Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6031/09.8TVLSB.L1-7
Relator: LUÍS LAMEIRAS
Descritores: COOPERATIVA
CESSÃO DE POSIÇÃO CONTRATUAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/22/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDNTE E PROCEDENTE
Sumário: I – Em direito cooperativo as relações que se estabelecem entre o cooperador e a cooperativa não são identificáveis com as estabelecidas entre um comum comprador e um comum vendedor;
II – Na cessão da posição contratual o cedente exclui-se da relação jurídica que constitui a base da cessão, havendo quanto a ele uma verdadeira extinção subjectiva (artigo 424º, nº 1, do Código Civil);
III – Cedida a posição de cooperador, com apartamento atribuído, e acordado nessa cessão que o cedente assumiria o pagamento das notas de débito que a cooperativa viesse a apresentar ao cessionário acima de um certo valor, não pode considerar-se que faz parte deste encargo a quantia que o cessionário teve de dispender para distratar uma hipoteca, incidente sobre o apartamento e da responsabilidade da cooperariva, de maneira a permitir realizar a sua aquisição livre desse ónus.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório

1.
1.1. J… propôs acção declarativa, de forma ordinária, contra H… pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de 208.871,60 € e juros, à taxa legal de 4% desde a citação até à data do integral e efectivo pagamento.
Alega, em síntese, que celebrou com um réu um contrato promessa de transmissão de posição de cooperador, em cooperativa de habitação, relativa aos direitos sobre a fracção autónoma de um edifício e pelo preço de 1.200.000,00 €. Deste, 400.000,00 € seriam entregues na data da assinatura, e os restantes 800.000,00 € mais tarde; certo que este derradeiro valor era estimado, dado o custo da fracção ainda não estar apurado. Daí que, caso o custo de aquisição fos-se superior aos 800.000,00 €, o excesso seria suportado pelo cedente; caso fosse inferior era o cessionário a suportar a diferença. Ora, o autor, para adquirir a fra-cção livre de ónus e encargos, teve de entregar à cooperativa, em excesso ao pre-ço estimado, 208.871,60 €; só assim expurgou hipoteca incidente sobre aquela. A escritura de venda fez-se pelo preço de 796.364,47 €; para obter o distrate da hi-poteca teve de pagar ao banco beneficiário 249.000,00 €; e solicitou ao réu a quantia paga a mais à cooperativa de 177.143,48 €.

1.2.
1.2.1. O réu contestou e pediu a improcedência da acção.
Afirma que o contrato é de cessão de posição contratual; que nada se convencionou sobre a garantia do pagamento do preço; que desconhece o valor de 208.871,60 € e, aliás, que o autor apenas lhe solicitara a devolução de 177.143,48 €; e que o valor do cancelamento da hipoteca não é da sua responsa-bilidade, mas da cooperativa proprietária e devedora ao banco.

1.2.2. Também deduziu o réu pedido reconvencional.
Em reunião tida com o autor e com a cooperativa todos acordaram em que esta devolveria ao réu os valores que este já lhe entregara, ao longo de anos como cooperador e logo que o autor a habilitasse com as devidas quantias; o que foi cumprido. Ademais, caso as notas de débito apresentadas pela cooperativa fossem inferiores a 800.000,00 €, devia o autor entregar o remanescente ao réu. Ora, aquelas notas totalizaram 17.705,23 €. Deve, por conseguinte, o autor ser condenado a pagar-lhe 782.294,77 €; e juros à taxa de 4%.

1.3. O autor apresentou réplica.
A sua expectativa, latente ao contrato, de adquirir a fracção livre de ónus e encargos, exigiu a desoneração a hipoteca. Por outro lado, pagou à cooperativa 1.208.871,60 €, não apenas 17.705,23 €. Significa isso que quer o réu obter vantagem já por si auferida; e que, portanto, litiga de má fé.

1.4. Treplicou o réu. É que os movimentos de conta cooperativa do autor foram efectuados sem o seu conhecimento; apenas para o autor recuperar entregas que, como cooperador de outra fracção, já fizera à cooperativa. Por conseguinte, é o autor quem litiga de má fé.

2. A instância declaratória desenvolveu-se e foi proferida sentença final que julgou a acção parcialmente procedente e condenou o réu a pagar ao autor a quantia de 17.705,23 €, e juros a contar da data da sua prolação à taxa de 4%, e a reconvenção também em parte procedente e a condenar o autor a pagar ao réu a quantia de 3.635,53 €, bem como juros a contar da mesma data e a igual taxa. Considerou ainda inexistente litigância de má fé.

3.
3.1. Recurso independente.
3.1.1. O autor, inconformado, interpôs recurso independente.
E, em alegação, formulou as seguintes conclusões:

a) Está provado que em 18 de Novembro de 2008 as entregas do autor à cooperativa, por conta do apartamento, totalizam o valor de 1.008.871,60 €;
b) Nos termos da cláusula 3, nº 2, do contrato de cessão o autor apenas teria de pagar à cooperativa até ao montante de 800.000,00 €;
c) Pelo depoimento da testemunha eng.º D…, conjugado com os movimentos contabilísticos da conta corrente junta sob doc 2 da petição inicial confirma-se que o autor entregou à cooperativa o montante de 1.008.871,60 € (vide declarações a 19’25” da gravação do CD);
d) A decisão sobre o ponto 2 da base instrutória, pelos fundamentos atrás enunciados e conjugados entre si, deve ser alterada e o mesmo ser dado como provado;
e) Autor e réu quiseram comprar e vender o apartamento, melhor identificado na alínea d) da especificação, tendo sido esse o “leitmotiv” do contrato promessa de cessão;
f) O preço estipulado para o negócio foi de 1.200.000,00 €;
g) Autor e réu confirmaram que em caso de variação do custo estimado do apartamento, fixado contratualmente em 800.000,00 €, o diferencial reverteria para o réu, ou o excesso seria por este suportado (clausula 3, nº 2, do contrato promessa de cessão – doc 1 da petição inicial);
h) O autor para adquirir o apartamento, livre de ónus e encargos efectuou à cooperativa C... entregas no valor de 1.008.871,60 €, em excesso, face à sua obrigação de entrada até 800.000,00 €, no montante de 208.871,60€;
i) O pagamento em excesso efectuado à cooperativa, liquidando responsabilidades desta, é bem efectuado nos termos do artigo 767º do Código Civil, pois nele tem o autor interesse directo e imediato – a obtenção do cancelamento da hipoteca registada sobre a fracção objecto do negócio;
j) O custo com o cancelamento da hipoteca deve ser considerado como custo efectivo do apartamento pois ele foi indispensável para o autor o adquirir livre de ónus ou encargos;
k) A interpretação e integração do contrato celebrado entre autor e réu determinará a imputação destas responsabilidades ao cedente, pois o comprador não estaria disponível para comprar o apartamento por preço superior a 1.200.000,00 €, sendo certo que, se confrontado com a existência deste ónus, optaria por ficar com o seu dinheiro, pois o andar não valia 1.400.000,00 €;
l) Ao invés, o cedente não teria alternativa senão suportar directamente o custo do «distrate», com redução inerente das mais valias expectadas;
m) A sentença, ao não considerar o custo do «distrate» da hipoteca como responsabilidade a liquidar pelo cedente ora réu, violou o disposto na cláusula 3, nº 2, do contrato promessa de cessão, bem como o estipulado nos artigos 767º e 236º do Código Civil;
n) O réu não logrou fazer prova dos débitos apresentados ao autor pela C... (resposta ao ponto 10º da base instrutória);
o) O valor da escritura de compra e venda não reflecte a totalidade dos custos imputadas ao apartamento, da responsabilidade do autor;
p) Não tem por isso, fundamento factual a condenação do autor em parte do pedido reconvencional.

