Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
658/13.0TVLSB.L1-6
Relator: ANABELA CALAFATE
Descritores: GABINETE PORTUGUÊS DA CARTA VERDE
DIREITO AO REEMBOLSO
LITISCONSÓRCIO PASSIVO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/16/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: - Na acção instaurada pelo Gabinete Português da Carta Verde para este exercer o seu direito ao reembolso contra o Fundo de Garantia Automóvel nos termos do art. 55º do DL 291/2007 de 21/08 não tem de ser também demandado o responsável civil pois não é uma acção destinada à efectivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação.
- Por isso, na presente acção não há preterição de litisconsórcio necessário passivo.

(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes no Tribunal da Relação de Lisboa


I – Relatório:

O Gabinete Português da Carta Verde instaurou acção declarativa sob a forma de processo ordinário em 05/04/2013 contra o Fundo de Garantia Automóvel, pedindo que o R. seja condenado a pagar-lhe a quantia de 113.743,64 € acrescida dos juros legais vencidos e que se vencerem até integral pagamento, a contar da data da citação.

Alegou, em síntese:
- em 09/07/2000 ocorreu um acidente de viação em Espanha, em que foi interveniente um veículo de matrícula portuguesa, QH-42-76, com estacionamento habitual em Portugal;
- conforme mencionado na DAAA esse veículo estaria seguro na companhia de seguros A...;
- decorrente daquele acidente, foi interposta acção judicial pelos lesados ocupantes do veículo QH-42-76 e o proprietário do outro veículo interveniente, este de matrícula espanhola;
- confirmada a existência de uma carta verde emitida pela seguradora A..., a seguradora A... espanhola passou a gerir o sinistro, visto representar aquela;
- no âmbito daquela gestão, a A... efectuou transação judicial com os lesados ocupantes do veículo de matrícula portuguesa e prosseguiu negociações com o proprietário da viatura espanhola;
- entretanto, a A... recebeu informação da sua representada A... da inexistência de seguro para o veículo QH-42-76, alegando carta verde falsa e recusando assumir o sinistro;
- perante a recusa da A... em assumir o sinistro e os pagamentos entretanto efectuados, a A... reclamou junto do organismo espanhol congénere, O..., com base na Convenção Multilateral de Garantia;
- em Abril de 2003 a O... contactou o Gabinete Português da Carta Verde solicitando informação sobre se o veículo de matrícula portuguesa teria o seu estacionamento habitual em Portugal e se a autorizava a gerir o processo de acordo com a Convenção Multilateral de Garantia;
- o Gabinete Português da Carta Verde assumiu o sinistro de acordo com a Convenção Multilateral de Garantia e autorizou a O... a prosseguir com a gestão do processo, do que deu conhecimento ao Réu Fundo de Garantia Automóvel em 12/01/2004;
- em 12/03/2008 o Gabinete Português da Carta Verde recebeu o pedido de reembolso por parte da O..., transmitiu esse facto ao Fundo de Garantia Automóvel em 13/03/2008 e reembolsou a O...  em 05/05/2008 pelo montante de 113.743,64 €;
- o Fundo de Garantia Automóvel recusa reembolsar essa quantia ao Gabinete Português da Carta Verde;
- pelo que o Gabinete Português da Carta Verde solicitou à O... a devolução dessa quantia, mas a O... respondeu que quem deve responder é o Autor;
- não existindo seguro válido para um veículo com estacionamento habitual num Estado membro da EU, a regularização do sinistro é assegurada pelo serviço nacional de seguros do país do acidente, que tem garantia de reembolso por parte do serviço nacional de seguros do Estado do estacionamento habitual (art. 6º do Regulamento de Serviços Nacionais de Seguros de 30 de Maio de 2002), neste caso o Fundo de Garantia Automóvel;
- a lei nacional do seguro obrigatório prevê nesse caso a obrigação de reembolso pelo FGA ao GPCV;
- não existindo no caso em apreço, seguro válido para o veículo QH-42-76 que causou o acidente ocorrido em Espanha, aplicam-se as regras comunitárias baseadas na presunção de seguro e assim  no estacionamento habitual do veículo.

