Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1133/2006-5
Relator: VIEIRA LAMIM
Descritores: MEDIDAS DE COACÇÃO
DECISÕES NÃO TRANSITADAS
PRISÃO PREVENTIVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/14/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I – O princípio da presunção de inocência não permite atribuir à condenação não transitada valor superior que o de comprovação de fortes indícios da prática do crime por que o agente foi condenado, pois a inocência e a presunção desta não admitem graduação. II- Estando esses fortes indícios já reconhecidos em despachos anteriores e tendo o arguido cumprido, desde o 1º interrogatório e até ao acto de leitura do acórdão condenatório em 1ª instância, todas as obrigações que decorriam da medida de coacção fixada no início do processo, a condenação não transitada, só por si, não justifica qualquer agravamento de situação coactiva do arguido. III- O princípio "rebus sic stantibus", válido para frequentemente se indeferir pedido de substituição da prisão preventiva por medida mais favorável, é também de seguir nas situações inversas, em que está em causa a aplicação ao arguido de medida mais gravosa que a anterior, o que impedirá qualquer alteração para situação mais desfavorável, sem alteração superveniente das circunstâncias tidas em conta pelos despachos anteriores já transitados. IV- O direito a um processo equitativo, abrange o direito a um processo leal, que permita aos seus intervenientes ter confiança em quem o conduz, por forma que seja legítima a expectativa de quem está sujeito a uma medida de coacção de que, caso cumpra as obrigações dela derivadas e não havendo alteração superveniente das circunstâncias que a determinaram, a sua situação coactiva não será agravada, devendo, por isso, ser assegurada, ao arguido, a garantia de não poder ser surpreendido por decisões caprichosas ou arbitrárias, como será a de determinar a sujeição a medida de coacção mais gravosa sem que exista qualquer incumprimento da sua parte, ou sem que haja uma efectiva e real alteração das circunstâncias que determinaram a medida anteriormente fixada por despacho transitado, o que, a ocorrer seria fonte de instabilidade jurídica e contribuiria para o desprestígio do sistema judicial.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa.
Iº 1. No Processo Comum (Tribunal Colectivo) nº519/03.1PESNT, da 2ª Vara Mista de Sintra, em que são arguidos, Paulo … e outro, em 29Nov.05, após leitura do acórdão, a Srª Juiza Presidente do Colectivo, proferiu despacho com o seguinte teor:

...
De facto, e como refere o Ilustre Mandatário do Arguido Paulo … o mesmo encontra-se, desde a sua sujeição a interrogatório judicial, sujeito a TIR, bem como às medidas de proibição de se ausentar para o estrangeiro e, ainda, de apresentação periódica no posto policial da área da sua residência (cfr. fls. 193). Também nada indica que, no decurso do processo tenha incumprido as medidas de coacção em causa. Porém, com a prolação do presente acórdão condenatório entende-se que os indícios que o trouxeram a julgamento e que presidiram à aplicação daquelas medidas, se volveram em certeza bastante da prática dos factos por parte do arguido, tanto que fundamentaram uma concreta condenação em pena de prisão efectiva de 8 anos, quanto ao crime de homicídio na forma tentada.
Ora, perante a iminência de cumprimento de uma pena de prisão efectiva entende-se fortemente acentuado o perigo de fuga por parte do mesmo arguido - já existente, embora de forma incipiente, aquando da aplicação das medidas referidas. Note-se ainda que, nas circunstâncias descritas no acórdão, o arguido começou por não se coibir de fugir aos agentes da autoridade, perpetrando, aliás, o crime dos autos para concretizar essa fuga, o que também demonstra existir forte risco de pretender furtar-se à acção da justiça, quando consciente da inevitabilidade do cumprimento da pena, entendendo-se que apenas a prisão preventiva acautela os riscos em causa.
Assim, e ao abrigo do disposto nos artigos 191°, 193°, 204°, alínea a) e 202°, nº1, alínea a), todos do Código de Processo Penal, determino que o arguido Paulo … aguarde os ulteriores termos do processo sujeito à medida de prisão preventiva.
...”.

2º Inconformado com este despacho, o arguido Paulo … interpôs recurso, motivando-o com as seguintes conclusões (transcrição):
2.1 O Despacho que determina a alteração da medida de coacção imposta ao ora recorrente está ferida de vício de falta de fundamentação fáctica, limitando-se a "'por chapa" remeter parcialmente para o artigo 204, alínea a) do Código Processo Penal;
2.2 ­Perante a ausência de matéria de facto que suporte a decisão foi violado pelo tribunal recorrido o disposto no artigo 191º (Principio da Legalidade) artigo 193º (Princípio de Adequação e Proporcionalidade) e 202°, 204º e 212º todos do Código de Processo Penal.
2.3 Pelo que, deverá ser Anulado o Despacho que determina a prisão preventiva de Paulo … e consequentemente devolvido à liberdade o ora requerente, em alternativa, a alteração da medida de coacção para a obrigação de permanência na habitação, com eventual recurso aos meios previstos no nº2, do art.201, do Código de Processo Penal;
Da falta de requisitos para aplicação da prisão preventiva:
2.4 Não existe perigo de fuga ou fuga, pois sempre compareceu a todos os actos para que foi notificado;
2.5 Inexistindo os requisitos previstos no artigo 204º do C.P.P.) e sendo manifestamente desproporcionada a aplicação ao ora recorrente de uma medida de coacção como a prisão preventiva, deverá ser revogado o despacho.
2.6 Proclama o artigo 27º da Constituição da República Portuguesa que a liberdade individual é um direito fundamental:
“O direito à liberdade significa, como decorre do contexto global deste artigo, é um direito à liberdade física e de movimentos, ou seja, direito de não ser detido, aprisionado (...)" - Gomes Canotilho/Vital Moreira, CRP anotada, Vol.I, pág.196;
O perfil constitucional da prisão preventiva sublinha o seu carácter excepcional, precário e temporariamente limitado;
Pelo que, sendo uma medida de carácter excepcional a não opção por outra medida de coacção, deverá ser objectiva e fundamentada em despacho que aprecie os indícios existentes e os meios de prova que suportaram essa decisão.

2.7 Tudo de acordo com os artigos 191, 193, 202, 204, 212 e 219, todos do Código de Processo Penal, normas que o tribunal recorrido com o seu despacho infringiu.
Pelo exposto, e demais de Direito, ao revogar o despacho que ordena a prisão preventiva de PAULO …, ou na alteração da medida de coacção, para a obrigação de permanência na habitação, artigo 201, farão Justiça.

3º Admitido o recurso com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo, respondeu o Ministério Público, concluindo (transcrição):
3.1 O arguido Paulo … recorreu da decisão que determinou a sua prisão preventiva, proferida a 29 de Novembro de 2005, na sequência da leitura do acórdão que nos presentes autos o condenou na pena única de oito anos e três meses de prisão.

