Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3820/07.1TVLSB.L2-1
Relator: GRAÇA ARAÚJO
Descritores: ARRENDAMENTO
SENHORIO
OBRAS
INQUILINO
ABUSO DE DIREITO
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/14/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – No âmbito da valoração da matéria de facto, limitado que está pelo princípio do dispositivo, o juiz não pode responder algo mais ou algo diverso do que foi quesitado.

II. Quando tal acontece – e na ausência de preceito que directamente estabeleça a respectiva consequência – deve considerar-se não escrita a parte da resposta excessiva ou exorbitante por aplicação analógica do disposto no nº 4 do artigo 646º do Cód. Proc. Civ.

III. Em abstracto, o inquilino tem direito de exigir a reparação e conservação do imóvel arrendado e o dever de o senhorio a elas proceder (artigo 1031º-b) do Cód. Civ.).

IV. Sabido é que uma das categorias de comportamentos abusivos que cabe no princípio ínsito no artigo 334º do Cód. Civ. é a do “desequilíbrio no exercício de posições jurídicas”, no âmbito da qual se encontra a desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem.

V. Se é certo que a desproporção entre o rendimento que o senhorio obtém do prédio e o valor das obras a cuja realização está adstrito constitui um aspecto objectivo facilmente apreensível e com um peso significativo na ponderação do manifesto excesso a que alude o artigo 334º do Cód. Civ., “naturalmente que tudo tem de ser perspectivado em função das circunstâncias do caso concreto”

VI. Sucede que, no que toca ao rendimento do prédio,como resulta da conjugação da certidão do registo predial, caderneta predial e escritura pública de compra e venda e, bem assim, dos autos de vistoria da Câmara Municipal, o prédio em causa tem seis pisos, sendo que, do rés-do-chão ao quarto andar, há dois apartamentos por piso e, nas águas-furtadas, há cinco apartamentos. Deste modo,

VII. o que releva para efeitos de rendimento do prédio não é, apenas, o valor das rendas recebidas pelos três fogos que se acham arrendados, mas o que a autora/apelante obteria se tivesse arrendado os apartamentos que se acham vagos e se tivesse actualizado, ao abrigo da lei, as rendas dos andares ocupados (a própria autora referiu, na petição inicial, não ter procedido a actualizações).

VIII. E, como nada foi alegado no tocante ao valor por que cada um dos apartamentos poderia ser arrendado, não pode concluir-se, com segurança, existir manifesta desproporção entre os valores que importaria considerar.

IX. Por outro lado, pouco há de comum entre a situação da autora e a situação daqueles senhorios que foram surpreendidos pelo “congelamento de rendas” e, simultaneamente, por anos de elevada inflação, visto que a autora comprou o prédio, em 1991, encontrando-se devolutos apenas quatro fogos, sendo certo que, actualmente, só três estão ocupados.

X. Ou seja, por sua própria iniciativa ou por qualquer outra razão, a autora libertou-se de relações locatícias em que as rendas, porventura, estavam longe de corresponder aos valores de mercado, alcançando uma situação em que podia livremente negociar valores e períodos de vigência contratual, sem sujeição às apertadas regras dos arrendamentos vinculísticos do passado.

XI: Não estando provado que, actualmente, haja perspectivas de demolição do edifício, equacionando-se, agora, tão-só a recuperação do prédio, por um lado e não vindo demonstrada a inviabilidade técnica das obras ordenadas, resulta não ser possível concluir pelo abuso da pretensão da ré.

XII. A possibilidade de compensar danos não patrimoniais em sede de responsabilidade contratual é já maioritariamente defendida pela jurisprudência.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

K (Portuguesa), Lda. propôs contra MF acção declarativa de condenação, sob forma comum e processo ordinário.

Após vicissitudes várias, veio a autora apresentar – e o tribunal a admitir – nova petição inicial, desta feita contra aquela ré e contra MMF e marido e LJ, pedindo, a final, que:

i) seja decretado o despejo das rés, ordenando-se a desocupação imediata dos locados e a sua entrega à autora, podendo estas optar pela reocupação em fracção do edifício a construir ou por indemnização;

ii) durante o período de realização das obras de demolição e construção do novo edifício, os contratos de arrendamento devem ser suspensos, podendo as rés optar entre o realojamento ou indemnização;

iii) sejam as rés condenadas a pagar à autora a indemnização que se mostrar suficiente para esta recuperar a remuneração financeira do investimento realizado pela aquisição do imóvel que deixou de auferir, bem como recuperar o não recebimento da mais-valia desse investimento, mediante a venda das fracções constituendas, reparar as despesas entretanto liquidadas e a remuneração bruta que deixou de auferir por ter afectado fundos próprios para fazer face a tais despesas, pagar as despesas a que haja lugar, por via de renovação de licenças camarárias ou a sua reemissão e com previsível alteração aos projectos aprovados em virtude da depreciação gradual do estado do imóvel, e ainda os danos patrimoniais porventura causados a terceiros por esse mau estado de conservação do prédio, relegando-se a sua liquidação para momento ulterior.

As três rés apresentaram contestação.

Na parte que agora importa considerar, a 1ª ré alegou, em reconvenção e resumidamente, que: foi sempre ela a providenciar por todas as obras de reparação, conservação e beneficiação do locado, cujo custo estima em 25.000,00€; ao invés, e a partir de certa altura, a autora descurou a conservação e limpeza do prédio, agindo, até, no propósito de o deteriorar; a falta de reparação de deficiências já provocou o corte do fornecimento de gás.

