Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5037/14.0TDLSB.L1-3
Relator: RUI MIGUEL TEIXEIRA
Descritores: RECLAMAÇÃO
EXTINÇÃO DO PODER JURISDICIONAL
REMESSA PARA OS MEIOS COMUNS
ADMISSIBILIDADE DO RECURSO
REMESSA DO PROCESSO
PRESSUPOSTOS
ATRASO INTOLERÁVEL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/25/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: - A extinção do poder jurisdicional de um juiz só se verifica relativamente às questões sobre incidiu a decisão proferida. Por isso nada obsta a que o juiz continue a exercer no processo o poder jurisdicional para tudo o que não tenda a alterar ou modificar a decisão proferida
-É admissível a remessa das partes para os tribunais comuns para aí se conhecer do pedido de indemnização civil mesmo em fase de recurso;
- É igualmente admissível tal remessa mesmo que o pedido haja sido conhecido mas não haja transitado;
- Para tanto haverá que se ter por verificado que as questões suscitadas são susceptíveis de gerar incidentes que retardem intoleravelmente o processo penal;
- Não é qualquer atraso que se tem por intolerável mas apenas e só aquele que, pela sua dimensão e duração permita concluir que as pretensões punitivas do Estado e/ou os direitos de defesa dos visados serão gravemente afectados pela sua verificação.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam – em conferência – na 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – INTRODUÇÃO
O Ministério Público e o assistente/demandante BANCO XXX, (“XXX”) vieram reclamar para esta conferência da decisão singular proferida pelo Desembargador Relator, datada de 31 de Outubro de 2022, a qual remeteu as partes para as instâncias cíveis no que concerne às questões cíveis do processo.
Em tal decisão foi decidido:
“Nos autos apensos foi julgado improcedente o incidente de habilitação de herdeiros.
Não obstante o ali decidido nenhum interveniente se apresentou a iniciar novo incidente com vista a fazer entrar na lide eventuais herdeiros do finado arguido JR
O incidente destinava-se a fazer prosseguir a instância cível. Os autos, na parte remanescente, não podem permanecer eternamente parados a aguardar uma habilitação que pode nunca ter lugar.
Nos termos do artº 82º nº 3 do C.P.P. “O tribunal pode, oficiosamente ou a requerimento, remeter as partes para os tribunais civis quando as questões suscitadas pelo pedido de indemnização civil inviabilizarem uma decisão rigorosa ou forem susceptíveis de gerar incidentes que retardem intoleravelmente o processo penal”
Ora, no caso concreto, as questões suscitadas pelo pedido de indemnização, mormente a necessidade de habilitar herdeiros, geraram incidente que retarda intoleravelmente o processo penal pois que se mostra imperioso prosseguir os autos com a decisão dos recursos pendentes, os quais aguardavam a decisão do incidente.
 Assim sendo, declara-se retomada a instância, cessando a sua suspensão, e remetem-se as partes para os Tribunais civis para aí dirimirem as questões cíveis provenientes do pedido de indemnização civil.
(…)
 Notifique”
A fim de sustentar a sua pretensão o Ministério Público refere no requerimento da reclamação:
“O despacho em reclamação entende que, "no caso concreto, as questões suscitadas pelo pedido de indemnização, mormente a necessidade de habilitar herdeiros, geraram incidente que retarda intoleravelmente o processo penal pois que se mostra imperioso prosseguir os autos com a decisão dos recursos pendentes, os quais aguardavam a decisão do incidente".
A decisão singular em reclamação não foi proferida pelo Exmo. Senhor Juiz-Desembargador Relator no âmbito do incidente de habilitação de herdeiros, mas sim nos autos principais e nestes foi já proferido acórdão pelo TRL, no qual, além do mais, foram apreciadas e decididas as questões relativas à instância civil, tendo sido mantida a decisão proferida pelo acórdão do tribunal da primeira instância, o qual julgou procedentes e provados os pedidos de indemnização civil, deduzidos pelo Ministério Público, bem como pelo assistente XXX.
Assim, a presente decisão singular, porque põe em causa o objecto do acórdão proferido pelo TRL, ultrapassando as competências que, na instância de recurso, se lhe encontravam ainda reservadas, em violação do caso julgado formal e do princípio do esgotamento do poder jurisdicional, nos termos do disposto nos artigos 613º, nºs 1 e 3 e 620.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil (CPC), ex-vi do artigo 4.º, do CPP, o que constitui nulidade insanável, nos termos do disposto no artigo 119.º, al. e) do CPP, por violação das regras de competência e hierarquia.
O despacho em reclamação viola ainda o princípio da adesão, previsto no art.97º do CPP, afigurando-se que o mecanismo previsto no artigo 82.º, n.º 3, do CPP, está previsto para um momento processual em que o pedido cível ainda não foi conhecido, o que não sucede no caso dos presentes autos.
Com efeito, nos presentes autos, como se referiu, já foi proferida decisão de mérito sobre os pedidos de indemnização civil do Ministério Público, em representação do Estado, bem como do assistente XXX, sendo certo que a dedução de incidente de habilitação de herdeiros nos presentes autos, quanto ao Arguido e Demandado João Rendeiro, não se afigura como susceptível de configurar, por si, o invocado "atraso intolerável" dos mesmos, de molde a justificar o reenvio para os tribunais civis, ao abrigo do art.º 82.º, n.º 3 do CPP..
O TRL já julgou o pedido cível formulado pelo que, para nós, é líquido que o incidente de habilitação de herdeiros terá de prosseguir na instância penal (junto do tribunal superior, nos termos do disposto no artigo 357º, do CPC) e jamais poderá consubstanciar uma causa passível de inviabilizar ou retardar intoleravelmente º processo penal, pois que, no caso concreto, sempre será possível fazer uso do expediente a que se reporta o artigo 355.º do CPC, ex vi do disposto no artigo 4º, do CPP.
Por outro lado, o artigo 377º, nº 1, do CPP (sob a epígrafe "Decisão sobre o pedido de indemnização civil"), estabelece que "a sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado, sem prejuízo do disposto no artigo 82º, nº 3", pelo que, fazendo a interpretação da norma, a contrario, resulta que, havendo já condenação nos autos, o mecanismo previsto no artigo 82.º, n.º 3, do CPP, nunca será de aplicar.
