Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5824/12.3T2SNT.L1-6
Relator: TOMÉ ALMEIDA RAMIÃO
Descritores: RECONVENÇÃO
ADMISSIBILIDADE
CONTRATO DE SOCIEDADE
NULIDADE POR FALTA DE FORMA LEGAL
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/01/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. A admissibilidade da reconvenção tem como pressuposto a existência de uma certa conexão ou compatibilidade processual com o objeto processual – pedido e causa de pedir - , tal como estão definidos pelo Autor.
2. Não sendo formalizado por escritura pública (e consequentemente não se mostra registada), como se exigia no então vigente art.º 102.º do C. Comercial, nem posteriormente como se impunha no art.º 7.º do Código das Sociedades Comerciais, aprovado pelo Dec. Lei n.º 262/86, de 2 de setembro, o qual revogou aquela disposição legal ( seu art.º 3.º/1, al. a)), é nulo o contrato de sociedade comercial celebrado em 1981 pela Autora e Ré.
3. Estão em causa normas de interesse público, visto que a lei ao exigir as formalidade para a sua constituição e funcionamento pretendeu, também, salvaguardar e garantir a segurança do comércio jurídica, a certeza jurídica, bem como a transparência e confiança na atividade comercial, pelo que a nulidade decorrente da inobservância dessa formalidade é do conhecimento oficioso, como flui dos art.ºs 220.º e 286.º do C. Civil, devendo ainda o Ministério Público, conhecido o vício, requerer, em ação própria, a sua liquidação judicial, como prescreve o art.º 172.º do C.S.C.
4. Ainda que sejam invocados factos concretos que consubstanciem uma situação de abuso de direito, na modalidade de «venire contra factum proprium», sempre a nulidade requerida pelos Autores haveria que ser declarada, face à imperatividade dessas normas e à prevalência do interesse público sobre o interesse particular.
(sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I- Relatório:

           M… e marido J… moveram contra A… a presente ação declarativa, na forma sumária, pedindo que se declare que a sociedade “M.. e A…” é irregular e, consequentemente, se declare a nulidade, se condene a Ré a reconhecê-lo e se determine a entrada da aludida sociedade em liquidação.

Alegaram, em resumo, que a Autora M… e a Ré são irmãs consanguíneas e que no início do ano de 1981, o pai de ambas, sugeriu-lhes e incentivou-as a que constituíssem uma sociedade comercial, para que através dessa sociedade, desenvolvessem uma atividade comercial de compra e venda de artigos de artesanato e turismo na Vila de S…, e que tendo ambas aceite essa sugestão do seu progenitor, decidiram que cada uma delas contribuiria com igual quantia em dinheiro para que em nome de uma sociedade, fosse desenvolvida uma atividade comercial, mais acordando que repartiriam os lucros que resultassem da atividade comercial dessa terceira entidade, na proporção correspondente aos respetivos contributos em dinheiro, ou seja, 50% para cada uma delas. Nesse sentido, e com vista a constituir um fundo comum para suportar os encargos inerentes ao início de atividade da sociedade, a A. M… disponibilizou 950.000$00, sendo de igual montante o contributo da Ré para a constituição do capital necessário ao início de atividade da sociedade que constituíram e à qual atribuíram a designação de “M… e A…”.

Foi com essa designação, e sede na Praça da…, que em 28 de Maio de 1981, participaram na Repartição de Finanças de S… o início de atividade dessa sociedade, na sequência do que foi atribuído à sociedade, pelos serviços fiscais, o número de identificação fiscal nº 000, tendo no ano de 1981, a sociedade começado a vender ao público os artigos do seu comércio, atividade que manteve, ininterruptamente, desde esse ano e até à atualidade, tendo toda a documentação relativa à referida atividade passado a ser emitida com a referida designação, assim se verificando, designadamente, com as faturas e os recibos emitidos no âmbito dessa atividade, tendo o produto da venda das mercadorias que comercializa passado a ser depositado numa conta bancária aberta com essa exclusiva finalidade e sendo através das quantias depositadas nessa conta bancária que são pagos os fornecedores, impostos e encargos de funcionamento da sociedade.

O contrato de sociedade celebrado entre a Autora M… e a R. nunca chegou a ser reduzido a escritura pública, não tendo, consequentemente, sido objeto de registo comercial qualquer ato de constituição dessa sociedade, consubstanciando, pois,

uma sociedade irregular, quer de acordo com o disposto no artigo 107º do Código Comercial em vigor à data da constituição da sociedade, quer de acordo com o Código das Sociedades Comerciais, que no artigo 7º estabelece como formalidade ad substantiam do contrato de sociedade comercial a celebração de escritura pública

A Ré foi regularmente citada e veio contestar, impugnando os factos relativos aos valores despendidos na constituição da sociedade e aqueles à constituição de um fundo comum e ao valor entregue aos anteriores arrendatários do local onde a sociedade instalou a sua sede, confirmando, porém, a circunstância de o contrato de sociedade não ter sido reduzido a escritura pública, nem submetido a registo e que o pedido constitui abuso de direito, porque mantiveram o exercício da atividade da sociedade, ininterruptamente, desde1981, sem nunca terem invocado a nulidade, e que apenas desde 2006/2007 pretendem, contra a sua vontade, cessar tal atividade, o que se prende com a passagem à reforma do Autor, que foi empregado do estabelecimento até à idade da reforma, e pela abertura de uma loja em nome do filho dos Autores, concluindo pela improcedência do pedido.