3.2 Funda-se, para tal o recorrente na existência de falta de fundamentação do despacho que aplicou tal medida, por não fazer referência a qualquer facto suficientemente provado, do qual resulte a existência em concreto do perigo de fuga.
3.3 A decisão judicial que aplicou ao arguido a medida de coacção de prisão preventiva, não enferma do vício de falta de fundamentação a que é feita referência no recurso interposto.
3.4 A referida decisão baseia-se nos factos que foram dados como provados no acórdão condenatório, na conduta inicial do arguido (que encetou uma fuga dos agentes da autoridade que procuravam abordá-lo), e no facto de sobre o arguido ter recaído um pesada condenação em pena privativa de liberdade, o que leva a que se torne fundado o receio de que o arguido possa encetar a fuga, por forma a eximir-se ao cumprimento da mesma.
3.5 A decisão que determinou a aplicação da referida medida ao arguido, demonstrou a existência, em concreto, do perigo a que alude o art.204, al.a) do Código de Processo Penal.
3.6 O que importava avaliar no momento da decisão de aplicação da prisão preventiva ao arguido era a necessidade da aplicação daquela medida em concreto, a sua proporcionalidade aos factos pelos quais o arguido fora condenado, e a adequação ao perigo que se visava afastar, o que, ainda que de forma breve, foi feito.
3.7 Da observância das circunstâncias que despoletaram todo o processo, e da fuga inicial do arguido Paulo …, a verdade é que, perante a condenação na pena de oito anos e três meses de prisão, é verosímil que o arguido volte a tentar a fuga, porquanto se encontra na eminência de um longo período de privação de liberdade.
3.8 Não se nos afigura que a decisão recorrida tenha violado o preceituado nos art.s191, 193,202,204 e 212 do Código Penal, de forma a legitimar a anulabilidade da mesma.
3.9 Quanto à eventual aplicação ao arguido da medida de obrigação de permanência na habitação, com recurso a meios de vigilância, não nos repugna a possibilidade de aplicação de uma tal medida, em substituição da prisão preventiva do arguido.
3.10 Sempre será de exigir, para tal que, em concreto, ante as condições de vida do arguido e, face a um parecer do IRS, a aplicação de tal medida de coacção venha a revelar-se suficiente para evitar a fuga de Paulo …, até que venha a ser proferida decisão final nos presentes autos.
3.11 A referida decisão não enferma, pois, de qualquer vício.


4º Nesta Relação, a Ex.ma Procuradora Geral Adjunta, emitiu douto parecer, aderindo à posição expressa nas motivações de recurso e pronunciando-se pela procedência do mesmo.

5º Colhidos os vistos legais procedeu-se a conferência.
6º Tal como ressalta das conclusões das motivações, o objecto do recurso reconduz-se à apreciação da invocada falta de fundamentação e da legalidade e adequação da aplicação da medida de prisão preventiva determinada pelo despacho recorrido.

* * *
IIº 1. De acordo com o art.205, nº1, da Constituição da República Portuguesa, as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.
Em cumprimento desse preceito constitucional, o art.374, nº2, do CPP, estabelece os requisitos da fundamentação da sentença, estabelecendo o art.97, nº4, do CPP, para as outras decisões, que “os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”.
No caso, alega o recorrente que o despacho recorrido não está fundamentado do ponto de vista fáctico, por forma que permita concluir que, em virtude da conduta do recorrente, seja necessário alterar a medida de coacção que lhe estava imposta.
Analisando o despacho recorrido, porém, verifica-se que é invocado a prolação de acórdão condenatório do recorrente em pena de prisão efectiva de oito anos, por homicídio na forma tentada, assim como a iminência de cumprimento dessa pena, como fundamento da existência de acentuado perigo de fuga por parte do arguido.
Assim, do despacho recorrido, consta a razão por que o tribunal recorrido entendeu verificar-se o referido perigo de fuga e, ainda, os motivos de direito que o justificam, através da citação dos pertinentes preceitos legais aplicáveis.
Está, deste modo, cumprido de forma suficiente o exigido pelo citado art.97, nº4, do CPP.