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O Réu contestou, impugnando parte dos factos alegados na p.i. e invocando, em resumo:
- deve ser absolvido da instância por ilegitimidade passiva pois nos termos do nº 1 do art. 62º do DL 291/07 de 21/08 a acção deveria ter sido interposta contra o FGA e o responsável civil, ou seja, o proprietário e/ou condutor do veículo QH-42-76;
- nos termos do art. 55º do DL 291/2007 de 21/08 o FGA reembolsa o Gabinete Português da Carta Verde, desde que este demonstre que: o acidente ocorreu em território de outro país cujo serviço nacional de seguros tenha aderido ao Acordo entre os Serviços Nacionais de Seguros; o acidente ocorreu por responsabilidade do condutor da viatura matriculada ou habitualmente estacionada em Portugal; o veículo matriculado ou habitualmente estacionado em Portugal não beneficie de seguro válido ou eficaz à data do acidente;
- as indemnizações tenham sido adequadas e pagas aos lesados segundo a lex loci;
- ora, conforme alegado na p.i., a A... começou por confirmar a validade do seguro e perante isso a A..., em representação daquela, transacionou com os lesados, mas quatro meses depois, a A... alegou inexistência do seguro;
- a A..., face ao tempo decorrido, já não podia invocar judicialmente a inexistência do seguro e regularizou as indemnizações aos lesados;
- nos termos do art. 8º do Regulamento Geral do Conselho dos Serviços Nacionais de Seguros, a nulidade da carta verde tem de ser invocada no prazo máximo de três meses;
- a A... informou a O... da posição assumida pela A..., na qual não a reembolsaria das indemnizações pagas enquanto sua representante;
- por seu turno, a O... reembolsou a A... ao abrigo de uma condenação e transacção judicial enquanto representante da A... e no pressuposto da existência de um seguro considerado válido, pelo que a O... pagou mal, pois o pressuposto sine qua non para a intervenção da O... é que o veículo responsável pelo acidente não beneficie de seguro válido ou eficaz, o que não estava demonstrado judicialmente nem sequer alegado, mas sim o contrário;
- nesta medida, o Gabinete Português da Carta Verde não deveria ter reembolsado a O..., por não estar demonstrado um dos requisitos principais do Acordo entre Gabinetes Nacionais de Seguros que consiste na prova inequívoca da inexistência de seguro válido ou eficaz para o veículo matriculado em Portugal.
Concluiu pela absolvição da instância e pela improcedência da acção.

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O A. apresentou réplica, sustentando, em suma:
- o A. não pretende discutir nestes autos as circunstâncias em que ocorreu o acidente nem o apuramento da responsabilidade civil dele decorrente;
- a causa de pedir assenta em factos que enquadram a responsabilidade do FGA no pagamento da quantia peticionada, por força do seu incumprimento das normas aplicáveis do Acordo Multilateral de Garantia, do Acordo entre os Serviços Nacionais dos Estados membros do espaço económico europeu e outros Estados associados de 30/5/2002 (aplicável desde 01/8/2004) e da Secção III do Regulamento Geral, tudo com fundamento nas regras baseadas no estacionamento habitual/presunção de seguro e não nas regras fundadas na existência de Carta Verde previstas na Secção II do Regulamento Geral (regras estas últimas específicas relativas às relações contratuais entre serviços nacionais de seguros baseadas na carta verde);
- a invocação do art. 8º do Regulamento Geral não deverá proceder, pois aquela norma refere-se apenas ao prazo para confirmação da validade de uma Carta Verde por um serviço nacional de seguros, fixando na falta de resposta no prazo de três meses, uma mera presunção ilidível, e não a nulidade da carta verde;
- a função de garantia do FGA, imposta pelo direito comunitário e legislação nacional que o transpôs para a nossa ordem jurídica não depende nem pode estar dependente, da aparência da existência de seguro, porque o sistema de garantia instituído se baseia na noção de estacionamento habitual e na presunção de seguro.

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Realizada audiência final, foi proferida sentença que julgou a acção procedente e condenou o R. Fundo de Garantia Automóvel a pagar ao A. Gabinete Português da Carta Verde a quantia de 113.743,64 €, acrescida de juros de mora, à taxa anual de 4%, contados desde 10/04/2014 até integral e efectivo pagamento.

