Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1899/13.6TVLSB.L1-6
Relator: ANA PAULA A. A. CARVALHO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
FACTO ILÍCITO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
DANO REPARÁVEL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE/REVOGADA
Sumário: I. Estruturando-se a acção na responsabilidade civil por facto ilícito, e provando-se todos os pressupostos deste instituto, não é possível recorrer ao enriquecimento sem causa, dado o seu caráter subsidiário, nos termos do artigo 474º do C.C.

II. Se a autora formula pedido de condenação na quantia pecuniária correspondente ao período de rentabilização da fracção imóvel que foi impedida de gozar, se resulta demonstrado o valor locativo da mesma, poder-se-á concluir pela afirmativa quanto à vontade do titular do direito de propriedade em obter as vantagens correspondentes ao seu exercício, e que foi alegada e provada a existência de um dano reparável.

(Sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6ª Seção do Tribunal da Relação de Lisboa.


RELATÓRIO:


TC, residente na Rua dos F., Lisboa, instaurou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra: IM, esta representada pela primeira, sua mãe, residentes na Av. da R., Olhão, pedindo a condenação das rés no pagamento à A da quantia de € 42.200,00, acrescida de juros de mora, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.

A autora alega, em síntese, o seguinte:

Em março de 2009 a Autora comprou, juntamente com uma das suas irmãs, IM, a fracção autónoma designada pelas letras HHHH, correspondente ao 12º andar F, com arrecadação e estacionamento, do prédio sito na Calçada das L.,, em Lisboa. Esta fracção era anteriormente detida pelo pai de ambas, o falecido CM, na sequência da celebração de um contrato promessa.

Nesta fracção residia sozinho o pai da Autora e de forma intermitente uma vez que exercia a profissão de médico em Faro.

A 1ª R residiu cerca de 2 meses com CM de quem tem uma filha, a aqui 2ª Ré, nascida em 10.11.2007. A 1ª R nunca habitou esta fracção, pelo menos de forma permanente, durante a sua relação com o pai da Autora.

Em 28/10/08, após o falecimento do pai da autora, a irmã daquele, HM, emprestou as chaves da referida fracção à 1ª R para aí pernoitar. A 1ª Ré aproveitou e mudou sem autorização a fechadura da fracção e lá ficou a residir até, pelo menos, Dezembro de 2012, altura em que saiu na sequência da emissão de um mandado judicial para entrega da fracção em causa.

Entretanto a autora e a irmã Iolanda continuaram a pagar as despesas relativas à fracção como o condomínio, taxas de esgotos e IMI, não obstante a autora ser estudante de direito e não ter rendimentos próprios.

Uma vez que a fracção em causa é um T3, totalmente mobilado, com vista para o rio e perto de transporte, tem o valor de cerca de € 250.000,00. No mercado de arrendamento seria fácil à Autora arrendar tal apartamento por € 1.400,00.

A Autora tentou que a 1ª R deixasse a fracção, mas sem êxito.

Com o seu comportamento, a 1ª R impediu a Autora de passar a residir na fracção ou de a rentabilizar arrendando-a. Deste modo, ocorreu um enriquecimento da ré à custa da autora sem causa justificativa no valor de € 32.200,00 (46 meses x 1.400,00).

Com o mesmo comportamento de privar a Autora do bem, a 1ª R causou à autora nervosismo, desespero, angústia, frustração e desgosto, pelo que esta deve ser indemnizada em € 10.000,00.

Na contestação, as rés alegam o seguinte:
A 1ª R viveu em união de facto com o pai da autora da Páscoa de 2005 até Outubro de 2008 alternadamente entre a casa de Lisboa, na Calçada das L., sita em Faro. A 1ª R teve do falecido uma filha, a 2ª Ré.
Com o falecimento do pai da Autora foi a irmã deste, HM, que aconselhou a 1ª R a vir para a casa de Lisboa, uma vez que a casa de Faro estava no nome de outra filha, Iolanda.
A Autora e a IM utilizaram o dinheiro da herança para comprar a fracção em causa.
As rés residiram nessa casa desde 28/10/08 até meados de 2012, uma vez que em Novembro de 2012 a 1ª R arrendou outra fracção para residir com a sua filha.
As rés impugnam o valor da fracção e o valor locativo.
Invocam, ainda, que o instituto do enriquecimento sem causa tem natureza subsidiária e no caso em apreço a autora pôde lançar mão de outros institutos. Acresce que não se mostram reunidos os requisitos do enriquecimento sem causa, designadamente inexistiu empobrecimento por parte da A.
Terminam pedindo a improcedência da acção.