Em suma, deve ser revogada a decisão da primeira instância e proferi-da outra que condene o réu a pagar ao autor a quantia de 208.871,60 €, e juros desde a citação, bem como absolva a este último do pedido reconvencional.

3.1.2. O réu respondeu não ser sua a responsabilidade pela desone-ração da hipoteca e que, por conseguinte, nessa parte, a sentença deve ser mantida.

3.2. Recurso subordinado.
3.2.1. O réu ainda interpôs recurso subordinado.
E, a tal propósito, formulou as conclusões:

a) O autor não fundamentou, nem pediu a condenação do réu no pagamento de 17.705,23 €;
b) De acordo com as alíneas b), c) e e) do nº 1 do artigo 668º e também com a alínea a) do nº 2 do artigo 193º, ambos do Código de Processo Civil, deve a sentença recorrida ser anulada na parte que condenou o réu a pagar ao autor a quantia de 17.705,23 €.

3.2.2. O autor não respondeu.

4. Delimitação do objecto do recurso.
Considerando que as conclusões formuladas, por um e outro dos apelantes, e que conformam o objecto do recurso (artigos 684º, nº 3, e 685º-A, nº 1, do Código de Processo Civil), são as seguintes as questões decidendas sobre que importa a este tribunal superior dar pronúncia:
Em 1º lugar, sobre se a sentença recorrida enferma de alguma das nulidades elencadas nas alíneas b), c) e e), do artigo 668º, nº 1, do CPC.
Em 2º lugar, sobre se a resposta dada ao quesito 2º da base instrutória deve ser modificada.
Em 3º lugar, sobre se onera a esfera do réu algum débito ao autor, em particular o de 208.871,60 € (como este propugna) ou o de 17.705,23 € (como a sentença reconheceu).
Em 4º lugar, saber se o autor está vinculado a pagar 3.635,53 € ao réu.
 

II – Fundamentos
            1. As nulidades da sentença.
É em recurso subordinado que o réu considera que a sentença, ao condenar em quantia não pedida, e que nem resulta dos fundamentos da acção, deve ser considerada nula; e apela às alíneas b), c) e e), do artigo 668º, nº 1, do CPC, como ainda ao artigo 193º, nº 2, alínea a), do dito código.
O autor, em sede de acção e com base em crédito constituído a partir de entregas à cooperativa, pedira a condenação do réu em 208.871,60 €. A sentença, fundada em notas de débito que a referida entidade apresentara ao autor, fez o juízo condenatório de 17.705,23 €.
Vejamos. É inidónea a referência ao artigo 193º, nº 2, alínea a), que se refere a um vício, que não da sentença do tribunal, mas da petição inicial do au-tor. Já sim se referem àquela os demais normativos, que têm especificamente em vista erros de natureza estritamente formal com virtualidade de a inquinar.
A falta de fundamentos de facto e de direito da decisão, a que se refere a alínea b), do artigo 668º, nº 1, exige a omissão completa de universo factual, ou então, a lacuna de qualquer enquadramento jurídico, de tal sorte, em todo o caso, que fique imperceptível a razão que esteve na base do juízo decisório. De seu turno, a alínea c), reportada à oposição entre fundamentos e decisão, supõe que exista um nexo de recíproca exclusão entre as premissas narradas, como suporte do julgado, e este mesmo, de maneira a nem sequer permitir formular qualquer juízo de mérito ou demérito sobre este. A alínea e), sobre a condenação em quantidade superior ou objecto diverso do pedido, visa sancionar a preterição da regra limitativa do artigo 661º, nº 1, que condiciona os contornos do julgado às fronteiras que as partes lhe estabeleçam.
Ora, nenhum de tais vícios é perceptível na sentença da 1ª instância. Para lá da explicitação, fáctica e jurídica, que motivou o sentenciado, em termos lógicos e inteligíveis, nem se pode vislumbrar condenação excessiva. Fôra a con-denação em uma obrigação pecuniária que o autor pedira; e foi nela que a senten-ça condenou, em valor inferior ao indicado na petição. Ou seja, é válida, do ponto de vista da forma, a sentença. Já o problema de conhecer a compatibilidade ou a concludência do julgado é coisa diferente, que se reflecte no seu mérito substancial; sendo essa a apreciação subsequente a que terá de se proceder.
Improcedem, desta sorte, as apontadas nulidades.

            2. A impugnação da decisão sobre matéria de facto.
            Considera o recorrente principal que o quesito 2º da base instrutória está mal julgado e deve ser «provado»; apela aos documentos juntos, ao facto dado por assente na alínea g) da especificação e também ao depoimento da teste-munha D.... Responde o réu que este depoimento não foi bastante para explicar os movimentos contabilísticos pertinentes.
            Ao que aqui importa, diz-se na alínea g) da matéria de facto assente:

            « ... as entregas [do autor] à cooperativa C..., por conta do apartamento dos autos, totalizaram o valor de 1.008.871,60 € »

            Já o quesito 2º da base instrutória foi elaborado com a redacção:

            « O autor satisfez à cooperativa o pagamento da quantia de 208.871,60 €, em excesso ao preço estipulado no acordo referido em a)? »

            Este quesito foi respondido «não provado». E, na correspectiva moti-vação escreveu-se, além do mais:

            « ...
D... especificou qual a proveniência do documento de fls. 14, não tendo sido conclusivo sobre os valores pagos pelo autor e referenciando não ter to-mado conhecimento dos contornos concretos do negócio celebrado entre o autor e o réu.
... »

            Vejamos. A exacta compreensão do facto em crise exige um breve en-quadramento inicial. O réu tinha a posição de cooperador e, nessa qualidade, fô-ra-lhe atribuído um apartamento; estando o autor interessado no mesmo aparta-mento, firmou com o réu uma cessão de posição contratual, na qualidade de cessionário da dita posição de cooperador, e este de cedente. Em contrapartida da cessão foi ajustado o seguinte entre as partes: () o autor pagava logo ao réu 400.000,00 €; () depois, o autor abonaria a cooperativa, nas quantias que esta solicitasse (por entregas em dinheiro ou imputação de créditos que, sobre ela, já tivesse); () tendo por referência as quantias que o réu já antes lhe entregara, a cooperativa ir-lhe-ia devolvendo os valores que o autor lhe fosse entregando, até atingir tudo o que o primeiro já lhe dera; () tendo por referência o valor de 800.000,00 € (e este era o valor estimado do preço da compra do apartamento à cooperativa), se as entregas do autor à cooperativa viessem a totalizar valor inferior àquele, então o autor teria de entregar a diferença (até aos 800.000,00 €) ao réu; mas se essas entregas totalizassem valor superior àquele, então teria de ser o réu a reembolsar o autor da diferença (igualmente até aos 800.000,00 €).
            Resta dizer que o valor de referência de 800.000,00 €, era o valor estimado do preço da aquisição da venda do apartamento pela cooperativa; e que por conseguinte o crédito ou débito do autor sobre o réu iria depender daquele que viesse a ser o efectivo preço pelo qual a compra e venda se viesse a realizar.
            É este o contexto do facto em crise, ónus de prova do autor; tratando-se de apurar se, para lá dos 800.000,00 € de referência, o autor ainda entregou à cooperativa, mas a título do preço, o excesso de 208.871,60 €; por conseguinte se lhe pagou, como retribuição da compra e venda do apartamento, um total de 1.008.871,60 €. Julgando o tribunal que tal se não apurou. Pugnando o autor, re-corrente principal, que esse facto está provado.
Que dizer?
Comecemos pela alínea g) da matéria de facto assente; está provado que as entregas do autor à cooperativa, por conta do apartamento dos autos, to-talizaram o valor de 1.008.871,60 €. Dizer isto não é o mesmo que dizer que o autor, pela aquisição do apartamento, pagou o preço total de 1.008.871,60 €. E a diferença é notória se considerarmos um pormenor, até agora omitido. É que sobre o apartamento incidia uma hipoteca, para garantir um débito da cooperati-va a um banco, e dessa feita, para uma aquisição desonerada dessa garantia creditória, impunha-se a satisfação do crédito garantido ao banco. E, precisamen-te para conseguir esse efeito, é que o autor também abonou a cooperativa; abrin-do assim caminho à satisfação do crédito ao banco, à extinção da sua garantia e, a final, à realização da escritura da venda livre de qualquer ónus ou encargo a inci-dir sobre o apartamento (afinal o objectivo que, em essência, era o tido em vista).
Percebe-se, agora, que as afectações de valores a que o autor procedeu à cooperativa, por conta do apartamento dos autos, pudessem integrar as que foram imputadas para distratar a hipoteca; ao passo que as imputadas como preço de aquisição do apartamento seriam a diferença entre aquelas e o valor total por conta do apartamento de 1.008.871,60 €.
Ora, é a este valor (global e total) que se refere a alínea g); ao passo que o quesito 2º se reporta (apenas) à parcela do valor do preço, estipulado no contrato de cessão de posição; e para questionar se, em excesso desse preço (es-timado em 800.000,00 €), e a esse título, o autor ainda pagou 208.871,60 €.
O que deixamos dito faz já intuir uma resposta. Ainda assim. A testemunha D..., que o recorrente principal refere, ouvida na qualidade de director da cooperativa, há mais de quinze anos (fls. 100), e que acompanhou pessoalmente os factos, para lá de esclarecer ficar a direcção da cooperativa alheia às condições negociais estabelecidas entre cooperadores, na hipótese de cessões entre eles, disse ainda que foi o saldo positivo do autor que habilitou a coopertiva a distratar a hipoteca e que, dessa forma, a afectação assim feita era vista como empréstimo à cooperativa, continuando o cooperador credor  sobre ela do respectivo valor; além disso, ainda, ter sido ele quem elaborou o do-cumento nos autos, relativo aos distrates de hipotecas (doc fls. 22), de acordo com as indicações do banco beneficiário, e onde consta o valor de distrate, para o apartamento em causa, no valor de 249.000,00 €.
É, aliás, estranha a discrepância de valores que, a este propósito, os autos reflectem; o sobredito documento a indicar um valor de distrate de 249 mil euros; a carta do autor a reclamar-lhe o excesso de 177.143,48 € (doc fls. 25); por fim, a própria pretensão, formulada pelo autor, de que, para obter o expurgo da hipoteca, teve de entregar à coperativa o excesso de 208.871,60 € (artigo 15º da petição inicial). É claro índice de inconstância e incoerência que, do ponto de vista de formação da convicção, induz à dúvida; ou seja, gera um lastro de incerteza que não permite aceder ao patamar do socialmente aceitável, nem atingir o nível de probabilidade bastante, vocacionado para a prova do facto.
Por outro lado, a conta cooperativa reportada ao apartamento, que os autos contêm (doc fls. 14), não é também esclarecedora. Ela reflecte meramente os registos contabilísticos, ora do pedido pela cooperativa, ora do afectado pelo cooperador, apresentando o respectivo saldo; nada permitindo intuir a respeito das afectações a custos do apartamento ou a liberação hipotecária.
            Em suma, se é perfeitamente inequívoco que o autor disponibilizou à cooperativa um valor da ordem dos 1.008.871,60 €, fica àquem do ajustado juízo de prova que, desse valor, a parte de 208.871,60 € correspondesse ao ex-cesso do preço estipulado no acordo referido em a) (e que era o de 800.000,00 €). Por isso, a resposta dada, de «não provado», ao quesito 2º da base instrutória que pretendia averiguar esse facto, é a certa, reflecte o que os autos e as provas permitem revelar e tem de ser confirmada.
            Improcedem, neste conspecto, as conclusões do recurso principal.

