Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
15278/16.0T8SNT.L1-8
Relator: MARIA ALEXANDRINA BRANQUINHO
Descritores: INSOLVÊNCIA DA HERANÇA
COMPETÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/02/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: -O art.º 46.º do RJPI dispõe: Quando se verifique a situação de insolvência da herança, seguem-se, a requerimento de algum credor ou por deliberação de todos os interessados, os termos do processo de insolvência que se mostrem adequados, aproveitando-se sempre que possível, o processado.
-A competência para prosseguir com os autos que, nos termos daquele transcrito preceito, passam a seguir os termos do processo de insolvência não cabe aos cartórios notariais, cabe, isso sim, aos tribunais.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial: Acordam os Juizes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:


I... veio interpor recurso da seguinte decisão proferida na  Instância Local Cível de Sintra:

«O Cartório Notarial de Algés proferiu em 04.08.2016, despacho onde consignou que por deliberação dos interessados foi requerida a insolvência da herança, procedendo à remessa do processo para o tribunal, nos termos do art. 46.º da Lei n.º 23/2013, de 5 de Março, que aprovou o regime jurídico do processo de inventário (RJPI), determinando que fossem os presentes autos remetidos à Instância Central do Tribunal de Comarca de Lisboa Oeste.
O art. 46.º do RJPI não faz qualquer referência à competência para a tramitação posterior dos termos do processo de insolvência que se mostrem adequados, o que suscita a dúvida de saber a quem compete tramitar o processo adaptado, se o notário ou o Tribunal de Comarca do lugar da abertura da sucessão.
A questão não se colocava no âmbito da redacção do pretérito art. 1361.º do Código de Processo Civil, porquanto na altura nos encontrávamos perante um figurino de processo judicial de inventário.
Por seu lado, a versão inicial do novo processo de inventário, previa expressamente no seu art. 43.º em conjugação com o art. 6.º, n.º 1, alínea a) da Lei n.º 29/2009, que os interessados fossem remetidos para o juiz do Tribunal competente que era o Tribunal do lugar da abertura da sucessão, e que detinha o poder de controlo geral do processo, com vista à verificação da insolvência da herança.
Note-se que localizando-se à data do óbito o domicílio do inventariado em Paço de Arcos, seria a Instância Local Cível de Oeiras, o Tribunal competente para os incidentes e decisão homologatória da partilha, e não a Instância Central de Sintra, como por lapso foi decidido.
Porém, a nova versão da redacção do preceito, revogou tal ordem de remessa, pelo que competindo ao notário a prática de todos os actos e termos do processo, que não estejam na lei reservados ao julgador (art. 3.º, n.º 7 do RJPI) não pode deixar de entender-se que competirá ao notário a tramitação do inventário, com as devidas adaptações.
No mesmo, sentido, Tomé d’ Almeida Ramião (Tomé d’Almeida Ramião, in O novo regime do processo de inventário, Quid Juris, 2014, pág.126), que subscrevendo a mesma interpretação, salienta que a remissão legal e a imposição de aproveitamento do processado, não visa transformar o processo de inventário num processo de insolvência, mas apenas adaptar ou importar algumas disposições daquele regime, o que reforça o continuar da tramitação pelo notário.

Com efeito, o seguimento do processo de inventário com os termos do processo de insolvência que se mostrem adequado, implica apenas as seguintes adaptações:
-O cabeça-de-casal nomeado deixa de ter essa qualidade, e passa a ser nomeado como administrador da massa falida, elaborando auto de apreensão do activo da herança;
-Fixa-se o prazo de 30 dias para a reclamação de créditos, não tendo os créditos constantes do passivo aprovado, de ser reclamados novamente;
-Gradua-se os créditos por lista; e
-Liquida-se (vende-se) do património, com rateio pelos credores das quantias apuradas.
Assim, o mesmo procedimento não reveste qualquer especialidade em termos de complexidade de matéria de facto, que justifique a sua tramitação pelo Tribunal Judicial, razão pela qual, o legislador procedeu à revogação da anterior redacção do art. 43.º da Lei n.º 29/2009, deferindo a totalidade da competência ao Notário.
Por conseguinte, afigura-se-nos que a competência material para a tramitação do processo ora remetido pertenceria ao Cartório Notarial, devendo ocorrer absolvição da instância dos interessados, por motivo de incompetência material (art. 64.º CPC).
Pelo supra exposto, nos termos do art. 576.º, n.º 2, 577.º, alínea a), 578.º e art. 278.º, n.º 1, alínea a), todos do CPC, julgo verificada a excepção de incompetência material da Instância Local Cível de Sintra, para conhecer da presente causa, e em consequência, absolvo os interessados da instância, devendo o processo regressar ao Cartório Notarial para posterior tramitação do inventário com as devidas adaptações.
Custas pelos interessados.
Após trânsito em julgado, remeta ao Cartório Notarial de Algés».