A convite do tribunal, a autora requereu a intervenção principal provocada da outra comproprietária, IM, que citada limitou-se a juntar procuração forense.

Realizou-se a audiência final e elaborou-se a sentença que julgou a acção improcedente e absolveu as rés do pedido.
*

Não se conformando, a autora apresentou recurso de apelação, pugnando pela declaração de nulidade da sentença, sua revogação e substituição por acórdão que condene as rés na integralidade do pedido, com as demais consequências legais.

A apelante formula as seguintes conclusões das alegações de recurso:

«
A privação do uso de bem imóvel constitui um dano autonomamente indemnizável.

Por isso, o tribunal recorrido violou o art. 483º, nº 1, do CC na medida em que considerou não existir dano.

Por outro lado, se se entender não haver lugar à aplicação da responsabilidade civil por não existir um dano reparável inerente à privação do uso, justifica-se o apelo ao enriquecimento sem causa.

Assim, o tribunal recorrido violou os arts. 473º e 474º do CC na medida em que decidiu não estarem verificados os requisitos do enriquecimento sem causa.

Relativamente à caracterização do dano causado à autora pela ocupação e uso ilícito da fracção autónoma identificada nos autos, cumpre salientar que a tia da autora confiou as chaves daquele apartamento para ela e a filha menor passarem apenas uma noite, em 28.10.2008.

Contudo, a 1ª ré, sem autorização, mudou a chave da porta de entrada da sobredita fracção autónoma e ambas as rés ali moraram, no período compreendido entre a referida data de 28.10.2008 e o mês de Outubro de 2012.

No mercado do imobiliário, o valor da fracção autónoma, de que a autora e uma sua meia-irmã se tornaram proprietárias em Março de 2009, e que foi abusiva e ilicitamente ocupada e fruída pelas rés a partir de 28.10.2008 e até, pelo menos, Outubro de 2012, é de €155.600,00, sendo certo que a mesma fracção poderia ser arrendada por €760,00 mensais.

Anteriormente à desocupação da fracção por parte das rés, por diversas vezes a autora solicitou verbalmente à 1ª ré que lhe entregasse aquele bem imóvel.