E concluiu, pedindo que:

a) Seja a autora condenada a abster-se de quaisquer actos que perturbem ou ofendam a fruição e habitabilidade do .. andar …, arrendado á ré;

b) seja a autora condenada a manter e a proceder a todas as obras necessárias à reposição e manutenção das condições de habitabilidade do prédio, sendo ainda condenada a proceder de imediato às obras de reparação da conduta geral do gás, para ser reposto de imediato o respectivo fornecimento;

c) seja a autora condenada a não poder dar início a quaisquer obras de demolição do prédio e/ou transformação deste sem que estejam previamente salvaguardadas as relações locatícias;

d) seja a autora condenada a indemnizar a ré pela quantia de 25.000,00€, correspondente aos danos materiais sofridos e, bem assim, pelos danos morais e patrimoniais que se verificarem no futuro, a liquidar em execução de sentença.

Mais requereu a condenação da autora em multa e indemnização por litigância de má-fé.

A autora replicou.

A convite do tribunal, a autora, a 1ª ré e a 3ª ré complementaram os seus articulados, com subsequentes respostas das partes contrárias.

A 1ª ré articulou factos supervenientes, pedindo que a acção fosse julgada improcedente e, por a autora ter omitido factos relevantes, seja condenada como litigante de má-fé em multa e indemnização no valor de 30.334,00€.

A autora respondeu, negando o conhecimento dos factos em causa e, bem assim, ter litigado de má-fé.

O tribunal julgou, então, extinta a instância, por impossibilidade superveniente, no que concerne aos pedidos formulados pela autora e quantos aos pedidos reconvencionais constantes das alíneas a), c) e d) (neste caso, quanto à indemnização por benfeitorias) formulados pela 1ª ré, mais considerando não se verificar litigância de má-fé por banda da autora.

E, determinando o prosseguimento do processo para apreciação dos pedidos reconvencionais formulados pela 1ª ré nas alíneas b) e d) (neste caso com exclusão das benfeitorias) da sua contestação, procedeu à condensação do processo.

Efectuada perícia e realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que, julgando a reconvenção parcialmente procedente, condenou a autora a:

“I - proceder a todas as obras necessárias para reposição e manutenção das condições de habitabilidade da fracção arrendada e das partes comuns do prédio na medida em que a segurança e salubridade das mesmas se repercuta na fruição da fracção arrendada, o que implica nomeadamente a condenação da Autora/Reconvinda a:

a) Limpar e manter limpo o quintal traseiro;

b) Fechar as janelas dos andares vagos e das trapeiras e mantê-las fechadas;

c) Substituir os vidros quebrados das janelas;

d) Reparar a caixa de correio correspondente à fracção arrendada à Ré;

e) Limpar e manter limpos os andares vagos de modo a evitar o aparecimento de insectos;

f) Limpar e manter limpo o ralo de escoamento das águas pluviais do logradouro;

g) Substituir os pisos feitos em madeira sob e sobre o andar arrendado à Ré por piso novo;

h) Reparar o pavimento das varandas do andar arrendado à Ré e andares que estão por cima do mesmo e respectivas corrosões;

i) Reparar as fissuras internas e externas do andar arrendado à Ré;

j) Substituir as escadas de acesso ao andar arrendado à Ré e reparar as paredes dessas escadas;

k) Corrigir os desníveis nas aduelas das portas do andar arrendado à Ré;

l) Proceder a reparação do telhado de modo a que o mesmo cumpra a sua função com total estanquicidade;

m) Repor em funcionamento e em condições de segurança a coluna do gás de modo a fornecer a Ré;

II – pagar à Ré as quantias de € 750 a título de danos patrimoniais e € 4.000 a título de danos não patrimoniais.”.

A autora interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

a) No âmbito do presente recurso, pretende-se impugnar a decisão proferida, quer sobre a matéria de facto, solicitando-se a sua reapreciação e alteração nos termos do disposto nas alíneas a) e b) do art. 712º do CPC;

b) De facto, em primeiro lugar, requer-se que, seja alterada a resposta dada aos Quesitos 1º e 2º da Base Instrutória (correspondentes aos factos dados como provados sob os nºs 42º e 43º da sentença) – A Autora tem deixado abertas as janelas de alguns andares que vagaram no prédio referido em B) - Bem como as janelas das trapeiras – considerando que, os mesmos devem ser considerados como não provados;

c) Efectivamente, a verdade é que, em relação a tal matéria, a sentença ora recorrida fez tábua rasa do depoimento de parte prestado pelo seu legal representante, AK, bem como do depoimento das testemunhas arroladas pela Recorrente, FC e AJ, já anteriormente transcritos e, ainda, do depoimento prestado pela testemunha arrolada pela Reconvinte, Lígia Jacques, igualmente transcrito;

d) Ora, tendo em consideração o teor dos referidos depoimentos, não restam dúvidas que, as janelas que se encontravam partidas, na sequência da desocupação dos referidos andares por parte dos anteriores arrendatários, foram sendo reparadas pela K…, não existindo, presentemente, quaisquer janelas abertas;

e) Além de que as referidas testemunhas foram unânimes em reconhecer que não podiam imputar qualquer responsabilidade à Recorrente, no sentido de, ter sido esta entidade a deixar propositamente as janelas abertas, motivo pelo qual, os referidos quesitos deveriam ser considerados como não provados;

f) Em segundo lugar, requer-se que, seja alterada a resposta dada ao Quesito 4º da Base Instrutória (correspondente ao facto dado como provado sob o nº 45 da sentença) – O telhado permite a entrada de chuva no prédio;

g) Ora, a verdade é que tal quesito jamais poderia ter sido dado como provado, na medida em que é totalmente contrariado quer pelo depoimento das testemunhas arroladas pela Recorrente, quer pelo próprio depoimento das três testemunhas arroladas pela Reconvinte, AF, MMF e LJ, cfr. anteriormente transcritos;

