Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1732/14.1TBTVD-A.L1-7
Relator: LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA
Descritores: LIVRANÇA
AVAL
CESSÃO DE QUOTA
ACORDO DE PREENCHIMENTO
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/20/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: IApesar da doutrina do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 4/2013, é possível ao sócio que cedeu a sua quota desvincular-se do aval anteriormente prestado à sociedade - ao nível do acordo de preenchimento - mediante resolução por justa causa (inexigibilidade do sócio continuar a garantir as dívidas da sociedade atinentes a financiamentos que não controla e de que não beneficia), pelo que tal desvinculação nada bule com a doutrina do Acórdão Uniformizador porquanto não estamos em sede de denúncia do aval.

IIA comunicação ao banco da cessão de quotas feita pela sociedade - após a saída do sócio cedente e avalista e desconhecendo-se se a sociedade foi mandatada para tal efeito pelo ex-sócio - é insuficiente para consubstanciar uma declarativa resolutiva eficaz.


Sumário elaborado pelo Relator

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.


RELATÓRIO:


Joaquim ... ... e I.. ... ... ..., executados nos autos principais, deduziram embargos de oposição à execução, em que é exequente “Caixa Geral De Depósitos, S.A.”, pedindo que seja decretada a extinção da execução.

Alegam os embargantes que, em 2009, o embargante cedeu a quota que detinha na sociedade subscritora da livrança dada à execução, facto que foi dado a conhecer ao Banco exequente, tendo os embargantes requerido nessa altura a sua desoneração das obrigações assumidas na qualidade de avalistas. Mais alegam que a conta caucionada foi sendo sucessivamente renovada até 2012, tendo sido surpreendidos pelo acionamento da livrança, tendo confiado que o Banco não o iria fazer.

Concluem os embargantes pela atuação com abuso de direito do Banco exequente, que, com a sua atuação e comportamento, traiu a confiança gerada nos embargantes.

Por despacho de 19/01/2016 foi admitida a oposição à execução.

A exequente apresentou contestação – fls. 78 a 85 – onde conclui pela improcedência dos embargos.

Após julgamento, foi proferida sentença que julgou os embargos procedentes e, em consequência, determinou a extinção da execução quanto aos embargantes, levantando as penhoras.
*