Factos relevantes para a decisão do recurso que se extraem dos autos e da decisão recorrida:
1.-I... requereu no Cartório Notarial de Dr.ª Ana Carla Delgado de Aguilar inventário para partilha de bens por herança, sendo inventariado o falecido A...
2.-Ao processo de inventário aberto no referido Cartório foi junta certidão de habilitação de herdeiros, dela constando que sucederam ao autor da herança: o cônjuge sobrevivo e três filhos.
3.-I..., cônjuge sobrevivo, foi nomeada cabeça de casal, por despacho notarial de fls. 8.
4.-A cabeça de casal prestou declarações e  juntou relação de bens com descrição do activo e do passivo.
5.-Foram citados os interessados para os termos do processo de inventário e prosseguindo os autos seus termos realizou-se conferência preparatória.
6.-Naquela conferência – fls. 40 e verso dos autos – os interessados verificaram que «o passivo excede em muito o valor do activo da herança a partilhar» tendo deliberado por unanimidade que se seguisse o processo de insolvência, «pelo que a Senhora Notária deu por encerrada a conferência, informando os interessados da remessa do inventário para os meios comuns competentes (…)».
7.-A fls. 43 foi lavrado termo de remessa, dele constando a seguinte decisão notarial: «Verificada nos autos a situação de insolvência da herança, e tendo por deliberação de todos os interessados sido requerido, nos termos do art.º 46.º do RJPI, se seguisse o processo de insolvência adequado; mostrando-se paga taxa de justiça devida pela remessa do processo para o tribunal, determino sejam os presentes autos remetidos ao Tribunal da Comarca de Lisboa Oeste, Sintra, Instância Central (…)».
8.-Chegado o processo de inventário ao Tribunal da Comarca de Lisboa Oeste, Sintra, Instância Central, foi proferida a decisão que agora está sob recurso.       

A recorrente apresentou as seguintes conclusões de recurso:

A.-O processo de Inventário tem vindo a sofrer uma desjudicialização, cabendo agora somente aos Tribunais a prática de “(…) actos que sejam da competência do juiz.(…)” nos termos da R.J.P.I. (cifra seu nº 7 do artº 3º).
B.-Todos os restantes actos de inventário são de competência dos Notários, (…), sem prejuízo dos casos em que os interessados são remetidos para os meios judiciais comuns.(…)” (cifra nº 4 do artº 3º do R.J.P.I.)
C.-Os fundamentos de tal remessa para os meios comuns encontram-se estipulados no nº 1 do artº 16º do R.J.P.I., mormente a resolução de questões que não devam ser decididas no processo de inventário.
D.-Por outro lado, estipula o artº 46º do R.J.P.I. que quando se verifique a situação de insolvência da herança seguem-se os termos do processo de insolvência.
E.-Ora, a natureza do processo de insolvência ao contrário da actual natureza do processo de Inventário é plena e inteiramente jurisdicional,
F.-Quer por motivos de competência material - artºs 2º, 37º, 40º e 128º todos da L.O.S.J. (Lei Nº 62/2013, de 26 de Agosto) e artº 7º do C.I.R.E.,
G.-Quer por motivos da sua própria finalidade, prevista no artº 1º do C.I.R.E.,
H.-E ainda de seus procedimentos até por motivos de segurança jurídica como, a título meramente exemplificativo, a existência de publicações obrigatórias (cifra artºs 9º e 38º do C.I.R.E.).
I.-Nestes termos entende a Recorrente que a douta interpretação Aplicada pelo Tribunal a quo a tais disposições legais ferem com o principio da legalidade e da segurança jurídica,
J.-Ao decretar como competente para a tramitação de um processo de Insolvência o Cartório Notarial de Algés.
K.-Aliás, caso se entendesse que o artº 46º do R.J.P.I. não promove a necessidade de remessa do Inventário para Tribunal para decretamento e consequente processamento como Insolvência,
L.-Como explicar a criação de um processo de insolvência fora dos tribunais competentes para essa matéria, competência essa decorrente quer do nº 2 do artº 2º da L.O.S.J., do nº 7 do artº 3º do R.J.P.I. e, ainda, do artº 1º e 7º do C.I.R.E.?
M.-Mais, como obviar o estatuído no artº 18º do C.I.R.E., que cria o dever jurídico de o devedor requerer a declaração da sua insolvência ao Tribunal - e não ao Notário.
N.-Deste modo, entende a Recorrente que, cabendo a tramitação do processo de insolvência da herança aos Tribunais e não aos Notários,
O.-Face à natureza jurisdicional do processo de Insolvência e sua competência material (artºs 2º, 37º, 40º e 128º todos da L.O.S.J.),
P.-Para além da necessidade de se promover a segurança jurídica,
Q.-Deve a mui douta Sentença ser revogada quanto à decisão do Tribunal a quo como incompetente em termos da matéria, prosseguindo os autos até final.
R.-O doutro Tribunal a quo absolveu os Interessados da instância;
S.-Contudo, condeno-os nas respectivas custas processuais.
T.-Entendendo a Recorrente que não foram nem aqueles nem ela que deram causa à presente acção, pois esta foi por decisão do Cartório Notarial,
U.-E ainda que não se estando perante um “vencimento da acção” também nem ela nem os Interessados tiraram proveito deste processo,
V.-Crê-se não estar preenchida nem verificada a regra inserta no artº 527º do C.P.C., pelo que, com o devido respeito, deve a mui douta sentença, e na parte que condena os Interessados nas custas do processo ser igualmente revogada, assim se fazendo a mui douta e veneranda JUSTIÇA.