Atenta a factualidade tida por provada na sentença recorrida, tem-se como certo que estão reunidos todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, cujo princípio geral está consagrado no art, 483º do CC, pressupostos esses que, aliás, foram doutamente enumerados pela Mmª Juíza “a quo”.
10ª
Não obstante a prova cabal, feita pela autora, dos referidos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, são invocados na sentença recorrida fundamentos ilógicos e até incoerentes como pretensamente justificativos da decisão de julgar a acção improcedente e absolver as rés do pedido baseado naquela responsabilidade.
11ª
Assim, quanto ao argumento de que a autora “alegou ter tido um dano por não ter podido passar a residir na fracção ou rentabilizá-la arrendando-a” e que, “no que concerne à primeira parte a A apenas logrou provar que não tem casa própria, mas não provou e nem sequer alegou que quis passar a residir na fracção em causa nestes autos”, importa salientar que a privação do direito de habitar a casa quando bem lhe aprouvesse decorre do disposto no art. 1406º, nº 1, do CC, e que, se a autora alegou “ter tido um dano por não ter podido passar a residir na fracção ou rentabilizá-la arrendando-a”, é porque esteve impedida do exercício destes direitos durante cerca de quatro anos e os desejava exercer.
12ª
De idêntico modo, também o argumento de que a autora “é mera comproprietária da fracção e não alegou igualmente que a sua meia-irmã estivesse de acordo com o facto da A passar aí residir” é flagrantemente contrário ao disposto no supracitado art. 1406º, nº 1, do CC, preceito este que, por isso, também foi violado pela douta sentença recorrida, porquanto, “na falta de acordo sobre o uso da coisa comum, a qualquer dos consortes é lícito servir-se dela, contanto que a não empregue para fim diferente daquele a que a coisa se destina e não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito”.
13ª
Semelhantemente, carece de qualquer lógica e de coerência o argumento de que a autora “não tem rendimentos próprios e, portanto, não teria como fazer face às despesas de habitação”; isto pela simples e comezinha razão de que ficou provado que “a A e a sua irmã IM, na qualidade de proprietárias após o referido em 1, pagaram as despesas relativas à fracção, nomeadamente as de condomínio, taxas de esgotos e IMI.”
14ª
Acresce que, para além de se tratar de um problema da vida privada da autora, a verdade é que, tendo sido provado que, embora não tenha rendimentos próprios, é estudante de direito, é óbvio que alguém, nomeadamente a sua mãe, a está a ajudar em todas as suas despesas, sejam de que natureza forem.
15ª
Quanto ao último fundamento invocado na douta sentença como justificativo da decidida improcedência da acção, aquele em que a Mmª Juiza “a quo” refere que “não alegou a A que queria efectivamente dar de arrendamento a fracção em causa e principalmente que essa era a vontade da outra comproprietária” e que “não basta provar o valor locativo da fracção para que haja dano”, não se poderá olvidar que essa questão só se poderia colocar se a casa estivesse livre e devoluta e não abusivamente ocupada pelas rés. É que o direito de dispor da casa ou de a onerar com um contrato de arrendamento é um dos direitos compreendidos no art. 1305º do CC, naturalmente conjugado com as normas aplicáveis á compropriedade, designadamente as consignadas no art. 1405º e segs. do mesmo diploma legal.
16ª
Ainda quanto ao dano, cumpre igualmente alegar que, tendo sido provado que a casa poderia ser arrendada por €760,00 mensais, deste facto decorre que a abusiva e ilícita permanência das rés naquele apartamento durante 43 meses, sem nada pagarem, consubstancia, para além do alegado enriquecimento sem causa à custa da autora e da sua meia-irmã Iolanda, um manifesto dano para estas, pois estiveram impedidas de, durante tão longo período de tempo, retirarem qualquer proveito do apartamento, quer através do seu arrendamento a terceiros, quer ocupando-o e fruindo-o directamente.
17ª
Tal dano patrimonial ascende a €32.680,00 (43 meses x €760,00), o que confere à autora o direito de receber das rés a importância de €16.340,00, correspondentes à quota-parte (metade) de que ela é proprietária na referenciada fracção autónoma.
18ª
De referir ainda que, contrariamente ao que parece ser o entendimento do tribunal recorrido, o facto de ter sido deduzido o incidente de intervenção principal em que foi chamada a meia-irmã da autora e de esta não ter oferecido o seu próprio articulado ou feito seu o articulado da autora, não poderá redundar em prejuízo da posição desta, antes pelo contrário, pois o silêncio da chamada a intervir equivale a uma concordância tácita dos factos alegados pela autora.
19ª
De salientar, ainda, que, salvo o devido respeito, ao invocar, a fls. 13 e 14 da douta sentença recorrida, factos não alegados nos autos por qualquer das partes como fundamentos justificativos da sua decisão de julgar a acção improcedente e dela absolver as rés, a Mmª Juíz “a quo” violou o disposto no art. 608º, nº 2, do C.P.C., o que, nos termos do art. 615º, nº 1, alínea d), provocou a nulidade da sentença.
20ª
De igual modo, no entendimento da autora, os factos provados e as disposições legais aplicáveis são de molde a justificar plenamente a procedência da acção e, por isso, tais fundamentos de facto e de direito estão em manifesta oposição com o sentido da decisão do pleito, pelo que, também por este motivo, a sentença enferma da nulidade a que se refere a alínea c) do nº 1 do supracitado art. 615º do C.P.C.
21ª
Finalmente, no que concerne aos danos não patrimoniais, muito embora da douta sentença recorrida constem como não provados os alegados “nervosismo, desespero, angústia, frustração e desgosto”, certo é que a autora também alegou nos arts. 27º e 30º da p.i. que, durante mais de 3 anos, foi impedida de aproveitar livremente o conforto de uma casa que é sua e que tal privação do conforto que a mesma lhe poderia proporcionar lhe causou “sofrimento, pelo sentimento de injustiça”, sendo, porém óbvio que tal ocupação ilícita e abusiva também lhe provocou ”frustração e desgosto.”
22ª
Ora, salvo o devido respeito, os alegados sofrimento, pelo sentimento de injustiça, a frustração e desgosto da autora, e vários outros incómodos que lhe foram provocados pelo descrito comportamento da 1ª ré, “ao ver-se, durante mais de 3 anos, impedida de aproveitar livremente uma casa que é sua”, são factos óbvios e ”notórios”, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 412º, nº 1, do C.P.C., os quais, por isso, nem sequer careciam de prova nem de alegação.
23ª
Deste modo, os €10.000,00 reclamados pela autora a título de danos não patrimoniais parecem mais que justificados, pelo que, neste aspecto, a douta sentença recorrida violou, para além de outros preceitos legais retro indicados, o disposto no citado art. 412º, nº 1, do C.P.C., bem como o art. 496º, nº 1, e 562º e segs. do C.C.
NESTES TERMOS e nos melhores de direito, que Vossas Excelências, Senhores Desembargadores, mui doutamente suprirão, deve ser concedido provimento ao recurso e, consequentemente, declarar-se nula, revogar-se ou alterar-se a sentença recorrida, e condenar-se as rés a pagarem à autora a quantia de €26.340,00, correspondendo €16.340,00 aos danos patrimoniais e €10.000,00 aos danos não patrimoniais, conforme discriminação feita supra e na p.i., devendo igualmente as rés serem condenadas a pagarem à autora juros legais incidentes sobre as mencionadas importâncias e contados a partir da citação e até ao integral pagamento, assim se fazendo a habitual e necessária justiça.»
*

Não foram apresentadas contra-alegações.
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Obtidos os vistos legais, cumpre apreciar.
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Questões a decidir:

O objeto e o âmbito do recurso são delimitados pelas conclusões das alegações, nos termos do disposto no artigo 635º nº 4 do Código de Processo Civil. Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Similarmente, não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas (Abrantes Geraldes, Recursos no N.C.P.C., 2017, Almedina, pág. 109).

Importa apreciar as seguintes questões:

a).- Se tribunal recorrido violou o disposto no artigo 483º nº 1 do C.C. quando considerou que a privação do uso de bem imóvel não constitui um dano autonomamente indemnizável?

b).- Caso assim não se entenda, o tribunal recorrido violou o disposto nos artigos 473º e 474º do C.C., pois não havendo lugar à aplicação da responsabilidade civil por não existir um dano reparável inerente à privação do uso, justifica-se o apelo ao enriquecimento sem causa?

c).- Se o tribunal recorrido, ao não arbitrar a indemnização de € 10.000,00, reclamados pela autora a título de danos não patrimoniais, violou o disposto no art. 412º, nº 1, do C.P.C., bem como no art. 496º, nº 1, e 562º e segs. do C.C.?
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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

A factualidade provada e não provada consignada na sentença recorrida é a seguinte:

1.1.Factos provados.
Com interesse para a decisão da causa estão provados os seguintes factos:

1.- Em Março de 2009 a Autora adquiriu, em compropriedade com uma das suas duas irmãs, IM, a fracção autónoma designada pelas letras “HHHH”, correspondente ao 12º andar F, com arrecadação (porta 73) e estacionamento (lugar 71, na cave 1), do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Calçada das L., concelho de Lisboa, descrita na 1ª C.R.Predial de Lisboa sob o nº 00, inscrito na matriz da freguesia da S. João (extinta) sob o art. 000/actual freguesia da Penha de França sob o art. 000 (1)).
2.- A fracção identificada em 1 veio à detenção do pai da Autora, CM, no âmbito da celebração de um contrato-promessa de compra e venda (2).
3.- No interior da fração descrita em 1 encontram-se bens móveis que pertencem à herança deixada por CM e que são objeto da relação de bens constante do processo de Inventário que corre termos na 3ª secção do 5º Juízo Cível de Lisboa, sob o nº 1085/09.0TJLSB (3)).
4.- As ora rés requereram procedimento cautelar contra a Autora e Interveniente para que lhes fosse reconhecida e mantida a posse da fracção, autos que correram termos na 9ª Vara Cível de Lisboa, sob o nº 282/12.5TVLSB, e que veio a ser julgado improcedente (4)).
5.- A Autora e a sua irmã IM, na qualidade de proprietárias após o referido em 1, pagaram as despesas relativas à fracção, nomeadamente as de condomínio, taxas de esgotos e IMI (5)).
6.- A fracção referida em 1 é um “T3”, composto por 4 assoalhadas, totalmente mobilado e equipado, com loiça, máquinas de lavar loiça, lavar e secar roupa, máquina de café, fogão, micro-ondas, esquentador, roupeiros, ar condicionado, vidros duplos, cofre, garagem e arrecadação, num 12º andar de um prédio com elevadores, vista de rio e próximo de transportes, serviços e universidade (6)).
7.- CM faleceu em outubro de 2008 (7)).
8.- Após o falecimento do pai da autora, a 28.10.2008, a pedido da 1ª R, a tia da A, Maria HM, que detinha as chaves da fração descrita em 1, entregou-as à 1ª R apenas para que esta pudesse ali permanecer uma noite (A)).
9.- A 1ª R, apesar do referido em 8 (A)) e sem autorização, mudou a fechadura da porta de entrada da fracção identificada em 1 (B)).
10.- A 1ª R, após o referido em 9 (B)), passou a utilizar a fracção desde 28.10.2008 até, pelo menos, Outubro de 2012 (C) – parte).
11.- A Autora é estudante de direito, sem casa própria e sem rendimentos próprios (D)).
12.- A fracção descrita em 1 e 6 tem o valor de venda de mercado de € 155.600,00 (E) – parte).
13.- A fracção descrita em 1 e 6 poderia ser arrendada por € 760,00 mensais (F) – parte).
14.- Antes do referido em 4 a Autora, por diversas vezes, solicitou à 1ª R verbalmente a entrega da fracção (G)).
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1.2. Factos não provados.

Não se provaram os seguintes factos:
a)- Que a 1ª R, após o referido em 9 (B)), tenha passado a utilizar a fracção até, pelo menos, Dezembro de 2012 (C) – parte);
b)- Que a fracção descrita em 1 e 6 tenha o valor de venda de mercado de € 250.000,00 (E) – parte);
c)- Que a fracção descrita em 1 e 6 poderia ser arrendada por € 1.400,00 mensais (F) – parte);
d)- Que, na data do falecimento de CM, as RR residissem na fracção, ali dormindo, fazendo as suas refeições e recebendo a sua correspondência e os seus amigos e familiares (I));
e)- Que, na data da aquisição da fracção, a Autora tivesse conhecimento que, na data do falecimento do CM, as RR aí residissem, aí dormissem, aí fizessem as suas refeições e aí recebessem a sua correspondência e os seus amigos e familiares (J));
f)- Que, em consequência da atitude da 1ª R referida em 9 (B)) e 10 (C)) a Autora tenha sentido nervosismo, desespero, angústia, frustração e desgosto (H)).
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FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.

a).- Se tribunal recorrido violou o disposto no artigo 483º nº 1 do C.C. quando considerou que a privação do uso de bem imóvel não constitui um dano autonomamente indemnizável?

Na perspectiva da apelante, se a autora alegou «ter tido um dano por não ter podido passar a residir na fracção autónoma de que era comproprietária» é porque efectivamente desejava passar a habitar nessa fracção, ao que acresce ter-se provado que a mesma não tem casa própria.

O tribunal recorrido equaciona a solução jurídica consagrada nos seguintes termos:

«Da análise da matéria de facto dada como provada resulta o comportamento da 1ª R de continuar a ocupar a fracção em causa a partir do momento em que esta passa a ser propriedade da A e da Interveniente (Março de 2009) contra a vontade, pelo menos da primeira, consubstancia um acto ilícito (por violação do direito de propriedade) e culposo (na modalidade de dolo).
Alega a A ter tido um dano por não ter podido passar a residir na fracção ou rentabilizá-la arrendando-a.
Ora, no que concerne à primeira parte a A apenas logrou provar que não tem casa própria, mas não provou e nem sequer alegou que quis passar a residir na fracção em causa nestes autos. Acresce que a A é mera comproprietária da fracção e não alegou igualmente que a sua meia-irmã estivesse de acordo com o facto da A aí passar a residir. Por outro lado, tendo em atenção que se apurou que a A é estudante e não tem rendimentos próprios a mesma não teria como fazer face às despesas da manutenção de uma habitação.
Do mesmo modo não alegou a A que queria efectivamente dar de arrendamento a fracção em causa e principalmente que essa era igualmente a vontade da outra comproprietária. Não basta provar o valor locativo da fracção para que haja um dano.»

No fundo, e tal como invoca a recorrente, tudo se resume à questão de determinar se a privação do uso do bem pelo respectivo proprietário constitui por si só um dano indemnizável, e em que termos.

A questão tem sido objecto de controvérsia doutrinal e na jurisprudência.

Nas palavras de Mota Pinto, o «dano da privação do gozo ressarcível é (…) a concreta e real desvantagem da privação do gozo, e não logo qualquer perda da possibilidade de utilização do bem – a qual (mesmo que resultante de uma ofensa direta ao objecto, e não apenas de uma lesão no sujeito), pode não ser concretizável numa determinada situação (Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, vol. I, 2008, pág. 594-596).

Abrantes Geraldes sustenta que «a ilegítima privação de um bem é susceptível de, por si só, constituir o agente ou o responsável na obrigação de indemnizar o credor ou o lesado, sem necessidade de prova de outros factos…» (Temas da Responsabilidade Civil, Vol. I, Indemnização do Dano da Privação do Uso, 2007, pág. 13).

Na mesma linha, mas a propósito de um bem móvel, defendeu-se no Acórdão do S.T.J. de 08.05.2013 (disponível no sítio da internet do IGFEJ): «Entende-se que a privação do uso de um veículo é, em si mesma, um dano indemnizável, desde logo por impedir o proprietário (ou, eventualmente, o titular de outro direito, diferente do direito de propriedade, mas que confira o direito a utilizá-lo) de exercer os poderes correspondentes ao seu direito (assim, por exemplo, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 5 de Julho de 2007, www.dgsi.pt., proc. Nº 07B1849, ou de 10 de Setembro de 2009, já citado)…»

No Acórdão do S.T.J. de 03.10.2013 (disponível no mesmo sítio), foi assinalado o seguinte: «O art. 1305º CC prescreve que “o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem…”.

Se bem que integrando o complexo de direitos, poderes e faculdades em que se analisa a posição jurídica do proprietário, o simples uso, enquanto efectivo aproveitamento de utilidades, constituirá, só por si, uma vantagem susceptível de avaliação pecuniária, mas o não uso não envolve necessariamente uma desvantagem, o mesmo é dizer um dano.

Com efeito, se é inquestionável que a privação do uso de uma coisa pode integrar um ilícito gerador de responsabilidade civil e da consequente obrigação de indemnizar, uma vez que impede o seu dono do exercício dos direitos de uso e fruição inerentes à propriedade, ou seja, a faculdade de se servir da coisa e de fazer seus os respectivos frutos (art. 1484º nº1 CC), isso não significa, todavia, que a plenitude do direito de propriedade implique necessariamente o uso ou fruição; bem ao invés, o exercício do uso e fruição corresponde a meras faculdades do proprietário; melhor seria dizer, por isso, que o direito de propriedade envolve apenas e tão só a mera faculdade (que pode ser exercida ou não…) de uso e fruição, logo, o exercício de tal faculdade configura uma manifestação de liberdade do dono no que concerne ao aproveitamento dos seus bens: o proprietário absentista que não usa nem cede o uso nem tenciona fazê-lo, isto é, o que não aproveita nem permite que os outros aproveitem, não sofre dano de privação do uso, pois que nenhuma desvantagem patrimonial lhe advém da eventual actuação de terceiro susceptível de impedir o seu uso…»

Acompanha-se a posição de que não basta a invocação em abstracto da privação do uso de um bem imóvel para daí inferir de forma automática que ocorreu um dano, gerador da obrigação de indemnizar, desde que verificados os demais pressupostos do instituto da responsabilidade civil, e pelos motivos já expostos na jurisprudência citada, isto é, em síntese, o uso e fruição conferidos pelo direito de propriedade constituem uma mera faculdade que pode ser exercida ou não.

Mas também não se defende que seja necessário provar em concreto de uma forma reforçada a existência do prejuízo. Dito de outro modo, se o autor do pedido formula pedido de condenação na quantia pecuniária correspondente ao período de rentabilização da fracção que foi impedido de gozar, se resulta demonstrado o valor locativo da mesma, ou outros elementos fácticos mínimos que o permitem inferir, poder-se-á concluir pela afirmativa quanto à vontade do titular do direito de propriedade em obter as vantagens correspondentes ao seu exercício.

Na situação em apreço, a autora formulou pedido de condenação na quantia de €32.200,00, correspondente ao período de 46 meses a multiplicar pelo valor locativo mensal.

Dos factos provados consta qual o valor de venda de mercado da fracção, bem como o valor da renda mensal. A circunstância de se provar ainda que a autora não tem casa própria, nem rendimentos próprios, em nada influi a determinação da obrigação de indemnização, utilizando o critério consagrado no artigo 566º nº 2 do C.C., da «teoria da diferença», de que a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem os danos. Se a autora não tem casa própria, nem rendimentos próprios, mais lógico e coerente, até com as regras da experiência, será concluir que lhe interessa obter o proveito económico inerente à utilização da fracção durante todo o período em que foi impedida de o fazer.

Por consequência, e contrariamente ao entendimento perfilhado pelo tribunal recorrido, entende-se que a autora alegou e provou a existência de um dano reparável.

Por outro lado, constata-se que a presente acção se funda na responsabilidade civil por facto ilícito, conforme decorre dos artigos 21º e seguintes da petição inicial, em que se alude ao comportamento da ré, como «susceptível de constituir a prática de um ilícito criminal, nos termos dos arts. 205º, 209º e/ou 215º e 223º do Cód. Penal», tendo impedido a autora de «aproveitar a sua propriedade, quer para residir, quer para a rentabilizar através do arrendamento a terceiros» (artigo 23º).

Assim sendo, provam-se todos os pressupostos da responsabilidade civil, designadamente, a ocupação ilícita e contra a vontade da autora, tal como equacionou o tribunal recorrido, e ainda a existência de um dano reparável, como consequência desse comportamento.

Nesta sequência, não é possível o recurso às normas do instituto do enriquecimento sem causa, dada a natureza subsidiária do mesmo consagrada no artigo 474º do C.C., como aliás é vertido na sentença, embora optando por solução jurídica distinta.

Além disso, a necessidade do consentimento da comproprietária, exigida no artigo 1408º do C.C. relativamente à disposição e oneração da totalidade da quota só teria aplicação, por exemplo, numa acção de reivindicação ou visando a constituição de certos direitos reais limitados (como o usufruto), ou de direitos reais de garantia (como o penhor ou hipoteca), consoante é defendido por P. Lima e A. Varela (Código Civil Anotado, vol. III, 2ª ed., Coimbra, pág. 364) e, entre outros, o Acórdão do S.T.J. de 15.11.2005 (disponível no sítio da internet do IGFEJ).

Destarte, não se concorda com a fundamentação jurídica da decisão recorrida, devendo reconhecer-se a obrigação de indemnização fundada nas regras da responsabilidade civil, que será limitada ao montante do peticionado pela apelante e incumbirá inteiramente à primeira ré, que é a mãe da segunda ré, menor de idade, e a quem não é sequer imputado qualquer tipo de comportamento ilícito ou abusivo susceptível de responsabilização autónoma.

b).- Caso assim não se entenda, o tribunal recorrido violou o disposto nos artigos 473º e 474º do C.C., pois não havendo lugar à aplicação da responsabilidade civil por não existir um dano reparável inerente à privação do uso, justifica-se o apelo ao enriquecimento sem causa?

Em sintonia com a argumentação expendida, mostra-se prejudicada a apreciação desta questão suscitada nas conclusões recursórias.

c).- Se o tribunal recorrido, ao não arbitrar a indemnização de € 10.000,00, reclamados pela autora a título de danos não patrimoniais, violou o disposto no art. 412º, nº 1, do C.P.C., bem como no art. 496º, nº 1, e 562º e segs. do C.C.?

Nesta parte, entende a recorrente, no que concerne aos danos não patrimoniais, que muito embora da douta sentença recorrida constem como não provados os alegados “nervosismo, desespero, angústia, frustração e desgosto”, certo é que a autora também alegou nos arts. 27º e 30º da p.i. que, durante mais de 3 anos, foi impedida de aproveitar livremente o conforto de uma casa que é sua e que tal privação do conforto que a mesma lhe poderia proporcionar lhe causou “sofrimento, pelo sentimento de injustiça”, sendo, porém óbvio que tal ocupação ilícita e abusiva também lhe provocou” frustração e desgosto.” Ora, salvo o devido respeito, os alegados sofrimento, sentimento de injustiça, a frustração e desgosto da autora, e vários outros incómodos que lhe foram provocados pelo descrito comportamento da 1ª ré, “ao ver-se, durante mais de 3 anos, impedida de aproveitar livremente uma casa que é sua”, são factos óbvios e ”notórios”, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 412º, nº 1, do C.P.C., os quais, por isso, nem sequer careciam de prova nem de alegação.

Dispõe o nº 1 do artigo 412º do C.P.C. que não carecem de alegação os factos notórios, devendo considerar-se como tais os factos que são do conhecimento geral. Nas palavras de Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (C.P.C. Anotado, vol. 2º. 3ª ed., Alm., pág. 209 e seguintes), a concretização do conceito varia consoante a localização do litígio, «considerados os sujeitos do processo: um facto notório em Bragança não o é necessariamente em Portugal inteiro; um facto notório em Portugal pode não o ser em França ou no Japão (…) Embora o âmbito da notoriedade apareça hoje consideravelmente alargado mercê dos meios modernos de comunicação de messas, tal não significa que deva ser considerado notório todo o facto divulgado pela imprensa, rádio ou televisão, pois se pode mesmo assim duvidar da sua ocorrência. Sendo, por definição, indiscutível a sua verificação, o facto notório não carece de prova nem é suscetível de prova contrária, sem prejuízo de poder impugnar-se a sua notoriedade».

A circunstância da autora se ver durante mais de três anos impedida de aproveitar livremente uma casa que é sua, desacompanhada de outros elementos fácticos, não é suficiente para constituir um facto notório, em primeiro lugar por assumir uma natureza demasiado subjetiva para qualquer pessoa que não estará em condições de reconhecer essa realidade de forma autónoma e, por outro lado, por não corresponder a um evento concreto tão importante que seja do conhecimento geral.

Por conseguinte, é forçoso concluir que esta pretensão da apelante não merece acolhimento.
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DECISÃO.

Em face do exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente o recurso e condena-se a primeira ré a pagar à autora a quantia de € 16.340,00 (dezasseis mil trezentos e quarenta euros), acrescida de juros de mora, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento, mantendo-se no mais a decisão recorrida.

Custas a cargo da apelante e da apelada primeira ré na proporção da sucumbência, nos termos do artigo 527º nº 1 e nº 2 do C.P.C., sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.


Lisboa, 24.05.2018,


(Ana Paula Albarran Carvalho)
(Maria Manuela Gomes)
(Gilberto Jorge)