Mesmo diante da incerteza de herdeiros sucessíveis, será requerida a habilitação de herança jacente, a qual deverá ser decidida nos presentes autos, nos termos do disposto nos artigos 355º e 357º, ambos do Código de Processo Civil.
Tenha-se ainda em conta que, no que alude à matéria relativa aos pedidos cíveis, a prova já foi toda produzida, valorada, apreciada e julgada, não podendo a mesma ser repetida em processo civil separado, com os constrangimentos e prejuízos daí decorrentes, designadamente sem que se acautele a garantia patrimonial que os demandantes dispõem nos presentes autos.
Finalmente, tenha-se ainda em conta o teor dos Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 12.02.2014, no processo nº 4811/12.6T3AMD.L1 - 3, e do STJ, nº 3/2002, de 17.01.2002, publicado no DR, I série-A, de 5.03.2020".
(…)
Assim, face ao supra exposto, deve o despacho reclamado ser declarado nulo, nos termos do disposto no artigo 119.º, al. e), do CPP, por violação das regras de competência e hierarquia e ilegal, por violação do princípio da adesão, previsto no artigo 719, do CPP, determinando- se a sua revogação e substituição por outro que, mantendo a suspensão da instância, determine que os autos prossigam os seus ulteriores termos, na sequência do falecimento do arguido JR, incluindo a instância civil, a qual deverá manter-se enxertada na penal.”
Por sua vez, os demandantes, referem:
“1. O despacho em referência veio determinar a cessação da suspensão da instância, em razão de ter sido julgado improcedente o incidente de habilitação de herdeiros que havia levado àquela suspensão, ali se decidindo, igualmente, remeter “as partes para os Tribunais civis para aí dirimirem as questões civis provenientes do pedido de indemnização civil”.
2. A razão de tal decisão radicará no entendimento de que, “no caso concreto, as questões suscitadas pelo pedido de indemnização, mormente a necessidade de habilitar herdeiros, geraram incidente que retarda intoleravelmente o processo penal pois que se mostra imperioso prosseguir os autos com a decisão dos recursos pendentes, os quais aguardavam a decisão do incidente”.
3. Salvo o devido respeito, o despacho ora em apreço está ferido de invalidade, não podendo subsistir na ordem jurídica, sob pena de causar danos irreparáveis ao aqui Reclamante.
Vejamos,
4. Em primeiro lugar, mostra-se o despacho reclamado ferido de ineficácia, senão mesmo inexistência processual, por violação do princípio do esgotamento do poder jurisdicional.
5. Como pode ler-se no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 24.04.2018, proc.º n.º 369/09.5TJCBR-A.C1, “o juiz não pode, por sua iniciativa, alterar a decisão que proferiu, ainda que logo a seguir se arrependa, por adquirir a convicção que errou. Para ele a decisão fica sendo intangível. É esta a razão do princípio estabelecido no aludido art. 613º, nº 1, do NCPC. Há, na verdade, que assegurar a estabilidade da decisão jurisdicional, sob pena de dando o juiz o dito por não dito se criar a desordem, a confusão e a incerteza”.
6. De igual modo, consignou-se no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 17.04.2012, proc.º n.º 116/11, o seguinte:
“Com o proferimento da decisão dá-se o imediato esgotamento – rectior, extinção – do poder jurisdicional do juiz (artº 666 nºs 1 e 3 do CPC). Dessa extinção decorre esta consequência irrecusável: o juiz não pode, motu proprio, voltar a pronunciar-se sobre a matéria apreciada. Da extinção do poder jurisdicional consequente ao proferimento da decisão decorrem, assim, dois efeitos: um positivo – traduzido na vinculação do tribunal à decisão que proferiu; um negativo – representado pela insusceptibilidade de o tribunal que proferiu a decisão tomar a iniciativa de a modificar ou revogar.
Todavia, a intangibilidade, para o juiz, da decisão que proferiu, é, naturalmente, limitada pelo objecto dela: a extinção do poder jurisdicional só se verifica relativamente às questões sobre incidiu a decisão. Por isso nada obsta, é claro, a que o juiz continue a exercer no processo o poder jurisdicional para tudo o que não tenda a alterar ou modificar a decisão proferida: o juiz pode - e deve - resolver todas as questões que não tenham com o objecto da decisão proferida uma relação de identidade ou ao menos de prejudicialidade, e, portanto, que não exerçam qualquer influência da decisão que emitiu, relativamente à qual o seu poder jurisdicional se extinguiu e se esgotou” (sublinhado nosso).
7. No caso vertente, a decisão singular ora reclamada não foi proferida pelo Exmo. Senhor Juiz-Desembargador Relator no âmbito do incidente de habilitação de herdeiros, mas sim nos autos principais.
8. E, nos autos principais, foi já proferido acórdão pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no qual se conheceu as matérias relativas à instância civil e se manteve a decisão proferida em primeira instância, que julgara procedentes por provados os pedidos de indemnização civil, deduzidos tanto pelo Ministério Público, como pelo Reclamante XXX.
9. Nessa medida, ao proferir um despacho que contende com o objecto do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, o Exmo. Senhor Juiz-Desembargador relator extravasou as competências que, na instância de recurso, se lhe encontravam ainda reservadas.
10. Atento o exposto, incorreu a decisão singular de que se reclama em violação do caso julgado formal e do princípio do esgotamento do poder jurisdicional (arts. 620.º, n.º 1 do 613.º, nrs. 1 e 3 do CPC, ex-vi art.º 4.º do CPP), que redunda num vício de ineficácia, senão mesmo inexistência jurídica, que, pelo presente, se invoca.
11. Além disso, incorre tal decisão, também, em nulidade insanável [art.º 119.º, al. e) do CPP], por violação das regras de competência e hierarquia, no caso concreto.
12. Em segundo lugar, o despacho em causa mostra-se ferido de ilegalidade, por manifesta violação do princípio da adesão, previsto no art.º 71.º do CPP.