O art.º 46.º do RJPI, preceito gerador da discussão que se trava neste processo, dispõe: Quando se verifique a situação de insolvência da herança, seguem-se, a requerimento de algum credor ou por deliberação de todos os interessados, os termos do processo de insolvência que se mostrem adequados, aproveitando-se sempre que possível, o processado.
    
A decisão notarial que consta do termo de remessa (ponto 7. dos factos aqui tidos por assentes) dá-nos conta de que é entendimento da Sr.ª Notária que a competência para prosseguir com os autos que passam a seguir os termos do processo de insolvência cabe aos tribunais; a 1.ª instância entende que aquela competência cabe aos cartórios notariais.

Os argumentos trazidos pela apelante ao recurso alicerçam, o que se nos afigura ser, a correcta interpretação do art.º 46.º do RJPI.            
Acrescentar-se-ão, no entanto, algumas razões, em abono do entendimento de que o processo de insolvência tem de correr nos tribunais. Desde logo, a circunstância de estarmos perante dois regimes jurídicos – o do inventário e o da insolvência – completamente distintos e, claramente, com objectos que, tão pouco se tocam ou cruzam.

Com efeito, a Lei 23/2013, de 5 de Março (RJPI), logo no seu art.º 2.º, estabelece que o processo de inventário se destina a pôr termo à comunhão hereditária, a relacionar os bens que constituem objecto de sucessão, a servir de base à liquidação da herança e, ainda, à partilha consequente à extinção da comunhão de bens entre os cônjuges.

Já o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores, tal como se extrai do art.º 1.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).

Entre os sujeitos passivos da declaração de insolvência está a herança jacente, tal como está previsto no art.º 2.º, n.º 1, al. b) daquele mesmo código.

Temos, pois, dois regimes jurídicos distintos, aplicando-se um, ou outro, consoante o objectivo que se visa alcançar, com regras procedimentais diferentes, naturalmente ajustadas, no essencial, à partilha ou à execução universal de bens.  
     
Ora, havendo um regime jurídico que trata da insolvência, não é suposto que, na construção do regime jurídico do processo de inventário, o legislador se preocupe em fixar competências quanto a matérias que dizem respeito a insolvência.

Acresce que, a desjudicialização do processo de insolvência não é semelhante à desjudicialização do processo de inventário. O processo de insolvência continua a correr nos tribunais, sendo absolutamente relevante a figura do juiz que pode, note-se, tomar decisões fundadas em factos que nem sequer foram alegados pelas partes, tal como se extrai do art.º 11.º do CIRE.

Depois temos a figura do administrador, cujas funções – segundo a decisão apelada –caberiam, no caso, à cabeça de casal, quando é certo que, a ser assim, cairia a exigência do art.º 32.º do CIRE que manda que a escolha do administrador provisório seja feita de entre aqueles que constam da lista oficial de administradores.

Não é razoável supor que o legislador tenha escolhido desjudicializar o processo de insolvência quando ele se inicia como processo de inventário, a um ponto tal em que é evidente a desconsideração da figura e das complexas funções do administrador, como se observa do estatuído no art.º 33.º do CIRE.

Afigura-se-nos que o RJPI não contém qualquer lacuna quanto à matéria aqui em discussão que tenha de ser preenchida através de mecanismos de adaptação por assimilação de procedimentos e regras do CIRE. Há, isso sim, que aplicar o CIRE, quando o processo de inventário passa a processo de insolvência.

A apelante foi condenada em custas. Todavia, como diz, e bem, não tem qualquer responsabilidade no conflito que surgiu entre o Cartório Notarial e o Tribunal.

Face ao exposto, acolhendo-se os argumentos da apelante e considerando as razões expostas, acordam os juízes da secção cível em conceder provimento à apelação e, consequentemente, em revogar a decisão apelada.
Sem custas.



Lisboa, 02.02.2017

Maria Alexandrina Branquinho
António Valente
Ilídio Sacarrão Martins
Decisão Texto Integral: