Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | SALAZAR CASANOVA | ||
Descritores: | INSOLVÊNCIA APREENSÃO BENS PRÓPRIOS RESTITUIÇÃO DE BENS EMBARGOS DE TERCEIRO IMPOSSIBILIDADE SUPERVENIENTE | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 10/19/2006 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | AGRAVO | ||
Decisão: | CONCEDIDO PROVIMENTO | ||
Sumário: | I- Todo aquele que se sinta lesado na sua posse ou propriedade pela apreensão de bens efectivada pelo administrador da insolvência na sequência de sentença declaratória de insolvência que decretou a apreensão dos bens do insolvente (artigo 36.º/1, alínea g) do C.I.R.E.) terá de recorrer aos procedimentos para restituição e separação de bens previstos no artigo 141.º e seguintes do mesmo diploma. II- Quando se utilizam meios procedimentais que visam o mesmo objectivo que seria atingido com a oposição mediante embargos de terceiro, que a lei expressamente proíbe relativamente à apreensão de bens realizada no processo especial de recuperação de empresa e de falência, hoje insolvência, (artigo 351.º/2 do C.P.C.), pretende-se alcançar uma finalidade proibida por lei. III- Por isso, uma tal pretensão deve ser liminarmente indeferida por impossibilidade originária da lide, admitindo-se que o reconhecimento dessa impossibilidade possa ser efectivado, ainda antes da fase de produção de prova, se ocorrer situação superveniente que justifique pronúncia do tribunal. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa: 1. Z.[…] instaurou no dia 15-12-2005 procedimento cautelar comum para decretamento de providência conservatória como preliminar da acção prevista no artigo 125.º do Código da Insolvência contra a massa insolvente de S.[…] Lda. representada pelo seu administrador pedindo, sem audiência do requerido, que se profira sentença reconhecendo o direito do requerente explorar o estabelecimento, a coberto do contrato outorgado em 21-4-2005, até à prolação de decisão judicial que reconheça definitivamente o seu direito, notificando-se o Exmo. Administrador para até lá se abster de proceder à apreensão do estabelecimento e abster-se de praticar quaisquer actos que ponham em causa o seu direito. 2. Alega o requerente dispor a seu favor de posse do estabelecimento com base em contrato de cessão de exploração que foi outorgado entre ele e as herdeiras de Armando […], arrendatário desde 7-12-1978 do R/C ou loja onde se situa o estabelecimento. 3. Ora a sociedade insolvente não é, nem nunca foi, arrendatária do local onde se situa o estabelecimento e, por isso, não pode o administrador da insolvência exigir ao requerente, como exigiu por carta de 27-10-2005, que, “ no prazo de 10 dias […] seja entregue livre e devoluto o referido estabelecimento, acto esse que evitará que tenha de recorrer à medida de apreensão com recurso, se necessário, à autoridade policial”. 4. E porque o requerente tem direito à manutenção do contrato de exploração e, por conseguinte, direito à não resolução de tal contrato em benefício da massa insolvente, não pode igualmente o administrador declarar, como fez pela aludida carta, que “ […] a não ser nulo o contrato, haveria motivos para a sua resolução, nos termos nomeadamente do artigo 121º,nº1, alínea b) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas” e, assim, “ conforme o disposto no artigo 123º do mesmo diploma comunicamos-lhe, por cautela e para a hipótese de ter existido qualquer contrato válido, que é resolvido esse mesmo contrato ao abrigo da norma já citada” 5. Por sua vez a requerida, embora reconhecendo que o contrato de arrendamento foi celebrado com Armando […], salientou que este, pouco tempo depois, cedeu a posição contratual de locatário à sociedade […], que passou desde então e sem qualquer interrupção a ser titular do estabelecimento comercial ali exercendo actividade comercial, pagando renda e sendo emitido em seu nome recibos, ali trabalhando vários empregados de comércio pagos pela ora insolvente, ou seja, a sociedade foi locatária do local durante mais de 20 anos, reconhecida como tal pela senhoria. 6. O referido Armando era único sócio-gerente da insolvente e faleceu em Janeiro de 2005, pouco tempo antes da insolvência ser declarada por sentença de 16-5-2005. 7. O estabelecimento em causa encontra-se apreendido desde 12-12-2005 ( a presente providência foi instaurada no dia 15-12-2005) ocorrendo efectivamente a apreensão naquela data do “ direito ao trespasse e arrendamento de um estabelecimento sito na Av. […] constando do respectivo contrato de arrendamento como senhorias […] ao qual foi atribuído pelo Sr. louvado o valor de[…]”. 