Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2380/09.3TBSXL-A.L1-6
Relator: CRISTINA NEVES
Descritores: CAUSA PREJUDICIAL
ACÇÃO EXECUTIVA
ACÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO NEGATIVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/28/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE/REVOGADA
Sumário: 1 Verdadeira causa prejudicial é aquela cuja decisão pode destruir o fundamento ou a razão de ser da causa dependente, e cuja resolução constitui pressuposto indispensável ao conhecimento do objecto (total ou parcial) dessa acção.

2 Não constitui causa prejudicial de uma acção executiva instaurada pela AUGI FF-45 e AUGI FF-46 em que se peticionam quantias decorrentes da reconversão de áreas de génese ilegal, a interposição de uma acção de simples apreciação negativa, pelos executados contra terceiro (já após a constituição do exequente e transmissão dos créditos para este), uma vez que nessa acção se visa a mera declaração da existência ou inexistência de um direito relativamente a quem ocupa a posição de Réu, não vinculando terceiros à mesma.

SUMÁRIO: (elaborado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.


RELATÓRIO:


SR e MF deduziram oposição à execução para pagamento de quantia certa, com processo comum, que lhe move a Administração Conjunta da AUGI Ff-45 e Ff-46, alegando em síntese:
A taxa de justiça devida pelo requerimento executivo não se mostra paga;
A exequente encontra-se indevidamente representada em juízo, por a procuração não obedecer aos termos estipulados na alínea g), nº 1 do artigo 15º da Lei nº 91/95, de 2 de setembro, com as alterações subsequentes;
A ata da assembleia e respectivos mapas não constituem título executivo existindo desconformidades entre os mapas apresentados;
A existência de uma causa pendente a correr termos no processo nº 5969/07.1TBSXL em que pede que seja declarado não dever as quantias peticionadas nesta execução;
A desconformidade dos juros peticionados com o nº 2 do artigo 16º-C da Lei nº 91/95 de 2 de Setembro.
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Notificada para tanto, a exequente contestou impugnando o alegado pelos embargantes, alegando estar paga a taxa de justiça, bem como que a sua representação em juízo obedece ao disposto na Lei nº 91/95 de 2 de Setembro (com as alterações subsequentes) e que a acta da Assembleia de condóminos e as respectivas deliberações são válidas e regulares, sendo devidas as quantias nela apostas.
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Foi proferido despacho que declarou suspensa a instância até que seja proferida sentença com trânsito em julgado na acção declarativa nº 5969/07.1TBSXL, com o fundamento de nesta acção, se discutir a existência de dívida dos executados relacionada com a reconversão da Augi FF-45 e FF-46.
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Após, foi proferido despacho que dispensando a audiência prévia por entender que a simplicidade da causa o justificava, passou a proferir de imediato sentença, julgando os embargos procedentes, como decorrência da decisão proferida na causa considerada prejudicial.
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Não se conformando com a decisão que considerou procedentes os embargos, interpôs a embargada/exequente recurso formulando, no final, as seguintes conclusões:
“1 De acordo com a douta sentença proferida, foi julgada procedente a oposição deduzida pelos Recorridos, com o único fundamento no facto de ter transitado em julgado a acção declarativa a declarar que os executados entre outros, nada devem à Associação de Moradores da Flor da Mata I.
2 Suporta o Tribunal a quo a sua decisão no raciocínio de que as despesas de comparticipação relacionadas com a reconversão da AUGI FF-45 e FF-46, foram fixadas pela Associação de Moradores da Flor da Mata I, à data a entidade gestora das obras, cuja cobrança passou a incumbir à AUGI, no sentido de que se não devem à Associação, nada devem também à AUGI.
3 Ora, não pode a Recorrente, salvo o devido respeito, concordar com tal posição.
4 Da análise da acção com o número de processo 5969/07.1TBSXL verifica-se que se trata de uma acção de simples apreciação, na qual a ora Recorrente não é parte.
5 Nessa acção vêm os autores requerer que seja reconhecida a inexistência de dívidas à Associação de Moradores da Flor da Mata I, onde, tratando-se de uma acção de simples apreciação, verificou-se a inversão do ónus da prova, cabendo assim à R. Associação de Moradores da Flor da Mata I provar a existência da dívida.
6 Sucede porém que com a publicação da Lei das AUGI foi criada a ora Recorrente, passando para a mesma todas as dívidas existentes, relativas à reconversão, pelo que não sendo a ora Recorrente parte na acção declarativa, o processo 5969/07.1TBSXL, não pôde a mesma efectuar prova dessas dívidas.
7 O que foi reconhecido na acção interposta foi que não tinham dívidas para com a Associação de Moradores da Flor da Mata I, já que era esse o seu pedido, nunca foi reconhecido que não tinham dívidas para com a ora Recorrente.
8 Não podendo assim a decisão proferida no âmbito da mesma, vinculá-la ao ponto de impedir de exercer o seu direito de ser ressarcida pelas dívidas existentes por parte dos comproprietários, nomeadamente, os ora Recorridos.
9 O Tribunal da Relação de Lisboa, já veio inclusive resolver esta questão por Acórdão transitado em julgado, proferido pela sua 6ª Secção Cível, no âmbito do processo 3990/13.0TBSXL, bastante clarificador, onde considera que a decisão obtida na acção de simples apreciação (Procº nº 5969/07.1TBSXL.1) não vincula o sucessor, neste caso a ora Exequente.
10 Acresce ainda que quanto a todas as outras questões suscitadas em sede de oposição e que não foram apreciadas pelo Tribunal A quo foram proferidas decisões em primeira instância que não deram qualquer provimento às oposições.
11 Assim e face ao supra exposto, requer-se a Vossas Excelências Senhores Juízes Desembargadores que seja dado provimento ao presente recurso e consequentemente, ser alterada a douta sentença proferida.
Nestes termos e nos demais de Direito que Vossas Excelências, Senhores Juízes Desembargadores, muito doutamente suprirão, deverá o presente recurso apresentado pela apelante ser julgado totalmente procedente e, em consequência, deve ser revogada a decisão recorrida, prosseguindo o processo executivo os seus termos até integral e efectivo pagamento da dívida, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!!”
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Não foram interpostas contra-alegações pelos embargantes.
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QUESTÕES A DECIDIR.