E deduziu pedido reconvencional, pedindo que seja decretada a exclusão de sócia da Autora M... da sociedade, alegando, em resumo, que passar a haver uma alteração de comportamento da A. reforçou-se, em especial com a reforma do A. marido em 2008 e a abertura da loja em nome do filho dos AA. (N…), em data que não pode precisar mas que situa em finais de 2008 inícios de 2009.

            Responderam os Autores, sustentando a sua posição inicial e pugnando pela improcedência da reconvenção.

            Foi proferido saneador sentença, não se admitindo o pedido reconvencional e julgando a ação procedente declarou-se nulo o contrato de sociedade celebrado entre Autora e Ré por inobservância da forma legal; e nos termos do disposto no artigo 52º do Código das Sociedades Comerciais, determinou-se a entrada da sociedade em liquidação.

Desta sentença veio a Ré interpor o presente recurso, e após alegações concluiu:

1- Relativamente ao pedido reconvencional considera a apelante que o mesmo é admissível por via do disposto no artº 266º nº1 al. a) do CPC, pois que pretendendo os AA. que a R. seja condenada a reconhecer a existência de uma sociedade irregular e que se declare nula a mesma por falta de forma e sendo aplicável a estas sociedades irregulares as disposições relativas às sociedades civis, por força do disposto no artº 36º nº2 do CSC, o pedido da R. emerge assim do facto jurídico que serve de fundamento á ação, isto é, a existência de uma sociedade irregular.

Em qualquer caso,

2 - Considera a apelante que os factos vertidos nos artº.s 11º., 12º., 13º., 14º., 21º. (desde ” ao longo dos anos que” até “questão”) e 22º da contestação deveriam ter sido objeto de julgamento, por serem controvertidos e relevantes para a determinação da existência de abuso de direito.

3 - Não podia pois o Tribunal concluir, como conclui, que a apelante não invocou qualquer razão que permita censurar o exercício do direito de pedir a declaração de nulidade.

4 - Pelo exposto, o Tribunal deveria ter proferido despacho nos termos do nº 1 do artº 596º do CPC, destinado a identificar o objeto do litígio e os temas da prova, para saber se os factos invocados pela R. permitiam censurar o exercício do direito de pedir a declaração de nulidade e, consequentemente, considerar improcedente a arguição de nulidade da sociedade em questão.

5 – Assim não o tendo feito violou o disposto nas al.s b) do nº1 do artº 595º e al. do nº1 do artº 596º ambos do CPC.

6 - Ainda que se entenda que o processo continha todos os elementos para se conhecer do mérito da causa, ainda assim dos factos dados como assentes sempre se teria de concluir pela procedência da invocação do abuso de direito, considerando por isso a ação improcedente (a nulidade não foi conhecida oficiosamente).

7 – Os AA. mantiveram, ininterruptamente desde 1981, o exercício da atividade nos termos referidos, nomeadamente, nos pontos 1., 3., 5., 7., 8., 11., da fundamentação de facto da Sentença recorrida, sem nunca terem invocado a aludida nulidade.

8 - Resulta assente que se mostra “… aberta em nome do filho dos Autores uma loja na Vila de S..., na qual se exerce a atividade de venda de artigos de artesanato;” e que “O ora Autor ajuda nesta loja o seu filho, pelo menos aos Domingos, dia de folga do seu filho, estando a Autora mulher na loja, pelo menos, nesses dias, cerca da hora do almoço.” – cfr. pontos 20. e 21. da fundamentação de facto.

9 - Tais factos são mais do que indiciadores de que os AA. perderam interesse no prosseguimento da atividade da sociedade constituída com a R., unicamente por passarem a exercer a mesma atividade através de outra entidade, violando desta forma de modo grosseiro o principio da confiança e da boa-fé subjacente ao contrato de sociedade, ainda que não efetivado por escritura publica, o que não pode merecer a tutela do direito com a procedência da nulidade pelos mesmos invocada.

10 - Às sociedades irregulares aplicam-se as disposições relativas às sociedades civis, por força do disposto no artº 36º nº2 do CSC, pelo que não pode proceder o argumento de que impedir os AA. de invocar a nulidade do contrato implicaria manter a A. vinculada a uma sociedade contra a sua vontade, pois que a mesma sempre poderá pedir a sua exoneração nos termos do artº 1002º do CC.

11 - O Tribunal a quo fez pois incorreta interpretação e aplicação dos artº.s 334º e 1002º do CC que nesta medida violou.

Termos em que deve o presente recurso ser considerado procedente.


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Contra-alegaram os Autores, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


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II -  Direito processual aplicável.

No caso concreto, estamos em presença de ação instaurada em 7 de março de 2012 e a decisão recorrida foi proferida em 17/03/2014.

Aos recursos de decisões proferidas a partir de 1 de setembro de 2013, em processos instaurados após 1 de janeiro de 2008, é aplicável o regime de recursos do atual C. P. Civil aprovado pela Lei n.º41/2003, de 26 de junho, nos termos do seu art.º 5.º/1 (posição assumida igualmente por Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2013, pág. 16).