13. Segundo notam António Henriques Gaspar e Simas Santos, a propósito da aplicabilidade do mecanismo previsto no art.º 82.º, n.º 3 do CPP, “em circunstâncias que o prudente arbítrio considerará, o tribunal pode decidir não conhecer do pedido de indemnização civil, remetendo as partes para os tribunais civis” (sublinhado nosso)1.
14. E, também sobre a mesma matéria, esclarece Paulo Pinto de Albuquerque que “o reenvio para os tribunais civis tem lugar nas seguintes condições:
a. não há decisão sobre o mérito da pretensão civil;
b. a decisão sobre esta pretensão é remetida para os meios civis;
c. o tribunal penal pode decidir oficiosamente ou a requerimento;
d. o motivo da remessa é o da excessiva complexidade fáctica ou legal dos elementos existentes nos autos (quando as questões “inviabilizarem uma decisão rigorosa ou forem susceptíveis de gerar incidentes”)” (sublinhado nosso) - Cfr. Código de Processo Penal Anotado, 4.ª edição actualizada, UCE, pág. 244.
15. Nos presentes autos, contudo, como se disse, os pedidos de indemnização civil já se mostram conhecidos e inclusivamente julgados procedentes, tendo sido proferido acórdão condenatório em primeira instância, confirmado em segunda instância por esse mesmo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa.
16. Já há, pois, decisão de mérito sobre a pretensão civil, tanto no que tange ao demandante Estado Português, como ao Reclamante XXX.
17. Por conseguinte, já não será admissível remeter as partes para os tribunais civis “para aí dirimirem as questões civis provenientes do pedido de indemnização civil”, sob pena de evidente risco de contradição de julgados e, mais precisamente, de violação do princípio da adesão, uma vez que a instância civil já se encontra estabilizada e adquirida, na fase em que o processo se encontra.
18. Como é evidente, o recurso ao mecanismo previsto no art.º 82.º, n.º 3 do CPP está previsto para um momento processual em que o pedido cível ainda não foi conhecido. Tal não sucede in casu.
19. Aliás, segundo se extrai de acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23.05.2001, proc.º n.º 0140190, nem sequer se mostrará admissível lançar mão do disposto nesse preceito legal na pendência de julgamento em primeira instância: “o despacho que – depois ter sido admitido o pedido de indemnização civil (no processo penal), ter sido ordenado o exame pericial requerido e, depois deste realizado, ter sido designado data para julgamento – remete as partes para os tribunais cíveis, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 82 do Código de Processo Penal, invocando complexidade patente, viola claramente o princípio da adesão consagrado no artigo 71 e não se enquadra na previsão do citado n.3 do artigo 82” (sublinhado nosso).
20. Assim, não se afigura legítimo que se decida agora, na fase em que os autos se encontram, que o conhecimento da matéria relativa aos pedidos de indemnização civil passará a incumbir aos tribunais civis, uma vez que tais pedidos foram já objecto de uma decisão de mérito (em primeira instância), integralmente confirmada, em sede de recurso, por esse Venerando Tribunal.
21. De resto, parece olvidar-se que, nesta fase, há um Arguido/Demandado, FL, que já foi condenado com uma dupla conforme, tendo esse Venerando Tribunal da Relação determinado a separação de processos, na sequência de recurso interposto para o Tribunal Constitucional.
22. A decisão de que foi alvo esse Arguido/Demandado, por ter sido alvo de separação, abrangeu tanto a parte civil como a penal, aguardando-se agora que seja proferido despacho de admissão do seu recurso junto do Tribunal Constitucional.
23. Não faz sentido algum, sob pena de um flagrante risco de contradição de julgados, que, quanto a esse Arguido/Demandado, se sedimente uma decisão que o condena a indemnizar o Reclamante XXX, ao mesmo tempo que, quanto aos demais Arguidos/Demandados, com aquele solidariamente responsáveis, se remete os autos para os tribunais civis, a fim de nestes serem conhecidos e decididos os pedidos de indemnização civil deduzidos (e, repita-se, já objecto de decisão de mérito).
24. É impensável, aliás, que o Reclamante XXX possa vir a dispor de título executivo quanto ao Arguido/Demandado FL, por trânsito em julgado de decisão que o declarou responsável, em actuação conjunta com os demais Arguidos/Demandados, ao mesmo tempo que se discute, em acção civil separada, instaurada de raiz (com a apresentação de petição inicial e tudo o mais legal), se esses outros Arguidos/Demandados serão ou não responsáveis civilmente pelos mesmos factos que levaram à condenação do Arguido/Demandado FL.
25. E tal cenário provoca uma perplexidade ainda maior quando se constata que, se o Arguido/Demandado FL vier a pretender accionar diante dos demais Arguidos/Demandados o direito de regresso que lhe assiste, tal não se mostrará admissível.
26. Por tudo o exposto, deve o despacho em crise ser declarado nulo, por violação do caso julgado formal ou, subsidiariamente, irregular, por violação do princípio da adesão, previsto no art.º 71.º do CPP, bem como do disposto no art.º 82.º, n.º 3 do CPP, impondo-se que seja revogado e substituído por outro que, mantendo a suspensão da instância, determine que os autos prossigam os seus ulteriores termos , na sequência do falecimento do Arguido/Demandado JR, incluindo no que tange à instância civil, que deverá manter-se enxertada na penal.
27. Aliás, a interpretação da norma ínsita no art.º 82.º, n.º 3 do CPP, no sentido de que, tendo sido já conhecido o pedido de indemnização civil deduzido nos autos e proferida quanto ao mesmo uma decisão de mérito, confirmada em segunda instância, pode o Tribunal da Relação, em fase de recurso, remeter as partes para os tribunais civis, para conhecimento e julgamento do pedido de indemnização civil e questões com ele conexas, é materialmente inconstitucional, por violação do disposto no art.º 2.º (princípio da confiança e segurança jurídicas) e no art.º 20.º, nrs. 1 e 5 (acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva) da Constituição da República Portuguesa, o que desde já se invoca.
28. Em terceiro lugar, o despacho reclamado mostra-se ininteligível, desconhecendo-se o exacto sentido e alcance da decisão.