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Inconformado, apelou o R. e tendo alegado, formulou as seguintes conclusões:
A) O Tribunal “a quo” julgou a acção totalmente procedente condenando o ora Recorrente no pedido.
B) Para tanto, restringiu os temas da prova e o litígio à mera comprovação da existência de um acidente de viação ocorrido em Espanha em que foi interveniente um veículo português que não beneficiava de seguro válido e eficaz.
B) Quando deveria ter entendido que a causa de pedir se destina à efectivação de responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, devendo para tanto, o Autor efectuar a respectiva prova sobre as circunstâncias do acidente e fundamentar os seus pagamentos nos termos do disposto no artº 55º do DLL 291/2007 de 21.08.
C) Pois, não basta que um veículo circule, sem seguro de responsabilidade civil automóvel válido ou eficaz, para que se lhe possa atribuir a responsabilidade pelo acidente, nem sequer presumi-la, devendo para tanto, ficar demonstrada a sua culpa na produção do mesmo, para que possa, no caso concreto o GPCV reembolsar o Gabinete gestor e consequentemente ser reembolsado pelo FGA.
D) E, por força disso demandar o responsável civil, devidamente identificado, solidariamente com o FGA, nos termos do disposto no nº 1 do art. 62º do mesmo diploma legal, sob pena de ilegitimidade.
E) Por outro lado, o Tribunal “a quo” não apreciou a Caducidade da Invocação da Falsidade da Carta Verde, que deveria ter sido invocada pela A... no prazo máximo de 3 meses, conforme disposto no Artigo 8º do Regulamento Geral do Conselho dos Serviço Nacionais de Seguros.
F) Pelo que, ao ser invocada a falsidade da Carta Verde apenas 4 meses depois, o seu direito já se encontrava caducado, logo a O... ao pagar à A..., pagou mal e consequentemente o GPCV ao pagar à O... também mal pagou.
G) Logo, também por este motivo não está o FGA obrigado a reembolsar  o GPCV.
G) A douta sentença recorrida, violou, assim, os artºs 54º, 55º e 62º nº 1, todos do DL 291/2007 de 21.08 e art. 8º do Regulamento Geral do Conselho dos Serviços Nacionais de Seguros.
Termos em que, revogando-se a douta sentença recorrida, no âmbito delimitado pelo objecto do presente recurso e absolvendo o Fundo de Garantia Automóvel do pedido, se fará, como sempre, Justiça.

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O A. contra-alegou defendendo a confirmação do julgado.

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Colhidos os vistos, cumpre decidir.

I – Questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, pelo que as questões a decidir são estas:
- se há preterição de litisconsórcio necessário passivo
- se estão verificados os pressupostos de facto e de direito para que o Gabinete Português da Carta Verde deva ser reembolsado pelo Fundo de Garantia Automóvel pelo montante que este despendeu em consequência de acidente ocorrido em Espanha em que foi interveniente um veículo matriculado em Portugal

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III – Fundamentação:
A) Na sentença recorrida vem dado como provado:
1) No dia 9 de Julho de 2000, em Espanha, o veículo automóvel de matrícula portuguesa QH-42-76 embateu num veículo automóvel de matrícula espanhola.
2) Em Novembro de 2000, a seguradora belga “A...” confirmou à seguradora espanhola “A...” a existência de uma carta verde por si emitida que cobria a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo QH-42-76.
3) Nesta sequência, a seguradora espanhola “A...” assumiu a gestão do sinistro automóvel enquanto correspondente da seguradora belga.
4) A seguradora espanhola celebrou transacção judicial com os lesados ocupantes do veículo QH-42-76 enquanto correspondente da seguradora belga.
5) Em Março de 2001, a seguradora belga comunicou à seguradora espanhola que a carta verde era falsa e recusou assumir a responsabilidade pelo sinistro.
6) À data referida em 5) a seguradora espanhola já tinha despendido determinado montante, a título de indemnização, com a regularização do sinistro.
7) Em virtude deste facto, a seguradora espanhola solicitou a intervenção do organismo congénere do autor, Oficina Española de Aseguradores de Automóviles, expondo-lhe os factos acima referidos.
8) Este organismo pagou à seguradora espanhola o montante indemnizatório suportado por esta, com o que despendeu, incluindo os encargos de gestão do sinistro, a quantia de €113.743,64 (cento e treze mil setecentos e quarenta e três euros e sessenta e quatro cêntimos).
9) O autor reembolsou, a 5 de Maio de 2008, o organismo congénere espanhol, a pedido deste, da importância referida em 8).
10) A responsabilidade civil emergente da circulação do veículo QH-42-76 não se encontrava transferida, à data do sinistro, para qualquer companhia de seguros, através de contrato de seguro, válido e eficaz.