8. Veio entretanto a insolvente requerer em 23-5-2006 a extinção da instância alegando que “ na sequência da apreensão do estabelecimento há muito tempo feita (antes da instauração da providência) tomou posse efectiva do estabelecimento, pelo que a instância se tornou, supervenientemente, inútil”. 9. A pretensão da requerida foi indeferida com o fundamento de que “ o que o requerente pretende é que seja sustada a apreensão, apreensão que efectivamente já ocorreu, como ambas as partes concordam, mas também que o Sr. administrador se abstenha de praticar quaisquer actos que ponham em causa o seu direito. Ora relativamente a esse pedido não se verifica claramente a inutilidade superveniente, com a tomada de posse efectiva por parte do Sr. administrador do bem; pelo contrário, a necessidade de acautelar o alegado direito do requerente tornou-se mais premente, face à disponibilidade pelo Sr. administrador do bem. 10. Importa, assim, que os autos prossigam os seus termos com a realização da audiência final, já agendada, improcedendo a pretensão do requerente massa insolvente da extinção do procedimento cautelar, por inutilidade superveniente”. 11. Interposto recurso de agravo, a insolvente alegou que ao ser intentada a providência cautelar já havia sido executada a apreensão do estabelecimento nos termos do artigo 149º/1 do Decreto-Lei nº 53/2004, de 18 de Março e, porque os bens apreendidos não foram entregues, o administrador, posteriormente à acção, tomou conta do estabelecimento nos termos do artigo 150º do mesmo diploma. A providência cautelar, prossegue a recorrente, que já era, de certo modo, inepta pelo facto de o bem estar apreendido, tornou-se, depois, supervenientemente inútil quando o administrador tomou posse efectiva do bem. 12. Foi também interposto recurso de agravo da decisão de fls. 111 que indeferiu o pedido de alteração do rol apresentado no dia 31-3-2006 considerando a recorrente que o artigo 303.º do C.P.C. não proíbe que se altere o rol nas condições definidas no artigo 512º-A do C.P.C. 13. Prosseguiram os autos e veio a ser proferida decisão que julgou procedente a providência cautelar determinando que o liquidatário dê imediatamente acesso ao estabelecimento comercial apreendido nos autos sito […] Setúbal, permitindo que aquele exerça actividade, no mesmo, nos termos do contrato junto como documento nº1 aos autos, com Maria.[…] e Maria […], abstendo-se de praticar quaisquer actos que ponham em causa os direitos concedidos ao requerente no contrato referido até que seja decidida, com trânsito em julgado, a acção interposta pelo requerente e que corre os seus termos como apenso G), P. 611/05. 14. Foi impugnada a matéria de facto considerando o recorrente que deviam ter sido dados como provados os seguintes factos: a) A Sociedade […] passou sem qualquer interrupção a ser titular do estabelecimento comercial sito […] em Setúbal b) O senhorio aceitou como inquilina a Sociedade […]. c) Armando […] e mulher sempre consideraram a sociedade […] como dona do estabelecimento 15. Sustenta ainda a recorrente nas suas conclusões que a posse efectiva era uma consequência lógica da apreensão do estabelecimento, carecendo de fundamento jurídico a instauração de providência cautelar para impedir uma conduta do administrador prevista na lei, impondo-se ao possuidor do bem apreendido a reacção através do meio processual contemplado no artigo 141º/1 e 3 e 145º do CIRE que impõe litisconsórcio necessário passivo; não resultou provado que o arrendamento de 1978 estivesse ainda em vigor, provando-se que era a insolvente a arrendatária só ela podendo ceder exploração; a providência decretada foi diferente da solicitada, os prejuízos da insolvente são muito superiores aos alegados pelo requerente, a entrega do estabelecimento ao requerente devia ser caucionada. 16. Factos provados: 1- No dia 21-4-2005 Maria […] e Maria […], na qualidade de únicas herdeiras de Armando […], por um lado, e Z.[…], por outro, outorgaram contrato de cessão de exploração do estabelecimento em causa nos autos. 2- Do contrato ficou, para além do mais, estipulado que a cessão teria início no dia 1-5-2005 vigorando pelo prazo de um ano, automaticamente renovável por iguais períodos. 3- No dia 27-10-2005 o administrador da insolvência enviou à requerente carta a que se alude em 3. 4- No dia 7-12-1978 o R/C ou loja em causa nos autos foi arrendado a Armando […] 5- Ficou estipulado na cláusula quarta que “ o arrendatário fica com a faculdade de subarrendar a casa a qualquer sociedade de que ele seja sócio”. 