2. Como decorre do art.204, do CPP, à excepção do TIR, nenhuma medida de coacção prevista no CPP pode ser aplicada se, em concreto, não se verificar: fuga ou perigo de fuga; perigo de perturbação do inquérito; perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas ou de continuação da actividade criminosa.
Por seu lado, o art.202, nº1, a, do CPP, estabelece os casos em que pode ser imposta a medida de prisão preventiva ao arguido: haver fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a três anos e serem inadequadas e insuficientes as demais medidas para garantir as necessidades cautelares.
A excepcionalidade e subsidiariedade da prisão preventiva resulta da própria Constituição. A liberdade é a regra, a prisão preventiva a excepção (arts.27 e 28, da CRP).
No caso, os indícios terão de considerar-se fortes, já que após audiência de discussão e julgamento, em que as provas apresentadas pela acusação foram submetidas a contraditório, o tribunal recorrido concluiu pela prática pelo arguido de factos integradores do crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p.p., pelos arts.22, nº1 e 2, 26, 131 e 132, nºs1 e 2, al.j, do Código Penal.
Na verdade, embora essa decisão não tenha transitado, considerando os elementos de prova descritos na respectiva fundamentação, a consistência dos indícios, nesta fase processual, não pode deixar de ser considerada como particularmente forte.
Assim, nada há a dizer em relação aos juízos indiciários relativos àquele crime, estando preenchido de forma consistente o requisito do art.202, al.a, do CPP.
Vejamos agora se, em concreto, existe algum dos perigos mencionados nas três alíneas do art.204, do CPP, de cuja verificação depende a aplicação de qualquer medida de coacção, excepção feita ao termo de identidade e residência.
O despacho recorrido, invocou o perigo de fuga.
Em relação a este perigo de fuga, salienta o despacho recorrido a iminência de cumprimento pelo arguido de pena de prisão efectiva (derivada de condenação em 1ª instância, embora não transitada), assim como a conduta do arguido, praticando o crime dos autos para concretizar fuga a agentes da autoridade, o que, na perspectiva do despacho recorrido, demonstra existir forte risco de ele pretender furtar-se à acção da justiça, agora que se vê confrontado com a inevitabilidade do cumprimento de pena de prisão efectiva.
Perante estes elementos, considerando que é próprio da natureza humana o impulso para evitar qualquer privação da liberdade e tendo em conta a conduta que é imputada ao arguido, aceitamos que é real e actual o perigo de fuga.
Contudo, logo em 15Set.04, após interrogatório judicial, o arguido foi indiciado pelos cirmes por que veio a ser condenado e, apesar de reconhecida a existência de perigo de fuga, o mesmo ficou sujeito a TIR, bem como às medidas de proibição de se ausentar para o estrangeiro e, ainda, apresentação periódica no posto policial da sua residência.
Não havendo notícia do arguido ter incumprido essas obrigações, como é referido no próprio despacho recorrido, coloca-se a questão de saber se essa situação podia ser alterada após a prolação da decisão condenatória de 1ª instância.
O art.375, nº4, do CPP, permite expressamente o reexame da situação do arguido na sentença condenatória, o que legitima a oportunidade da decisão em causa.
No entanto, à decisão condenatória não transitada não é atribuído valor especial, enquanto tal, para efeitos de determinação da medida de coacção, pois o referido preceito legal limita-se a estatuir que o tribunal sujeitará o arguido “...às medidas de coacção admissíveis e adequadas às exigências cautelares que o caso requer”.
Assim, mesmo após a decisão condenatória não transitada, para efeitos de medida de coacção, apenas será de ponderar as exigências cautelares, continuando afastada qualquer possibilidade de por esta via se obter antecipação do cumprimento da pena (1).
Deste modo, encontrando-se o recorrente sujeito a medidas de coacção definidas após o seu 1º interrogatório judicial de 15Nov.04, importa saber se aquelas exigências cautelares se acentuaram, por forma a justificar o agravamento da situação coactiva do recorrente (2).
O despacho recorrido refere que com a prolação do acórdão condenatório os indícios que trouxeram o arguido a julgamento e que presidiram à aplicação da anterior medida de coacção “...se volveram em certeza bastante da prática dos factos...”.
Contudo, esta figura de “...certeza bastante...” não tem qualquer reconhecimento na lei que, para efeito de aplicação da medida de coacção de prisão preventiva apenas se refere a “fortes indícios”, não permitindo o princípio da presunção de inocência consagrado no art.32, nº2, da C.R.P., que à condenação não transitada seja atribuído valor superior que o de comprovação de tais “fortes indícios”.
Ora, os fortes indícios da prática pelo arguido de crime de homicídio qualificado, na forma tentada, foram logo reconhecidos no despacho proferido após o 1º interrogatório judicial e confirmados ao longo do inquérito, em particular pelos autos de reconhecimento de fls.172 e 174, não existindo, na altura em que foi proferido despacho na sequência de 1º interrogatório judicial e quando foi marcada data para julgamento, qualquer dúvida sobre a consistência dos indícios em relação ao referido crime.
Apesar disso, o Sr. Juiz, concordando com o parecer do Ministério Público, pronunciou-se pela suficiência da prestação de TIR, aliada à proibição de se ausentar para o estrangeiro e obrigação de apresentação no posto policial, para satisfação das necessidades cautelares, razão por que a condenação não transitada em 1ª instância não pode constituir facto válido para alteração da medida antes decretada, pois já na altura em que foi decretada tal medida os indícios eram fortes e consistentes.
Invoca o despacho recorrido, ainda, que o perigo de fuga se acentuou com a decisão condenatória não transitada de 1ª instância, atenta a iminência de cumprimento de pena de prisão efectiva e por nas circunstâncias descritas no acórdão o arguido não se ter coibido de fugir aos agentes da autoridade, perpetrando o crime dos autos para concretizar essa fuga.