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B) O Direito
Na data do acidente – 09 de Julho de 2000 - estava em vigor o Acordo Multilateral de Garantia entre Serviços Nacionais de Seguros assinado em Madrid em 15/03/1991 do qual foram signatários, entre outros, o «Diretor-geral adjunto Espanha pela Oficina Española de Aseguradores de Automoviles» e o «Presidente Portugal Pelo Gabinete Português da Carta Verde» (cfr art. 9º desse Acordo). Esse Acordo Multilateral está anexo à Decisão 91/323/CEE da Comissão, de 20/05/1991 sobre a aplicação da Directiva 72/166/CEE do Conselho relativa à aproximação das legislações dos Estados-membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de assegurar esta responsabilidade.
Nos considerandos da Decisão 91/323/CEE lê-se, além do mais:
«Considerando que os serviços nacionais reviram e unificaram os textos dos acordos complementares e os substituíram por um único acordo (o Acordo Multilateral de Garantia»), concluído em 15 de Março de 1991, em conformidade com os princípios estabelecidos no nº 2 do artigo 2º da Directiva 72/166/CEE;
Considerando que as decisões da Comissão relativas aos acordos complementares que impõem aos Estados membros que se abstenham de efectuar a fiscalização do seguro de responsabilidade civil em relação aos veículos que tenham o seu estacionamento habitual no território europeu de outro Estado-membro (…) devem, em consequência, ser revogadas e substituídas pela presente decisão (…)».
O art. 1º do Acordo Multilateral de Garantia entre Serviços Nacionais de Seguros de 15/03/1991 estabelece:
«a) Os serviços signatários actuam em nome de todas as seguradoras autorizadas a realizar, no respectivo país, operações de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.
(…)
d) Quando um veículo automóvel cujo estacionamento habitual é num dos territórios referidos no artigo 9º passar a circular num outro território referido no mesmo artigo e ficar sujeito ao seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel em vigor nesse território, o proprietário, possuidor, o utilizador e/ou o condutor são considerados como segurados, quer sejam ou não titulares de uma apólice de seguros válida.
e) Em consequência, cada serviço gestor assume a responsabilidade, de acordo com a legislação nacional e com a apólice de seguro, se existir, pela gestão e regularização de sinistros resultantes de acidentes causados por veículos sujeitos às disposições da legislação respeitante ao seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel no território daquele serviço, com estacionamento habitual no território de um serviço emissor.
(…)».
O art. 2º estabelece:
«Para efeitos do presente acordo, os termos e expressões abaixo indicados, terão, com exclusão de qualquer outro, o seguinte significado:
a) «Membro»: qualquer empresa de seguros ou grupo segurador membro de um serviço signatário;
(…)
c) «Apólice de seguro»: qualquer apólice de seguro emitida por um membro de um serviço emissor para cobertura de responsabilidades resultantes da utilização de um veículo.
d) «Sinistro»: qualquer pedido ou conjunto de pedidos de reparação feito por um terceiro decorrente de um acidente, cuja responsabilidade, ao abrigo da legislação do território no qual ocorreu o acidente, deve estar coberta pelo seguro;
e) «Serviço signatário»: qualquer organização, constituída de acordo com as recomendações de Genebra, que agrupa todas as empresas seguradoras autorizadas a realizar, no território de um dos serviços signatários, referido no artigo 9º, operações de seguro de responsabilidade civil automóvel.
f) «Serviço gestor»: o serviço (e/ou qualquer membro daquele serviço que actua em sua representação) com competência, no respectivo território, para a gestão e regularização de sinistros, de acordo com as disposições do presente acordo e da sua legislação nacional, resultantes de um acidente provocado por um veículo automóvel com estabelecimento habitual no território de um outro serviço signatário.
g) «Serviço emissor»: o serviço (e/ou qualquer membro daquele serviço) do território no qual tem o seu estabelecimento habitual o veículo automóvel envolvido no acidente num outro território, a quem incumbe cumprir as obrigações perante o serviço gestor, nos termos do disposto no presente acordo.
h) «Território no qual o veículo tem o seu estacionamento habitual»:
- o território do Estado da chapa de matrícula do veículo,