Não se conformando com a decisão, dela apelou a requerente, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:
«1)A CGD instaurou ação executiva contra ... II - Imobiliária Lda., na qualidade de subscritora, e contra José Leonardo ..., Maria das Dores dos ... ..., Valentim ... ..., Maria ... Henriques dos ... ..., ... ... ..., Maria do Carmo dos ... ... ..., Joaquim ... ... e I.. ... ... ..., na qualidade de avalistas.
2)Na aludida ação foi dada à execução uma livrança, de que a Exequente é dona e legítima portadora, emitida em Lisboa em 24.05.2005, com vencimento em 04.02.2014 nela estando aposto o valor de € 257.575,28.
3)Tal livrança foi subscrita pela Executada ... II - Imobiliária, Lda. e avalizada por José Leonardo ..., Maria das Dores dos ... ..., ... ... ..., Maria do Carmo dos ... ... ..., Valentim ... ..., Maria ... Henriques dos ... ..., Joaquim ... ... e I.. ... ... ..., que nele apuseram a sua firma após as declarações de "Dou o meu aval à firma subscritora" (Docs. 1) reconhecendo que pagavam à Exequente o valor nele aposto.
4)Os Embargantes confessam a Livrança dada à execução e confessam o aval por si prestado e a qualidade em que nelas intervêm – alínea B) dos factos assentes.
5)A livrança supra identificada não foi paga na data do seu vencimento, nem em momento posterior, não obstante todas as diligências efetuadas nesse sentido pela Exequente. Tal facto não foi contestado, antes confessado, pelos Embargantes, constando assim da alínea C) dos factos assentes.
6)Foi apresentada Contestação por parte da CGD, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos.
7)Foram juntos aos autos documentos, nomeadamente, por Requerimento de 26.04.2017, carta registada com Aviso de Receção, subscrita por ambos os Embargantes e dirigida ao Gabinete de Empresas de Torres Vedras da CGD, datada de 26.09.2011, acompanhada do respetivo envelope postal, com a ref.ª CTT RC648073913PT, comprovativa do seu envio, onde, nessa data, é solicitada a apreciação e autorização da libertação dos avales e fianças, documento cujo teor se dá integralmente reproduzido, para todos os devidos e legais efeitos.
8)Quanto a tal documento, pronunciaram-se os Embargantes, em 27.04.2017, no sentido apenas da sua não admissão aos autos, não impugnando a sua veracidade nem a sua genuinidade, pelo que o mesmo foi dado como assente, alínea Y) dos factos assentes.
9)Foi proferido despacho a que alude o art.º 596º do CPC, onde consta como único Objeto do litígio o seguinte: «Desvinculação do avalista em branco ao acordo de preenchimento».
10)Salvo devido e merecido respeito, o Tribunal a quo julgou incorretamente a matéria de facto.
11)Com efeito, sempre com o devido e merecido respeito, que é muito, afigura-se à aqui Recorrente CGD que o decidido a fls… enferma de errada (i) valoração da prova documental e bem assim Testemunhal, produzida em sede de audiência de discussão e julgamento e de (ii) aplicação de direito, não tendo sido considerados todos os elementos constantes dos mesmos.
12)O concreto ponto da Matéria de Facto incorretamente julgada é: «a carta junta pelos Embargantes como Doc. 5 da petição de Embargos, datada de 22.09.2008 (alínea G) dos factos assentes), não mereceu qualquer aceitação por parte da Embargada»
13)Com efeito, embora não elencado na matéria de facto (assente ou não assente), devendo-o ser, a douta sentença parte do pressuposto, diga-se, com todo o devido e merecido respeito, que é muito, errado que «nunca o Banco exequente respondeu às missivas dos embargantes» - pág. 9 da sentença proferida pelo Tribunal a quo.
14)A resposta dada pelo Tribunal a quo teve como fundamentação o seguinte: «(nem sequer o alega, embora a testemunha Sofia C... tenha referido em audiência que foi comunicado aos clientes que a desvinculação não era “oportuna” – não pode deixar de se estranhar que a testemunha, decorridos mais de oito anos, se recorde do que foi comunicado aos clientes, salientando-se que a testemunha Paulo ..., que foi coordenador do Gabinete de empresas de Torres Vedras entre 2009 e 2012, disse não se recordar do tema da reunião que teve com o embargante)».
15)A decisão de facto, quanto a este ponto, foi incorretamente julgada pelo Tribunal a quo, porquanto, a fundamentação dada teria de considerar, por um lado, a prova testemunhal produzida pela Exequente (Testemunha Sofia C...), cujo depoimento não foi impugnado, seja de que forma o fosse, e por outro lado, a prova documental, nomeadamente carta registada com Aviso de Receção, subscrita por ambos os Embargantes e dirigida ao Gabinete de Empresas de Torres Vedras da CGD, datada de 26.09.2011, acompanhada do despectivo envelope postal, com a ref.ª CTT RC648073913PT, constante da alínea Y) dos factos assentes, bem como proceder à conjugação destes elementos probatórios com a total ausência de prova em contrário por parte dos Embargantes, o que não foi feito.
16)Indicam-se os concretos meios probatórios, constantes do processo e da gravação realizada, que impõem decisão sobre o ponto da matéria de facto impugnado diversa da recorrida:
17)Carta registada com Aviso de Receção, subscrita por ambos os Embargantes e dirigida ao Gabinete de Empresas de Torres Vedras da CGD, datada de 26.09.2011, acompanhada do despectivo envelope postal, com a ref.ª CTT RC648073913PT, comprovativa do seu envio, Doc. 1 junto ao Requerimento da Exequente de 26.04.2017, alínea Y) dos factos assentes.
18)Ao invés do referido na douta sentença recorrida, a CGD efetivamente alegou que o solicitado na carta dos Embargantes (Doc. 5 petição de embargos, alínea G) dos factos assentes) não foi aceite pela Embargada CGD, tendo invocado, em sede de Contestação, art.º 36º, que a carta junta pelos Embargantes como Doc. 5 da petição de Embargos, datada de 22.09.2008, «(…) não mereceu qualquer aceitação por parte da Embargada».
19)Consubstanciando o alegado supra lapso manifesto, o que aqui se invoca nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 614º do CPC, vem requer a V. Ex.a., nos termos e ao abrigo do n.º 1 e do n.º 2 da citada disposição, a retificação da mesma, no tocante a essa questão, e consequentemente, passando a constar que a CGD alegou que o solicitado na carta dos Embargantes (Doc. 5 petição de embargos, alínea G) dos factos assentes) não foi aceite pela Embargada CGD.
20)Na carta registada com Aviso de Receção, subscrita por ambos os Embargantes e dirigida ao Gabinete de Empresas de Torres Vedras da CGD, datada de 26.09.2011, é solicitada por estes a apreciação e autorização da libertação dos avales e fianças, .a qual foi dada como assente, alínea Y) dos factos assentes.
21)De tal documento, assente, resulta que os Embargantes, em 26.09.2011, ou seja, mais de três anos depois do envio da carta datada de 22.09.2008, e reunião tida na CGD, voltaram a solicitar a apreciação e autorização da libertação dos avales e fianças, que, afirme-se e sublinhe-se, também não mereceu a aceitação por parte da CGD.
22)Os Embargantes têm a perfeita noção que não houve qualquer pretensa aceitação por parte da CGD de desvinculação e/ou desoneração, aquando do envio da carta de 22.09.2008.
23)Caso contrário, não haveria qualquer motivo para, reitere-se, mais de três anos depois, voltarem a solicitar tal desvinculação.
24)Não corresponde à verdade que os Embargantes, «com o decurso do tempo, tenham criado a convicção de que o assunto estaria resolvido».
25)Tanto não tinham essa convicção que, em momento posterior, voltaram a solicitar perante a CGD a sua desvinculação.
26)Sendo o Embargante marido empresário, como respondeu aos costumes em sede de Declarações de Parte, nenhuma outra conclusão se poderá retirar, atentas as mais elementares regras de experiência.
27)Depoimento da Testemunha Sr.ª Dr.ª Sofia Isabel da ... ... C..., dia 27.04.2017, com início aos 00m02s e fim 26m17s.
28)O depoimento da Testemunha arrolada pela CGD, Sr.ª Dr.ª Sofia Isabel da ... ... C..., não foi devidamente considerado na fundamentação da decisão de facto, devendo-o ser, pelo que sempre tal decisão sofre de falta de fundamentação, por esse motivo.
29)Pela aludida Testemunha, como resulta do teor da transcrição integral do seu depoimento, que se junta às presentes Alegações, foi prestado depoimento idóneo e credível, demonstrando a mesma ter conhecimento direto dos factos, visto se encontrava a exercer funções na CGD, no gabinete de empresas de Torres Vedras desde 2007 a 2011, ou seja, em datas a que se reporta o título executivo.
30)Por outro lado, o seu depoimento não foi impugnado, seja de que forma o fosse, por parte dos Embargantes, cabendo-lhes tal ónus.
31)A aludida Testemunha confirmou, com certeza, sem margem para qualquer dúvida, que foi comunicado aos Embargantes a não aceitação do seu pedido de desvinculação, resultando do seu depoimento que esses factos são do seu conhecimento direto, e não apenas de “ouvir dizer”.
32)Indicam-se para tanto, com exatidão, as passagens da gravação em que se fundamenta o presente recurso: Início 03:54 / Fim 11:06; Início 11:41 / Fim 12:38; Início 13:36 / Fim 14:21; Início 15:09 / Fim 16:55; Início 20:43 / Fim 21:09; Início 21:55 / Fim 22:24;
33)Esta Testemunha afirmou com certeza e conhecimento direto, visto ter estado na reunião tida com o Embargante, que comunicou a este a não aceitação, por parte da CGD, do seu pedido de desvinculação, pelo que não existe qualquer factor estranho, ao contrário do que se refere na douta sentença recorrida (pág. 9).
34)Tal facto, que resulta da prova documental e testemunhal produzida em julgamento, é relevante para a análise e decisão da causa, pelo que deveria ser elencado na fundamentação de facto da douta sentença proferida pelo Tribunal a quo.
35)Acresce que, pelos Embargantes, não foi produzida qualquer prova, documental ou testemunhal, infirmativa dos factos que resultam da prova produzida pela Embargada.
36)Quanto à mesma matéria, também o depoimento da Testemunha Sr. Dr. Paulo Jorge ... ..., dia 16.02.2017, com início aos 01m03s e fim 38m14s.
37)Indicam-se para tanto, com exatidão, as passagens da gravação em que se fundamenta o presente recurso: Início 05:47 / Fim 05:49; 06:54 / Fim 07:52; Início 17:07 / Fim 20:15;
38)O depoimento da Testemunha Sr. Dr. Paulo ..., ao referir que não se recorda do teor da reunião, por um lado, não faz qualquer tipo de prova de que a CGD pretensamente não tenha comunicado a não aceitação do seu pedido de desvinculação, e, por outro lado, não põe em crise o depoimento da Testemunha arrolada pela CGD, Sr.ª Dr.ª Sofia Isabel da ... ... C..., uma vez que este, reitere-se, é um depoimento, idóneo, credível, confirmado com os esclarecimentos formulados, demonstrando ter conhecimento direto da questão.
39)Mais, para além do depoimento da Testemunha Sr. Dr. Paulo ... não fazer qualquer tipo de prova de que a CGD pretensamente não tenha comunicado a não aceitação do pedido de desvinculação dos avalistas, a verdade é que do mesmo se retira precisamente o contrário, ao afirmar que nunca poderia ter sido comunicado a estes, de forma verbal, a aceitação da sua desvinculação, uma vez que esta implicaria a existência de despacho interno nesse sentido e correspondente alteração contratual, que afirmou não existirem.
40)Diga-se, ainda, nada na lei obriga a que a aludida comunicação de não aceitação de eventual pedido de desvinculação tenha de ser formalizado por escrito
41)Junta-se igualmente transcrição integral do depoimento das Testemunhas Sr.ª Dr.ª Sofia Isabel da ... ... C... e Sr. Dr. Paulo J... ... ... onde se fundamenta o recurso sobre a Matéria de Facto.
42)Indica-se a decisão que deve ser proferida sobre a questão de facto impugnada:
- Provou-se, face ao teor da prova documental conjugada com a prova testemunhal, que a carta junta pelos Embargantes como Doc. 5 da petição de Embargos, datada de 22.09.2008 (alínea G) dos factos assentes), não mereceu qualquer aceitação por parte da Embargada.
43)Sem conceder ou transigir, no caso sub judicie, não há desvinculação válida, nem pode haver, por parte de qualquer dos Embargantes (aliás, no que toca à Embargante Srª Dª I.. de ... dos ... ..., a pretensa desvinculação feita por terceiros só seria válida se apresentada procuração com poderes expressos, note-se, para a desvinculação o que, basta compulsar os autos, não sucedeu), pelo que tem a CGD todo o direito de pedir – como pede – que os Embargantes satisfaçam as obrigações por estes contraídos, que são as que estão a ser pedidas e que os Embargantes persistem em não pagar.
44)A convicção dos Embargantes é irrelevante, antes de mais porque pertence ao seu foro privado e em segundo lugar porque a lei não tutela o que querem, isto é, não pagar as obrigações, emergentes da livrança, contraídas antes da alegada cessão de quotas.
45)O facto de o Embargante ter deixado de ser de sócio da ... II - IMOBILIARIA, LDA., de modo algum altera a situação em causa nestes autos de embargos.
46)A mera saída de sócio, sem ter sido celebrada alteração contratual ou prestada declaração de desoneração, em nada releva para a desvinculação dos Embargantes do aval por si prestado.
47)A douta sentença recorrida considerou que a falta de resposta por parte da CGD, S.A. à missiva em que os avalistas solicitavam a desvinculação, tornava eficaz a denúncia das obrigações decorrentes da prestação do aval, eficácia essa que considerou válida.
48)A CGD, S.A., portadora da livrança, vencida e não paga (sem conceder com o que atrás ficou alegado no tocante ao recurso da matéria de facto), não tem qualquer obrigação jurídica de responder às missivas que os avalistas lhe enviem.
49)Na verdade, o artigo 224.º do Código Civil não tem aplicação – qualquer aplicação – às relações jurídicas cartulares, estas constituem um ordenamento jurídico próprio só regido pelas suas próprias e especificas normas.
50)Não houve qualquer denúncia, pois não podemos tomar como denúncia e, menos ainda a um aval, missivas adrede enviadas pelo devedor inadimplente de um aval, para mais impondo obrigações a quem é seu credor.
51)Em sede de relações jurídicas mercantis o princípio que rege é o do favor creditoris.
52)Ao decidir deste modo considerou-se possível a desvinculação unilateral do avalista.
53)Uma declaração unilateral não é nem pode ser geradora de quaisquer  feitos.
54)É possível a desvinculação unilateral do fiador.
55)É impossível a desvinculação unilateral do avalista.
56)Como quer que seja, de acordo com a doutrina afirmada no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2013, publicado no Diário da República, 1ª Série, n.º 14, de 21 de Janeiro de 2013, págs. 433 e segts.:
«Tendo o aval o sido prestado de forma irrestrita e ilimitada, não é admissível a sua denúncia por parte do avalista, sócio de uma sociedade a favor de quem aquele foi prestado, em contrato em que a mesma é interessada, ainda que, entretanto, venha ceder a sua participação social na sociedade avalizada».
57)Ao subscrevê-lo dois dos Ilustres Conselheiros tomaram posição sobre o sentido do seu voto no aresto de Dezembro de 2008, que anos antes haviam subscrito. Assim, o Exm.º Conselheiro Dr. Garcia Calejo na sua Declaração de voto, esclareceu que, “…refletindo e reconsiderando a questão, decidi aderir em pleno à fundamentação e resolução do presente acórdão uniformizador” (AUJ, cit. lug., cit., pág. 442).
58)E, na declaração de voto do Exm.º Conselheiro Dr. Paulo Sá – que fora o relator do acórdão de 8 de Dezembro de 2008 – o mesmo escreveu que, “…não acompanho a fundamentação de que constitui, «…“um princípio geral de direito, só derrogável por expressa disposição legal, a livre denunciabilidade” das obrigações por tempo indeterminado» (AUJ, cit., lug., cit., pág. 441).
59)Foi este princípio geral, para mais afirmado num AUJ, que a douta sentença sob recurso negou, violando portanto, frontalmente o mencionado Acórdão de Uniformização de Jurisprudência.
60)Significa isto que o douto Acórdão do Venerando Supremo Tribunal de Justiça citado na sentença em recurso – o aresto de 8 de Dezembro de 2008 – não tem força fundamentadora para a sua conclusão.
61)Mas ainda que a tivesse, a sentença a quo,teria de ter em atenção o AUJ referido, o que manifestamente não fez. Na verdade, no dissídio Jurisprudencial surgido, esse AUJ tomou expressamente posição contra a tese sufragada no Acórdão de 8 de Dezembro de 2008.
62)Sem conceder, por mera hipótese de raciocínio, admita-se improceder o que fica acima alegado, ainda assim, sempre carece de fundamento o decidido na douta sentença recorrida, uma vez que a haver alguma pretensa nulidade, a mesma seria parcial, pois a própria desvinculação pressupõe que até esse instante houve vinculação (cf. obras citadas).
63)Acresce que, dos próprios factos provados nos autos resulta que neles não há qualquer, “…pretender perpetuar a obrigação de forma que se reputa excessiva…”.
64)Na presente execução, os Embargantes nada pagaram do que estava em dívida por força do aval.
65)A ser aceite esta maneira de perspetivar a presente matéria, sem conceder nem transigir, os avalistas que, depois de terem sido financiados, decidam não pagar, encontraram um processo fácil, rápido e muito expedito de, sem pagarem, se livrarem das suas dívidas: vendem as suas participações sociais na sociedade ou empresa societária financiada, em seguida escrevem ao banco comunicando que se pretendem desvincular, aguardam que o mesmo não responda – pois a CGD não tem qualquer obrigação de o fazer – e pronto, o assunto fica resolvida: dívida riscada, dívida apagada.
66)Diga-se, ainda, como também resulta da prova produzida, nunca houve qualquer compromisso, promessa ou proposta, por parte da CGD, de que as responsabilidades dos Embargantes nunca seriam exigidas ou de que seriam esquecidas.
67)A Exequente deu à execução um título de crédito, Livrança, cujos caracteres de (i) literalidade, (ii) abstração e (ii) autonomia, sobre os quais incidiu já vastíssima Doutrina e Jurisprudência, permitem concluir que a Livrança tem um valor próprio, máxime, valendo por si mesma - art.º 17º da LULL, aplicável à Livrança por força do art.º 77º do mesmo diploma.
68)A verdade é que, os Embargantes confessaram a Livrança dada à execução, o aval por si prestado e a qualidade em que nelas intervêm, o valor aposto na Livrança dada à execução e o integral, total e pleno incumprimento da obrigação a que os Embargantes estão vinculados.
69)Nem os factos articulados pelos Embargantes provam a modificação ou a extinção – parcial ou total – da dívida exequenda.
70)Em conclusão, nos presentes autos, foi pela Exequente provado: 1º - o título; 2º - a dívida, que resulta do mesmo; 3º - a qualidade dos executados; 4º - a falta de pagamento do título.
71)Em suma, em dívida exequenda está provada e não foi feita qualquer prova de qualquer facto extintivo ou modificativo da mesma, muito menos do seu pagamento, o qual nem sequer vem alegado pelos Embargantes e muito menos provado.
72)Pelo que, salvo o devido e merecido respeito, a douta sentença de 01.06.2017 sofre de errada aplicação de direito quando conclui no sentido inverso, impondo-se a sua revogação.
73)A douta sentença recorrida fez, assim, menos correta interpretação e aplicação da lei, violando, designadamente, as normas constantes dos art.º’s art.º 17º, 30º e 32º da LULL, aplicável à Livrança por força do art.º 77º do mesmo diploma e art.º’s 218º, 224º a contrario e 762º, todos do Código Civil.
74)E, bem assim, ao decidir pela forma como o fez, a douta sentença recorrida violou o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2013, publicado no Diário da República, 1.ª Série – n.º 14 – 21 de Janeiro de 2013, págs., 433 e segts.
Termos em que, deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser revogada a douta sentença recorrida e, em consequência:
- Ser alterada a decisão do Tribunal a quo sobre a matéria de facto, devendo ser dada a resposta supra indicada;
- Julgando-se os presentes Embargos de Executado integralmente improcedentes;
com as legais consequências, fazendo-se assim, como sempre, a acostumada Justiça!»

Contra-alegaram os apelados propugnando pela improcedência da apelação, mais requerendo a ampliação do objeto do recurso, passando o facto não provado sob 1 a facto provado.

QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[2]

Nestes termos, as questões a decidir são as seguintes:
i.Impugnação da decisão de facto;
ii.Desvinculação dos Embargantes enquanto avalistas em branco ao acordo de preenchimento.

Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade:
A.“Caixa Geral de Depósitos, S.A.” instaurou ação executiva para pagamento da quantia de € 261.922,30.
B.Constitui título executivo a livrança n.º 500467943022245910, emitida em 24/05/2005, com o montante de € 257.575,28, com vencimento em 04/02/2014, subscrita pela sociedade “... II – Imobiliária, Lda.”, avalizada por José Leonardo ..., Maria das Dores dos ... ..., Valentim ... ..., Maria ... Henriques dos ... ..., ... ... ..., Maria do Carmo dos ... ... ..., Joaquim ... ... e I.. ... ... ....
C.A livrança referida em B) não foi paga na data do seu vencimento, nem em momento posterior.
D.A livrança referida em B) foi entregue à exequente, em branco, para titulação de todas as responsabilidades decorrentes do contrato de abertura de crédito em conta corrente de utilização simples, outorgado em 02/05/2005, através do qual o Banco exequente concedeu à sociedade “... II – Imobiliária, Lda.” um financiamento sob a forma de abertura de crédito em conta corrente até € 100.000,00.
E.No contrato de abertura de crédito em conta corrente de utilização simples, outorgado em 02/05/2005, estipulou-se um prazo de seis meses, com início na data da perfeição do contrato, automaticamente renovado por períodos iguais e sucessivos.

F.Da cláusula 22ª do mesmo contrato consta que a primeira outorgante e os avalistas «autorizam desde já a Caixa a preencher a sobredita livrança, quando tal se mostre necessário, a juízo da própria Caixa, tendo em conta, nomeadamente, o seguinte:
a)- A data de vencimento será fixada pela Caixa quando, em caso de incumprimento pelos devedores das obrigações assumidas, a Caixa decida recorrer à realização coativa do respetivo crédito;
b)- A importância da livrança corresponderá ao total das responsabilidades decorrentes da presente abertura de crédito, nomeadamente em capital, juros remuneratórios e moratórios, comissões, despesas e encargos fiscais, incluindo os da própria livrança;
c)- A Caixa poderá incluir cláusula “sem protesto” e definir o local de pagamento.».