h) De facto, em relação a tal matéria, não só se encontra provado que, pelo menos nos anos de 1992 e 1997, o telhado do referido prédio urbano sofreu profundas obras de conservação, como também, foi o mesmo intervencionado no ano de 2007/2008, não se tendo verificado quaisquer infiltrações ou inundações provenientes do mesmo, desde essa data;

i) Ou seja, inclusivamente, todas as testemunhas arroladas pela Reconvinte, foram unânimes em reconhecer que, pelo menos, há mais de 4 (quatro) anos que, não se verificam quaisquer infiltrações provenientes do telhado;

j) Finalmente, em relação à matéria de facto, igualmente se requer a alteração da resposta dada ao quesito 19º da Base Instrutória (correspondente ao facto dado como provado sob o nº 56º da sentença) – A Ré, MFF, vive sobressaltada com receio de queda de estuque dos tectos;

k) Ora, na verdade, a resposta a este quesito está directamente relacionada com a resposta dada ao quesito anterior, cuja alteração igualmente se requer;

l) Isto porque, se é unanimemente reconhecido que há mais de 4 (quatro) anos não se verificam infiltrações provenientes do telhado, se o episódio ocorrido em 2007/2008 foi uma situação única e esporádica, se a ora Recorrida vive no imóvel arrendado há mais de 30 (trinta) anos, sem que tenha ocorrido qualquer situação do mesmo género, é por demais evidente, não se concede, que a mesma viva permanentemente sobressaltada com receio de queda de estuque dos tectos, proveniente das infiltrações do telhado;

m) O presente recurso, tem igualmente, por objecto, a impugnação da matéria de direito, discordando-se profundamente da mesma, ao julgar parcialmente procedente a reconvenção deduzida pela Reconvinte, condenando a senhoria a proceder à execução das obras infra melhor identificadas e, ainda, no pagamento da quantia de € 4.000,00 (quatro mil euros) a título de indemnização por danos não patrimoniais;

n) De facto, em relação à condenação da Recorrente na execução das referidas obras, não podemos deixar de considerar que, no caso sub judice, estamos perante uma verdadeira situação de abuso de direito;

o) Efectivamente, a questão chave que aqui se coloca à apreciação de V. Exªs reside em saber se é exigível, a pedido do inquilino, a condenação de um senhorio na realização de obras no locado cujo encargo o art. 1031º alínea b) do CC atribui ao mesmo, quando entre o valor das mesmas obras e o valor da renda paga pelo locatário haja uma desproporção excessiva, sendo manifestamente abusiva tal pretensão, nos termos do disposto no art. 334º do CC;

p) No caso sub judice, encontra-se provado nos presentes autos, que estamos perante um edifício de grandes proporções, encontrando-se apenas arrendadas três fracções autónomas (o terceiro andar direito, o rés-do-chão direito e o segundo andar esquerdo), contabilizando-se o rendimento mensal global no valor de € 267,28, o que se traduz num rendimento anual de € 3.207,36€;

q) Por outro lado, a sentença ora recorrida considerou provado que, na sequência das obras já efectuadas pela Recorrente no referido prédio urbano, desde a data da sua aquisição até ao ano de 2002, foi despendida a quantia de cerca de € 175.000,00, investimento este, que demorará cerca de 55 (cinquenta e cinco) anos, até a Recorrente obter o seu retorno;

r) Por outro lado, de acordo com o facto nº 63 dado como provado na sentença recorrida, bem como pelo teor do relatório pericial já junto aos presentes autos, a recuperação do prédio, sem contar com a reconstrução interior do edifício, importará numa quantia entre € 900.000,00 a € 1.080.000,00, pelo que, mesmo que, a Recorrente não proceda à execução integral das obras de recuperação do prédio, nunca irá despender na execução das obras ora impostas, quantia inferior a € 150.000,00;

s) O que demonstra, por si só, uma clara desproporcionalidade com o rendimento proporcionado pelo locado, não sendo por isso exigíveis;

t) Por outro lado, resulta igualmente dos factos dados como provados na sentença ora recorrida, de que, não só as referidas obras são inviáveis do ponto de vista financeiro, como também o são, do ponto de vista técnico;

u) De facto, encontra-se provado que, não só todas as obras anteriormente executadas pela Recorrente vieram a revelar-se insuficientes para reabilitar o edifício face ao estado de degradação do mesmo e dos materiais que compõem a sua estrutura, como também, em função dos movimentos e pressões da estrutura do edifício não existe garantia de que as fissuras depois de reparadas não venham a revelar-se novamente (cfr. factos nºs 57 e 62º dados como provados);

v) Acresce que, por exemplo, no que se refere ao fornecimento do gás, não obstante, há mais de 4 anos, os respectivos arrendatários já se encontrarem a utilizar gás de botija, o problema existente obrigará a ora Recorrente a proceder á instalação e execução de uma nova coluna de abastecimento em todo o prédio, com custos elevadíssimos, sem que exista uma segurança de que a mesma ficará em condições, além de que, não nos podemos esquecer que a ora Recorrente tem pendente na Câmara Municipal de … um projecto tendente á demolição do referido prédio urbano, pelo que, a manter-se a presente decisão, poderá ocorrer ver-se a ora senhoria obrigada a executar obras de avultado custo financeiro e, certamente, inviáveis, do ponto de vista técnico, para pouco tempo depois, assistir-se á demolição do imóvel;