ou,
- (…)».
O art. 3º, com a epígrafe «Gestão dos sinistros», estabelece:
«a) Logo que é informado da ocorrência de um acidente que envolva um veículo com estacionamento habitual no território de um outro serviço signatário, o serviço gestor deve proceder imediatamente, mesmo antes de qualquer reclamação formal, à investigação das circunstâncias do acidente com vista à regularização de uma reclamação eventual. O serviço gestor deve comunicar imediatamente qualquer reclamação formal ao serviço emissor ou ao membro do serviço emissor que emitiu a apólice de seguro, se existir. (…)
b) Pelo presente acordo, o serviço emissor autoriza o serviço gestor a recorrer a quaisquer procedimentos de natureza judicial ou extra-judicial tendentes ao pagamento de indemnizações decorrentes do acidente e a proceder à regularização dos sinistros.
(…)
c) O serviço gestor, de harmonia com a sua legislação nacional e as disposições da apólice de seguros, se existir, deverá actuar no interesse do serviço emissor. O serviço gestor terá competência exclusiva em todas as questões relativas à interpretação da legislação nacional e à regularização do sinistro. (…)».
O art. 4º, com a epígrafe «Mandato para a gestão de sinistros» estabelece:
«a) Se um membro do serviço emissor dispuser de uma filial ou sucursal estabelecida no território do serviço gestor e autorizada para realizar operações de seguro automóvel, o serviço gestor poderá confiar à sucursal ou filial, se tal lhe for pedido a gestão e regularização de sinistros.
b) (…)».
O art. 5º, com a epígrafe «Reembolso ao serviço gestor» estabelece:
«Quando o serviço gestor tiver já regularizado um sinistro, tem direito a reclamar, mediante comprovativos dos pagamentos efectuados, o reembolso pelo serviço emissor ou pelo membro do serviço emissor que emitiu a apólice de seguro, se existir, as seguintes verbas:
i) o total da importância paga pelo serviço gestor a título de indemnização pelos danos causados e dos custos e encargos a que o sinistrado tem direito ao abrigo de sentença judicial, ou, em caso de acordo com o sinistrado, a quantia total da referida regularização, (…)
ii) (...)
h) Se, no momento do pedido de reembolso, o serviço gestor não tiver sido notificado da existência de uma apólice de seguro, este pedido será apresentado ao serviço emissor. O serviço emissor deve, nestas circunstâncias, pagar a quantia devida no prazo de dois meses a contar da data do pedido.
(…)
j) Se tal lhe for solicitado, o serviço gestor deve fornecer a documentação relativa à regularização, (…)».
No caso dos autos, a gestão do sinistro foi assumida pela seguradora espanhola “A...” na qualidade de correspondente da seguradora belga A..., sendo que esta havia confirmado a existência de uma carta verde por si emitida que cobria a responsabilidade civil emergente da circulação do referido veículo de matrícula portuguesa. No âmbito da gestão do sinistro a “A...” celebrou transacção judicial com os lesados ocupantes do veículo de matrícula portuguesa, mas em Março de 2001 a “A...” comunicou àquela que a carta verde era falsa e recusou assumir a responsabilidade pelo sinistro. Como a A... já havia pago indemnização no âmbito da regularização do sinistro, solicitou então a intervenção da Oficina Española de Aseguradores de Automoviles (“O...”) – ou seja, o «serviço gestor» -, e esta pagou-lhe a quantia referente a tal indemnização e encargos de gestão do sinistro.
Por sua vez, o Gabinete Português de Carta Verde – ou seja, «o serviço emissor» - reembolsou a “O...”.
Ora, apesar de estar provado que a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo e matrícula portuguesa, QH-42-76, não se encontrava transferida, à data do sinistro, para qualquer companhia de seguros através de seguro válido e eficaz, o apelante sustenta que não tem de reembolsar o Gabinete Português de Carta Verde alegando que não estão demonstradas as circunstâncias do acidente e portanto, a culpa na produção do mesmo pelo condutor daquele veículo; que há preterição de litisconsórcio necessário passivo atento o disposto nos art. 54º, 55 e 62º nº 1 do DL 291/207 de 21/8; e que tinha caducado o direito de invocação, pela “A...”, da falsidade da carta verde, pois, de acordo com o art. 8º do Regulamento Geral do Conselho dos Serviços Nacionais de Seguros, tal falsidade deveria ter sido invocada no prazo de 3 meses e assim, a “O...”, ao pagar à “A...”, pagou mal.