G.Por carta datada de 22/09/2008, dirigida ao gerente do balcão de Torres Vedras do Banco exequente, Joaquim ... ... requereu «autorização a fim de ficar desonerado de toda e qualquer obrigação bancária contraída na sua relação jurídica, que possui com a firma» “... II – Imobiliária, Lda.”, referindo que «a pretensão (…) assenta no facto de ir ceder a quota que possui na firma “... II – Imobiliária, Lda.”. Mais requereu «que a Senhora I.. de ... dos ... ..., a qual é casada com o requerente, fique também desonerada de toda e qualquer obrigação bancária que esteja subjacente à relação com a firma ... II, nomeadamente a sua condição de avalista».
H.Em 23/12/2008 o embargante Joaquim ... enviou ao Banco exequente um fax a solicitar uma resposta urgente à carta enviada no dia 22/09/2008.
I.Em 19/03/2009 foi deliberado em Assembleia-geral pelos sócios da “... II – Imobiliária, Lda.”, por unanimidade, autorizar a divisão de quota do sócio Joaquim ... ..., aqui embargante, em três quotas, aprovar a cessão de quotas do sócio Joaquim ... ... aos sócios José Leonardo ..., ... dos ... ... e Valentim ... ..., e aprovar a renúncia à gerência do sócio Joaquim ... ....
J.Em 22/07/2009 foi averbada à certidão de registo comercial da sociedade “... II – Imobiliária, Lda.” a cessão de funções de Joaquim ... ... à gerência, por renúncia.
K.Por carta datada de 27/08/2009 a sociedade “... II – Imobiliária, Lda.” comunicou ao Banco exequente que o embargante Joaquim ... ... já não fazia parte dos órgãos sociais da empresa desde 01/07/2009, deixando de ter todas as responsabilidades inerentes, remetendo cópia do registo da Conservatória.
L.O crédito emergente do contrato referido em D. destinava-se a apoiar a “... II – Imobiliária, Lda.” para ocorrer a necessidades temporárias de tesouraria.
M.Os embargantes prestaram o seu aval porque, à data, o embargante marido era sócio da sociedade subscritora da livrança.
N.À data da cessão de quotas (2009) a sociedade executada não estava em incumprimento relativamente ao contrato de conta caucionada.
O.Na data da cessão de quotas, a sociedade executada tinha registado a seu favor, pelo menos, quatro veículos automóveis e alguns imóveis para revenda.
P.Os sócios e gerentes da sociedade executada também possuíam património.
Q.O contrato de conta caucionado foi denunciado pelo Banco exequente por carta datada de 11/09/2012.
R.Em 2012 o co executado José Leonardo ... vendeu a terceiros um apartamento de que era proprietário na Quarteira.
S.Há cerca de oito anos o co-executado ... ... ... transferiu a propriedade da sua casa de morada de família para a filha.
T.Em 2012 o co executado Valentim ... ... vendeu a um terceiro um imóvel de que era proprietário.
U.O Banco exequente teve conhecimento da carta e fax referidos nas alíneas G e H.
V.O Banco exequente conhecia a situação patrimonial da sociedade executada.
W.Pelo menos os co executados José Leonardo ... e ... ... ... subsistiram, entre 2009 e 2013, dos proventos gerados pela sociedade executada (remuneração e lucros).
X.O contrato referido em D. foi, em 09/08/2006, objeto de alteração contratual, tendo então sido alterada, entre outras, a cláusula referente ao montante, que passou a ser até € 200.000,00.
Y.Por carta datada de 26/09/2011 os embargantes remeteram ao Banco exequente uma carta na qual solicitam «se dignem apreciar e autorizar a libertação dos nosso avales/fianças em operações de crédito (conta corrente caucionada e garantias bancárias, etc.) tituladas pela empresa ... II Imobiliária, Lda.”.

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.

Impugnação da decisão de facto.
A apelante Caixa Geral de Depósitos pretende que seja dado como provado que a carta junta pelos Embargantes como Doc. 5 da petição de embargos, datada de 22.9.2008 (alínea G) dos factos assentes), não mereceu qualquer aceitação por parte da Embargada ( conclusão 42ª). Tal alegação foi feita no artigo 36º da contestação dos embargos, onde a apelante afirmou: «A provar que o Embargante disso tem perfeita consciência, que da cessão de quotas não advém a perda de avalista, é que endereçou a carta, junta como doc. 5 da petição de embargos, onde expressamente solicita «autorização a fim de ficar desonerado», a qual não mereceu qualquer aceitação por parte da Embargada».    
      
Por sua vez, os apelados – em sede de ampliação do recurso – pretendem que o facto não provado sob 1 passe a constar com facto provado. O teor de tal facto é o seguinte: «Os embargantes prestaram o seu aval no pressuposto de uma obrigação de curto prazo», facto correspondente a parte da alegação do artigo 8º da petição de embargos.

Ora, o direito à impugnação da decisão de facto não subsiste a se mas assume um caráter instrumental face à decisão de mérito do pleito. Deste modo, por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objeto da impugnação for insuscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente.[3] Dito de outra forma, o princípio da limitação dos atos, consagrado no Artigo 130º do Código de Processo Civil ,  deve ser observado no âmbito do conhecimento da impugnação da matéria de facto se a análise da situação concreta evidenciar, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, que desse conhecimento não advirá qualquer elemento factual cuja relevância se projete na decisão de mérito a proferir – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.5.2017, Isabel Pereira, 4111/13.
É isso precisamente o que ocorre no caso em apreço.
Conforme se verá infra, a desvinculação do sócio avalista que supervenientemente perde tal qualidade pode derivar, em teoria, designadamente de resolução do pacto de preenchimento ou por força do instituto do abuso de direito.
Na petição de embargos, os embargantes invocam expressamente o abuso de direito (arts. 31 a 39 da petição de embargos), sendo certo que o tribunal pode subsumir a factualidade provada, sendo caso disso, à extinção da pré vinculação do avalista em branco por força da resolução (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil), modo de extinção de obrigações que não depende da aceitação do declaratário.
Neste contexto, o aditamento factual propugnado pela apelante – a proceder – só teria a virtualidade de afastar a pertinência da extinção das responsabilidades dos embargantes ao abrigo da revogação do pacto (acordo das partes) de preenchimento, nada bulindo com a sua extinção por  resolução ou neutralização por abuso de direito, como veremos infra. Deste modo, mesmo num cenário de procedência da pretensão, daí não derivaria qualquer elemento factual cuja relevância se projete na decisão de mérito a proferir.
O mesmo se diga quanto à pretensão de ampliação do objeto do recurso formulada pelos apelados. Com efeito, mesmo a provar-se tal facto, o mesmo não é necessário para a eventual procedência da extinção da responsabilidade dos embargantes por força da resolução do pacto de preenchimento ou por abuso de direito. Acresce que os embargantes assinaram o contrato de abertura de crédito em conta-corrente (fls. 23-29) na qualidade expressa de contraentes-avalistas, constando do mesmo um prazo de seis meses, “automaticamente renovado por períodos iguais e sucessivos” (Facto provado sob E) pelo que não se antevê como, concomitantemente, poderia ser dado como provado que «Os embargantes prestaram o seu aval no pressuposto de uma obrigação de curto prazo».

Termos em que, com os fundamentos enunciados, não se procede à apreciação da impugnação da matéria de facto.