w) Sendo assim, em face do exposto, é perfeitamente evidente e notório que ninguém de boa-fé poderá afirmar que se justifica a realização de obras num prédio com as características deste em que o senhorio recebe anualmente de rendas cerca de € 3.330,00 euros, em que as obras já executadas ascenderam a cerca de € 175.000,00 e as obras a realizar, impostas pela presente decisão, nunca se cifrarão em valor inferior a € 150.000,00;

x) Sendo que, o exercício deste direito excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé e pelo fim social e económico, sendo manifestamente ilegítimo;

y) Por outro lado, a sentença ora recorrida vem condenar a ora Recorrente a proceder ao pagamento de uma indemnização à Reconvinte, no montante de € 4.000,00, a título de danos não patrimoniais, fundamentando a sua decisão nos seguintes termos: “considerando que, a actuação da autora ao negligenciar o prédio, nomeadamente, o telhado é dolosa, que a autora tem uma situação patrimonial sólida (assim o demonstra o valor da aquisição do prédio), que a Ré vive em sobressalto permanente quanto à solidez e salubridade da sua habitação e do prédio, entendemos que a indemnização a este título deverá ser fixada em € 4.000”;

z) Ora, em primeiro lugar, consideramos que o nosso Código Civil, apesar de consagrar expressamente a indemnização por danos não patrimoniais para a responsabilidade extracontratual, não determina a aplicação da mesma à responsabilidade contratual;

aa) Porém, caso assim não se entenda, de acordo com o disposto no art. 496º do CC., apenas é admissível a indemnização por danos não patrimoniais, quando os mesmos pela sua gravidade mereçam a tutela do direito, devendo a gravidade do dano medir-se por um padrão objectivo (essa apreciação deve ter em conta as circunstâncias do caso concreto), devendo abstrair-se de factores subjectivos (de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada, cfr. refere o Prof. Antunes Varela);

bb) Ou seja, a ponderar-se a atribuição de uma indemnização a título de danos não patrimoniais em sede de responsabilidade civil contratual, ela só deverá ser atribuída caso esses danos sejam suficientemente graves, mais concretamente, se as circunstâncias que acompanhem a violação do contrato vierem a contribuir decisivamente para uma grave lesão de bens ou valores não patrimoniais;

cc) Acresce que a ora Recorrida reside no imóvel locado há mais de 30 anos, tendo as referidas infiltrações ocorrido uma única vez, no ano de 2007/2008, tendo, inclusivamente, sido reconhecido por todas as testemunhas arroladas pela Recorrida que, após terem procedido à reparação do telhado em 2008, ou seja, há cerca de 4 anos, jamais se verificou qualquer infiltração ou inundação proveniente do telhado;

dd) Motivo pelo qual, não só é perfeitamente inconcebível que um determinado arrendatário pelo facto de ter sofrido uma inundação na sua casa, seja indemnizado no montante de € 4.000,00, como também, jamais podemos admitir que se impute à ora Recorrente qualquer atitude dolosa, ao negligenciar o telhado, pois a verdade é que a Recorrente, nos anos de 1997 e 2002, procedeu a profundas obras de conservação no referido telhado, motivo pelo qual deverá ser proferida decisão, revogando expressamente a indemnização ora atribuída à Reconvinte;

ee) Sendo assim, considera-se que a sentença ora recorrida viola determinadas normas e princípios jurídicos, nomeadamente, o disposto nos artigos 334º, 496º, 1031º alínea b) e 1074º do CC, pelo que, em face do exposto, deverá a sentença ser revogada e, consequentemente, substituída por outra que, julgue improcedente a condenação da Autora na execução das obras supra referenciadas e no pagamento da referida indemnização por danos não patrimoniais.

A 1ª ré apresentou contra-alegações, defendendo a confirmação da sentença.

*

São os seguintes os factos que a 1ª instância considerou provados:

1. A autora é uma sociedade comercial que tem como objecto “o comércio e indústria de artigos de escritório em geral. Representante da marca M… e outras, comércio a retalho de relógios, canetas e artigos de ourivesaria, e ainda a compra e venda de imóveis”.

2. Em escritura pública outorgada em 10 de Julho de 1991, JF, em representação de MJF, declarou vender, pelo preço de Esc. 140.000.000$00, o prédio urbano sito em …, na Avenida …, descrito na … Conservatória do Registo Predial de …. sob o nº 9931 do Livro B-32 e inscrito na matriz sob o artº … da freguesia de ….

3. Na mesma escritura pública, JKF, outorgando por si e como procuradora da empresa “EC”, única sócia da autora, declarou comprar, por aquele preço, para a autora, o mesmo prédio.

4. A autora tem registada a seu favor, através da apresentação nº 2 de 8 de Outubro de 1991, a aquisição daquele prédio por compra.

5. A ré MFF e MJF nunca chegaram a ajustar entre si o arrendamento do 3º andar direito do prédio identificado em 2., mas a referida ré mantém-se desde 29 de Setembro de 1978 a ocupar esse andar, pagando uma quantia

mensal por essa ocupação, a qual é, actualmente, de Euros 116,20, sendo-lhe emitidos os correspondentes recibos.

6. Na data da escritura pública referida em 2., encontravam-se devolutas quatro fracções do prédio aí identificado.

7. Caíam da parte tardoz do edifício pedaços de reboco e alvenaria.

8. Na mesma data, o prédio apresentava fissuras em todos os pisos.

9. Na mesma data, as escadas de metal existentes nas traseiras do prédio apresentavam ferrugem e estavam corroídas.

10. À data, o telhado não apresentava condições de impermeabilização e estanquicidade.