3. O mérito jurídico do recurso.
3.1. É a seguinte a matéria de facto, que foi dada como provada na primeira instância, e a que agora importa atender:[1]
            i. Autor e réu outorgaram, em 30 de Julho de 2008, o acordo escrito (doc fls. 10 a 13), intitulado “Contrato Promessa de Transmissão de Posição”, no qual exararam, designadamente, que:
« Primeiro outorgante: H… … como Promitente Cedente; e,
Segundo outorgante: J… … como Promitente Cessionário
(…)
Cláusula Primeira
O primeiro outorgante é cooperador … foi-lhe atribuído o fogo para habitação T5 … no prédio designado por lote 4.14.02, sito na Rua …, em Lisboa …
Cláusula Segunda
Nesta qualidade, o primeiro outorgante cede ao segundo outorgante a sua posição de Cooperador … com todos os seus direitos e obrigações, incluindo o direito à atribuição já concretizada, ocupação e compra da fracção autónoma especificada na cláusula primeira … e este, segundo outorgante, adquire a referida posição pelo preço já acordado e por ambos os outorgantes aceite de 1.200.000 € …
Cláusula Terceira
O preço … será pago da seguinte forma:
1. Com a assinatura deste contrato e a título de sinal… 400.000 € …
2. Será pago pelo segundo outorgante o valor de 800.000 € à Cooperativa C… …
3. Dado ainda não estar apurado o total do custo da fracção por parte da Cooperativa …, o valor de 800.000 € é um valor estimado. O segundo outorgante pagará as notas de débito que lhe forem apresentadas pela Cooperativa C… referentes à fracção até ao valor de 800.000 €. Se o valor apresentado ultrapassar os 800.000 €, o primeiro outorgante responderá pelos pagamentos excedentes. No caso de ser inferior, o segundo outorgante restituirá a diferença ao primeiro outorgante.
4. Após a data da assinatura do contrato, todas as despesas, nomeadamente juros debitados pela Cooperativa, custos de condomínio, contribuições autárquicas e outras que resultem da ocupação da habitação, serão da responsabilidade do segundo outorgante.
Cláusula Quarta
O segundo outorgante … aceita … inscrever-se como cooperador e realizar um Contrato Promessa de Compra e Venda da fracção referida … »
alínea a) matéria assente.
            ii. O autor (como cessionário) e réu (como cedente) quiseram, com o mecanismo referido na cláusula terceira, ponto 3., estipular um valor fixo à posição, integradora da fracção autónoma, correndo em benefício ou prejuízo do cedente qualquer variação de custo – alínea c) matéria assente.
iii. O autor, ao tempo da celebração do acordo referido na alínea a) da matéria assente, era também cooperador da mesma cooperativa sob o nº ...; onde já tinha realizado entregas no montante de 600.000,00 €, por conta do apartamento 8 do 2° piso do mesmo edifício – alínea e) matéria assente.
iv. Autor e réu manifestaram a um elemento da Cooperativa, D…, que a Cooperativa devolveria ao réu os valores por este pagos ao longo de vários anos como cooperador, logo que o autor habilitasse a Cooperativa com a quantia a devolver e que o réu entregaria uma carta dirigida à C… desistindo dos seus direitos, o que foi aceite e cumprido por todos – respostas aos quesitos 5º, 6º e 7º da base instrutória.
v. Com a assinatura do contrato o autor pagou ao réu 400.000,00 € – alínea b) matéria assente.
vi. Para cumprimento do remanescente do preço de 800.000,00 €, o autor transferiu o seu saldo que estava imputado ao apartamento 8º do 2° piso do mesmo edifício, por lançamentos a crédito – alínea f) matéria assente.
vii. O autor, para obter o distrate da hipoteca registada sobre a fracção dos autos e fazer a escritura de compra e venda referida na alínea d) da matéria de facto assente, teve que assegurar que era feita ao Banco B… a liquidação da quantia de 249.000,00 €; o que sucedeu por a Cooperativa ter manifestado não ter meios financeiros para o fazer – resposta ao quesito 1º da base instrutória.
viii. Os pagamentos necessários para obtenção do cancelamento do registo hipotecário eram incumbência da Cooperativa – resposta ao quesito 3º da base instrutória.
ix. Em 18 de Novembro de 2008, a Cooperativa C… estornou ao autor a quantia de 100.000,00 €, pelo que, as entregas deste à Cooperativa C…, por conta do apartamento dos autos totalizaram o valor de 1.008.871,60 € – alínea g) matéria assente.
x. Em 31 de Dezembro de 2008, o autor celebrou a escritura pública de compra e venda com a C… CRL, pela qual adquiriu o apartamento 1 – bloco B, piso 0, correspondente à fracção M do prédio urbano descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de … sob o nº … pelo preço de 796.364,47 € (doc fls. 18 a 21) – alínea d) matéria assente.
            xi. O autor remeteu ao réu, que a recebeu, carta informando-o da escritura outorgada e de que, para cancelar ónus e encargos, tivera de pagar a quantia de 1.377.143,50 €, solicitando-lhe a indicação da forma de regularizar o excesso de 177.143,48 € (doc fls. 25) – alínea h) matéria assente.
xii. Outros cooperadores da Cooperativa, em situações de cedência de posição, agiram em termos semelhantes aos referidos nas respostas aos quesitos 5º, 6º e 7º da base instrutória, sendo que, o próprio autor, em Agosto ou Setembro de 2007 negociou, em termos semelhantes, a venda da sua posição no mesmo empreendimento relativamente ao apartamento nº 8 – respostas aos quesitos 8º e 9º da base instrutória.
xiii. A Cooperativa, por várias vezes, considerou que a participação dos cooperadores no cancelamento da hipoteca do imóvel era tida como um empréstimo feito pelos cooperadores à referida Cooperativa; o que sucedeu com outros cooperadores que não o autor – resposta ao quesito 4º da base instrutória.
xiv. O réu aceita que a cooperativa apresentou ao autor notas de débito no valor de, pelo menos, 17.705,23 € (cfr. artigo 659.º, n.º 3, do CPC e artigos 13º e 14º da contestação).