29. Por um lado, não se descortina se o decidido abrange, tão-somente, o pedido de indemnização civil relativo ao Arguido/Demandado João Rendeiro ou se a decisão de reenvio se estenderá, também, aos demais Arguidos/Demandados, SV e PG.
30. Devendo notar-se, a esse propósito, que, tendo todos os Arguidos/Demandados sido condenados a pagar a título solidário ao Reclamante XXX a quantia de € 29.539.629,08, o reenvio dos autos apenas quanto ao Arguido/Demandado JR acarretaria, inevitavelmente, um risco de contradição de julgados.
31. Por outro lado, não é claro o que se deva entender por “questões civis provenientes do pedido de indemnização civil”, desconhecendo-se, em concreto, o que haverá de integrar o objecto da remessa para os tribunais civis que é determinada.
32. Limitar-se-á esse Venerando Tribunal a determinar o reenvio dos autos, no estado em que presentemente se encontram, para efeitos de conhecimento do incidente de habilitação de herdeiros e subsequente tramitação da instância civil ou, ao invés, para conhecimento do mérito da pretensão civil, no seu todo e de raiz?
33. Na primeira hipótese, além de se desconhecer, exactamente, como a mesma se processaria (designadamente, se é possível que autos em fase de recurso sejam distribuídos, qua tale, na secção civil do Tribunal da Relação, reenviados directamente da secção penal), afigura-se que o retardamento dos autos, que se visa acautelar, acabaria por não se ver resolvido.
34. Com efeito, é evidente que, enquanto as questões relativas à habilitação de herdeiros do Arguido/Demandado JR não fossem conhecidas e resolvidas no tribunal civil, a subida dos presentes autos para o Supremo Tribunal de Justiça sempre ficaria disso dependente, a título de questão prejudicial.
35. Já na segunda hipótese, se o que se determina é que incumbirá aos tribunais civis que conheçam, ab initio, dos pedidos de indemnização civis deduzidos nos presentes autos – o que implicaria que tanto o Estado Português como o Reclamante XXX tivessem que instaurar uma nova acção, em separado, ex-novo – a perplexidade revela-se ainda maior, pelos motivos já expostos quanto à violação do princípio do esgotamento do poder jurisdicional e do caso julgado formal.
36. Em quarto lugar, o despacho em causa está ferido de ilegalidade, por clara omissão de pronúncia.
37. No despacho ora em crise, limita-se o Exmo. Senhor Juiz Desembargador relator a referir que, “no caso concreto, as questões suscitadas pelo pedido de indemnização, mormente a necessidade de habilitar herdeiros, geraram incidente que retarda intoleravelmente o processo penal pois que se mostra imperioso prosseguir os autos com a decisão dos recursos pendentes, os quais aguardavam a decisão do incidente”.
38. Todavia, a jurisprudência tem sido uniforme e reiterada no sentido de que, não se verificando razões muito ponderosas que determinem a separação dos processos, deverá manter-se a unidade procedimental de julgamento no processo penal: cf. acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães, de 08.02.2021, proc.º n.º 111/18.6T9VRL-A.G1; acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 26.06.2017, proc.º n.º 299/16.1T8BRG.G1; acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 03.10.2018, proc.º n.º 4169/15.1T9AVR-A.P1; acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 12.12.2012, proc.º n.º. 344/08.3TACBR-A.C1; acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 03.10.2018, proc.º n.º 1646/07.1PCSTB; acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 21.09.2021., proc.º n.º 153/15.3 GJBJA-A.E1; e acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 09.11.2021, proc.º n.º 276/15.9 GFELV-A.E1.
39. A esse propósito, faz-se constar no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17.11.2021, proc.º n.º 7/19.4T1PTM-A.E1, “o juiz não poderá deixar de equacionar os prejuízos que de tal remessa poderão advir para as vítimas do crime, nomeadamente o desperdício de tempo e de meios já investidos no processo penal, o aumento de custos e o potencial risco de contradição de julgados”.
40. De resto, como refere Carlos Lopes do Rego, “importará, todavia, que a prática judiciária estabeleça algumas cautelas no uso deste amplo poder concedido ao tribunal de modo a não defraudar as legítimas expectativas do lesado, que optou pela via penal para obter o ressarcimento e que não deverá ver inutilizada toda a actividade processual desenvolvida à primeira dificuldade que o julgamento conjunto das questões civil e penal possa acarretar ao processo...” (Cfr. “As Partes Civis E O Pedido De Indemnização Deduzido No Processo Penal”, in Revista do M.º P.º, 4 Cadernos, pág. 68).
41. Todas estas razões, que depõem claramente no sentido de uma criteriosa ponderação quanto ao recurso à aplicação do art.º 82.º, n.º 3 do CPP, encontram-se exemplarmente espelhadas nos presentes autos.
42. Todavia, não foi tido em conta, na ponderação efectuada, que, no que diz respeito à matéria relativa aos pedidos cíveis, a prova já foi toda produzida e valorada, que o julgamento foi concluído e que, quanto mais não seja, porque um dos Demandados civis entretanto faleceu, jamais poderá essa mesma prova ser repetida em processo civil separado.
43. Também não foram tidos em consideração todos os prejuízos, custos acrescidos e constrangimentos que serão causados aos lesados, se estes, em finais de 2022, e mesmo depois de já terem obtido, nestes autos, decisão de mérito favorável, confirmada em recurso, se virem forçados a iniciar, junto dos tribunais civis, a repetição de todo o processo, deitando-se por terra quase dez anos de labor processual em que se geraram  legítimas expectativas do justo ressarcimento dos danos que lhes foram causados.
44. E, mais grave ainda, com a tomada de uma decisão desta natureza, não foi acautelada a garantia patrimonial de que dispõem os Demandantes nos presentes autos.
45. Em primeira instância, foi proferida a decisão no sentido de julgar procedentes os pedidos de indemnização civil e condenar os Arguidos/Demandados JR, SV, PG e FL a pagar ao lesado Estado Português, respectivamente, as quantias de € 4.091.505,19, € 3.325.971,61, € 1.050.000,00 e €346.213,43, acrescidos de juros de mora, à taxa legal.