Vejamos.

- Da alegada preterição de litisconsórcio necessário passivo e da inexistência de factos demonstradores da culpa do condutor do veículo de matrícula portuguesa:
Baseia-se o apelante no disposto nos art. 54º, 55º e 62º nº 1 do DL 291/2007 para invocar que esta excepção dilatória.

O art. 62º determina:
«1 – As acções destinadas à efectivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, quando o responsável civil seja conhecido e não beneficie de seguro válido e eficaz, são propostas contra o Fundo de Garantia Automóvel e o responsável civil, sob pena de ilegitimidade.
2 – Quando o responsável civil por acidentes de viação for desconhecido, o lesado demanda directamente o Fundo de Garantia Automóvel.
(…)».
Mas no caso dos autos não estamos perante uma acção destinada à efectivação da responsabilidade civil prevista nessa norma, mas sim perante uma acção destinada a exercer o direito do Gabinete Português da Carta Verde a reembolso nos termos do art. 55º que, com a epígrafe «Outros reembolsos» estatui:
«1 – O Fundo de Garantia Automóvel reembolsa o Gabinete Português da Carta Verde pelo montante despendido por este, ao abrigo do Acordo entre os serviços nacionais de seguros, em consequência das indemnizações devidas por acidentes causados por veículos matriculados em Portugal e sujeitos ao seguro obrigatório previsto neste decreto-lei, desde que:
a) O acidente ocorra no território de outro país cujo serviço nacional de seguros tenha aderido àquele Acordo (…);
b) O responsável pela circulação do veículo não seja titular de um seguro de responsabilidade civil automóvel;
c) Aas indemnizações tenham sido atribuídas nas condições previstas para o seguro de responsabilidade civil automóvel na legislação nacional do país onde ocorreu o acidente (…).
2 – Para os efeitos do disposto no número anterior, o Gabinete Português da Carta Verde deve transmitir ao Fundo todas as indicações relativas à identificação e circunstâncias do acidente, do responsável, do veículo e das vítimas, para além de dever justificar o pagamento efectuado ao serviço nacional de seguros do país onde ocorreu o acidente.
3 – (…)
4 – Satisfeito o reembolso, o Fundo fica sub-rogado nos termos do artigo 54º».
Por outro lado, estando provado que o veículo QH-42-76 embateu no veículo de matrícula espanhola, demonstrado está, para a exigência do reembolso através desta acção, que foi aquele o causador do acidente. Refira-se ainda que nos termos do nº 1 do art. 56º do DL 291/2007 «Todas as entidades públicas ou privadas de cuja colaboração o Fundo de Garantia Automóvel careça para efectuar, nos termos da presente secção, a cobrança dos reembolsos, devem prestar, de forma célere e eficaz, as informações e o demais solicitado, sem prejuízo do sigilo a que estejam obrigadas por lei.».

Improcede, pois, a excepção dilatória de preterição de litisconsórcio necessário passivo bem como a alegação de que não está demonstrada a culpa do condutor do veículo de matrícula portuguesa.
- Da alegada caducidade do direito a ser invocada a falsidade da carta verde atento o disposto no art. 8 º do Regulamento do Conselho dos Serviços Nacionais.
Sabemos que em Novembro de 2000 a “A...” confirmou à “A...” a existência de carta verde por si emitida cobrindo a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo QH-42-76 mas que, em Março de 2001, comunicou que afinal a carta verde era falsa.
O Acordo Multilateral de Garantia entre Serviços Nacionais de Seguros que estava em vigor em 2001, nenhum prazo estabelecia para confirmação da validade da carta verde. Portanto, carece de fundamento a invocação, pelo apelante, da caducidade do direito de invocação da falsidade de carta verde à luz daquele Acordo.
Mas o apelante não se reporta àquele Acordo Multilateral e sim ao Regulamento Geral do Conselho dos Serviços Nacionais. Este Regulamento é um acordo celebrado entre os Serviços Nacionais de Seguros dos Estados-Membros do Espaço Económico Europeu e outros associados adoptado na assembleia geral realizada em Rethymo (Creta) em 30/05/2002 em que foram signatários, entre outros, a Oficina Española de Aseguradores de Automoviles» (Espanha) e Gabinete Português da Carta Verde» (Portugal).
Esse Regulamento Geral está anexo à Decisão da Comissão 2003/564/CE de 28/07/2003.