3.2. Enquadramento preliminar.
Rememoremos a tese do autor, recorrente principal. Celebrou com o réu um contrato promessa de transmissão de posição de cooperador, para aquisição de um apartamento (1); estipulou-se o preço de 1.200.000,00 €; pagou-lhe 400.000,00 €; o restante seria entregue à cooperativa; como já era cooperador para aquisição de um outro apartamento (8), onde era credor, imputou esses créditos à realização das prestações emegentes da nova posição (431.185,18 € e 44.553,51 €); no mais, entregou cheques (533.132,91 € e 100.000,00 €); deixou de ser cooperador do precedente apartamento (8); e foi estornado em 100.000,00 €; por conta da sua nova posição de cooperador disponibilizou à cooperativa o valor de 1.008.871,60 € (artigo 9º da petição). Além disso. Ficou firmado no contrato com o réu que qualquer variação do custo seria imputado a este, em seu prejuízo, ou benefício; se o valor de custo da fracção fosse superior a 800.000,00 €, o excesso seria suportado pelo cedente, se fosse inferior o cessionário devia pagar a diferença ao cedente (artigo 12º da petição). Ainda. Para adquirir a fracção autónoma livre de ónus e encargos, teve de entregar à cooperativa, em excesso ao preço estipulado de 1.200.000,00 €, a quantia de 208.871,60 € para obter o expurgo da hipoteca incidente sobre a fracção (artigo 15º da petição). Celebrou a escritura pública de compra e venda, com a coopera-tiva, pelo preço de 796.364,47 €; e para obter o distrate da hipoteca, para além do preço pago à cooperativa, teve de assegurar a liquidação ao banco da quantia de 249.000,00 € (artigo 18º da petição); Solicitou, depois, ao réu o reembolso do excesso, com erro por defeito (doc fls. 25; referindo o valor de 177.143,48 €).
            É inequívoco que o autor considera como enquadráveis nos custos, a que se refere a cláusula terceira, nº 3, do contrato firmado com o réu, o excesso que teve de pagar, a título de distrate da hipoteca, e que no artigo 15º da petição quantifica em 208.871,60 €, e no artigo 18º dela, em 249.000,00 €.
            É que é aquela a cláusula que estabelece o valor estimado de 800.000,00 €; e o encargo, para mais ou para menos, a que haja lugar.
Serão, contudo, assimiláveis àqueles custos as notas de débito que a cooperativa apresentasse ao autor para este lhe pagar, no quadro da dita cláusula?

            3.3. A posição de cooperador e o contrato de cessão firmado.
            3.3.1. O réu tinha a posição de cooperador na C.... Cooperativa de Habitação e Construção CRL. Estamos, por conseguinte, no domínio do direito cooperativo e num quadro negocial de regime e especificidades próprias.
            Rege este ramo jurídico o Código Cooperativo, aprovado pela Lei nº 51/96, de 7 de Setembro,[2] de onde resulta, em particular do seu artigo 2º, nº 1, se-rem as cooperativas entidades autónomas visando, através da entreajuda e coope-ração dos seus membros e sem fins lucrativos, a satisfação das necessidades e aspirações económicas, sociais ou culturais deles.[3]
            No que especialmente se refere a cooperativas de habitação e cons-trução, importa ter em conta, ainda, o quadro legal do Decreto-Lei nº 502/99, de 19 de Novembro.[4]  Aí se tratam de cooperativas cujo objecto, além do mais, seja a promoção, construção ou aquisição de fogos para a habitação dos seus mem-bros (artigo 2º, nº 1). Neste tipo de cooperativas, um dos regimes de propriedade de fogos admissível é o da propriedade individual, nos termos do qual o direito de propriedade se transmite da cooperativa ao cooperador, mediante um contrato de compra e venda (artigos 16º, nº 1, alínea a), e 26º, nº 1); se bem que com um específico regime, em particular, quanto à fixação do seu preço, não sujeita às leis do mercado, mas muito na base do custo real de cada fogo (artigos 27º e 17º).
            Significa, nesse contexto, não estarmos verdadeiramente em presença de um vendedor e um comprador de imóvel, como nas vulgares situações. Desde logo, não há, nem pode haver, intuito lucrativo; nem há, como nos contratos em geral, plena liberdade contratual, quer quanto aos sujeitos, ao preço e até à disposição (após a atribuição) da coisa que seja objecto do negócio. A entidade que aparece como vendedora é constituída pelo colectivo dos futuros adquirentes que, para esse efeito, se associaram e em cuja formação de vontade participam. No bom rigor, a cooperativa para habitação nem comercializa fogos, apenas os transmite aos cooperantes incluídos no programa habitacional, o que pode fazer através da compra e venda, a qual funcionará, então, como o expediente jurídico para pôr termo à propriedade colectiva, inicialmente constituída.[5]
            Dito isto. É agora, talvez, possível intuir um pouco melhor o carácter flutuante do preço da fracção, em causa nos autos, e retratado na cláusula tercei-ra, nº 3, do contrato de cessão firmado; aí se estabelecendo ainda não estar apurado o total do custo da fracção e, por conseguinte, estimando esse valor de custo, apenas para efeitos de cessão de posição, em 800.000,00 €; reflectindo-se o valor concreto, que se viesse depois a consolidar, na esfera do cedente.