46. Os mesmos Arguidos/Demandados foram, ainda, solidariamente condenados a pagar ao lesado XXX, ora Reclamante, a quantia global de € 29.539.629,08, a título de prejuízos patrimoniais causados, a que acrescem juros de mora, à taxa legal.
47. Os pedidos cíveis quanto aos quais existe já uma dupla conforme ascendem, pois, ao total de € 38.353.319,28, acrescidos de juros.
48. Ademais, no mesmo acórdão condenatório (integralmente confirmado por esse Venerando Tribunal), foram ainda declarados perdidos a favor do Estado os bens objecto dos arrestos preventivos decretados nos autos, determinando-se que, pelo seu produto, fossem pagas, na medida do possível, as quantias objecto das condenações supra referidas.
49. Estão em causa saldos e activos, constantes de contas bancárias, em valor correspondente a vários milhões de euros, além de um conjunto de fracções autónomas de avultado valor patrimonial, como, por exemplo, a moradia de que era proprietário o Arguido/Demandado JR, sita na Quinta (…).
Ora,
50. É manifesto que, na decisão singular ora reclamada, ao determinar, sem mais, o reenvio para os tribunais civis da matéria relativa aos pedidos de indemnização, não foi efectuada qualquer ponderação quanto aos efeitos que daí poderiam decorrer, desde logo no que tange à garantia patrimonial existente em benefício dos Demandantes civis, tendo em vista que a mesma seja acautelada.
51. Estão em causa arrestos preventivos que, em parte, têm mais de dez anos e que foram sendo confirmados por acórdãos proferidos por esse Tribunal da Relação de Lisboa, transitando em julgado.
52. Salvo o devido respeito, o despacho proferido não pode ter a virtualidade de revogar decisões judiciais anteriormente tomadas a esse respeito, sob pena de violação dos acima mencionados arts. 2.º e 20.º, nrs 1 e 5 da CRP, bem como dos arts. 620.º, n.º 1 do 613.º, nrs. 1 e 3, do CPC, aplicáveis ex-vi art.º 4.º, do CPP.
53. Aliás, num processo em que ficou de tal forma reconhecida (incluindo pelo Tribunal da Relação de Lisboa) a intensidade do dolo dos Arguidos/Demandados, bem como o elevado desrespeito pelos mesmos demonstrado quanto aos interesses patrimoniais das vítimas, a decisão em causa como que aparenta amputar as necessidades de prevenção geral que se pretendeu acautelar no caso concreto, o que se crê ser desproporcional e injusto.
54. Certo sendo que, como se afirma no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.06.2009, proc.º n.º 81/04.8PBBGC.S1, «o pedido de indemnização derivado da prática de um crime impõe-se segundo Ferri, citado pelo Prof. Figueiredo Dias, in Sobre a reparação de perdas e danos arbitrada em Processo Penal, BFDUC, 1966, pág, 19 e segs „ “como função social que diz respeito ao Estado não apenas no interesse do particular ofendido, como ainda no interesse indirecto, mas não menos eficaz da defesa social”, sendo por isso mesmo considerado como a terceira reacção criminal a par das clássicas de prisão e multa».
55. À luz do que antecede, deve o despacho em crise ser declarado irregular, por omissão de pronúncia, que desde já se argui, ao abrigo do disposto no art.º 123.º, n.º 1 do CPP, sendo revogado e substituído por outro que, conhecendo e ponderando os prejuízos que, da remessa para os tribunais civis, poderão advir para os demandantes, incluindo quanto à garantia patrimonial existente, o desperdício de tempo e meios já investidos no processo penal, o aumento de custos e, repise-se, o potencial risco de contradição de julgados, conclua pelo não reenvio, mantendo a suspensão da instância e determinando que prossigam os ulteriores termos legais, na sequência do falecimento do Arguido/Demandado JR, incluindo no que tange à instância civil, que deverá manter-se enxertada na penal.
56. Finalmente, sempre se dirá que uma coisa é considerar que se verifica um atraso no andamento dos autos, outra, completamente distinta, é apelidá-lo de “intolerável”.
57. Sendo certo que, no despacho ora reclamado, em parte alguma se concretiza por que motivo se qualifica o protelamento mencionado de intolerável.
58. Como é natural, o facto de, após ser interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, o Arguido/Demandado JR ter falecido, gerou vicissitudes no prosseguimento dos autos que nenhuma das partes poderia antecipar.
Vejamos,
59. Em 20.06.2022, uma vez junta aos autos a certidão de óbito, foi proferido despacho no sentido de suspender a instância cível, notificando--se os demandantes civis, para os efeitos previstos no art.º 351.º do CPC.
60. Acto contínuo, em 04.07.2022, deduziu o Reclamante XXX incidente de habilitação de herdeiros, contra a esposa do falecido Arguido/Demandado JR, única herdeira conhecida.
61. Entre 15.07.2022 e 31.08.2022, os prazos suspenderam-se, em virtude de férias judiciais.
62. Após o que foi oferecida contestação pela parte requerida, na qual se repudia a herança, tendo sido proferida sentença, no dia 13.09.2022, julgando-se improcedente o incidente de habilitação de herdeiros mencionado.
Ora,
63. Na contestação apresentada pela esposa do Arguido/Demandado JR, refere a mesma (en passant) que “tem conhecimento de que o marido tinha primos direitos, mas que a Requerida não está em condições de identificar cabalmente, porque não mantinha contactos com eles (a não ser muito esporadicamente e em data não recente)”.
64. Tanto quanto é do conhecimento do Reclamante XXX, porém, não existem mais nenhuns herdeiros, designadamente, primos do falecido.
65. Ainda assim, na sequência de tal alegação, encetou o Reclamante XXX diligências no sentido de a confirmar, designadamente procedendo a pesquisas nos registos civis existentes, incluindo quanto aos avôs do Arguido/Demandado JR.
66. Sem êxito, porém, uma vez que a digitalização constante dos registos centrais, sitos em Lisboa, não abrange as inscrições referentes aos ascendentes do Arguido/Demandado JR (os pais, tanto quanto se sabe, seriam naturais de M…), sendo que sua esposa não veio oferecer qualquer prova ou indício quanto ao por si alegado.