11. Em 1992, a autora iniciou obras no prédio.

12. Nessas obras, a autora reparou as principais fissuras.

13. Aplicou reboco novo na fachada principal e tardoz, nos saguões e na caixa da escada.

14. Reparou o tabuado do soalho em todos os pisos.

15. Reparou as escadas e corrimões.

16. A Autora fez reparações em paredes e tectos de todos os pisos.

17. A Autora reparou as vigas do telhado.

18. Arranjou os beirados e as caleiras.

19. A Autora efectuou reparações no telhado.

20. A Autora reparou canalizações de águas e esgotos.

21. Efectuou trabalhos de pintura exterior e interior.

22. As obras realizadas no prédio entre Fevereiro de 1992 e Abril de 1994 importaram em, pelo menos, € 155.998,33.

23. E tiveram a comparticipação do “programa RECRIA” em, pelo menos, € 34.316,36.

24. Em 1997, a autora promoveu arranjos na coluna do prédio.

25. Trabalhos de carpintaria no telhado e nas janelas.

26. A Autora reparou a calha de zinco a tardoz.

27. A reparação das paredes e tecto do átrio do prédio.

28. E arranjos no 1º, 4º e 5º pisos.

29. Em 2002, a autora promoveu trabalhos de limpeza.

30. O isolamento de paredes.

31. A pintura de tectos, paredes, portas e rodapés.

32. O afagamento e envernizamento de todo o soalho.

33. Os trabalhos referidos de 24. a 32. importaram em, pelo menos, € 51.702,83.

34. Em 2002, a Autora fez obras no rés-do-chão, 1º andar, 4º andar e águas furtadas.

35. Pelo menos desde 2002, a Autora não tem feito a reparação das fissuras que o prédio apresenta.

36. Desde 2002, a Autora não tem feito a limpeza do quintal traseiro.

37. No ano de 2009, o fornecimento de gás ao prédio referido em 2. foi cortado pela …gás em virtude de a coluna de abastecimento não ter condições de segurança, facto que foi comunicado à autora.

38. Na sequência do referido em 37., a autora sugeriu à ré a substituição do fornecimento de gás canalizado por gás de botija.

39. As escadas do mesmo prédio têm degraus danificados e as paredes dessas escadas estão abauladas.

40. Os danos referidos em 39. resultam do abatimento dos pisos, feitos em madeira.

41. O qual é irreversível.

42. A Autora tem deixado abertas as janelas de alguns andares que vagaram no prédio referido em 2..

43. Bem como as janelas das trapeiras.

44. Tem mantido vidros quebrados.

45. O telhado do prédio permite a entrada de chuva no prédio.

46. A Autora não reparou as caixas de correio que surgiram abertas e forçadas.

47. A Autora mantém a coluna de gás à vista, desde a entrada até ao último piso.

48. Anteriormente ao referido em 47., a Autora abriu roços para tentar localizar uma fuga de gás.

49. A autora não providencia pela limpeza dos andares vagos, o que fomenta o aparecimento de insectos.

50. Não limpa o ralo de escoamento das águas pluviais no logradouro, que está entupido e coberto de detritos.

51. Em consequência da humidade que existe no 3º andar direito, os florões do tecto e parede caíram, provocando danos numa televisão com vídeo.

52. Partindo peças “Vista Alegre”.

53. Danificaram um “deck” de cassetes.

54. Partiram um tampo de vidro de uma mesa da sala.

55. Racharam a aba de um piano.

56. A ré MFF vive sobressaltada com receio de quedas de estuque dos tectos.

57. Todas as obras atrás referidas revelaram-se insuficientes para reabilitar o edifício face ao estado de degradação do mesmo e dos materiais que compõem a sua estrutura.

58. O abatimento dos pisos provoca fissuras e rachas nas paredes e tectos dos andares do prédio.

59. As varandas posteriores apresentam corrosão avançada e degradação dos pavimentos de betão armado.

60. Infiltrações pelo telhado e pisos superiores.

61. Ocorrem desníveis nas aduelas das portas.

62. Em função dos movimentos e pressões da estrutura do edifício não existe garantia que uma fissura, depois de reparada, não venha a manifestar-se novamente.

63. A recuperação do prédio (sem reconstrução interior do edifício) importa em quantia entre € 900.000 e € 1.080.000, acrescendo IVA.

*

I - A primeira questão a apreciar prende-se com a impugnação da decisão sobre matéria de facto quanto às respostas dadas aos quesitos 1º, 2º, 4º e 19º.

A) Não obstante parecer da conclusão k) das suas alegações que a apelante impugna, também, a resposta dada ao quesito 18º, cremos que assim não é.

Com efeito, a menção à alteração da resposta dada ao quesito 18º apenas consta da referida conclusão, não lhe sendo feita qualquer referência no corpo das alegações.

Em segundo lugar, a resposta ao quesito 19º não está directamente relacionada com a resposta dada ao quesito anterior (que assumiu o nº 55 na sentença).

Acresce que a apelante não diz qual a resposta que deveria ser dada ao quesito 18º nem equaciona os meios de prova que imporiam a decisão que (não) propugna.

A corresponder, porém, à vontade da apelante impugnar a resposta atribuída ao quesito 18º, então importa rejeitar, nesse segmento, o recurso, atento o disposto no artigo 690º-A nº 1 do Cód. Proc. Civ..

B) Perguntava-se nos apontados quesitos:

1º - “A autora tem deliberadamente deixado abertas as janelas de alguns andares que vagaram no prédio referido em B?”

2º - “Bem como as janelas das trapeiras?”

4º - “E deslocado a cobertura do telhado para fazer entrar a chuva do prédio?”

19º - “A ré MFF vive sobressaltada com receio de quedas de estuque dos tectos?”.