Nos considerandos dessa Decisão lê-se, além do mais:
«A Comissão das Comunidades Europeias
Tendo em conta o Tratado que institui a Comunidade Europeia,
Tendo em conta a Directiva 72/166/CEE do Conselho (…) com a última redacção que lhe foi dada pela Directiva 90/232/CEE (…)
(…)
Considerando o seguinte:

(1) As relações entre os Serviços Nacionais de Seguros dos Estados – Membros, tal como definidos no nº 3 do artigo 1º da Diretiva 71/166/CEE (adiante designados serviços nacionais) e os da República Checa, da Hungria, da Noruega, da Eslováquia e da Suíça regiam-se por acordos complementares ao acordo-tipo sobre o sistema de carta-verde entre os serviços nacionais de seguros, de 2 de Novembro de 1951 («acordos complementares»). Estes acordos complementares previam as disposições de natureza prática com vista à supressão da fiscalização do seguro no caso dos veículos com estacionamento habitual nos territórios desses mesmos países.
(2) Os serviços nacionais de seguros reviram e unificaram os textos dos acordos complementares e substituíram-nos por um acordo único (o «Acordo Multilateral de Garantia») assinado em Madrid e 15 de Março de 1991 (…)
(…)
(5) Foi concluído em 30 de Maio de 2002 um acordo entre os Serviços Nacionais dos Estados-Membros associado, em Retymno (Creta), segundo os princípios estabelecidos no nº 2 do artigo 2º da Directiva 72/166/CEE. O primeiro anexo a este acordo incorpora todas as disposições do acordo-tipo entre serviços nacionais e do Acordo Multilateral de Garantia num documento único (o «Regulamento Geral»). Este regulamento substitui aqueles dois acordos a partir de 1 de Agosto de 2003.
(…)».
Em anexo a essa Decisão 2003/564/CE de 28/07/2003 consta, com a designação de «Apêndice», que «os serviços nacionais abaixo assinados concluíram o seguinte acordo:
Artigo 1º
Os serviços nacionais abaixo assinados comprometem-se, no contexto das suas relações recíprocas, a respeitar as disposições obrigatórias e as disposições facultativas da secção III, bem como da secção II, quando aplicáveis, do Regulamento Geral adoptado pelo Conselho dos Serviços nacionais em 30 de Maio de 2002, cuja cópia é apensa ao presente acordo – anexo I.
Artigo 2º
Os serviços nacionais abaixo assinados conferem reciprocamente aos demais serviços signatários poderes para, em seu próprio nome e em nome dos seus membros, resolverem de forma amigável todos os sinistros e serem notificados de quaisquer procedimentos de natureza judicial ou extrajudicial susceptíveis de conduzir ao pagamento de indemnizações decorrentes de acidentes, dentro do âmbito de aplicação e dos objectivos do Regulamento Geral.
Artigo 3º
O compromisso referido no artigo 1º entra em vigor em 1 de Julho de 2003, data em que passa a substituir o Acordo – tipo entre serviços nacionais e o Acordo Multilateral de Garantia entre Serviços Nacionais de Seguros, actualmente vinculativos para os signatários do presente acordo.
(…)».
No Regulamento Geral consta, além do mais:
«(…)
4. Considerando que
a) O objectivo do sistema, vulgarmente designado “sistema da carta verde”, consiste em facilitar a circulação internacional de veículos automóveis, permitindo que o seguro de responsabilidade civil decorrente da utilização desses veículos satisfaça os critérios impostos pelo país visitado e, quando ocorre um acidente, assegure a indemnização das pessoas lesadas de acordo com o direito e a regulamentação em vigor nesse país;
b) A carta internacional de seguro automóvel (“carta verde”), documento oficialmente reconhecido pelas autoridades governamentais dos Estados que adotaram a Recomendação das Nações Unidas, constitui, em cada país visitado, a prova do seguro obrigatório de responsabilidade civil decorrente da utilização do veículo automóvel que nela é descrito;
c) Em cada Estado participante foi criado e autorizado um serviço nacional com o objetivo de assegurar:
- relativamente ao respectivo governo, o respeito da lei aplicável no país por parte da seguradora estrangeira e, dentro dos seus limites, a indemnização das pessoas lesadas;
- relativamente ao serviço nacional do país visitado, o compromisso da seguradora membro de cobrir a responsabilidade civil decorrente do veículo implicado no acidente;