Quanto às circunstâncias descritas no acórdão, as mesmas coincidem com o que logo foi relatado no auto de notícia (fls.3, dos autos principais) e foram tidas em conta no despacho proferido após o 1º interrogatório, a elas fazendo esse despacho referência “...o arguido fugiu à acção policial quando interceptado e disparou atingindo o ofendido no hemitórax esquerdo, não lhe provocando a morte por mero acaso” (3).
Em relação à iminência de cumprimento de pena de prisão, desde que foi indiciado por crime de homicídio qualificado, na forma tentada e posteriormente acusado por esse mesmo crime, atenta a moldura da pena abstracta que corresponde a esse ilícito (que o arguido não desconheceria, pois o seu ilustre mandatário, decerto, disso não deixou de o esclarecer), essa iminência existiu, só tendo a condenação não transitada a virtualidade dele poder considerar tal iminência temporalmente mais próxima, pois o já citado princípio de presunção da inocência não permite atribuir outro valor àquela condenação, sendo certo que face a tal princípio constitucional o arguido, após decisão condenatória e até trânsito em julgado da mesma, continua a presumir-se tão inocente como no início do procedimento criminal, pois que, constitucionalmente, a inocência e a presunção desta, não admitem graduação.
Ainda quanto ao perigo de fuga, entendendo o conceito de fuga como acompanhado da intenção de impedir a acção da Justiça, não se pode considerar o mesmo acentuado após a decisão de 1ª instância, num caso em que o arguido, encontrando-se em liberdade, compareceu a todos os actos processuais para que foi convocado, inclusive à leitura do acórdão condenatório de 1ª instância, quando no mundo global onde, cada vez mais vivemos, e em particular na União a que pertencemos, existem mecanismos de cooperação judiciária internacional, que de forma significativa diminuem as possibilidades de escapar à execução de uma decisão transitada.
Sendo as medidas de coacção, na definição do Prof. Germano Marques da Silva (4), “... meios processuais de limitação da liberdade pessoal ... dos arguidos... que têm por fim acautelar a eficácia do procedimento, quer quanto ao seu desenvolvimento, quer quanto à execução das decisões condenatórias”, a execução da eventual condenação não deixou ser, também, ponderada logo no despacho proferido após o 1º interrogatório judicial, motivo por que, a pretensão de garantir essa execução, só por si, não pode justificar alteração da medida de coacção na altura da publicação da condenação em 1ª instância.
Assim, em relação aos elementos relevantes para determinação da medida de coacção adequada às exigências cautelares que o caso requer, nada se alterou com a prolação do acórdão condenatório de 1ª instância, publicado na altura em que foi proferido o despacho recorrido (5).
Não tendo existido qualquer alteração das circunstâncias que justificaram a definição da situação coactiva do recorrente, por despachos anteriores transitados, não podia o tribunal recorrido ter alterado as medidas de coacção, para uma situação mais gravosa para o recorrente.
Com efeito, em relação à alteração das medidas de coacção, é comum referir-se que o art.212, do CPP traduz um afloramento do princípio de que as medidas de coacção estão sujeitas à condição "rebus sic stantibus", no sentido de que a primeira decisão é intocável e imodificável enquanto não sobrevierem motivos que legalmente justifiquem nova tomada de posição.
Este princípio, válido para frequentemente se indeferir pedido de substituição da prisão preventiva por medida mais favorável, é também de seguir nas situações inversas, em que está em causa a aplicação ao arguido de medida mais gravosa que a anterior, o que impedirá qualquer alteração para situação mais desfavorável, sem alteração superveniente das circunstâncias tidas em conta pelos despachos anteriores já transitados.
Esta orientação é imposta, ainda, pelo art.20, nº4, do CRP, que garante a todos o direito a processo equitativo (6), o que abrange o direito a um processo leal, que permita aos seus intervenientes ter confiança em quem o conduz, por forma que seja legítima a expectativa de quem está sujeito a uma medida de coacção de que, caso cumpra as obrigações dela derivadas e não haja alteração superveniente das circunstâncias que a determinaram, a sua situação coactiva não será agravada. Deve, por isso, ser assegurada, ao arguido, a garantia de não poder ser surpreendido por decisões caprichosas ou arbitrárias, como será a de determinar a sujeição a medida de coacção mais gravosa sem que exista qualquer incumprimento da sua parte, ou sem que haja uma efectiva e real alteração das circunstâncias que determinaram a medida anteriormente fixada por despacho transitado. Tais alterações surpresa, além de injustificadas, tornam-se, ainda, em fonte de instabilidade jurídica e contribuem para o desprestígio do sistema judicial (7).
É também por isto que, legitimamente, se diz que “o modo como no processo penal se aplicam medidas de coacção, mormente as privativas da liberdade, traduz bem a medida do culto de liberdade de um povo e, por isso também, do grau de implantação na sociedade dos ideais democráticos” (8).
Em conclusão, teremos de concluir pelo infundado da decisão que alterou a situação coactiva do arguido e determinou a aplicação da medida de prisão preventiva ao mesmo, impondo-se a sua restituição imediata à liberdade.
IIIº DECISÃO:
Face ao exposto, os juizes deste Tribunal da Relação, em conferência, acordam em dar provimento ao recurso, determinando a imediata libertação do recorrente, que aguardará os ulteriores termos processuais na situação de liberdade provisória, conforme a medida de coacção a que inicialmente estava sujeito.
Passe e envie os competentes mandados de libertação.
Sem tributação.
Lisboa, 14 de Fevereiro de 2006
...............................................
(Relator: Vieira Lamim)
...............................................
(1º Adjunto: Ricardo Cardoso)
...............................................
(2º Adjunto: Filipa Macedo)