A 1ª instância respondeu afirmativamente aos quesitos 2º e 19º (vd. pontos 43. e 56. da matéria de facto) e respondeu aos quesitos 1º e 4º restritivamente, nos moldes que correspondem, respectivamente, aos pontos 42. e 45. da matéria de facto.

E, como decorre da fundamentação exposta, alicerçou a sua convicção, relativamente a tais quesitos, no depoimento das testemunhas MFF, que mora no prédio desde 1976, LG, que também reside no prédio, e AF, filha da primeira testemunha.

C) Para sindicar as respostas dadas aos quesitos 1º e 2º, a apelante louva-se nos depoimentos do seu gerente, das testemunhas FC e AJ, por si arroladas, e da testemunha Lígia Jacques, arrolada pela ré.

Não há qualquer dúvida que não foi feita prova de que a autora tivesse deliberadamente deixado as janelas abertas. Tanto que essa intenção não foi dada como provada pela 1ª instância.

E essa ausência de prova da deliberação significa, também, que não se demonstrou que tenha sido a autora a abrir as janelas, actuação que, efectivamente, nenhuma testemunha pôde garantir.

O sentido da resposta dada aos quesitos 1º e 2º é, pois, o de que a autora tem mantido abertas as janelas – independentemente de quem as abriu – ou, na perspectiva inversa, não providenciou pelo fecho das mesmas.

Neste contexto, o depoimento de AFK, gerente da autora - que disse “penso que, neste momento, não” e “que eu saiba, não” há janelas abertas, acrescentando que tratam de manter as condições do prédio o melhor possível e que, ainda há algumas semanas, estivera no prédio e “estava tudo fechado” – não tem qualquer relevo. É que não se tratava de saber se, ao tempo da audiência (Julho de 2012) ou há umas semanas ou meses atrás, se verificava a existência de janelas abertas. Do que se tratava era de apurar a ocorrência dessa situação em período anterior à data em que fora alegada, sendo certo que a contestação foi apresentada em Dezembro de 2009.

Pelo mesmo motivo, são de desprezar os depoimentos das testemunhas: i) FC (que trabalha para a autora há 43 anos, exercendo funções de natureza administrativa e que apenas se deslocou ao prédio duas vezes, em momentos “recentes”, sendo uma delas em Fevereiro de 2012), que disse que “o que eu tenho conhecimento é que está tudo fechado”; ii) AJ (que trabalha para a autora há 25 anos, como vendedor), que disse que “há alguns meses atrás, andei lá a fechar portas e janelas que estavam abertas” e que “ficou tudo fechado”; e iii) LJ (inquilina da autora e moradora no 2º esquerdo do prédio), que disse “estão fechadas agora”, referindo diversas vezes que, antes, as janelas estavam abertas (algumas por estarem estragadas) e/ou os vidros partidos.

Nada há, consequentemente, a alterar às respostas dadas aos quesitos 1º e 2º.

D) Questionando a resposta dada ao quesito 4º, a apelante socorre-se, principalmente, dos depoimentos do seu gerente e das testemunhas AF, MF e LJ.

Mas sem necessidade.

É que, limitado que está pelo princípio do dispositivo, o juiz não pode responder algo mais ou algo diverso do que foi quesitado.

Quando tal acontece – e na ausência de preceito que directamente estabeleça a respectiva consequência – deve considerar-se não escrita a parte da resposta excessiva ou exorbitante por aplicação analógica do disposto no nº 4 do artigo 646º do Cód. Proc. Civ. - cfr. a propósito numerosa jurisprudência, de que se cita, a título exemplificativo, Ac. STJ de 27.3.08, http://www.dgsi.pt Proc. nº 07B4149 e Ac. STJ de 5.7.94, BMJ 439º-479.

Assim sucede com a resposta dada ao quesito 4º.

Com efeito, tal quesito insere-se num conjunto que vai do 1º ao 13º, que provêm da alegação da ré (e cujas respostas correspondem aos pontos 42. a 50. da matéria de facto), e que se prendem com condutas dolosas e/ou omissões da autora tendentes à destruição e/ou ausência de conservação do prédio.

A pergunta formulada no quesito 4º relata uma actuação e um objectivo da autora, mas não uma situação (como aconteceria se fosse afirmado, por exemplo, que tinha efectivamente entrado chuva no prédio).

O quesito não consente, assim, a resposta que foi dada, sendo certo, aliás, que a ocorrência de infiltrações através do telhado já consta do ponto 60. da matéria de facto.

Deste modo, declaramos não escrita a resposta dada ao quesito 4º. E não havendo dúvidas de que se não provou a aludida conduta e/ou objectivo, a resposta dada a tal quesito é negativa.

E) A apelante discorda da resposta dada ao quesito 19º por se lhe afigurar irrazoável o sobressalto em causa. Ou seja, não questiona a prova testemunhal produzida quanto ao receio sentido pela ré, apenas considera que não há motivos para tal.

Discordamos.

Em primeiro lugar, parece-nos perfeitamente natural que o episódio referido no ponto 51. da matéria de facto e que teve as consequências descritas nos pontos seguintes infunda medo pela possibilidade de repetição, nomeadamente com danos de natureza pessoal.

É certo que nos parece igualmente corresponder á normalidade que tal receio se vá esbatendo à medida que o tempo passa sem nova ocorrência. Mas, por outro lado, importa considerar que o decurso do tempo também se reflecte na degradação dos materiais e no agravamento dos problemas do prédio.