Assim, será aplicável o regime do atual Código de Processo Civil.


***

III – Âmbito do Recurso.

Perante o teor das conclusões formuladas pelo recorrente – as quais (excetuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso - arts. 608.º, nº2, 609º, 620º, 635º, nº3, 639.º/1, todos do C. P. Civil em vigor, constata-se que as questões essenciais decidendas são as seguintes:

a) Rejeição do pedido reconvencional.

b) Nulidade do contrato de sociedade.

c) Abuso de direito.


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             IV – Fundamentação fáctico-jurídica.

A) Matéria de facto.

A matéria de facto provada na 1ª instância é a seguinte:

1. No início do ano de 1981, o pai da ora Autora M... e da ora Ré, sugeriu-lhes e incentivou-as a que constituíssem uma sociedade comercial;

2. Isto, para que através dessa sociedade, desenvolvessem uma atividade comercial de compra e venda de artigos de artesanato e turismo na Vila de S...;

3. A Autora M... e a ora Ré, por comum acordo, aceitaram essa sugestão do seu progenitor e decidiram formar uma sociedade para exercerem a atividade referida em 2;

4. A ora Autora M... e a ora Ré atribuíram à sociedade que decidiram constituir a designação de “M...e A…”;

5. Sendo com essa designação, e sede na Praça da …, em S... que, em 28 de Maio de 1981, participaram na Repartição de Finanças de S... o início de atividade dessa sociedade, conforme resulta da “Declaração de Inicio de Atividade” que foi junta como documento n.º 1 à petição inicial e se dá por reproduzido;

6. Na sequência dessa participação, foi atribuído à sociedade, pelos serviços fiscais, o número de identificação fiscal nº 000, conforme consta do documento junto com o n.º 2 à petição inicial, e se dá por integralmente reproduzido;

7. Logo no ano de 1981, a sociedade constituída pela Autora M... e pela Ré começou a vender ao público os artigos do seu comércio;

8. Atividade que manteve, ininterruptamente, desde esse ano e até à atualidade;

9. Desde que participaram aos serviços de finanças o início de atividade da sociedade, toda a documentação relativa à atividade desta passou a ser emitida em nome da sociedade e com o número de contribuinte da sociedade;

10. Assim se verificando, designadamente, com as faturas e os recibos emitidos no âmbito dessa atividade;

11. Desde que a sociedade iniciou a atividade comercial que o produto da venda das mercadorias que comercializa passou a ser depositado numa conta bancária aberta com essa exclusiva finalidade;

12. Sendo através das quantias depositadas nessa conta bancária que são pagos os fornecedores, impostos e encargos de funcionamento da sociedade;

13. Sendo através da mesma conta bancária que foram pagos os vencimentos dos vários funcionários que, desde o início da referida atividade comercial, trabalharam no estabelecimento supra mencionado;

14. Quer a A. M..., quer a R., nunca contrataram em nome próprio com nenhum dos funcionários que prestaram trabalho nesse estabelecimento;

15. Na verdade, todos esses trabalhadores celebraram contratos de trabalho com a sociedade “M... e A…”;

16. Sendo esta sociedade quem sempre efetuou e continua a efetuar os pagamentos das remunerações dos funcionários que laboram no estabelecimento que explora, bem como as retenções salariais para efeitos fiscais e os descontos para a segurança social, conforme resulta dos recibos de remunerações que ora se juntam e dão por integralmente reproduzidos para todos os devidos e legais efeitos;

17. Os serviços de contabilidade relativos à atividade comercial desenvolvida, são assegurados por contabilista contratado e pago pela sociedade “M... e A...”;

18. Sendo também em nome da sociedade e com o seu número de identificação fiscal que sempre foram apresentados as declarações de Modelo 124 para efeitos de contribuição industrial e, mais recentemente, para efeitos de IRC, as declarações de Modelos 22 e de IES, conforme resulta das declarações que foram juntas à petição inicial sob os documentos 14 a 16;

19. O contrato de sociedade celebrado entre a Autora M... e a ora Ré nunca chegou a ser reduzido a escritura pública, não tendo, consequentemente, sido objeto de registo comercial qualquer ato de constituição dessa sociedade;

20. Mostra-se aberta em nome do filho dos Autores uma loja na Vila de S..., na qual se exerce a atividade de venda de artigos de artesanato;

21. O ora Autor ajuda nesta loja o seu filho, pelo menos, aos Domingos, dia de folga do seu filho, estando a Autora mulher na loja, pelo menos, nesses dias, cerca da hora do almoço.


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B) O direito.

1. Rejeição do pedido reconvencional.

A apelante discorda da rejeição do pedido reconvencional por considerar ser “admissível por via do disposto no artº 266º nº1 al. a) do CPC, pois que pretendendo os AA. que a R. seja condenada a reconhecer a existência de uma sociedade irregular e que se declare nula a mesma por falta de forma e sendo aplicável a estas sociedades irregulares as disposições relativas às sociedades civis, por força do disposto no artº 36º nº2 do CSC, o pedido da R. emerge assim do facto jurídico que serve de fundamento á ação, isto é, a existência de uma sociedade irregular”.