(1)-Como decidiu o Ac. de 1Fev.05, proferido no Proc. nº685/05, desta Secção (Relator Marques Leitão), o reexame das medidas de coacção, ao abrigo do art.375, nº4, do CPP e subsequente alteração das mesmas, para mais ou menos gravosas, não pode, como é evidente, ser feita livre e arbitrariamente mas sim com obediência aos princípios e regras gerais das medidas de coacção.

(2)-Na sequência de 1º interrogatório judicial do recorrente, em 15Set.04, foi proferido o seguinte despacho (tivemos acesso a esse despacho através de consulta ao processo principal que se encontra neste tribunal para apreciação do recurso interposto do acórdão final- Rec. nº1129/06- 9ª Secção):
....
Indiciam os autos a prática pelo mesmo de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, p.p., pelos arts.131, 132, nºs1 e 2, al.j, e art.22, do Código Penal, crime este punível com pena de prisão superior a 3 anos, em concurso real com um crime de detenção de arma proibida, p.p., pelo art.275, nº3, do Código Penal.
Ainda que o crime imputado ao arguido de homicídio qualificado possa ser eventualmente punido a título de dolo eventual, o que é facto é que dos elementos dos autos consta que o arguido fugiu à acção policial quando interceptado e que disparou atingindo o ofendido no hemitórax esquerdo, não lhe provocando a morte por mero acaso.
O arguido sabia que o ofendido estava no exercício das suas funções, pelo que as medidas de coacção a aplicar terão necessariamente de ter em atenção não só o perigo de fuga do arguido, como o alarme social que tal conduta causa na comunidade.
Assim, nos termos dos arts.191 a 193, 196, nº1, 198, 200, nº1, al.b, 204, als.a, e c, decide-se que o arguido aguardará os ulteriores termos mediante TIR já prestado, proibição de se ausentar para o estrangeiro e ainda obrigação de se apresentar diariamente no posto policial da sua residência.
Restitua o arguido à liberdade.
....”.
Em 17Jan.05, o M.P. deduziu acusação contra o recorrente, imputando a este os crimes por que veio a ser condenado, pronunciando-se no final dessa peça processual no sentido de não se terem alterado os pressupostos que determinaram as medidas de coacção a que o mesmo estava sujeito, o que mereceu a concordância do Mmo. Juiz no despacho de 6Maio05, que marcou data para julgamento (fls.270 do processo principal).