Nos termos do disposto nos Artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial. Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.

Tendo este preceito em mente, a única questão a decidir consiste em apurar:
a) Se a decisão proferida na acção nº 5969/07.1TBSXL, transitada em julgado, vincula a exequente, ora embargada e determina a procedência dos embargos e a extinção da execução.
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MATÉRIA DE FACTO.

É a seguinte a factualidade adquirida pelo tribunal recorrido:

“1) O exequente intentou a execução apensa contra os executados, com base na ata da assembleia geral da Administração Conjunta da AUGI FF-45 e FF-46, realizada em 26.02.2006, junta a fls. 48 e ss. que se dá por integralmente reproduzida.

2) Na referida ata sob o ponto quatro “apresentação do mapa de comparticipações dos lotes faltosos”, foi aprovado por “unanimidade o mapa de comparticipações, bem como a sua junção à ata da assembleia como anexo, passando assim a fazer parte integrante desta”, tendo por base “os valores aprovados no decurso da urbanização ao longo dos vários anos da sua existência”.

3) O exequente anexou ao requerimento executivo dois mapas, a fls. 6 e 7, sendo o segundo no valor de €6.691,07, peticionado na execução, constando do requerimento executivo que estão em causa “despesas de reconversão, que foram fixadas pela Associação de Moradores da Flor da Mata I, que à época era a entidade gestora das obras, deveriam ser pagas por todos os comproprietários. Com o resultado de duas auditorias chegou-se à conclusão de quais os comproprietários não tinham efectuado os respectivos pagamentos. Os executados por força da quota indivisa de que são proprietários são responsáveis pelas comparticipações respeitantes ao “lote 143” da respectiva Augi. O referido lote 143 tem como encargos com a reconversão o valor total de €6.691,07.”.