6- Foi efectuada no dia 12-12-2005 a apreensão a que se alude em 7. 7- Mais tarde, já na pendência do presente procedimento, foi efectivada a posse do estabelecimento por parte da administração da insolvente. 8- Todos os bens e mercadorias existentes no estabelecimento ficaram dentro do mesmo. 9- O requerente não tem possibilidade de adquirir novos estoques para iniciar actividade noutro local. 10- A sociedade […] comprou e vendeu no estabelecimento supra referido mercadoria, designadamente cortinados, carpetes e tapetes. 11- No estabelecimento referido em 10 trabalhavam vários empregados de comércio, pagos pela sociedade […]. 12- Durante vários anos as rendas no locado referido foram emitidas em nome da sociedade […] Lda. Apreciando: 17. A pretensão do requerente, com base na posse que lhe advém do contrato de cessão de exploração, outra não é senão a de impedir que seja efectivada a apreensão do estabelecimento que explorava desde 1-5-2005. 18. Anteriormente (12-12-2005) à instauração da presente providência (15-12-2005), houve um auto de apreensão do direito ao trespasse e arrendamento, mas não houve efectivo desapossamento. 19. O requerente jamais sustentou que fosse arrendatário do aludido estabelecimento e, por isso, a apreensão do direito ao arrendamento e trespasse apenas afectaria a sua posse se o administrador da insolvência pretendesse tomar conta do estabelecimento, pois, a partir desse momento, é que ficaria inviabilizada a sua exploração. 20. Por isso, a título preventivo, o requerente pretende com a presente providência impedir que se efective a apreensão do estabelecimento e que sejam praticados actos que ponham em causa o seu direito de exploração com base no aludido contrato de cessão de exploração. 21. No entanto, antes de ser proferida qualquer decisão por parte do tribunal, dá-se a prevista apreensão do estabelecimento, enquanto realidade física, local onde o requerente procedia à sua actividade comercial que, assim, ficou impossibilitada. 22. O procedimento cautelar instaurado não prevê, contrariamente ao que sucede com a oposição mediante embargos de terceiro, uma fase introdutória onde, reconhecida a sua viabilidade e determinado o seu prosseguimento, se considere suspensa a execução da diligência (artigo 359.º/2 do C.P.C.). 23. No entanto, utilizado este meio processual e pressupondo-se que era ele o meio adequado, a referida alteração de facto não implica a inutilidade superveniente da lide, pois, embora efectivada a lesão do direito do requerente, o Tribunal, reconhecendo a validade da sua pretensão, deverá obviamente proferir a decisão adequada. 24. Essa adequação é admitida por lei (artigo 392.º/3 do C.P.C.) e pode traduzir-se precisamente na decisão que reponha as coisas, tanto quanto possível, na mesma situação em que se encontravam quando o procedimento foi instaurado. 25. Não ocorre, portanto, uma inutilidade superveniente da lide, decisão que premiaria um abuso do direito por parte do administrador que, na pendência da acção e com conhecimento da pretensão do requerente, decidiu avançar com a efectiva apreensão do estabelecimento onde o requerente efectuava o seu giro comercial. 26. Certo é que a apreensão de bens em processo de insolvência resulta de decisão judicial visto que na sentença que declara a insolvência o juiz decreta a apreensão, para imediata entrega ao administrador, de todos os bens do devedor, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos e sem prejuízo do disposto no n.º 1 do artigo 150º (artigo 36.º/1, alínea g) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas). 27. Cabe ao administrador a concretização dos bens a apreender, podendo dar-se o caso de o administrador apreender indevidamente bens, designadamente por não serem da titularidade do insolvente. 28. Ainda assim, a apreensão não deixa de constituir execução de uma decisão judicial. 29. Por isso, no caso de a diligência ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência - e isso acontece quando são apreendidos bens cuja posse não pertence ao insolvente - o lesado tem ao seu dispor, em regra, a oposição mediante embargos de terceiro. 30. Sucede que a lei expressamente proíbe a dedução de embargos relativamente à apreensão de bens realizada no processo especial de recuperação de empresa e de falência, hoje processo de insolvência (artigo 351.º/2 do C.P.C.). 31. Está, assim, vedado ao lesado o recurso a esse meio processual ou a outro procedimento que tenha por objectivo, atenta a pretensão concretamente formulada, a restituição provisória da posse dos bens apreendidos com base em sentença declaratória de insolvência (artigos 351.