Sobre esta questão pronunciou-se o tribunal  a quo nos seguintes termos:

“À data da apresentação do articulado de contestação, dos requisitos de admissibilidade da reconvenção ocupava-se o art.º 274º, n.º 2, do Código de Processo Civil, a que corresponde atualmente o artigo 266º do mesmo diploma legal, na redação da Lei 41/2013, de 26.06.

A hipótese contemplada na alínea b) daquele n.º 2 – a saber, propor se o R. obter a compensação ou tornar efetivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida – manifestamente, não está em causa nos autos.

Importa, pois, averiguar se se verificam as demais hipóteses elencadas no preceito citado, nos termos do qual a reconvenção será admissível:

- o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa;

- o pedido do réu tende a conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter.

O primeiro núcleo de situações referido na lei é o dos casos em que o pedido reconvencional brota do facto jurídico (real, concreto) que serve de fundamento, seja à ação, seja à defesa.

Importa, assim, atender ao conceito de causa de pedir formulado pela teoria da substanciação – e que se mostra acolhido na lei, cfr. art.º 498º, n.º 4, do Código de Processo Civil – enquanto facto jurídico genético do direito, ou seja, o acontecimento concreto, correspondente a qualquer «fattispecie» jurídica, que a lei admita como criadora de direitos, abstração feita da relação jurídica que lhe corresponda.

Ora o pedido formulado pelos Autores fundamenta-se na circunstância de o contrato de sociedade celebrado entre Autora e Ré, - relativamente à qual participaram à Repartição de Finanças o início de atividade em 28 de Maio de 1981 - nunca ter sido reduzido a escritura pública, não tendo, consequentemente, sido objeto de registo comercial qualquer ato de constituição dessa sociedade.

Por seu turno a Ré, para fundamentar a sua oposição ao pedido dos Autores, alega que os mesmos apenas invocam a nulidade porque pretendem pôr termo à sociedade, o que se consolidou com a passagem do ora Autor à reforma e com a abertura de uma loja em nome do filho dos Autores, onde o Autor trabalha e onde a Autora está nos dias em que não trabalha no estabelecimento que explora com a Ré, sendo que, desde 1981 têm mantido o exercício da atividade sem nunca terem invocado a respetiva nulidade, o que entende configurar “abuso de direito”.

Em sede reconvencional, alega que desde 2006 que os Autores, sem o conhecimento e consentimento da Ré deram instruções aos fornecedores de que as encomendas de material seriam efetuadas apenas pela Ré, sendo certo que essa era função do Autor marido, que a Ré começou a deparar-se com escassez de material para venda, tendo a ora Autora deixado de prestar qualquer colaboração nos assuntos correntes da loja, alteração de comportamento que se reforçou com a reforma do Autor marido em 2008 e a abertura de uma loja em nome do filho dos Autores, que por três vezes constatou encomenda de material em nome da referida sociedade, de fornecedor diferente e mais caro, matéria que se destinou a uso na loja aberta em nome do filho dos Autores, concluindo desta forma que a posição da Autora é contrária aos interesses da atividade da dita sociedade irregular, tendo deixado de exercer conjuntamente com a Autora as tarefas necessárias ao normal desenrolar da atividade e prossecução do negócio de ambas.

Afigura-se, pois, que o pedido formulado pela Ré nenhum apoio busca seja nos factos concretos em que se baseia o pedido formulado pelos Autores, seja naqueles em que se fundamenta a defesa.

Estranha em absoluto ao fundamento do pedido declaração de nulidade da sociedade formada entre Autora e Ré formulado pelos Autores – a falta de celebração do contrato de sociedade na forma prescrita na lei - a circunstância de a Autora ter deixado de dar colaboração na mesma sociedade.

Do mesmo modo, tendo a Ré fundamentado a sua defesa na circunstância de os ora Autores terem mantido o exercício da atividade da sociedade desde 1981 sem nunca terem invocado a nulidade, e de pretenderem fazer agora porque pretendem pôr temo à sociedade, e tendo presente o conceito de causa de pedir acolhido na lei, conclui-se que o pedido reconvencional não se funda nos mesmos fundamentos da defesa, antes indo para além dos mesmos. A Ré opõe-se ao pedido de declaração de nulidade por virtude de, em face do tempo decorrido desde o início da atividade, tal pedido violar a boa-fé, e fundamenta o pedido reconvencional na violação pela Autora das obrigações de sócia.

           Refere o art. 242º nº 1 do Código das Sociedades Comerciais que “pode ser excluído por decisão judicial o sócio que, pelo seu comportamento desleal ou gravemente perturbador do funcionamento da sociedade, lhe tenha causado ou possa vir a causa-lhe prejuízos relevantes”.

Por outro lado, afigura-se que através do pedido reconvencional não pretende a Ré reconvinte conseguir o mesmo efeito jurídico visado pelos Autores na ação, em seu benefício, pois se estes pretendem ver declarada a nulidade da sociedade e a sua entrada em liquidação, esta pretende que a Autora seja excluída de sócia da sociedade, continuando esta sociedade, porventura, a sua atividade, apenas com a Ré como sócia.

Conclui-se desta forma pela inadmissibilidade do pedido reconvencional”.