d) Em consequência desta dupla missão, que não tem fins lucrativos, cada serviço nacional deve dispor de uma estrutura financeira independente, assente na solidariedade das seguradoras autorizadas a exercer o seguro obrigatório de responsabilidade civil decorrente da circulação de veículos automóveis e que se encontram em actividade no seu mercado nacional, que lhe permita satisfazer as obrigações decorrentes dos acordos que o vinculam a outros serviços nacionais;
5. Considerando que:
(…)
c) Acordos posteriores, assentes nos mesmos princípios, vieram permitir a adesão dos serviços nacionais de outros países; esses acordos foram reagrupados num documento único assinando em 15 de Março de 1991 sob a designação de Acordo Multilateral de Garantia.
6. Considerando que convém reunir num documento único o conjunto das relações entre serviços nacionais, o Conselho dos Serviços Nacionais adoptou, na sua assembleia geral realizada em Rethymno (Creta) em 30 de Maio de 2002, o presente Regulamento Geral.
(…)».
No art 2º desse Regulamento Geral, com a epígrafe «Definições», define-se “Correspondente” nestes termos: «uma seguradora ou qualquer outra pessoa singular ou colectiva designada por uma ou diversas seguradoras, com o acordo do serviço nacional do país em que se encontra estabelecida, com vista à gestão e regularização dos sinistros ocasionados por acidentes envolvendo veículos relativamente aos quais a seguradora ou seguradoras em causa emitiram uma apólice de seguro e ocorridos nesse país».
Na «Secção II Regras Específicas Relativas às Relações Contratuais entre Serviços Nacionais Baseadas na Carta Verde (Disposições Facultativas) refere-se que «O disposto na presente secção aplica-se quando as relações contratuais entre serviços nacionais se baseiam na carta verde».
O art. 8º invocado pelo apelante insere-se nessa Secção II e tem a seguinte redacção:
«Todos os pedidos de confirmação da validade de uma carta verde identificada, enviados por telecópia ou correio electrónico a um serviço nacional pelo serviço nacional do país do acidente, ou por qualquer mandatário por ele designado por esse efeito, devem receber uma resposta definitiva no prazo de três meses. Caso não seja dada uma resposta decorrido esse período, presume-se que a carta verde é válida.».
Na «Secção III Regras Específicas Relativas às Relações Contratuais entre Serviços Nacionais Baseadas na Presunção de Seguro (Disposições Facultativas)», consta, além do mais:
«O disposto na presente secção aplica-se no caso de as relações entre serviços nacionais se basearem na presunção de seguro, salvo determinadas excepções.
Artigo 10º Obrigações dos serviços nacionais
Os serviços nacionais aos quais se aplica o disposto na presente secção assegurarão, de forma totalmente recíproca, o reembolso de todos os montantes devidos nos termos do presente Regulamento Geral em resultado de um acidente que envolva um veículo normalmente estacionado no território do Estado relativamente ao qual cada um destes serviços nacionais é competente, independentemente desse veículo se encontrar seguro ou não.
Artigo 11º Conceito de estacionamento habitual
(…)
Artigo 12º Excepções
O disposto na presente secção não se aplica nos seguintes casos:
1. Veículos matriculados em países que não os países dos serviços nacionais sujeitos ao disposto na presente secção e relativamente aos quais foi emitida uma carta verde por um membro de qualquer destes serviços. Caso se verifique um acidente que envolva um veículo relativamente ao qual tenha sido emitida uma carta verde, os serviços nacionais envolvidos agirão de acordo com as regras previstas na secção II.
2. (…)».
Portanto, a presunção de validade da carta verde só pode ter o significado de que não se consagrou um prazo de caducidade e, além disso, não está estipulado que se trata de uma presunção inilidível, sendo certo que no caso concreto tal presunção foi ilidida.
Mas, conforme acima referimos, em Março de 2001 não estava sequer em vigor este Regulamento Geral mas sim o Acordo Multilateral de Garantia, que nem previa tal presunção.

Improcede assim a apelação.

*

IV – Decisão:

Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente e confirma-se a decisão recorrida.
Custas pelo apelante.


Lisboa, 16 de Abril de 2015

Anabela Calafate
Tomé Ramião
José Vítor dos Santos Amaral