67. Estavam em curso tais diligências quando, em 31.10.2022, é proferido o despacho de que aqui se reclama.
68. Ora, qualificar um período temporal de quarenta e oito dias de “atraso intolerável”, afigura-se incompreensível, desajustado e excessivo.
69. De resto, ainda que se pudesse reputar o lapso de tempo em causa de “atraso intolerável”, não deixaria a decisão ora reclamada de se revelar severamente desproporcional.
70. Na verdade, atentas as cautelas exigíveis e os interesses em jogo (incluindo os do Estado Português), sempre poderia o Exmo. Senhor Juiz Desembargador relator ter determinado a notificação das partes para que expusessem ou requeressem o que tivessem por conveniente, ao invés de, pura e simplesmente, deitar por terra todo o processado.
71. Com efeito, mesmo nos casos-limite de deserção de instância (que ocorre, note-se, quando não se verifique impulso processual durante seis meses), a jurisprudência é assente no sentido de que devem as partes ser expressamente advertidas desse efeito antes de ser tomada uma decisão definitiva.
72. Nesse sentido, refere o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 17.03.2006, proc.º n.º 178/14.6TBRDD.E1: “no caso sub judicio verifica-se que as partes não foram previamente ouvidas sobre a possibilidade de ver decretada a deserção da instância por negligência das mesmas no impulso do processo, pelo que não há dúvidas de que estamos perante uma decisão surpresa e como tal ilícita”.
73. Além do mais, sempre se dirá que, como nota o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 11.09.2013, proc.º n.º 1825/08.4PBCBR-B.C1, “(…) a simples dedução de um incidente, seja de intervenção principal, espontânea ou provocada, ou de habilitação, mesmo com a possibilidade de recurso, retardando seguramente o processo, não justifica, por si só, a remessa da acção enxertada para a jurisdição civil. (…) É certo que o incidente suscitado pela assistente e demandante e o recurso que por ela foi interposto da decisão proferida em relação ao mesmo representam um atraso para o andamento do processo. Não se vê no entanto que se trate de um atraso intolerável”.
74. Por conseguinte, e também por este motivo, o despacho proferido não tem razão de ser, na medida que a dedução de incidente de habilitação de herdeiros nos presentes autos, quanto ao Arguido/Demandado JR, não tem a virtualidade de configurar, por si só, “atraso intolerável” dos mesmos, que justifique o reenvio das partes para os tribunais civis, ao abrigo do art.º 82.º, n.º 3 do CPP.
75. Nestes termos, e diante da incerteza de herdeiros sucessíveis, lançar-se-á mão do disposto no art.º 355.º do CPC, requerendo-se a habilitação da herança jacente, a qual deverá ser decidida nos presentes autos, como, aliás, expressamente determina o art.º 357.º do mesmo diploma legal.
Termos que se requer que a decisão singular de 31.10.2022, com a referência 19148144, proferida pelo Exmo. Senhor Juiz Desembargador relator, seja submetida à conferência, recaindo sobre a mesmo acórdão que, apreciando a reclamação ora apresentada pelo XXX, a julgue procedente, declarando inexistente a decisão singular em causa, por violação do caso julgado formal e do princípio do esgotamento do poder jurisdicional (arts. 620.º, n.º 1 do 613.º, nºs. 1 e 3 do CPC, aplicáveis ex-vi art.º 4.º do CPP).
Subsidiariamente, caso assim não se entenda, deve quanto à decisão singular em apreço, ser declarada a nulidade insanável prevista no art.º 119.º, al. e) do CPP, por violação das regras de competência e hierarquia, sendo a mesma revogada e substituída por outra que, mantendo a suspensão da instância, determine que se prossigam os ulteriores termos legais na sequência do falecimento do Arguido JR, incluindo no que tange à instância civil, que se manterá enxertada na penal.
Ainda subsidiariamente, caso se julgue não procedente nenhum dos anteriores pedidos, deve a decisão em crise ser declarada nula, por violação do caso julgado formal ou, subsidiariamente, irregular, por violação do princípio da adesão, previsto no art.º 71.º do CPP, bem como do disposto no art.º 82.º, n.º 3 do CPP, sendo revogada e substituída por outra que, mantendo a suspensão a instância, determine que se prossigam os ulteriores termos legais na sequência do falecimento do Arguido JR, incluindo no que tange à instância civil, que se manterá enxertada na penal.
Ainda subsidiariamente, na eventualidade do supra requerido não merecer provimento, deve o despacho em crise ser declarado irregular, por omissão de pronúncia, que desde já se argui, ao abrigo do disposto no art.º 123.º, n.º 1 do CPP, sendo revogado e substituído por outro que, conhecendo e ponderando os prejuízos que da remessa para os tribunais civis poderão advir para os demandantes, incluindo quanto à garantia patrimonial existente, o desperdício de tempo e meios já investidos no processo penal, o aumento de custos e o potencial risco de contradição de julgados, conclua pelo não reenvio para os tribunais civis, mantendo-se a suspensão da instância e determinando-se que os autos prossigam os seus ulteriores termos na sequência do falecimento do Arguido/Demando JR, incluindo no que tange à instância civil, que se deverá manter enxertada na penal.”
II- AVALIAÇÃO
Consabidamente, e como é de fácil entendimento, a legal concessão ao respectivo sujeito passivo do direito de accionamento do mecanismo jurídico-processual de reclamação para a conferência [incidente prevenido sob os arts. 417.º/8 do Código de Processo Penal – e 652.º/3 do Código de Processo Civil (CPC)], e da consequente manifestação de vontade de desencadeamento de colegial revisão de singular acto decisório não comporta e/ou pressupõe qualquer legitimação de eventual desautorização do seu autor, relator, fundada nalgum ideado critério de força/autoridade resultante de virtual somatório de diferentes sensibilidades da maioria [no âmbito do processo criminal de três desembargadores: relator e adjuntos e presidente da Secção, (cfr. art.º 419.º/1 do CPP)], mas antes, evidentemente, tão-só a oportunidade para a respectiva submissão a plural escrutinação da sua (despacho judicial) racional conformação à adequada legalidade, pela deliberativa avaliação de pertinente, esclarecida e precisa fundamentação/argumentação técnico-jurídica que o reclamante necessária e responsavelmente aduza no respectivo acto reclamativo no sentido demonstrativo da objectiva ilicitude da concernente decisão do relator, posto que, pela própria natureza e definição, a figura jurídica de reclamação – em qualquer ramo do direito cuja disciplina a contemple –, sempre se haverá de constituir numa especial prerrogativa legal-procedimental de controlo, de fundamentada impugnação do acto decisório a que se reporte, posta à disposição do destinatário que por ele se considere prejudicado, tendente à referente revogação, modificação ou substituição, por eventual ilegalidade, por si exercitável, se e enquanto se não tiver conformado – expressa ou tacitamente – com o atinente acto . 