Face às razões aduzidas na decisão recorrida não se descortinam fundamentos de discordância.

Como é sabido, a admissibilidade da reconvenção tem como pressuposto a existência de uma certa conexão ou compatibilidade processual com o objeto processual – pedido e causa de pedir - , tal como estão definidos pelo Autor.

Assim, como condição material de admissibilidade prescreve a alínea a) do art.º 274.º do C. P. Civil de 1961, então aplicável, que o pedido reconvencional é admissível “quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa”.

E o facto jurídico invocado pelos Autores para o pedido de declaração de nulidade do contrato de sociedade é a ausência de escritura pública para a sua constituição, ou seja, a nulidade do contrato decorrente da inobservância de uma formalidade essencial.

E a verdade é que a Ré, no seu pedido reconvencional, apesar de reconhecer a nulidade do contrato de sociedade, peticionou a exclusão da Autora mulher de sócia da dita sociedade, invocando como causa de pedir o comportamento desleal por esta assumido e que configura ato de concorrência com a sociedade, nos termos dos art.ºs 186.º/1 al. a), e 3 e 242/1 do C. S. C. e art.ºs 1003.º e 1005.º/3 do C. Civil, exclusão que só pode ser decretada pelo tribunal em ação instaurada para o efeito. 

Daí nos parecer evidente, salvo o devido respeito, que o pedido da Ré não emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa.

Para além disso, como também se escreveu na decisão recorrida, o reconhecimento e declaração da nulidade do contrato de sociedade em causa sempre seria incompatível com o pedido reconvencional de exclusão de sócio, porquanto este pedido tem necessariamente como pressuposto lógico a existência e manutenção de uma sociedade válida e regularmente constituída.

Improcede, pois, este argumento.

2. Nulidade do contrato de sociedade.

Como é sabido, a constituição  e funcionamento regular de sociedade em nome coletivo está sujeita a determinadas formalidades.

Como se prescreve no art.º 5.º do C. S. C., “As sociedades gozam de personalidade jurídica e existem como tais a partir da data do registo definitivo do contrato pelo qual se constituem, sem prejuízo do disposto quanto à constituição de sociedades por fusão, cisão ou transformação de outras”.

Assim, o próprio contrato pelo qual se constitui a sociedade, para além de respeitar a forma legalmente estabelecida, está sujeito a registo comercial, o qual é  obrigatório, e destina-se a dar publicidade à situação jurídica das sociedades comerciais, tendo em vista a segurança do comércio jurídico, a requerer no prazo de dois meses após a sua constituição  - art.ºs 1.º e  3/1, al. a), e 15.º/2 do C. Registo Comercial. A obrigatoriedade de registo do contrato de sociedade comercial decorre também do art.º 18.º, n.º5, do C. S. C.

Ao ato constitutivo de sociedade, ainda que não registado, é aplicável o disposto no Código das Sociedades Comerciais, nos termos do art.º 13.º/2 do C. Registo Comercial.

A sociedade comercial não registada carece de personalidade jurídica, pois que o registo definitivo do contrato é elemento constitutivo dessa personalidade (artº 5º do C. S. C.), mas é-lhe reconhecida a personalidade judiciária, por força do disposto no artº 6º, al. d) do C. P. Civil.

Como ensina o Professor Menezes Cordeiro, in “Código das Sociedades Comerciais Anotado”, 2009, pág. 85, “Antes do registo, se a sociedade começar a funcionar, teremos uma sociedade irregular por incompletude, à qual se aplicam os artigos 37.°a 40.° do Código das Sociedades Comerciais.

De um modo geral: são operacionais, mas não beneficiam de todos os privilégios da personalidade plena e, designadamente, da exclusiva imputação à sociedade dos atos praticados pelos administradores em seu nome e da total separação patrimonial em relação aos sócios”.

E sobre a natureza do registo escreve, o distinto Professor ( in “Manual de Direito das Sociedades”, Vol. I, 2.ª Edição, 2007, pág. 543):

“- o registo não é constitutivo da personalidade coletiva nem, muito menos, da sociedade: esta já existia anteriormente; a eficácia é, neste ponto, declarativa;

- o registo, condiciona a adoção de determinados negócios, pela sociedade;

- o registo faculta a plena eficácia das normas próprias do tipo societário considerado.

Trata-se de um regime condicionante da eficácia plena. O próprio efeito assuntivo de determinadas posições jurídicas lhe pode ser reconduzido”.

Sendo, porém, vulgar, o exercício de uma atividade comercial em nome de uma sociedade constituída, mas ainda sem completar todo o processo de formação legal, a própria lei (arts. 36.º e segs. do C. S. C), reconhecendo esse facto, estabeleceu a disciplina jurídica quanto às relações entre os sócios, bem como as relações entre terceiros, quer quanto ao período que antecede a constituição da sociedade, quer entre a sua constituição e o registo definitivo ( Raul Ventura, in “Sociedade por Quotas”, Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, Vol. I, 2.ª Edição, pág. 83; Jorge Manuel Coutinho de Abreu, in “Curso de Direito Comercial2 Vol. II, 2.ª Edição, págs. 116 e segs; e António Menezes Cordeiro, in Manual de Direito das Sociedades, Vol. II, 2.ª Edição, 2007, pág. 263 e segs.)