4) Os ora executados, juntamente com outros proprietários, intentaram acção de simples apreciação negativa contra a Associação de Moradores da Flor da Mata I, pedindo que seja declarado que nada devem a título de comparticipações pela reconversão da Augi, reportando-se à dívida exequenda, tendo sido proferida sentença transitada em julgado em que foi declarado que os autores (entre os quais os ora executados) não são devedores de qualquer quantia a este título. ” 
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DO DIREITO.

Alega a recorrente como fundamento do seu recurso, em síntese que a acção considerada como prejudicial a estes embargos e cuja decisão determinou a procedência dos mesmos, não constituía verdadeira causa prejudicial, uma vez que se tratava de acção de simples apreciação negativa intentada contra outra parte que não a exequente e cuja decisão a não vincula.

Decidindo          
              
a)- Se a decisão proferida na acção nº 5969/07.1TBSXL, transitada em julgado, vincula a exequente, ora embargada e determina a procedência dos embargos e a extinção da execução.

Considerou a decisão recorrida que “Nos termos do artigo 284º, nº 2 do anterior Código de Processo Civil (aplicável “ex vi” do disposto no artigo 6º, nº 4 da Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, que “Se a decisão da causa prejudicial fizer desaparecer o fundamento ou razão de ser da causa que estiver suspensa, é esta julgada improcedente.”.

Na presente execução visa-se a cobrança de uma alegada dívida dos executados referente a despesas de comparticipação relacionadas com a reconversão da AUGI FF-45 e AUGI FF-46, fixadas pela Associação de Moradores da Flor da Mata I, à data a entidade gestora das obras, cuja cobrança passou a incumbir à AUGI, conforme resulta do requerimento executivo.

Sucede que foi proferida decisão transitada em julgado a declarar que os executados nada devem à Associação de Moradores da Flor da Mata I no que toca a despesas de comparticipação atinentes ao processo de reconversão da AUGI, precisamente as peticionadas nos presentes autos de execução.

Nestas circunstâncias, atendendo a que a AUGI FF-45 e AUGI FF-46 reconhece no seu requerimento executivo que se encontra a cobrar uma dívida gerada junto da Associação de Moradores da Flor da Mata I relacionada com as despesas de comparticipação na reconversão da AUGI, tendo ficado demonstrado que os executados nada devem a esta entidade a este título, terá necessariamente de se concluir pela inexistência da dívida que a AUGI FF-45 e AUGI FF-46 visa cobrar, pelo que importa determinar a extinção da execução, sendo, pois, procedente a oposição.”

Ora, dispunha o artº 279 nº1 do C.P.C. na versão anterior à Lei 41/2013, sob a epígrafe da “Suspensão por determinação do Juiz, que “O tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado.”

Conforme ensina O Prof. José Alberto dos Reis, in “Comentário ao Código de Processo Civil”, Vol.3, pág. 206, “Uma causa é prejudicial em relação a outra quando a decisão daquela pode prejudicar a decisão desta, isto é, quando a procedência da primeira tira a razão de ser à existência da segunda.”

Mais adiante precisa que “sempre que numa acção se ataca um acto ou facto jurídico que é pressuposto necessário de outra acção, aquela é prejudicial em relação a esta.”

Por sua vez, para Jacinto Rodrigues Basto, em “Notas ao Código de Processo Civil”, 2ª edição, Vol. II, pág. 43, deve entender-se que a decisão de uma causa depende do julgamento de outra, quando “na causa prejudicial esteja a apreciar-se uma questão cuja resolução possa modificar uma situação jurídica que tem de ser considerada para a decisão de outro pleito.”

