alegado pela apelante de perda da sua garantia patrimonial; ou seja, nada disto constitui a alegação e prova de que a apelada vem praticando atos ou assumindo atitudes que inculquem a suspeita de que pretende subtrair os seus bens à acção dos credores.
Não se verificando qualquer um dos dois pressupostos cuja verificação cumulativa os arts. 619.º, n.º 1, do C.C., e 392.º, n.º 1, do C.P.C., exigem para o decretamento do procedimento cautelar de arresto, terá o presente recurso de apelação de ser julgado e improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.
*
IV – DECISÃO:
Por todo o exposto, acordam os juízes que integram esta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa, em julgar a apelação improcedente, mantendo, em consequência, a sentença recorrida.
Custas pela apelante – art. 527.º, n.ºs 1 e 2, do C.P.C.

Lisboa, 10 de setembro de 2019
(Acórdão assinado digitalmente)
Relator
José Capacete
Adjuntos
Carlos Oliveira
Diogo Ravara

[1] Tomé Gomes, Da Sentença Cível, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 2014, p. 23.
[2] O valor atribuído pela apelante ao procedimento cautelar foi precisamente de € 31.200,00.
[3] Certamente por lapso escreveu «entenda».
[4] Quantia correspondente, como se viu, ao crédito de que no âmbito da presente ação se considera titular para com a apelada.
[5] Direito das Obrigações
[6] Cláusulas Limitativas e de Exclusão de Responsabilidade Civil, Almedina, 2003, p. 136.
[7] Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 4.ª Edição, Almedina, 2002, pp. 258-259.
[8] - «Haverá uma penalização de 50,00 euros (cinquenta euros) diárias por atrasos de fim de obra (22 de Dezembro de 2017) a ser paga pela MN à RMP» (Cláusula 4.ª da Acta que constitui o documento n.º 15 da petição inicial, datado de 24 de Outubro de 2017)»;
- «Após essa data [24 de Outubro de 2017] e por cada dia de atraso na conclusão da empreitada, a sociedade “MN Lda” fica responsável pelo pagamento à RMP”, de uma compensação no montante de 100,00€ (cem euros) diários» (Cláusula 3.ª da Acta que constitui o documento n.º 22 da petição inicial, datado de 27 de Março de 2018).»
[9] Cfr. Jacinto Rodrigues Bastos, Notas, Vol. I, p. 268).
[10] Temas da Reforma do Processo Civil, IV Volume, pp. 176 e 177.
[11] Cfr. Ac. da R.L. de 06/21/2011, Proc. nº 1909/10.9TBPDL-A.L1-1 (Ana Grácio), in www.dgsi.pt.
[12] O destacado a negrito é da nossa autoria.
[13] O destacado a negrito é, uma vez mais, da nossa autoria.
[14] O enunciado vertido no ponto de facto transcrito bb) («A Requerida não tem qualquer intenção de pagar voluntariamente quaisquer montantes à Requerente por conta da reparação da embarcação ajuizada») é um juízo meramente conclusão, além de que em nada relava para a ponderação da verificação, ou não, do requisito consistente no fundado receio da perda da garantia patrimonial.