Assim, reza o art.º 36.º/2 do C. S. C. que “Se for acordada a constituição de uma sociedade comercial, mas, antes da celebração da escritura pública, os sócios iniciarem a sua atividade, são aplicáveis às relações estabelecidas entre eles e com terceiros as disposições sobre sociedades civis”.

A propósito deste preceito legal, comenta Raul Ventura, ob. citada, pág., 83, “(… Por um lado, este preceito evita a suposição – que sempre tenho considerada errada – de uma sociedade comercial, nas referidas circunstâncias, ser considerada sociedade civil; mandam-se aplicar disposições sobre sociedade civil, mas não se qualifica essa realidade de facto como sociedade civil”. E “(…No período compreendido entre a celebração da escritura e o registo definitivo do contrato de sociedade, são aplicáveis às relações entre sócios – seja qual for o tipo de sociedade…)” E termina “Pelos negócios realizados em nome de uma sociedade por quotas, no período compreendido entre a celebração da escritura e o registo definitivo do contrato de sociedade, respondem ilimitada e solidariamente todos os que no negócio agirem em representação dela, bem como os sócios que tais negócios autorizarem; os restantes sócios respondem até às importâncias das entradas a que se obrigaram, acrescidas das importâncias que tenham recebido a título de lucros ou de distribuição de reservas (art.º 40.º, n.º1)”.

Por conseguinte, temos dois momentos a considerar nas relações (externas) societárias: a anterior à celebração do contrato de sociedade; e a entre o momento da sua constituição e a efetivação do registo definitivo.

Quanto ao regime das relações da sociedade comercial com terceiros depois da celebração do ato constituinte e antes do registo definitivo, rege o art.º 40.º, n.º 1, do C. S. C., que prescreve:

“ Pelos negócios realizados em nome de uma sociedade por quotas, anónima ou em comandita por ações, no período compreendido entre a celebração do contrato de sociedade e o seu registo definitivo, respondem ilimitada e solidariamente todos os que no negócio agirem em representação dela, bem como os sócios que tais negócios autorizarem, sendo que os restantes sócios respondem até às importâncias das entradas a que se obrigaram, acrescidas das importâncias que tenham recebido a título de lucros ou de distribuição de reservas.”

E estatui o n.º2: "Cessa o disposto no n.º precedente se os negócios forem expressamente condicionados ao registo da sociedade e à assunção por esta dos respetivos efeitos".

Com efeito, se antes do registo definitivo a sociedade não existe como pessoa jurídica, carecendo de personalidade jurídica, não pode responder, em regra, pelos atos praticados em seu nome até esse momento. Daí a responsabilização pessoal, solidária e ilimitada pelas obrigações contraídas pelos que agirem em representação da sociedade constituída, mas não registada, bem como dos sócios que autorizarem tais negócios, em benefício e em proteção dos interesses dos credores.

           Para além da responsabilidade dos sócios, responde igualmente o património social, como sustenta Jorge Manuel Coutinho de Abreu, ob. citada, pág. 129, referindo:

“Os negócios são realizados "em nome" da sociedade.

Natural, portanto, que os terceiros participantes nesses negócios confiem ser o património social garante dos seus créditos, nada aconselhando que se defraude essa confiança. Porem, dado não haver ainda registo - do que resulta insegurança no comércio jurídico (os terceiros não dispõem do instrumento talhado para o acesso fácil e seguro ao conhecimento da situação patrimonial e pessoal da sociedade) -, impõe a lei a responsabilidade de sócios e/ou de quem atua em nome da sociedade. É uma responsabilidade que deve acrescer - não substituir ou impedir— à responsabilidade da sociedade;  a tutela dos credores exige o reforço da responsabilidade, não a sua diminuição.

 Concluindo: também as sociedades respondem pelos atos em seu nome realizados no período compreendido entre a celebração da escritura publica e o registo definitivo do ato Constituinte.”

           No que respeita às relações societárias anteriores à celebração do contrato de sociedade, nas “relações externas” são principalmente aplicáveis os art.ºs 996.º e segs. do C. Civil (representação, responsabilidades pelas obrigações sociais – em regra respondem a sociedade e, pessoal e solidariamente, mas a título subsidiário, os sócios, por força da remissão do art.º 36.º/2 do C. S. C.

Ora, decorre da factualidade assente, e que as partes não questionam, a celebração, em 1981, de um contrato de sociedade comercial para o exercício de atividade de compra e venda de artigos de artesanato e turismo, atividade que vem sendo exercida desde essa data, sempre em nome da referida sociedade, designada de “M... e A...”.

Porém, tal contrato não foi formalizado por escritura pública (e consequentemente não se mostra registada), como se exigia no então vigente art.º 102.º do C. Comercial, nem posteriormente como se impunha no art.º 7.º do Código das Sociedades Comerciais, aprovado pelo Dec. Lei n.º 262/86, de 2 de setembro, o qual revogou aquela disposição legal ( seu art.º 3.º/1, al. a)), até às alterações introduzidas pelos Dec. Lei n.º 76-A/2006, de 29 de março, em que a partir da sua vigência deixou de se impor a escritura pública, passando a ser exigido apenas a redução a escrito e com as assinaturas dos seus subscritores reconhecidas presencialmente, salvo se forma mais solene for exigida para a transmissão dos bens com que os sócios entram para a sociedade, devendo, neste caso, o contrato revestir essa forma, formalidade também não observada pelas partes.