Ou seja, verdadeira causa prejudicial é aquela cuja decisão pode destruir o fundamento ou a razão de ser da causa dependente, e cuja resolução constitui pressuposto indispensável ao conhecimento do objecto (total ou parcial) desta acção. (neste sentido veja-se ainda o Ac. do TRL proferido no Proc. nº 7664/2007-1, em 22/01/07, relatado pelo Sr. Desembargador Rui Vouga), visando-se evitar que os tribunais ou as partes sejam confrontados com decisões sobre as mesmas questões, contraditórias entre si.

Ora, no caso em apreço, na acção nº 5969/07.1TBSXL os ora executados, juntamente com outros proprietários, intentaram acção de simples apreciação negativa contra a Associação de Moradores da Flor da Mata I, pedindo que seja declarado que nada devem a título de comparticipações pela reconversão da Augi, tendo sido proferida sentença transitada em julgado em que foi declarado que os autores (entre os quais os ora executados) não são devedores de qualquer quantia a este título à Associação de Moradores da Flora da Mata 1.

As acções de simples apreciação negativa, de acordo com o disposto no artº 4º, nº2, alínea a) do CPCivil (actual 10 nº3 a) têm por fim «(…) obter unicamente a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto;».

Trata-se assim, de uma providência judicial destinada a pôr termo a uma incerteza objectiva susceptível de colocar em crise o valor de uma determinada relação jurídica. Versando esta acção sobre uma relação jurídica concreta e precisa e com a qual não se pretende, não se visa e não se pode concluir, por uma qualquer condenação, pois o que se pretende é uma declaração de que um determinado direito ou facto não existe (cfr. a este propósito José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume 1º/19; Miguel Teixeira de Sousa, Introdução ao Processo Civil, 1993, 15, Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, 1º, 207; Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, 85; Anselmo de Castro Direito Processual Civil Declaratório, Vol. I., 115/117; Ac STJ de 21 de Fevereiro de 2006 (Relator Fernandes Magalhães) e de 14 de Novembro de 2006 (Relator Silva Salazar), in SASTJ, site do STJ.)[1]

Neste tipo de acções, visa-se a mera declaração da existência ou inexistência de um direito, sendo que o ónus da prova dos factos constitutivos do direito que se arroga, nos termos do artigo 343º, nº1 do CCivil, compete a quem ocupa a posição de Réu neste tipo de acções.

Ora a ora exequente, não foi parte nessa acção, mas antes a Associação de Moradores da Flor da Mata 1, conforme dela consta, sendo certo que a exequente viera assumir as funções da referida associação a partir de Novembro de 2003.

A referida acção porque intentada contra outro que não o exequente e por dirigida contra quem já não detinha as funções de promoção e legalização da área urbana de génese ilegal, não vincula a ora exequente porque nela não foi demandada, nem se pode defender (nomeadamente cumprindo o ónus de prova à R.) e não a vincula ainda devido à génese da referida acção.

O que foi peticionado e declarado é que os nela AA. nada deviam à Associação de Moradores da Flora da Mata I e não que nada devessem à exequente, sendo certo que nessa data já ocorrera a transmissão da titularidade do crédito.

Conclui-se pois que nem essa acção era prejudicial aos presentes autos, nem a sua procedência destruiu a razão de ser da execução, conforme defendido pelo tribunal recorrido, nem tem autoridade de caso julgado perante a exequente.
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DECISÃO.

Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da relação, em julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida e determinando o prosseguimento dos autos.
Custas pela parte vencida afinal.


Lisboa 28 de Junho de 2018


                                           
(Cristina Neves)
(Manuel Rodrigues)                                          
(Ana Paula A.A. Carvalho)

                                           

[1]Ac. do S.T.J. de 25/02/2014, relatora Ana Paula Boularot, Proc. nº 251/09.2TYVNG-H.P1.S1, disponível para consulta in www.dgsi.pt