Desvinculação dos Embargantes enquanto avalistas em branco ao acordo de preenchimento
O tribunal a quo julgou procedentes os embargos com fundamento na denúncia do aval prestado com base na seguinte fundamentação:
«Abuso de direito – desvinculação do avalista em branco ao acordo de preenchimento
Invocam os embargantes a atuação do exequente em abuso de direito decorrente da circunstância de ter acionado a livrança avalizada pelos embargantes quando o embargante marido era sócio da sociedade subscritora, cedida em data anterior ao incumprimento contratual.
Dispõe o artigo 334º do Código Civil que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico desse direito.
Vejamos.
Está assente nestes autos que a livrança dada à execução foi entregue ao Banco exequente em branco, para garantia de um contrato de abertura de crédito em conta corrente de utilização simples. Tal livrança foi subscrita pela sociedade executada, e avalizada pelos demais executados nos autos, todos eles sócios, à data da celebração do contrato (2005), da sociedade, e respetivos cônjuges.
O aval é o ato pelo qual um terceiro ou um signatário de uma letra/livrança garante o seu pagamento por parte de um dos seus subscritores – artigo 30º da LULL – assumindo, por isso, uma função de garantia. Especificamente, destina-se o aval a garantir o cumprimento pontual do direito de crédito cambiário, garantia que é prestada à obrigação cartular do avalizado.
Nos termos do disposto no artigo 32º da LULL, o dador de aval é responsável da mesma forma que a pessoa por ele afiançada.
Assim, se formalmente a obrigação do avalista depende da obrigação do avalizado, já materialmente constitui uma obrigação autónoma, pois assume a responsabilidade pelo pagamento da obrigação de forma abstrata e objetiva, subsistindo independentemente da obrigação do avalizado, e mantendo-se mesmo que a obrigação garantida seja nula, exceto se a nulidade desta provier de um vício de forma.
Compreende-se que assim seja, na medida em que o avalista obriga-se ao pagamento da quantia titulada no título (obrigação cartular), e não ao cumprimento da obrigação negocial (relação subjacente).
O aval é irrevogável. A questão está em saber se pode ou não o mesmo ser denunciado, admitindo a nossa jurisprudência que o mesmo o possa ser em determinadas circunstâncias, designadamente, tal como a situação dos autos, quando o contrato subjacente à emissão do título de crédito é um contrato de abertura de crédito sujeito a várias renovações e prorrogações, sob pena do vínculo obrigacional se tornar perpétuo, o que contraria a ordem pública [neste sentido, vide Acórdão do STJ de 02/12/2008 [processo 08A3600, relatado pelo Juiz Conselheiro, Dr. Paulo Sá, disponível in www.dgsi.pt].
Resulta dos factos provados que o contrato de abertura de crédito em conta corrente de utilização simples foi outorgado em 02/05/2005, estipulando-se um prazo de seis meses, com início na data da perfeição do contrato, automaticamente renovado por períodos iguais e sucessivos. Está também provado que o contrato foi denunciado em novembro de 2012 (ou seja, foi por treze vezes renovado).
Também resulta dos factos provados que o embargante, que foi sócio da sociedade subscritora da livrança, cedeu as quotas que detinha aos demais sócios no ano de 2009, tendo, antes e depois dessa cessão (logo em 2008 e pelo menos também em 2011), solicitado ao Banco exequente a sua desvinculação às garantias prestadas, com fundamento na cessão de quotas, assim como da embargante mulher.
Nunca o Banco exequente respondeu às missivas dos embargantes (nem sequer o alega, embora a testemunha Sofia C... tenha referido em audiência que foi comunicado aos clientes que a desvinculação não era “oportuna” – não pode deixar de se estranhar que a testemunha, decorridos mais de oito anos, se recorde do que foi comunicado aos clientes, salientando-se que a testemunha Paulo ..., que foi coordenador do Gabinete de empresas de Torres Vedras entre 2009 e 2012, disse não se recordar do tema da reunião que teve com o embargante), sendo por isso, parece-nos, legítimo que os embargantes, com o decurso do tempo, tenham criado a convicção de que o assunto estaria resolvido.
Não negando o Banco exequente ter recebido as missivas dos embargantes, há que concluir pela eficácia da declaração de denúncia – artigo 224º n.º 1 do Código Civil – considerando que a denúncia foi efetivada antes do preenchimento do título (muito antes, aliás).
A não se entender assim, ter-se-ia que concluir pela atuação contrária à ordem pública, ao pretender perpetuar a obrigação, de forma que se reputa, in casu, excessiva. Com efeito, foram várias as diligências efetuadas pelos embargantes no sentido de, formalmente, obterem uma resposta (e que mereciam ter recebido, pelo menos por cortesia) por parte da instituição bancária. Podia sempre a instituição bancária, se não tinha interesse em renovar o contrato sem o aval de todos os intervenientes iniciais, ter logo denunciado o contrato, ainda antes da cessão de quotas.
Procedem assim os presentes embargos, concluindo-se pela eficácia da denúncia do aval prestado.»

Não acompanhamos a fundamentação adotada pelo tribunal a quo.
O tribunal a quo começa por enquadrar a questão de direito sob o instituto do abuso de direito mas não exaure essa apreciação, derivando para a apreciação da denúncia do aval prestado, que considera eficaz.

Conforme já foi referido, a petição inicial dos embargos enquadra a pretensão de desvinculação dos embargantes, em primeira linha, no instituto do abuso de direito, particularmente quando é referido que: a livrança foi acionada seis anos depois dos embargantes se terem afastado da sociedade (art. 31); os embargantes confiaram que, tanto tempo depois de se terem apartado da sociedade subscritora, o banco exequente não acionaria o aval prestado (art. 32); é inadmissível e contrária à boa fé a conduta do banco exequente porquanto trai a confiança gerada nos executados (art. 33); o banco exequente demonstra falta de cuidado, deixando que a situação patrimonial e financeira da sociedade e dos atuais sócios se agravasse e que estes fugissem com todos os seus bens (art. 34); o banco exequente atuou com abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium pelo que está inibido de exercer o direito cambiário (art. 38).

E, de facto, o caso em apreço tem um enquadramento fáctico parcialmente sobreponível à situação analisada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.11.2013, Nuno Cameira, 1464/11, assim sumariado:
«IA proibição do comportamento contraditório configura atualmente um instituto jurídico autonomizado, que se enquadra na proibição do abuso do direito (art. 334.º do CC), nessa medida sendo de conhecimento oficioso; no entanto, não existe no direito civil um princípio geral de proibição do comportamento contraditório.
IISão pressupostos desta modalidade de abuso do direito – venire contra factum proprium – os seguintes: a existência dum comportamento anterior do agente suscetível de basear uma situação objetiva de confiança; a imputabilidade das duas condutas (anterior e atual) ao agente; a boa fé do lesado (confiante); a existência dum “investimento de confiança”, traduzido no desenvolvimento duma atividade com base no factum proprium; o nexo causal entre a situação objetiva de confiança e o “investimento” que nela assentou.
IIIO princípio da confiança é um princípio ético fundamental de que a ordem jurídica em momento algum se alheia; está presente, desde logo, na norma do art. 334.º do CC, que, ao falar nos limites impostos pela boa fé ao exercício dos direitos, pretende por essa via assegurar a proteção da confiança legítima que o comportamento contraditório do titular do direito possa ter gerado na contraparte.
IVAtua com abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, o banco que aciona uma livrança, que os executados avalizaram em branco, oito anos depois de estes se terem afastado da sociedade subscritora, na qual tinham interesse, tendo o exequente conhecimento que estes só avalizaram a livrança por serem pessoas com interesse na sociedade subscritora, sendo que, na altura do afastamento (meados de 2003), a conta caucionada de que a sociedade era titular encontrava-se regularizada e, posteriormente (já depois de 2004), o exequente, sabendo que os executados se sentiam desobrigados e que era bastante a garantia dos restantes avalistas, continuou a conceder crédito à sociedade através da renovação do contrato de abertura de crédito que tivera início em 03-07-2002.
VPerante estes dados de facto, verifica-se que os executados podiam fundadamente confiar que, tanto tempo depois de se terem apartado da sociedade subscritora, o banco não acionaria o aval que prestaram: é inadmissível e contrária à boa fé a conduta assumida pelo exequente, na exata medida em que trai a confiança gerada nos executados pelo seu comportamento anterior, confiança essa objetivamente reforçada pelo decurso de um tão dilatado lapso de tempo.»

No caso apreciado pelo STJ foi decisivo o facto provado consistente no seguinte: «10 -Quando a exequente renovou o acordo referido em 3) [abertura de crédito], depois de 2004, fê-lo sabendo que os oponentes/executados se sentiam desobrigados e que era bastante a garantia pessoal dos restantes avalistas», inexistindo facto equivalente no caso destes autos.

Na situação dos autos, está demonstrado que:
Os embargantes prestaram o seu aval porque, à data o embargante marido era sócio da sociedade subscritora da livrança (M));
Em 19.3.2009, ocorreu a cessão de quotas dos embargantes, a qual foi comunicada à exequente por carta de 27.8.2009, mais aí se afirmando «deixando de ter todas as responsabilidades inerentes.» (I) e K));
À data da cessão, a sociedade executada não estava em incumprimento em relação ao contrato de conta caucionada (N));
Na data da cessão de quotas, a sociedade e os cedentes tinham património (O) e P));
Em 26.9.2011, os embargantes remeteram ao banco exequente uma carta na qual solicitam “se dignem apreciar e autorizar a libertação dos nossos avales/fianças em operações de crédito (conta corrente caucionada e garantias bancárias, etc.) tituladas pela empresa ... II Imobiliária, Lda. ( Y));
A livrança que constitui título executivo tem data de emissão de 24.5.2005 e vencimento em 4.2.2014, após o que foi instaurada esta execução já em 2014 (B)).
Daqui decorre que entre a cessão de quotas dos embargantes (19.3.2009), sua comunicação ao banco exequente (27.8.2009) e a instauração da execução (necessariamente posterior a 4.2.2014) decorreram cerca de cinco anos.
Todavia, a factualidade referida é insuficiente para integrar o abuso de direito, quer na vertente de venire contra factum proprium quer na vertente de supressio.