Trata-se, pois, de uma formalidade ad substantiam, cuja inobservância acarreta a nulidade do contrato de sociedade comercial, como decorre do art.º 220.º do C. Civil, reforçado, aliás, pelo art.º 172.º do C.S.C., ao conferir competência ao Ministério Público para, em caso de celebração de contrato de sociedade sem observância da forma legalmente prescrita, requerer a sua liquidação judicial.

É uma norma de interesse público, pelo que a nulidade decorrente da inobservância dessa formalidade é do conhecimento oficioso, como flui dos art.ºs 220.º e 286.º do C. Civil, devendo ainda o Ministério Público, conhecido o vício, requerer, em ação própria, a sua liquidação judicial.

No caso em apreço estamos, pois, perante uma sociedade irregular, cuja definição, nas palavras de Menezes Cordeiro, ob. cit. Pág., 157, “ é aquela que, por incompleitude no seu processo formativo ou por vício intrínseco no seu contrato, não produza todos os efeitos que, por lei e pela natureza, ela deveria produzir”.

Decorrentemente, inquestionável é concluir-se, como na decisão recorrida:

 “A sociedade em causa é, pois, uma sociedade irregular, enfermando o respetivo contrato de nulidade por inobservância de forma legal, nos termos do disposto no artigo 220º do Código Civil, e devendo tal nulidade ser declarada oficiosamente (artigo 286º do CSC.

Nos termos do disposto no artigo 52º, n.º 1 do Código das Sociedades Comerciais, a declaração de nulidade determina a entrada da sociedade em liquidação, nos termos do disposto no artigo 165º”.

3. Abuso de direito.

Apesar de reconhecer a nulidade do contrato de sociedade, entende a Ré que alegou “factos indiciadores de que os AA. perderam interesse no prosseguimento da atividade da sociedade constituída com a R., unicamente por passarem a exercer a mesma atividade através de outra entidade, violando desta forma de modo grosseiro o principio da confiança e da boa-fé subjacente ao contrato de sociedade, ainda que não efetivado por escritura publica, o que não pode merecer a tutela do direito com a procedência da nulidade pelos mesmos invocada”.

Por outras palavras, entende a Recorrente que os Recorridos ao peticionarem a nulidade do contrato de sociedade atuam em claro abuso de direito e, consequentemente, apesar da verificação dessa nulidade, não deve ser declarada.

Sobre esta questão, ponderou-se na decisão recorrida:

 “ O direito de invocar a nulidade por falta de forma não pode, efetivamente, ser visto como uma faculdade a exercer de forma discricionária, independentemente das circunstâncias que envolveram os preliminares do contrato e da constatação de que, não obstante a ausência de forma, ele foi observado por certo tempo, tendo inclusivamente dado origem à celebração do contrato do negócio de que é acessório ou instrumental.

Em tal situação, a invocação da nulidade pelo comitente traduz-se num exercício abusivo do direito, que cai na esfera de aplicação do artigo 334º do Código Civil.

Efetivamente, há abuso de direito se alguém exercer o direito em contradição com uma sua conduta anterior em que fundadamente a outra parte tenha confiado – é a proibição do «venire contra factum proprium».

Afigura-se inadmissível a atitude daquele que provoca ou colabora na ocorrência de uma nulidade formal para depois, quando melhor lhe convier, a vir alegar.

O direito exercido abusivamente não se extingue, só que o seu exercício é impedido, dando-se deste modo um enfraquecimento desse direito, consistente em ele não poder ser feito valer. O titular do direito passa a ser tratado como se o não tivesse.

No caso dos autos, afigura-se que os factos alegados pela Ré, não permitem concluir pela verificação de uma situação de abuso do direito de ação.

É certo que durante anos a sociedade irregular exerceu a sua atividade com a anuência dos ora Autores, sendo que o Autor inclusivamente trabalhou para tal sociedade.

Os Autores, porém, tinham já proposto, vários anos antes da propositura da presente ação, uma outra com o mesmo fim.

A Ré, por outro lado, não invoca qualquer razão que permita censurar o exercício do direito de pedir a declaração de nulidade, designadamente que os Autores pretendam eximir-se a qualquer consequência da continuação da atividade da sociedade, que seja devida em contrapartida de proveito pelos mesmos retirados da mesma.

A situação é, pois, diversa daquelas em que, por exemplo, o contraente pede a declaração de nulidade do contrato de mediação para fundar a inexistência de obrigação de pagar a quantia acordada a título de remuneração pela atividade desenvolvida pela mediadora.

Os factos alegados pela ora Ré contribuem até para descortinar a razão pela qual a partir de determinada altura os Autores terão deixado de ter interesse na continuação da atividade da sociedade.

Note-se que impedir os Autores de invocar a nulidade do contrato de sociedade implicaria a sujeição da Autora a manter-se vinculada à sociedade, contra a sua vontade, com um regime de responsabilidade como o que resulta do artigo 997º do Código Civil, sem sequer poder dispor da sua participação social, atenta a irregularidade.