De qualquer modo, relembramos que a contestação foi apresentada em Dezembro de 2009, sendo certo que a queda dos florões e do estuque ocorreu, segundo o depoimento da testemunha AF(filha da inquilina do rés-do-chão direito), depois das grandes chuvadas de 2008. Acresce que a testemunha Lígia Jacques, embora não se recordasse do ano, referiu lembrar-se que o episódio ocorrera perto do Natal, porque se lembrava de a ré ter uma árvore montada na sala. E todas as testemunhas arroladas pela ré explicaram que a reparação por elas mandada fazer no telhado fora posterior às referidas chuvadas.

Noutra perspectiva, julgamos que a circunstância de o telhado ter sido reparado – desconhecemos em que moldes – seja suficiente para afastar por completo o receio de nova queda de estuque. Pois não tinha já a apelante intervindo no telhado por duas vezes (pontos 11., 17. a 19., 24. e 25. da matéria de facto) sem ficar definitivamente resolvido o problema das infiltrações?

Por último, é de salientar a descrição do estado do prédio e de cada um dos apartamentos constante do auto de vistoria efectuada em 20.10.10 por técnicos da Câmara Municipal de … (fls. 1176 a 1181) para se compreender o receio da ré, moradora no terceiro andar, acima do qual se situam mais dois pisos com “vestígios de fortes infiltrações” e “estuques aluídos”.

Mantém-se, assim, a resposta dada ao quesito 19º.

II - A segunda questão a resolver é de saber se a pretensão formulada pela ré no tocante às obras a levar a cabo pela autora se configura como abusiva.

A) Não pondo em causa, em abstracto, o direito de o inquilino exigir a reparação e conservação do imóvel arrendado e o dever de o senhorio a elas proceder (artigo 1031º-b) do Cód. Civ.), a apelante opõe-lhe, contudo, a “válvula de escape” em que se traduz a figura do abuso de direito, como forma de impedir um resultado claramente desproporcional. Concretamente, perante um rendimento anual de 3.207,28€ que o prédio lhe proporciona, a apelante, que já realizou obras no valor de cerca de 175.000,00€, não pode/deve ser obrigada a efectuar outras, que ascenderão, pelo menos, a 900.000,00€, sem IVA.

Sabido é que uma das categorias de comportamentos abusivos que cabe no princípio ínsito no artigo 334º do Cód. Civ. é a do “desequilíbrio no exercício de posições jurídicas”, no âmbito da qual se encontra a desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem.

A este respeito, explica Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil Português I Parte Geral Tomo I, Almedina, Coimbra, 2ª edição:265), que se trata “de uma fórmula antiga e intuitiva de abuso de direito: mercê de conjunções extraordinárias, ocorre um exercício jurídico, aparentemente regular, mas que desencadeia resultados totalmente alheios ao que o sistema poderia admitir, em consequência do exercício” (o sublinhado é nosso). Entre os exemplos jurisprudenciais de aplicação da figura, Menezes Cordeiro refere o abuso de inquilinos que, pagando rendas baixas, exigem do senhorio a realização de avultadas obras.

Se é certo que a desproporção entre o rendimento que o senhorio obtém do prédio e o valor das obras a cuja realização está adstrito constitui um aspecto objectivo facilmente apreensível e com um peso significativo na ponderação do manifesto excesso a que alude o artigo 334º do Cód. Civ., “naturalmente que tudo tem de ser perspectivado em função das circunstâncias do caso concreto” (Ac. STJ de 30.9.08, in http://www.dgsi.pt, Proc. nº 08A2259).

E, a este respeito, é de acrescentar que “o abuso de direito, posto que oficiosamente cognoscível, constitui matéria de excepção e há-de resultar de factos que permitam declará-lo, importando ao interessado o seu reconhecimento e prova” (Ac. STJ de 20.1.09, in http://www.dgsi.pt, Proc. nº 08A3810).

Ora, só nas suas alegações de recurso entendeu a autora/apelante suscitar a questão de abuso de direito, naturalmente sem a alegação de factos que poderiam contribuir para a solução da questão.

Parece-nos inequívoca a desproporção que se verifica entre a renda do locado e o custo das obras a realizar (pontos 5. e 63. da matéria de facto). E tal desproporção continua a manter-se se, como faz a apelante, levarmos em conta as rendas pagas pelas outras duas inquilinas do prédio, nos valores de 123,33€ e 27,75€.

Sucede que, no que toca ao rendimento do prédio, não são estes os valores que importa considerar.

Com efeito, como resulta da conjugação da certidão do registo predial, caderneta predial e escritura pública de compra e venda juntas aos autos pela autora e, bem assim, dos autos de vistoria da Câmara Municipal de … juntos pela ré, o prédio em causa tem seis pisos, sendo que, do rés-do-chão ao quarto andar, há dois apartamentos por piso e, nas águas-furtadas, há cinco apartamentos. Deste modo, o que releva para efeitos de rendimento do prédio não é, apenas, o valor das rendas recebidas pelos três fogos que se acham arrendados, mas o que a autora/apelante obteria se tivesse arrendado os apartamentos que se acham vagos e se tivesse actualizado, ao abrigo da lei, as rendas dos andares ocupados (a própria autora referiu, na petição inicial, não ter procedido a actualizações). É que a autora/apelante não pode pretender “repercutir” sobre a ré a circunstância de não querer retirar do prédio os frutos que ele lhe permite obter. E, como nada foi alegado no tocante ao valor por que cada um dos apartamentos poderia ser arrendado, não pode concluir-se, com segurança, existir manifesta desproporção entre os valores que importaria considerar.

Por outro lado, pouco há de comum entre a situação da autora e a situação daqueles senhorios que foram surpreendidos pelo “congelamento de rendas” e, simultaneamente, por anos de elevada inflação.