3.3.2. Seja como for, era aquele o estatuto do réu; membro da cooperativa, com apartamento atribuído e expectativa da sua compra.
Inquestionavelmente, a coberto do princípio da liberdade contratual (artigo 405º do Código Civil) é firmado o contrato com o autor. Dá-se-lhe o nome de contrato promessa de transmissão de posição mas, como muito bem acentua a sentença apelada, do que verdadeiramente aí se trata é de um real e efectivo contrato de cessão da posição contratual, como mostram, sem margem de dúvida, as cláusulas nele concretamente ajustadas. É que se a promessa visa a obrigação de celebrar um contrato no futuro (artigo 410º, nº 1, do CC), gerando portanto a adstrição à declaração negocial dele constitutiva, no caso vertente na-da há relegado pelas partes para mais tarde. Uma cede e a outra adquire um certo estatuto jurídico, mediante um preço (cláusula segunda).
O quadro normativo geral da cessão da posição contratual encontra-se nos artigos 424º a 427º do Código Civil. É paradigmática deste instituto a transmissão em bloco de todo um estatuto, constituído pelo acervo de direitos e obrigações que o integrem; por isso, ele implica sempre a existência precedente de uma fonte contratual, geradora de vínculos e créditos recíprocos para as partes; sendo essa a plataforma a partir da qual uma destas opta por ceder a um terceiro aquela sua posição, assim constituída.[6]  É requisito de eficácia o consentimento da parte cedida na transmissão, embora essa possa ser manifestada até tacitamente.[7]  É habitual, ainda, o carácter oneroso da cessão, cabendo então ao cedente o direito a exigir uma contraprestação; a qual será pecuniária se esti-vermos perante uma venda de posição contratual.[8]  Seja como for, o efeito típico deste negócio é o da substituição do cedente pelo cessionário, como contraparte do cedido, na relação contratual básica (precedente).[9]

3.3.3. Rememoremos, agora, os termos da cláusula terceira, nº 3, do contrato de cessão, entre autor e réu; cláusula que fixa certa vinculação ao pri-meiro, como cessionário, e cujo sentido ajustado é absolutamente condicionante do desfecho das pretensões que um e outro formulam.
Fixemos, em particular, o seguinte trecho:

« O segundo outorgante pagará as notas de débito que lhe forem apresentadas pela cooperativa C... referentes à fracção até ao valor de 800.000 € »

            O que quiseram, autor e réu, explicitar com este texto? Que conteúdo o integrado nas «notas de débito ... referentes à fracção» ali prefiguradas?
            À descoberta do sentido das declarações negociais preside, em prin-cípio, a regra da impressão do destinatário; quer dizer, vale o sentido que um declaratário normal, na posição do real, pudesse deduzir do comportamento do declarante (artigo 236º, nº 1, do CC); havendo de ter em conta, nos negócios formais, que não pode valer um sentido sem o mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (artigo 238º, nº 1, do CC).
            Já antes nos referimos às características peculiares da compra que seja efectuada pelo cooperador à cooperativa de habitação, em particular, no que con-cerne ao estabelecimento do preço. A obediência aos princípios cooperativos,[10] a supressão do lucro como objectivo da vendedora, o condicionamento do preço da venda, não por razões de mercado, mas por outros factores,[11] permitem compreender a sucessiva e parcelada afectação de valores entregues por cada cooperador a necessidades e custos que sequencialmente vão surgindo, e assim permitem ver-se satisfeitos; naturalmente, cabendo toda a gestão dessa tarefa à própria cooperativa, a quem competirá concentrar todo o movimento financeiro e contabilístico, de entradas e imputações, e a final de realizar o apuramento do saldo que subsista.
No caso dos autos, índice do que acabamos de dizer é a descrição de conta corrente, relativa do apartamento em causa, que os autos contêm (doc fls. 14); assim se entendendo também a menção às notas de débito a apresentar pela cooperativa e referentes à fracção.
Quer dizer, hão-de ser custos inerentes à própria fracção, ao aparta-mento em edificação, aqueles que aí estão em causa, e naturalmente com reflexos no preço final da compra e venda, a pagar (ou não, casa haja saldo positivo) pelo cooperador à cooperativa, pela aquisição a ela do respectivo direito de propriedade. O contexto do relação jurídica de base, ao contrato de cessão de posição firmado entre as partes, não concede outro sentido que não este. Sendo, por conseguinte, valores inerentes a custos e encargos do aparta-mento, os reflectidos nas ditas notas de débito que fossem sendo apresentadas pela cooperativa, e condicionantes do preço final da compra e  venda.
Desta forma, o que se vê ter sido firmado pelas partes foi que o preço da cessão – celebrada entre autor e réu – ficasse condicionado pelo preço da venda do apartamento – a celebrar entre o autor e a cooperativa –; flutuando a-quele ao sabor deste; ou seja, ajustando-se no contrato de cessão que, caso este se configurasse superior ao valor estimado de 800 mil euros, o excedente teria de ser entregue pelo réu (cedente) ao autor (cessionário), e na inversa, isto é, se o valor retratado para a feitura da venda se situasse em montante inferior áquele previamente estimado, então, haveria de ser o segunto (cessionário) a realizar a entrega da diferença ao primeiro (cedente).