(3)-O apuramento no julgamento de factos, não considerados no momento em que foi aplicada a medida de coacção, que alterem a gravidade e dimensão da actividade criminosa pode justificar a alteração da medida de coacção na sentença, como decidiu o Ac. de 19Fev.02, deste Secção (Relatora Filomena Lima, na C.J. ano XXVII, tomo 1, pág.149), não é, porém, esse o caso dos autos.

(4)-Curso de Processo Penal, ed. Verbo, 2002, vol. II, pág.254.

(5)-Como decidiu o Ac. desta Relação de 24Set.03 (Rec. nº6921/03, de 3ª Secção, Relator Clemente Lima, acessível em www.dgsi.pt) “a condenação em pena de prisão, não transitada, não implica, por si só, a necessidade de alterar a medida de coacção e a aplicação da de prisão preventiva, por virtude de, para se eximir ao cumprimento da pena, se entender verificado o perigo de fuga”.

(6)-Como refere o Prof. Jorge Miranda (Constituição Portuguesa Anot., 2005, vol.I, pág.193), a expressão processo equitativo, na esteira do disposto no art.6, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e da jurisprudência que o ilumina, é intencionalmente aberta.

(7)-Como decidiu o Ac. desta Relação de 19Julho02 (Relator Goes Pinheiro, acessível em www.dgsi.pt, nºconvencional JTRL00043697) “o tribunal não pode alterar a posição já tomada sobre a subsistência dos pressupostos determinativos da prisão preventiva, na ausência de alteração factual, se aquela medida tiver sido tomada no respeito da lei, sob pena de instabilidade jurídica e desprestigio do mesmo tribunal”, no mesmo sentido, decidiu o Ac. desta Relação de 14Ago.01 (Relator Trigo Mesquita, acessível em www.dgsi.pt, nºconv. JTRL00034750) “enquanto não ocorrem alterações fundamentais na situação existente à data em que foi determinada a prisão preventiva, não pode o tribunal reformar essa decisão, sob pena de instabilidade jurídica decorrente de julgados contraditórios”, princípios que terão de valer, também, para a alteração para medida mais gravosa da medida de coacção antes definida.

(8)-Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, ed. Verbo, 2002, vol. II, pág.303.