º/2 e 356.º do C.P.C.). 32. Qualquer procedimento que tenha em vista a mesma finalidade dos embargos de terceiro visa um fim proibido por lei e, por conseguinte, está votado ao insucesso. 33. A lei permite àqueles que pela apreensão se sintam lesados na sua posse ou propriedade obter a restituição ou a separação de bens que tenham sido indevidamente apreendidos para a massa insolvente por via do procedimento a que aludem os artigos 141.º e seguintes do C.I.R.E. 34. É este o procedimento que o lesado deve utilizar, não os embargos de terceiro ou procedimentos cautelares que visem igual finalidade. 35. A pretensão do requerente podia ter sido liminarmente indeferida (artigos 234.º/4, alínea b) e 234.º-A/1 do C.P.C.). 36. Não tendo ocorrido indeferimento liminar, o processo em princípio seguiria para julgamento e, então, a razão de ser da improcedência deveria ser conhecida quando da prolação da decisão final. 37. O Tribunal, porém, chamado a decidir a questão da extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, podia, a nosso ver, nesse momento decidir no sentido da extinção da instância por impossibilidade da lide (artigo 287.º, alínea e) do C.P.C.) visto que a situação a apreciar encerrava um conteúdo fáctico diverso daquele que se apresentara ao tribunal com o requerimento inicial. 38. Naquele momento estava em causa a pretensão correspondente aos embargos deduzidos com função preventiva (artigo 359.º do C.P.C.); agora, a oposição face à diligência efectivamente lesiva da posse. 39. É certo que a solução - impossibilidade da lide - é igual num e noutro caso. 40. Mas, face a diverso enquadramento circunstancial, o Tribunal podia agora emendar a mão, permita-se a expressão, sem ter de aguardar o momento ulterior à produção de prova. 41. Por este motivo, afigura-se-nos correcto do ponto de vista processual o provimento do agravo interposto da decisão que indeferiu o pedido de extinção de instância por inutilidade superveniente da lide, considerando-se haver lugar à extinção da instância por impossibilidade da lide, que era já originária, mas que podia ser constatada e declarada face à verificação da mencionada ocorrência superveniente: veja-se o Ac. do S.T.J. de 20-10-2005 (Oliveira Barros) (P. 2288/2005-7ª secção) in www.dgsi.pt que não exclui o entendimento anteriormente exposto de a impossibilidade originária da lide ser conhecida, depois do liminar, mas antes do julgamento, se ocorrer uma situação superveniente que permita ao tribunal pronunciar-se sobre a questão. 42. O provimento do agravo prejudica o conhecimento das questões que foram suscitadas a propósito da decisão final. 43. Refira-se que, no caso em apreço, ainda que a impossibilidade originária da lide não pudesse ser declarada a propósito do agravo interposto, esta seria sempre questão a tratar com precedência face às demais, prejudicando o seu conhecimento e, por isso, o interesse da nuance que indicámos relevaria para a situação que se depararia ao juiz se, face ao requerimento do administrador da insolvência pedindo a extinção da lide por superveniência objectiva, quisesse logo aí julgar findos os autos declarando a sua impossibilidade originária. Concluindo: I- Todo aquele que se sinta lesado na sua posse ou propriedade pela apreensão de bens efectivada pelo administrador da insolvência na sequência de sentença declaratória de insolvência que decretou a apreensão dos bens do insolvente (artigo 36.º/1, alínea g) do C.I.R.E.) terá de recorrer aos procedimentos para restituição e separação de bens previstos no artigo 141.º e seguintes do mesmo diploma. II- Quando se utilizam meios procedimentais que visam o mesmo objectivo que seria atingido com a oposição mediante embargos de terceiro, que a lei expressamente proíbe relativamente à apreensão de bens realizada no processo especial de recuperação de empresa e de falência, hoje insolvência, (artigo 351.º/2 do C.P.C.), pretende-se alcançar uma finalidade proibida por lei. III- Por isso, uma tal pretensão deve ser liminarmente indeferida por impossibilidade originária da lide, admitindo-se que o reconhecimento dessa impossibilidade possa ser efectivado, ainda antes da fase de produção de prova, se ocorrer situação superveniente que justifique pronúncia do tribunal. Decisão: concede-se provimento ao agravo julgando-se finda a instância por impossibilidade originária da lide. Custas pelo agravado Lisboa, 19 de Outubro de 2006 (Salazar Casanova) (Silva Santos) (Bruto da Costa) |