A proibição do venire contra factum proprium constitui uma manifestação da tutela da confiança e tem como pressupostos:
a)Uma situação objetiva de confiança radicada numa conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura. "O ponto de partida é, pois, uma anterior conduta de um sujeito jurídico que, objetivamente considerada, é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também no futuro se comportará, coerentemente, de determinada maneira. Pode tratar-se de uma mera conduta de facto ou de uma declaração jurídico-negocial que, por qualquer razão, seja ineficaz e, como tal, não vincule no plano do negócio jurídico." - BAPTISTA MACHADO, "Tutela da confiança e "venire contra factum proprium" in João Baptista Machado, Obra Dispersa, 1991, p. 416.
A imputação concreta do facto ou situação geradora da confiança assente no princípio ético-jurídico da responsabilidade da pessoa pelos seus atos enquanto a pessoa se integra numa comunidade em que lhe é reconhecida a credibilidade própria de uma pessoa de juízo;
b)Investimento de confiança e irreversibilidade desse investimento. Ou seja, a necessidade da tutela jurídica apenas surge quando uma contraparte, com base na situação de confiança criada, toma disposições ou organiza planos de vida de que lhe surgirão danos, se a sua confiança legítima vier a ser frustrada, sendo "(...) preciso que esse "investimento" haja sido feito apenas com base na dita confiança" - B. Machado, Ibidem, p. 416. A irreversibilidade significa que o dano que provocaria a conduta violadora da fides não seja removível através de outro meio jurídico capaz de conduzir a uma solução satisfatória (v.g. direito de indemnização, enriquecimento sem causa, gestão de negócios).
c)Boa fé da contraparte que confiou. Deste modo, nos casos "(...) em que a intenção parente do responsável pela confiança diverge da sua intenção real (tais as hipóteses de dissenso oculto e de procuração aparente), a confiança do terceiro ou da contraparte só merecerá proteção jurídica quando esta esteja de boa-fé (por desconhecer aquela divergência) e tenha agido com cuidado e precauções usuais no tráfico jurídico." - Idem ibidem, p. 418.
O venire exige uma conduta ativa/positiva por parte de quem gera a confiança na contraparte, a qual pode ser lida como uma tomada de posição autovinculante em relação a dada situação futura. No caso em apreço, falece tal conduta positiva por parte do banco exequente de tal modo que, em 26.9.2011, os embargantes sentiram necessidade de dirigir ao banco exequente a carta enunciada sob o facto Y em que solicitam «se dignem apreciar e autorizar a libertação dos nossos avales». 

O que existiu foi uma atitude passiva por parte do banco exequente a partir do momento em que, por carta de 27.8.2009, lhe foi comunicada (por terceiro) a cessão de quotas, mais se afirmando nessa carta que o embargante deixava de ter as responsabilidades inerentes. No período posterior, o banco exequente denunciou o contrato de conta caucionada em 11.9.2012 e preencheu a livrança, apondo-lhe a data de 4.2.2014, após o que instaurou a execução.

Diz-se suppressio a situação do direito que, não tendo sido, em certas circunstâncias, exercido durante um determinado lapso de tempo, não possa mais sê-lo por, de outra forma, se contrariar o princípio da boa fé  [4] consagrada no Art. 762º do Código Civil - neste sentido, Menezes Cordeiro, Da boa fé no Direito Civil, II Vol., p. 797.

Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 2012, pp. 239-240, afirma que a suppressio é um subtipo do venire contra factum proprium, traduzindo «o comportamento contraditório do titular do direito que o vem exercer depois de uma prolongada abstenção. A abstenção prolongada no exercício de um direito, pode, em certas circunstâncias, suscitar uma expetativa legítima e razoável de que o seu titular o não irá exercer ou que haja renunciado ao próprio direito, ao exercício de algum dos poderes que o integram, ou a certo modo do seu exercício. Esta expectativa é atendível quando a sua criação seja imputável ao titular do direito e resulte de uma situação de confiança que seja justificada e razoável.»

Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, V Vol., 2011, p. 237, afirma que o papel indireto da supressio é o de complementar a área tradicional da prescrição e da caducidade, aperfeiçoando-a e diferenciando-a. Analisando este instituto, afirma o mesmo autor:
«O quantum de tempo necessário para concretizar a suppressio varia. Podemos, todavia, marcar balizas: será inferior ao da prescrição, ou a suppressio perderá utilidade; além disso, equivalerá àquele período decorrido o qual, segundo o sentir comum prudentemente interpretado pelo juiz, já não será de esperar o exercício do direito atingido.

Os indícios objetivos que complementam o decurso do prazo relacionam-se com a posição do titular atingido: este não deve surgir como impedido patentemente de atuar mas, antes, como pessoa consciente que, podendo fazê-lo, não aja.

A suppressio é apresentada como um instituto totalmente objetivo; não requer qualquer culpa do titular atingido, mas penas o facto da sua inação.

Considera-se a suppressio prejudicada pelos fatores voluntários que, nos termos a lei, interrompam ou suspendam a prescrição ou a caducidade: tais factos vêm destruir, por definição, a ideia de que o direito não mais será exercido.

Finalmente: a suppressio é entendida como um remédio subsidiário: acode a situações extraordinárias, que não encontrem saída perante os remédios normais [p. 322].
(…)
Por fim, a suppressio, justamente por não dispor da precisão facultada pelo factum proprium, vai requerer circunstâncias colaterais que melhor alicercem a confiança do beneficiário. Em suma, teremos de compor um modelo de decisão, destinado a proteger a confiança de um beneficiário, com as proposições seguintes:
-um não-exercício prolongado;
-uma situação de confiança;
-uma justificação para essa confiança;
-um investimento de confiança;
-a imputação da confiança ao não-exercente.
O não exercício prolongado estará na base quer da situação de confiança, quer da justificação para ela. Ele deverá, para ser relevante, reunir elementos circundantes que permitam a uma pessoa normal, colocada na posição do beneficiário concreto, desenvolver a crença legítima de que a posição em causa não mais será exercida. O investimento de confiança traduzirá o facto de, mercê da confiança criada, o beneficiário não dever ser desamparado, sob pena de sofrer danos dificilmente reparáveis ou compensáveis. Finalmente: tudo isso será imputável ao não exercente, no sentido de ser social e eticamente explicável pela sua inação. Não se exige culpa: apenas uma imputação razoavelmente objetiva [pp. 323-324].»
Sobre o instituto da suppressio na jurisprudência, cf. Acórdãos do STJ de 19.10.2000, Nascimento Costa, 2491/00, de 20.10.2011, Martins de Sousa, 369/2002, ambos acessíveis em www.colectaneadejurisprudencia.com , bem como o Acórdão de 11.12.2013, ... da ..., 629/10.

O decurso do tempo, só por si, é insuficiente para criar a convicção de que o direito não será exercido. Esse decurso do tempo há-de ser contextualizado por factos que permitam interpretar a inércia do credor como sedimentação de um propósito de não agir. Sucumbe tal contextualização; pelo contrário, a denúncia do contrato de conta caucionada em 2014 e o preenchimento da livrança com aposição da data de vencimento (4.2.2014) inculcam um propósito de não prescindir da garantia do aval. Também não estão demonstrados factos consubstanciadores de um investimento de confiança, no sentido de que os embargantes - convictos e movidos pela confiança do não acionamento do aval - tomaram medidas ou passaram a atuar em conformidade (v.g., dispondo de bens ou rendimentos que estavam preventivamente afetos a honrar o compromisso do aval), causando-lhe o exercício tardio do direito maiores desvantagens do que o seu exercício atempado.

Note-se que, consoante referido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8.7.2003, Oliveira Barros, 03B2060, comunicada ao banco a cessão de quotas levada a efeito pelos sócios, o silêncio do Banco a esse respeito, mesmo quando então não existisse qualquer dívida para com ele, não importa, a todas as luzes, a pretendida aceitação da desvinculação dos mesmos (que outrossim se não provou que tivesse sido expressa, como vinha articulado), e consequente revogação ou distrate do sobredito acordo de preenchimento.

Termos em que se conclui que os Embargantes não lograram demonstrar a exceção perentória do abuso de direito no acionamento da livrança.

O tribunal a quo considerou que a denúncia do aval prestado foi eficaz, fundamentando aí a procedência dos embargos.

Todavia, a denúncia do aval em si não é possível.

Nos termos do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 4/2013, “Tendo o aval sido prestado de forma irrestrita e ilimitada, não é admissível a sua denúncia por parte do avalista, sócio de uma sociedade a favor de quem aquele foi prestado, em contrato em que a mesma é interessada, ainda que, entretanto, venha a ceder a sua participação social na sociedade avalizada”. A doutrina deste acórdão uniformizador tem vindo a ser aplicada, de forma estrita, por múltiplos arestos, citando-se exemplificativamente os seguintes: Acórdãos da Relação de Guimarães de 16.6.2016, António Sobrinho,459/10, de 23.3.2017,Cristina Cerdeira, 1234/14; Acórdão da Relação de Coimbra de 25.2.2014, Manuel Capelo, 989/12; Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 28.10.2014, Dina Monteiro, 617/11, de 3.3.2016, 13074/14; Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 7.5.2014, Álvaro Rodrigues, 6961/08, de 13.1.2015, Garcia Calejo, 4813/11.