Por fim importa referir que, sendo a nulidade de conhecimento oficioso, como se referiu, o facto de se impedir que os Autores a invocassem não impediria a sua declaração”.

Ora, independentemente da invocada nulidade ser do conhecimento oficioso, a verdade é que a jurisprudência ([1]) tem vindo a entender,  em determinadas circunstâncias, que os efeitos da nulidade podem ser paralisados pela verificação de uma atuação com abuso de direito, desde que essas circunstâncias apontem para uma clamorosa ofensa ao princípio da boa-fé e do sentimento geralmente perfilhado pela comunidade, situação em que o abuso do direito servirá de válvula de escape no nosso ordenamento jurídico, tornando válido o ato formalmente nulo, como sanção do ato abusivo, nomeadamente em situação de claro venire contra factum proprium, manifestamente lesivo da boa-fé ( cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de  24 de Março de 2011,  proferido no processo 246/2000.P1 (Maria Catarina).

Em todo o caso, sempre teria natureza excecional, reservado para casos em que não esteja em causa normas imperativas de interesse público, ou seja, em que não estão em causa apenas os interesses das partes envolvidas na manutenção dos efeitos do negócio jurídico nulo, no caso, no funcionamento da sociedade comercial constituída, pois a lei ao exigir essa formalidade pretende, também, salvaguardar e garantir a segurança do comércio  jurídica, a certeza jurídica, bem como a transparência e confiança na atividade comercial.

Pois como, e bem, é sublinhado no Acórdão do STJ, de 6/8/2010,  proferido no processo 3161/04.6TMSNT.L1.S1 (Lopes do Rego): “não pode obviamente generalizar-se e banalizar-se o recurso à figura do abuso de direito como forma de – sindicando os motivos pessoais e subjetivos que estão na base da invocação da nulidade pelo interessado cujo interesse é por ela prosseguido - acabar por se precludir a aplicação sistemática do regime legal imperativo que comina determinada invalidade por motivos de deficiências de forma do ato jurídico”.

No caso concreto, dois são os valores em confronto e incompatíveis: o interesse público expressado pelo legislador na exigência de forma na constituição da sociedade comercial e o interesse de que a pretensão de declaração de nulidade deduzida não o seja de modo contrário ao pretendido pelo sistema jurídico que atribuiu esse direito.

Daí que, para além de não serem invocados factos que consubstanciem uma situação de abuso de direito, na modalidade de «venire contra factum proprium», sempre a nulidade haveria que ser declarada, face imperatividade dessas normas e à prevalência do interesse público sobre o interesse particular.

Acresce que, ainda que outro fosse o entendimento, sempre o Ministério Público deveria instauração a ação respetiva para a sua liquidação, resultado peticionado e pretendido pelos recorridos.

Decorrentemente, não pode a recorrente, com base na alegada atuação de abuso de direito, impedir a declaração de nulidade, o que traduziria reconhecer juridicamente a dita sociedade.

Improcede, pois, a apelação, não merecendo censura a decisão recorrida.

           Vencida no recurso, a apelante suportará as custas respetivas – art.º 527.º/1 e 2 do C. P. Civil.

                                                                       ***

V. Sumariando, nos termos do art.º 663.º/7 do C. P. C.

1. A admissibilidade da reconvenção tem como pressuposto a existência de uma certa conexão ou compatibilidade processual com o objeto processual – pedido e causa de pedir - , tal como estão definidos pelo Autor.

2. Não sendo formalizado por escritura pública (e consequentemente não se mostra registada), como se exigia no então vigente art.º 102.º do C. Comercial, nem posteriormente como se impunha no art.º 7.º do Código das Sociedades Comerciais, aprovado pelo Dec. Lei n.º 262/86, de 2 de setembro, o qual revogou aquela disposição legal ( seu art.º 3.º/1, al. a)),  é nulo o contrato de sociedade comercial celebrado em 1981 pela Autora e Ré.

3. Estão em causa normas de interesse público, visto que a lei ao exigir as formalidade para a sua constituição e funcionamento pretendeu, também, salvaguardar e garantir a segurança do comércio  jurídica, a certeza jurídica, bem como a transparência e confiança na atividade comercial, pelo que a nulidade decorrente da inobservância dessa formalidade é do conhecimento oficioso, como flui dos art.ºs 220.º e 286.º do C. Civil, devendo ainda o Ministério Público, conhecido o vício, requerer, em ação própria, a sua liquidação judicial, como prescreve o art.º 172.º do C.S.C.

4. Ainda que sejam invocados factos concretos que consubstanciem uma situação de abuso de direito, na modalidade de «venire contra factum proprium», sempre a nulidade requerida pelos Autores haveria que ser declarada, face à imperatividade dessas normas e à prevalência do interesse público sobre o interesse particular.


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VI. Decisão.

Nestes termos, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e manter a decisão recorrida.

             

Lisboa 2014/10/01

Tomé Almeida Ramião ( Relator)

Vítor Amaral

Regina Almeida

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([1])  Cfr. Acs. STJ de 30/10/2003 e 02/07/1996, processos nº 03B3125 e 96A136, respetivamente; Acs. da Relação do Porto de 03/03/2005 e 31/05/2001, respetivamente, disponíveis em http://www.dgsi.pt.