3.3.4. O distrate da hipoteca.
Contudo, e como é fácil intuir, o autor funda a acção em quantia que terá tido de entregar à cooperativa, de maneira a permitir a esta expurgar uma hipoteca, incidente sobre o apartamento, e dessa forma facultar a feitura da com-pra e venda livre de ónus e encargos sobre a coisa transmitida (artigos 15º e 18º da petição inicial).
Pois bem; não se vê que o valor desse distrate – que, no fundo, repre-sentará certa quantia mutuada por um banco à cooperativa – pudesse ser reflecti-do em notas de débito, a apresentar pela cooperativa ao seu cooperador; mais ainda, com o sentido atribuído a estas, e que antes tentámos interpretar. E não po-dendo ali ser reflectido, vemos um tal valor de distrate de fora da previsão estabelecida na essencial cláusula terceira, nº 3; nem sequer o contrato, em outro qualquer dos seus trechos, prevenindo qualquer referência a uma garantia real que existisse, como à sua extinção; e que portanto, do ponto de vista da cessão de posição, se mostra perfeitamente desconhecido. A própria factualidade provada é impressiva a este propósito; era a cooperativa a responsável pelo cancelamento do registo hipotecário (resposta ao quesito 3º); era habitual, neste tipo de negó-cio, o cooperador participar nesse cancelamento, entendendo-se que se tratava de um empréstimo à cooperativa (resposta ao quesito 4º).[12] 
            A verdade é que, por via da cessão de posição, ocorreu a extinção subjectiva da relação existente com a cooperativa, quanto ao réu cedente; e que no acordo por este firmado, com o autor cessionário, nada se previne a propósito de qualquer transmissão desonerada ou da participação nessa desoneração. E isso mostra que, acolher a tese do autor, de que as quantias por si entregues para obter o expurgo da hipoteca contabilizam naquelas prevenidas pelo contrato de ces-são, significaria trazer de volta à relação contratual de base o réu cedente, vol-vendo-o agora em credor da cooperativa, por uma quantia a esta emprestada por um banco, que o autor, cessionário, satisfizera a este, sub-rogando-se na qualida-de de credor e que, agora, este lhe passava (ao réu, seu cedente) de volta.
            Ora, não foi manifestamente isto que se quis com o contrato de cessão de posição; único nexo contratual que une autor e réu; por consequência, não podendo dar-se acolhimento à pretensão por aquele formulada.
            A hipoteca, aliás, configura uma garantia real de cumprimento de obrigações; é acessório de um direito de crédito (artigo 686º do Código Civil); significando isso que se trata de uma especial faculdade de um credor, sobre o seu devedor, de particular afectação de um certo bem (em regra, imóvel) à satisfação do crédito.[13]  O réu, no caso dos autos, não é devedor da obrigação garantida; nem sequer o adquirente da coisa hipotecada. A própria expurgação da hipoteca, que o artigo 721º do Código Civil especialmente consagra,[14] traduz-se numa faculdade voluntária, a utilizar pelo adquirente do bem hipotecado, e que assim queira evitar o risco da sua perda na hipótese de o devedor da obrigação garantida a não cumprir.[15]  Na hipótese dos autos, porque tinha óbvio interesse em eliminar o direito real de garantia, sobre o apartamento que ía adquirir, o autor embolsou a devedora, de maneira a que esta extinguisse o débito ao banco (artigo 730º, alínea a), do Código Civil); tendo-o feito poderá, porventura, ter assumido posição credora relativamente àquela (artigos 592º, nº 1, e 593º, nº 1, do Código Civil).[16]  O que seguramente não assumiu foi uma tal posição relativamente ao réu, nem por via sub-rogatória, nem por via do contrato de cessão firmado, perfeitamente omisso a um tal propósito.

            3.4. As notas de débito de 17.705,23 €.
            A sentença apelada acolheu um crédito do autor, de 17.705,23 €, por o réu aceitar que a cooperativa lhe apresentara notas nesse montante.
            Em recurso subordinado o réu propugna que o autor não pediu qualquer condenação assim alicerçada.
            Do precedente resulta que assiste razão ao recorrente subordinado.
            A petição inicial é inequívoca no sentido da sustentação do pedi-     do; trata-se do dispêndio realizado para a desoneração do apartamento e traduzi-do no embolso feito à cooperativa (devedora) para ela cumprir junto do banco. A questão das notas de débito é, na nossa óptica, outra dessa distinta.
            Ainda assim. O que sabemos é que a escritura se fez, pelo preço de 796.364,47 €, nela se esclarecendo ter esse valor já ter sido recebido pela cooperativa vendedora (doc fls. 18 a 21; alínea d) matéria assente). O tribunal a quo descortinou que nos artigos 13º e 14º da contestação o réu aceitou ter cooperativa apresentado notas de débito ao autor no indicado valor (facto II- 3.1.xiv.); essas sim, seguramente enquadrando a cláusula terceira, nº 3, do contrato de cessão. Fica, contudo, a dúvida sobre se essa quantia, de 17.705,23 €, retrata efectivamente uma superação, no todo ou em parte, do valor de referência dos 800 mil euros; ou se, ao invés, esse valor já se acha reflectido no valor do preço da venda, como retratado na escritura. É que verdadeiramente a alegação do réu, e que o tribunal recorrido sobrevalorizou, foi apenas no sentido de alegar que (unicamente) aquelas notas de débito haviam sido apresentadas ao autor; nada permitindo daí intuir que se tratava de valor a mais que o de referência considerado no contrato de cessão. Quanto a este aspecto, os elementos dos autos são inconcludentes; e, desse ponto de vista, não bastantes para justificar a condenação do réu no respectivo pagamento.
            Com o que procede o recurso subordinado.

            3.5. A condenação no pedido reconvencional.
            A sentença recorrida condenou o autor a pagar ao réu a quantia de 3.635,53 €, com juros de mora; em recurso principal aquele impugna essa con-denação, por o valor da escritura não reflectir todos os custos suportados.
            Vejamos. A quantia em questão reflecte precisamente a diferença entre o valor estimado no contrato de cessão e o valor do preço indicado na escritura da venda. Que esta última não reflicta o totalidade dos custos do apartamento é mera afirmação, que não foi demonstrada nos autos. O que, com certeza, conhe-cemos é, por um lado, o regime peculiar da compra e venda no contexto do direito cooperativo, onde as relações entre as partes não podem ser vistas da mesma forma que as do vulgar vendedor e comprador. Por outro lado, que o valor tido efectivamente em vista pelas partes, no contrato de cessão, foi o do custo total da fracção, como resulta explicitamente da letra da cláusula contratu-al, e só estimado, por aproximação, no valor de 800.000,00 €, dado então ainda não ser possível apurar o valor real e efectivo; a própria cláusula o justifica. Fi-nalmente, conhecemos o preço da escritura que, na falta de outro elemento seguro e não apurado, tem de valer como consolidação daquele real e efectivo valor, previamente (apenas) estimado. Isto é, o valor do apartamento – o traduzível nos custos, encontrados nas condições particulares desta venda e su-bordinadas ao quadro legal já indicado –, que há-de ter sido o reflectido nas no-tas de débito apresentadas pela vendedora ao comprador. Era este o espírito negocial; e que agora, já em quadro de litígio, se não pode transformar.
            Se o custo total da fracção – para usar as palavras do clausulado na cessão – foi o 796.364,47 €; e tendo o valor estimado sido o de 800.000,00 €; se a diferença, por defeito, haveria de funcionar em benefício do cedente; então, is-so significa que este – o réu na acção – é, agora, credor do valor em diferença; precisamente o de 3.635,53 €. É a quantia que, em cumprimento da cláusula terceira, nº 3, do contrato de cessão de posição celebrado em 30 de Julho de 2008, o cessionário tem restituir ao cedente.
            Improcede, também neste extracto, o recurso independente; sendo aí de confirmar o juízo decisório da sentença.