Contudo, a doutrina e âmbito do Acórdão Uniformizador foram objeto de um coro de críticas designadamente as formuladas por: Carolina Cunha, “Cessão de quotas e aval: equívocos de uma uniformização de jurisprudência”, in Direito das Sociedades em Revista, Ano 5, Vol. 9, pp. 91-113; Sara Aleixo, “O aval cambiário dos sócios em título em branco: a paradoxa solução do AUJ nº 4/2013”, in Revista de Direito das Sociedades, Coimbra, a.8 n.3 (2016), p.611-641; Januário Costa Gomes “O (in) sustentável peso do aval em livrança em branco prestado por sócio de sociedade para garantia de crédito bancário revolving: Acórdão de uniformização de jurisprudência nº 4/2013 de 11.12.2012, Proc. 5903/09”, In Cadernos de direito privado, Braga, n.43 (Jul.-Set.2013), p.15-47; Evaristo Mendes, “Aval prestado por sócios de sociedades por quotas e anónimas e perda da qualidade de sócio: apontamento”, in Revista de Direito das Sociedades, Coimbra, a.7 n.3-4 (2015), p.587-616; Filipe Cassiano ..., “Aval, livrança em branco e denúncia ou resolução de vinculação: anotação ao Acórdão de uniformização do STJ de 11-12-2012”,in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Coimbra, a.142, n.3980 (Maio-Jun. 2013), p.300-346.[5]

O principal ponto de convergência das críticas consiste em que a doutrina do acórdão uniformizador se reporta ao aval prestado a uma livrança completa e não ao aval prestado a uma livrança em branco.

Manuel Januário Gomes enfatiza que «a questão é colocada pelas factualidades do acórdão fundamento e do acórdão recorrido relativamente a uma realidade contratual pré-preenchimento do título – pré-cambiária -, mas o Supremo Tribunal de Justiça resolve-a como se o título estivesse completo e o aval fosse já cambiário» (Op. Cit., p. 35). Filipe Cassiano ... argumenta que “o AUJ circunscreve-se insofismavelmente ao aval, e não se pronuncia, como o haviam feito as anteriores decisões do Supremo, sobre a vinculação em letra ou livrança em branco – isto é, nada estabelece sobre a questão de saber se o sujeito que se vinculou pode, em algumas circunstâncias ou medida, obstar à formação do título tendo-o a si como avalista» (Op. Cit., p. 320). Carolina Cunha aponta como “primeiro reparo que o acórdão de uniformização de jurisprudência suscita, a quase completa desconsideração da diferença entre o regime a aplicar a um aval prestado sobre um título preenchido e ao aval aposto sobre um título cambiário em branco”, ignorando completamente “a norma-chave para a resolução das questões relacionadas com qualquer subscrição cambiária em branco: o artigo 10º da Lei Uniforme” (Op. Cit., p. 92).

A mesma autora retoma a análise desta matéria em Manual de Letras e Livranças, Almedina, 2016, pp. 207-221, frisando que o AUJ veio estabelecer a inadmissibilidade da denúncia do aval pelo sócio-avalista que cede a sua quota. Contudo, sustenta que «em certos casos (que contendam com financiamentos futuros) se pode justificar é uma resolução por justa causa (e não um denúncia ad libitum) do acordo de preenchimento (e não do negócio jurídico cambiário de aval – aliás, à data da cessão de quota não existe sequer um aval que possa ser denunciado, uma vez que ainda não estamos perante um título completo nos termos dos arts. 2º e 76º LU), em consequência da qual o subsequente acionamento do ex-sócio com base no título completado pelo banco-credor constitui um preenchimento abusivo,invocável e oponívelnos termos do art 10º a LU» (Op. Cit., p. 220). Entende a autora que não é exigível ao sócio, que abandona a sociedade, que durante anos continue a garantir as dívidas da sociedade, atinentes a financiamentos societários que não lhe vai ser dado apreciar ou controlar e de que não vai beneficiar minimamente. E prossegue: «a categoria jurídico-negocial da inexigibilidade remete-nos para o instituto da resolução por justa causa: a desvinculação unilateral em face do pacto de preenchimento corresponderá ao exercício de um direito de resolução. Não se trata, portanto, de uma resolução por incumprimento, cujo fundamento se busque no art. 801º, 1 CCiv; mas de uma faculdade reconhecida ao sócio-cedente por integração do acordo de preenchimento segundo a vontade hipotética das partes e os ditames da boa fé impostos pelo art. 239º CCiv. Este “critério normativo” em “articulação com o fim e o contexto de sentido do contrato concreto”, requer que, em casos como os que delimitámos, se constitua na esfera jurídica do sócio-cedente um direito de resolução. / E o reconhecimento de tal direito é, concomitantemente, uma exigência do mesmo padrão de ordem pública de proteção que, como vimos baliza as fronteiras de admissibilidade do próprio aval omnibus – ao sair da sociedade, mantendo-se avalista, o ex-sócio iria ficar sujeito a um fluxo de responsabilidade por si inabarcável e incontrolável, proveniente de dívidas futuras que não teria sequer meios de conhecer» (Op. Cit., pp. 210-211; confluindo quanto à faculdade de resolução de acordo com o Artigo 239º do Código Civil, Sara Aleixo, Op. Cit., p. 634).

Também Evaristo Mendes, “Aval prestado por sócios de sociedades por quotas e anónimas e perda da qualidade de sócio”, afirma que: «A perda da qualidade de sócio funciona como causa ou justificação do direito – de caráter negocial (apoiada na interpretação e integração da declaração de aval aposta no documento de livrança em branco, tendo designadamente em conta a sua finalidade, a razão que a justificou e a boa fé) e/ou de índole legal (resolução-redução por inexigibilidade, atendendo sobretudo à circunstância de o ex-sócio deixar de acompanhar a evolução da relação de negócios em apreço), que o ex-sócio exercerá ou não, como entender. » E prossegue: «No que respeita à forma de exercício do direito, coloca-se a questão de saber se a simples comunicação pelo sócio ao banco financiador e portador da livrança de que, por exemplo, cedeu a sua quota deve valer como tal; ou é necessária uma declaração expressa no sentido (i) de fazer cessar a garantia de cobertura da relação de negócios existente, limitando-a ao valor em dívida nessa altura, (ii) de se desvincular para o futuro, etc., usando fórmulas deste género ou semelhantes. Embora o assunto seja controvertido, não apenas em Portugal mas também no estrangeiro, mormente em França, consideramos que o sentido normal da comunicação é esse, ou seja, que ela contém uma declaração negocial com esse significado.»

A resolução opera por declaração recetícia dirigida ao banco, produzindo efeitos na data da receção (art 224º do Código Civil). Essa declaração de resolução pode ser mesmo tácita: «nos casos em que a (mera) cessão de quotas é comunicada ao banco pelos avalistas em branco, não só se torna evidente que o banco toma conhecimento da sua ocorrência, como, em função das circunstâncias concretas, será eventualmente possível ver nessa comunicação o facto concludente de uma declaração tácita de desvinculação» (Carolina Cunha, Op. Cit., p. 217, opinião já expressa anteriormente em Letras e Livranças, Paradigmas Atuais e Recompressão de um Regime, 2012, p. 615). Januário ..., Op. Cit., p. 44, Nota 70, adere a esta posição de Carolina Cunha.
Note-se que a resolução determina a imediata cessão do vínculo, produzindo o efeito extintivo logo que a declaração chega ao poder do destinatário (art. 224º do Código Civil, já citado), sendo insuscetível de revogação depois de recebida – cf. Pedro Romano Martinez, Cessação do Contrato, 3ª ed., p. 176.

A desvinculação por resolução produz meros efeitos ex nunc, projetando-se apenas para o futuro (Carolina Cunha, Op. cit., p. 215) e tem de ser exercida até ao momento do preenchimento da livrança porquanto se o preenchimento for feito antes de o portador do título receber qualquer comunicação com esse conteúdo o título passa a valer como título de crédito, fazendo surgir a obrigação cambiária e tornando-a exercitável com as características da literalidade e da abstração que lhe são próprias (cf. Acórdão da Relação do Porto de 17.3.2016, Aristides Almeida, 7133/12).

Esta desvinculação, operada ao nível do acordo de preenchimento, em nada bule com a doutrina do Acórdão Uniformizador nº 4/2013 porquanto não estamos em sede de denúncia do aval.

Operando a desvinculação ao nível do acordo de preenchimento, «Quer isto dizer que o aval permanece exarado na livrança, mas caso esta venha a ser completada para cobertura de responsabilidades societárias posteriores à saída do sócio e este acionado para cumprir a suposta obrigação cambiária, nos encontramos perante uma hipótese de preenchimento abusivo, i.e., contrário ao que resulta do pacto de preenchimento que foi subjetivamente alterado com a desvinculação do ex-sócio. O sucesso da invocação desta exceção de preenchimento abusivo, cujo ónus está a cargo do sócio-avalista em branco, depende, naturalmente, da prova da má-fé ou falta grave do portador da letra (art. 10.º da LU) – o que no caso não será difícil, um vez que a livrança não circulou: encontra-se nas mãos do banco, credor originário que junto com o ex-sócio celebrou o pacto de preenchimento e a cujo conhecimento foi levada a declaração por meio da qual este fez cessar, válida e eficazmente, a sua vinculação a esse pacto» (Carolina Cunha, “Cessão de quotas e aval: equívocos de uma uniformização de jurisprudência”, in Direito das Sociedades em Revista, Ano 5, Vol. 9, p. 104).