Com efeito, quando a autora comprou o prédio, em 1991, encontravam-se devolutos apenas quatro fogos (ponto 6. da matéria de facto), sendo certo que, actualmente, só três estão ocupados. Ou seja, por sua própria iniciativa ou por qualquer outra razão, a autora libertou-se de relações locatícias em que as rendas, porventura, estavam longe de corresponder aos valores de mercado, alcançando uma situação em que podia livremente negociar valores e períodos de vigência contratual, sem sujeição às apertadas regras dos arrendamentos vinculísticos do passado. E, na ausência de elementos em contrário, é de presumir que se o não fez foi porque não quis.

Acresce que tem igualmente de presumir-se que, antes de decidir comprar o prédio, a autora (de cujo objecto social faz parte a compra e venda de imóveis) analisou devidamente o estado do mesmo (nomeadamente, os aspectos descritos nos pontos 7. a 9. da matéria de facto e, naturalmente, as deficiências subjacentes às reparações a que aludem os pontos 11. a 21.) e avaliou devidamente os encargos que a manutenção do mesmo lhe poderia acarretar no futuro (atendendo, nomeadamente, à respectiva idade, ao tipo e características da construção, às obras de reparação e/ou beneficiação levadas a cabo pelos anteriores proprietários). É que (mesmo sem considerar que as testemunhas referiram que já a anterior proprietária havia sido intimada pela Câmara a fazer obras, por tal facto não ter sido alegado nem, consequentemente, provado) obras que se iniciaram em 1992, que se prolongaram por cerca de 2 anos e cujo valor ultrapassou os 150.000,00€ (ponto 22. da matéria de facto) indiciam com segurança que o estado do prédio que as justificou era patente em Julho de 1991, quando foi adquirido pela autora.

Sob outro ponto de vista, também não pode deixar de se considerar que o estado em que o prédio se encontrava teve influência no preço acordado; e certamente que, com a intenção lucrativa que é apanágio de qualquer sociedade, a autora avaliou o negócio numa perspectiva de custos/benefícios, concluindo pelas vantagens da aquisição.

B) Ainda em sede de abuso de direito, sustenta a apelante que as obras ordenadas pelo tribunal são tecnicamente inviáveis, não podendo esquecer-se que está pendente na Câmara um projecto tendente à demolição do edifício.

Admitimos que, perspectivando a eventual e futura demolição do prédio, se pudesse conceber mais uma das formas que o abuso de direito pode revestir, a saber, “o exercício danoso inútil” (Menezes Cordeiro, obra citada:265).

Sucede que não só não está provado que, actualmente, haja perspectivas de demolição do edifício, como os documentos camarários mais recentes juntos ao processo dão conta de que o despacho de 15.3.05 - que aprovara o projecto de arquitectura apresentado pela autora e que previa a demolição – foi revogado por despacho de 17.3.08, equacionando-se, agora, tão-só a recuperação do prédio.

Quanto à inviabilidade técnica das obras ordenadas – e independentemente do enquadramento jurídico adequado á questão – basta dizer que a mesma não está demonstrada nem decorre, necessariamente, dos pontos 57. e 62. da matéria de facto.

Com efeito, o ponto 57. apenas aponta a insuficiência das obras efectivamente realizadas, sendo perfeitamente conciliável com a hipótese de as obras terem sido “mal feitas” e/ou com a hipótese de terem sido superficiais e/ou com a hipótese de não terem reparado todas as zonas e estruturas carecidas de intervenção.

Já a matéria do ponto 62. não nos impressiona minimamente, já que não cremos que qualquer reparação signifique a garantia de que não ocorrerá novo problema.

Aliás, quer o laudo pericial, quer os técnicos camarários alguma vez equacionaram a hipótese de ser tecnicamente impossível reparar o edifício, antes afirmando o contrário.

C) Do exposto resulta não ser possível concluir pelo abuso da pretensão da ré.

III - A terceira questão a tratar respeita à indemnização atribuída à ré a título de danos não patrimoniais.

A) A possibilidade de compensar danos não patrimoniais em sede de responsabilidade contratual é já maioritariamente defendida pela jurisprudência, pelo que nos limitamos a remeter para a argumentação constante do Ac. STJ de 9.9.14, in http://www.dgsi.pt Proc. nº 77/09.3TBSVC.L1.S1.

B) Remetendo para as considerações teóricas constantes da sentença a propósito das condições de atribuição e medida da compensação por danos não patrimoniais, cremos que a situação a que se reporta o ponto 56. da matéria de facto não pode deixar de ser merecedora da tutela do direito.

É que, para além do que dissemos em I-E), o relevo a atribuir ao receio sentido pela ré (que, ao contrário do que afirma a apelante, nada tem a ver com uma mera inundação) deriva, em medida assinalável, da insegurança associada ao local que, por norma, é suposto constituir o nosso reduto, ou seja, o lar em que habitamos.

E tal circunstância é determinante na ponderação do montante, fundamentalmente compensatório, mas também punitivo, a atribuir à ré.

É certo que, ao contrário do que considerou a sentença) não se demonstrou ter a autora agido com a intenção de causar danos à ré nem se demonstrou a solidez da situação económica daquela (que se não basta com o preço pago pela compra do prédio em 1991).

Ainda assim, nos termos dos artigos 496º nºs 1 e 3 e 494º do Cód. Civ., consideramos adequado o montante arbitrado na sentença.

*

Por todo o exposto, acordamos em julgar a apelação improcedente e, alterando a decisão sobre a matéria de facto, quanto à resposta ao quesito 4º, que passará a ser “não provado”, mantemos a sentença recorrida.

Custas pela apelante.

Lisboa, 14 de Outubro de 2014

Maria da Graça Araújo

José Augusto Ramos

João Ramos de Sousa