            4. Assim, e em suma.
            A acção é, no seu todo, improcedente; tendo o réu de ser absolvido do pedido que, contra si, formulou o autor. A reconvenção, de seu lado, é parcial-mente procedente; o autor tem de ser condenado a pagar ao réu a reconhecida diferença (para menos) de 3.635,53 €, relativamente ao valor estimado, e absolvido no restante que pediu.
Correspectivamente, o recurso principal é, no seu todo, improce-dente; e o recurso subordinado procedente, já que a sentença insubsiste no extracto em que julgou procedente a acção.

5. Em termos tributários deverá distinguir-se a apelação independen-te da apelação subordinada. Responsável pelo encargo das custas será, em uma e na outra, o autor na acção e reconvindo na reconvenção, uma vez que venci-  do, ali como recorrente principal, aqui como recorrido subordinado (artigo 446º, nº 1 e nº 2, do CPC).
A taxa de justiça aplicável é a fixada nos termos da tabela I-B, anexa ao Regulamento das Custas Processuais (artigos 713º, nº 2, 659º, nº 4, do CPC, 6º, nº 2, e 7º, nº 2, do RCP).

            6. Síntese conclusiva.
            É a seguinte a síntese conclusiva que pode ser feita, a propósito do que fica de essencial quanto ao mérito do presente recurso:

            I – Em direito cooperativo as relações que se estabelecem entre o cooperador e a cooperativa não são identificáveis com as estabelecidas entre um comum comprador e um comum vendedor;
            II – Na cessão da posição contratual o cedente exclui-se da relação jurídica que constitui a base da cessão, havendo quanto a ele uma verdadeira extinção subjectiva (artigo 424º, nº 1, do Código Civil);
            III – Cedida a posição de cooperador, com apartamento atribuído, e acordado nessa cessão que o cedente assumiria o pagamento das notas de débito que a cooperativa viesse a apresentar ao cessionário acima de um certo valor, não pode considerar-se que faz parte deste encargo a quantia que o cessionário teve de dispender para distratar uma hipoteca, incidente sobre o apartamento e da responsabilidade da cooperariva, de maneira a permitir realizar a sua aquisição livre desse ónus.

           
III – Decisão
           
            Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação:

            Em julgar o recurso independente improcedente e em confirmar a sentença recorrida na parte por ele impugnada, em particular mantendo a condenação do recorrente principal (autor na acção) a pagar ao recorrido (réu na acção) a quantia de 3.635,53 € e juros, nos termos naquela referidos;

            Em julgar o recurso subordinado procedente e em revogar a sentença recorrida, no extracto em que condenou o recorrente subordinado (réu na acção) a pagar ao recorrido (autor na acção) a quantia de 17.705,23 €, e juros, condenação da qual aquele é, assim, absolvido.
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As custas do recurso independente ficam a cargo do recorrente (principal); as do recurso subordinado são encargo do recorrido (subordinado).
A taxa de justiça é a fixada na tabela I-B, anexa ao RCP.

Lisboa, 22 de Março de 2011

Luís Filipe Brites Lameiras
Jorge Manuel Roque Nogueira
António Santos Abrantes Geraldes
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[1] Reordena-se a narração dos factos, por uma ordem que se crê mais lógica e cronológica, de maneira a conseguir uma melhor percepção das realidades que tiveram lugar.
[2] A redacção do Código Cooperativo já teve diversas intervenções, a última das quais implementada pelo Decreto-Lei nº 76-A/2006, de 29 de Março.
[3] A propósito das especificidades da posição de cooperador, Acórdãos da Relação de Lisboa de 7 de Maio de 2009, proc.º 1260/08.4TVLSB.L1-2, e de 17 de Dezembro de 2009, proc.º nº 8994/08-6, ambos in www.dgsi.pt.
[4] O artigo 3º deste diploma tem a redacção dada pelo Decreto-Lei nº 76-A/2006, de 29 de Março
[5] A este propósito, Acórdãos da Relação de Lisboa de 28 de Outubro de 2008, proc.º nº 4941/2008-1, e de 29 de Junho de 2010, proc.º nº 3228/06.6TVLSB.L1-1, ambos in www.dgsi.pt.
[6] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil anotado”, volume I, 4ª edição, páginas 400 a 401.
[7] Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, página 402.
[8] Carlos Alberto da Mota Pinto, “Cessão da posição contratual”, página 474.
[9] Carlos Alberto da Mota Pinto, obra citada, página 450.
[10] Artigo 3º do Código Cooperativo.
[11] Artigo 17º do Decreto-Lei nº 502/99, de 19 de Novembro.
[12] Embora já fora da apreciação da decisão sobre matéria de facto, não podemos deixar de aqui lembrar e explicitar ter a testemunha Duarte Nuno R Gonçalves (fls. 100), como director da cooperativa que pessoalmente acompanhava as vicissitudes dos negócios com os cooperadores – e também o dos autos –, verbalizado isto mesmo; quer dizer, esclarecendo com clareza que se tratava de empréstimo à cooperativa para fazer a escritura e que, assim, o cooperador continuava credor desse valor relativamente à cooperativa.
[13] Salvador da Costa, “O concurso de credores”, 3ª edição, página 72.
[14] A figura substantiva da expurgação da hipoteca, prevenida para a hipótese da transmissão dos bens hipotecados, acha-se adjectivada pelo processo especial regulado nos artigos 998º a 1000º e 1002º a 1006º do Código de Processo Civil; Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, página 741.
[15] Acerca da expurgação da hipoteca, como uma das modalidades da sua extinção, Rui Pinto Duarte, “Curso de Direitos Reais”, 2002, página 216, Miguel Pestana de Vasconcelos, “Direito das garantias”, páginas 210 a 213, e Luís Menezes Leitão, “Garantias das obrigações”, 2ª edição, páginas 221 a 223 e 228.
[16] Um dos casos típicos de sub-rogação legal é precisamente o de o adquirente da coisa hipotecada, que cumpre pelo devedor, na intenção de prevenir a execução do crédito hipotecário. Pires de Lima e Antunes Varela in obra citada, página 608; Acórdão da Relação do Porto de 18 de Junho de 2008, proc.º nº 0821410, in www.dgsi.pt.