Posto isto e revertendo à matéria factual em apreço, temos que:
a.O contrato de abertura de conta-corrente foi outorgado em 2.2.2005, estipulando-se um prazo de seis meses, automaticamente renovado por períodos iguais e sucessivos (E );
b.Os embargantes constituíram-se como avalistas em branco para garantia do bom cumprimento de tal contrato (B e D);
c.Tal contrato só foi denunciado pelo banco por carta de 11.9.2012 (Q);
d.Em 19.3.2009 ocorreu a cessão de quotas dos embargantes/avalistas em branco, registada em 22.7.2009 (I e J);
e.Por carta datada de 27/08/2009 a sociedade “... II – Imobiliária, Lda.” comunicou ao Banco exequente que o embargante Joaquim ... ... já não fazia parte dos órgãos sociais da empresa desde 01/07/2009, deixando de ter todas as responsabilidades inerentes, remetendo cópia do registo da Conservatória (K);
f.O preenchimento da livrança é posterior a tal carta (Q e B).
Deste acervo de factos que o contrato de abertura de crédito em conta-corrente tinha, à partida e teve na prática uma duração indefinida (pelas prorrogações automáticas) e prolongada, vinculando-se os avalistas em branco a uma responsabilidade sem termo temporal certo previamente definido. Atenta a ocorrida cessão de quotas, nesse contexto, gerou-se o direito dos embargantes resolverem por justa causa o pacto de preenchimento.

Contudo, os embargantes não resolveram o pacto de preenchimento junto do banco através de uma declaração, mesmo tácita (cf. supra). Com efeito, a carta referida em e. foi remetida pela sociedade “... II – Imobiliária, Lda.”, sociedade de que os embargantes já não eram sócios nem representantes sequer. A declaração de resolução tem de ser efetuada pelo próprio, por procurador ou por núncio. No caso, não ocorreu nenhuma das três hipóteses face à escassa matéria de facto apurada. Na verdade, o núncio transmite uma declaração consumada de outrem, recebendo um mandato especificado e imperativo – Carlos Mota Pinto, Teoria Geral do Direto Civil, 4ª Ed., p. 543. Na definição de Raul Guichard, “Sobre a distinção entre núncio e representante”, in Scientia Iuridica, T. 44, n. 256-258, p. 317, o núncio ativo transmite uma declaração da autoria de outrem, que não resulta da sua vontade, sendo, neste sentido, um mero meio de que se serve o principal. Ora, não está demonstrado – nem há que presumi-lo – que os embargantes tenham encarregue tal sociedade de efetuar tal comunicação ao banco (facto material objetivo) e, muito menos, com o intuito de assim se desvincularem do pacto de preenchimento do aval.

Na carta remetida pelos embargantes ao banco, em 26.9.2011, aqueles solicitam «se dignem apreciar e autorizar a libertação dos nosso avales/fianças em operações de crédito (conta corrente caucionada e garantias bancárias, etc.) tituladas pela empresa ... II Imobiliária, Lda.”. Embora não seja exigível às partes, quando não assistidas por advogado, a utilização de terminologia jurídica apropriada, o certo é que esta carta não expressa uma vontade unilateral dos embargantes se desvincularem - sem mais e independentemente da posição que o banco assumiria - do pacto de preenchimento mas, pelo contrário, formula uma proposta de revogação por acordo de tal pacto de preenchimento (“apreciar e autorizar a libertação dos nossos avales”). Constituem realidades distintas afirmar algo equivalente a “na sequência da cessão de quotas, já não respondemos pelos avales” (manifestação unilateral de vontade ao alcance de qualquer cidadão) ou, diversamente, procurar o assentimento do banco para uma desvinculação (“apreciar e autorizar a libertação dos nossos avales”). A carta remetida pelos embargantes, em 22.9.2008 ainda antes da cessão de quotas, tem um teor equivalente e deve ser valorada nos mesmos termos que a carta de 26.9.2011.

Pelo exposto, infere-se que os embargantes não se desvincularam, validamente, por resolução do pacto de preenchimento da livrança, razão pela qual subsiste a sua responsabilidade perante o banco embargado.

DECISÃO.
Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se na íntegra a sentença da primeira instância e decretando-se a improcedência dos embargos de executado.
Custas pelos apelados (art. 527º, nº1 e nº2 do Código de Processo Civil).



Lisboa, 20.12.2017



                                  
(Luís Filipe Sousa)                                 
(Carla Câmara)                                  
(Higina Castelo)



[1]Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pp. 84-85.
[2]Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 87.
Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas ..., 07P2433, de 9.4.2015, ... Miguel, 353/13.
[3]Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27.5.2014, Moreira do Carmo, 1024/12.
No Acórdão da mesma Relação de 24.4.2012, Beça Pereira, 219/10, escreveu-se a este propósito:
«A impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, consagrada no artigo 685.º-B, visa, em primeira linha, modificar o julgamento feito sobre os factos que se consideram incorretamente julgados. Mas, este instrumento processual tem por fim último possibilitar alterar a matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada, para, face à nova realidade a que por esse caminho se chegou, se possa concluir que afinal existe o direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro cuja existência se reconheceu; ou seja, que o enquadramento jurídico dos factos agora tidos por provados conduz a decisão diferente da anteriormente alcançada. O seu efetivo objetivo é conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada, de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante.
Se, por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for, "segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito", irrelevante para a decisão a proferir, então torna-se inútil a atividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente inócuo ou insuficiente.
Quer isto dizer que não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objeto da impugnação não for suscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, antemão, ser inconsequente, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processual consagrados nos artigos 2.º n.º 1, 137.º e 138.º.»
No acórdão da mesma Relação de 14.1.2014, Henrique ..., 6628/10, a mesma ideia é assim expressa:
«De harmonia com o princípio da utilidade a que estão submetidos todos os atos processuais, o exercício dos poderes de controlo da Relação sobre a decisão da matéria de facto da 1ª instância só se justifica se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa (artº 137 do CPC de 1961, e 130 do NCPC).
Se o facto ou factos cujo julgamento é impugnado não forem relevantes para nenhuma das soluções plausíveis de direito da causa é de todo inútil a reponderação da decisão correspondente da 1ª instância. Isso sucederá sempre que, mesmo com a substituição, a solução o enquadramento jurídico do objeto da causa permanecer inalterado, porque, por exemplo, mesmo com a modificação, a factualidade assente continua a ser insuficiente ou é inidónea para produzir o efeito jurídico visado pelo autor, com a ação, ou pelo réu, com a contestação.
Portanto, a reponderação apenas deve incidir sobre os factos que sejam relevantes para a decisão da causa, segundo qualquer das soluções plausíveis da questão de direito, i.e., segundo todos os enquadramentos jurídicos possíveis do objeto da ação.»
[4]Nos termos do Art. 762º, nº2 do Código Civil, "No cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé."
A boa fé constitui uma cláusula geral que carece da mediação concretizadora do juiz . "(...) este deverá partir das exigências fundamentais da ética jurídica, que se exprimem na virtude de manter a palavra e a confiança, de cada uma das partes proceder honesta e lealmente, segundo uma consciência razoável, para com a outra parte, interessando as valorações do círculo social considerado, que determinam as expectativas dos sujeitos jurídicos." A. COSTA, Direito das Obrigações, 5ª ed., pg. 94. Na formulação do Acórdão do STJ de 10.12.91, Fernando Fabião, BMJ nº 412, pg. 459 e ss., agir de boa fé no contexto do Art. 762º do Código Civil é agir com diligência, zelo e lealdade correspondente aos legítimos interesse da contraparte, é ter uma conduta honesta e conscienciosa, uma linha de correção e probidade, a fim de não prejudicar os legítimos interesses da contraparte e não proceder de modo a alcançar resultados opostos aos que uma consciência razoável poderia tolerar.
A boa fé a que se reporta o aludido preceito integra uma norma de conduta das partes, impondo uma diretriz para temperar uma interpretação e um desempenho estritos ou abusivos da relação obrigacional. A concretização dessa diretriz pode ter como consequência que se modifique, amplie ou restrinja o conteúdo atribuído à prestação pela mera letra do negócio ou da lei, fixando-se também a medida em que ao credor incumbe cooperar no ato de cumprimento. A concretização da boa fé tem de partir da regulação contratual instituída entre as partes pelas declarações negociais de modo a apurar aquilo que um contraente razoável há de ter de aceitar como implicado pelo desenvolvimento adequado e justo do sentido contratual.
[5]Com uma recensão destas críticas, veja-se também o Acórdão da Relação do Porto de 16.6.2016, Pedro Martins, 1187/06.4TBVNG-A, acessível em www.outrosacordaostrp.com.