Antes de avançarmos na decisão da questão que se nos coloca relembramos que aqui estamos, numa primeira fase, a conhecer da reclamação apresentada.
São as seguintes as objecções formuladas ao despacho reclamado e sobre as quais nos vamos debruçar:
- O facto da decisão reclamada ter sido proferida nos autos principais (e não nos de habilitação) e ter, em consequência, violado o caso julgado formal produzido pelo acórdão desta Relação quanto à matéria cível.
- O facto de, por já ter sido proferida decisão final por esta instância, a decisão reclamada haver sido proferida quando esgotado o poder jurisdicional, o que constitui nulidade insanável nos termos do artº 119º al. e) do C.P.P..
- O facto do mecanismo previsto no artigo 82.º, n.º 3, do CPP, está previsto para um momento processual em que o pedido cível ainda não foi conhecido, o que não sucede no caso dos autos.
 - A dedução de incidente de habilitação de herdeiros nos presentes autos, quanto ao Arguido e Demandado JR, não se afigura como susceptível de configurar, por si, o invocado "atraso intolerável" dos mesmos, de molde a justificar o reenvio para os tribunais civis, ao abrigo do art.º 82.º, n.º 3 do CPP..
- Existindo um arguido sobre o qual existe dupla conforme (FL) a decisão será susceptível de contradição de julgados pois que quanto a um arguido há título executivo e no remanescente não;
- A questão da interpretação da norma ínsita no art.º 82.º, n.º 3 do CPP, no sentido de que, tendo sido já conhecido o pedido de indemnização civil deduzido nos autos e proferida quanto ao mesmo uma decisão de mérito, confirmada em segunda instância, pode o Tribunal da Relação, em fase de recurso, remeter as partes para os tribunais civis, para conhecimento e julgamento do pedido de indemnização civil e questões com ele conexas, ser materialmente inconstitucional, por violação do disposto no art.º 2.º (princípio da confiança e segurança jurídicas) e no art.º 20.º, nºs. 1 e 5 (acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva) da Constituição da República Portuguesa, o que desde já se invoca;
- A questão da inintegibilidade do despacho reclamado designadamente a questão de se saber se o mesmo abrange, tão-somente, o pedido de indemnização civil relativo ao Arguido/Demandado JR ou se a decisão de reenvio se estenderá, também, aos demais Arguidos/Demandados, SFV e PG e de se saber, concretamente, qual o âmbito da remessa.
- A questão da omissão de pronúncia por não haverem sido ponderados os efeitos nefastos a nível processual da decisão.
- A questão do atraso em causa que justifica a remessa para os meios comuns não ser “intolerável”
Decidindo
No que tange à primeira questão temos por certo que a razão não assiste aos reclamantes, senão vejamos.
A decisão de remessa para os meios comuns foi, efectivamente, tomada nos autos principais porque era aí que tinha de ser tomada.
O apenso para decisão do incidente de habilitação existe apenas para isso, para decisão da habilitação. No mesmo apenas se cura deste incidente e uma vez proferida a decisão nada mais há a tratar.
Assim, partindo do pressuposto que uma decisão haja de ser tomada e que a mesma não respeite ao incidente de habilitação o seu local para ser tomada são os autos em curso, ou seja, o processo principal.
O argumento avançado de que a decisão reclamada contende com o acórdão proferido também não colhe.
Na verdade, uma coisa é a decisão tomada em sede de decisão da causa e outra bem diferente é a decisão processual sobre o curso dos autos.
A decisão de fundo confirmou a decisão de primeira instância no que tange aos pedidos cíveis e a decisão reclamada entendeu que o estado dos autos não comportava o prosseguimento destes com o enxerto cível. Contudo, a decisão proferida não beliscou minimamente o conteúdo de tal decisão que se mantém intocada.
O caso julgado formal forma-se sempre quanto à mesma situação de Direito, o que claramente não é o caso.
Assim, improcede este argumento.
Os reclamantes referem também que o despacho não poderia ter sido proferido porquanto estava esgotado o poder jurisdicional.
Também aqui os reclamantes estão em erro. Para que existisse esgotamento do poder jurisdicional seria necessário, em termos simples, que o Tribunal – o relator neste caso – tivesse decidido pela segunda vez a mesma questão. Ora, uma coisa é o mérito das pretensões cíveis deduzidas (as quais foram apreciadas no acórdão proferido por este Tribunal) e outra bem diferente é a oportunidade dos autos prosseguirem para instância superior com o conhecimento de eventuais recursos sobre esta questão deduzidos por quem se considere afectado por aquela decisão.
Como bem referem os reclamantes citando o Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 17.04.2012, proc.º n.º 116/11: “(…) a intangibilidade, para o juiz, da decisão que proferiu, é, naturalmente, limitada pelo objecto dela: a extinção do poder jurisdicional só se verifica relativamente às questões sobre incidiu a decisão. Por isso nada obsta, é claro, a que o juiz continue a exercer no processo o poder jurisdicional para tudo o que não tenda a alterar ou modificar a decisão proferida: o juiz pode - e deve - resolver todas as questões que não tenham com o objecto da decisão proferida uma relação de identidade ou ao menos de prejudicialidade, e, portanto, que não exerçam qualquer influência da decisão que emitiu, relativamente à qual o seu poder jurisdicional se extinguiu e se esgotou” .
Improcede, assim, a reclamação nesta parte.
Os reclamantes referem ainda que o mecanismo previsto no artigo 82.º, n.º 3, do CPP, está previsto para um momento processual em que o pedido cível ainda não foi conhecido, o que não sucede no caso dos autos.
Para tanto invocam pertinente doutrina.
Vejamos.
O artº 82º nº 3 do C.P.P. dispõe que “O tribunal pode, oficiosamente ou a requerimento, remeter as partes para os tribunais civis quando as questões suscitadas pelo pedido de indemnização civil inviabilizarem uma decisão rigorosa ou forem susceptíveis de gerar incidentes que retardem intoleravelmente o processo penal.”
Na literalidade do preceito nada autoriza a afirmação que o mesmo é apenas aplicável antes de decidido o pedido de indemnização.
O preceito está dividido em dois segmentos:
- é possível remeter as partes para os meios civis quando as questões suscitadas pelo pedido de indemnização civil inviabilizarem uma decisão rigorosa;
- é possível remeter as partes para os meios civis quando as questões suscitadas forem susceptíveis de gerar incidentes que retardem intoleravelmente o processo penal.
A primeira das situações só ocorre antes da decisão do pedido de indemnização civil já que “as questões suscitadas” têm de ser anteriores à “decisão rigorosa”. Se já se decidiu o pedido de indemnização então nada inviabiliza a decisão porquanto a mesma já foi proferida.
Já a segunda das situações pode ocorrer em qualquer momento do processo. Basta que exista um incidente que retarde intoleravelmente o processo penal.
Ora, este foi o fundamento utilizado na decisão reclamada.
Existe um incidente. O incidente aqui não foi o incidente de habilitação mas sim a morte de um dos arguidos e a inércia dos intervenientes subsequente à improcedência do incidente de habilitação.
Este incidente que, na prática, levava a que os recursos interpostos não subissem (excepto o do arguido Fernando Lima ante a separação processual) parava o andamento do processo na sua vertente penal pois que havia arguidos condenados, que recorreram e que não viam a sua situação definida.
É isto, esta incerteza na conduta dos intervenientes e que o Tribunal não podia ultrapassar (o Tribunal não podia de motu propriu iniciar novo incidente de habilitação) que foi considerado como “intolerável” atraso no processo penal.
Assim, o argumento de que a fase processual em que nos encontramos não permite a utilização do disposto no artº 82º nº 3 do C.P.P. não colhe.
Questão diferente é a de se considerar que não estamos perante um atraso intolerável.
Reponderada a questão temos para nós – todos nós – que a razão assiste aos reclamantes.
Na verdade, analisados os autos temos que:
- Em 20.06.2022, uma vez junta aos autos a certidão de óbito, foi proferido despacho no sentido de suspender a instância cível, notificando--se os demandantes civis, para os efeitos previstos no art.º 351.º do CPC.
- Em 04.07.2022, deduziu o Reclamante XXX incidente de habilitação de herdeiros, contra a esposa do falecido Arguido/Demandado JR, única herdeira conhecida.
- Entre 15.07.2022 e 31.08.2022, os prazos suspenderam-se, em virtude de férias judiciais.
-  Após o que foi oferecida contestação pela parte requerida, na qual se repudia a herança, tendo sido proferida sentença, no dia 13.09.2022, julgando-se improcedente o incidente de habilitação de herdeiros mencionado.
- Em 31.10.2022, é proferido o despacho reclamado.
Como refere o reclamante assistente “qualificar um período temporal de quarenta e oito dias de “atraso intolerável”, afigura-se incompreensível, desajustado e excessivo.”
Quanto à incompreensibilidade do mesmo remete-se para o que ficou expresso supra mas quanto ao desajuste e ao excesso haverá que conceder que assim é.
São na prática 48 dias que passaram com inércia. É verdade que 48 dias são significativos para quem está condenado (os arguidos) e não sabe o que lhe vai suceder na vida mas, verdade seja dita, o prazo de deserção da instância são seis meses e o processo vem seguindo os seus termos há anos sendo que, existindo prejuízo do reclamante assistente este teve de o suportar.
Assim, consideramos, com o reclamante XXX que “ ainda que se pudesse reputar o lapso de tempo em causa de “atraso intolerável”, não deixaria a decisão ora reclamada de se revelar severamente desproporcional.”
Ora, o preceito refere expressamente que o atraso terá de ser “intolerável” e tal só pode querer significar um atraso que seja, de acordo com as regras de uma normalidade, incomportável por colocar em crise os valores e princípios que regem o sistema pena e processual penal de molde a afectar severamente os direitos dos intervenientes.
Tal atraso, de facto, não existe e porque não existe o despacho reclamado não pode subsistir.
E tanto mais que já foi intentado novo incidente de habilitação que permitirá a progressão dos autos.
Prejudicado fica o conhecimento das demais questões suscitadas na presente reclamação.

III - DECISÃO
Nestes termos acordam os juízes que compõem a 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar provida a reclamação apresentada e, consequentemente:
a)  Revogar o despacho de 31 de Outubro de 2022 (refª 19148144) na parte em que ordenou a remessa das partes para os Tribunais civis para aí dirimirem as questões cíveis provenientes do pedido de indemnização civil;
b)  Ordenar a suspensão da instância
c)  Ordenar que seja autuado por apenso o requerimento 604963 (de 10.11.2022) (artº 352º nº 2 do C.P.C.);
d) Ordenar que seja instruído o apenso com certidão do requerimento 604963 e documentos anexos e com certidão desta decisão.
e)  Ordenar que no apenso a formar seja citada a requerida para, querendo, contestar a habilitação nos termos do disposto no artº 354º do C.P.C.
Sem custas.

Faz-se constar que a presente decisão não revogou o reinicio da instância ordenado no despacho de 31.10.2022.
Na verdade, tendo improcedido a habilitação inicialmente deduzida, os prazos retomaram e suspenderam-se agora com a admissão da nova habilitação.
Salienta-se, assim que os prazos de resposta aos recursos estão perfeitos havendo que aguardar a decisão da questão da habilitação.
Notifique.
Remeta cópia desta decisão à 1ª instância para conhecimento.
 
Lisboa e Tribunal da Relação, 25 de Janeiro de 2023
Rui Miguel de Castro Ferreira Teixeira
Alfredo Gameiro Costa
Rosa Vasconcelos