Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1515/13.6TVLSB.L1-2
Relator: MARIA JOSÉ MOURO
Descritores: EXTINÇÃO DA ACÇÃO DECLARATIVA
HOMOLOGAÇÃO DO PLANO
PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/13/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – A expressão «acções para cobrança de dívidas» constante do nº 1 do art.º 17.º-E do CIRE deve ser interpretada no sentido de que abrange quer as acções executivas quer as acções declarativas que tenham por finalidade obter a condenação do devedor numa prestação pecuniária – como sucede no caso da presente acção.
II – Todavia, o legislador não terá pretendido incluir na extinção ali prevista, por força da homologação do plano de recuperação, as acções onde se discutem créditos que continuam a necessitar de definição jurisdicional para que possam ser satisfeitos, ainda que em obediência àquele plano, indo a letra do preceito além do pensamento legislativo nele vertido; trata-se de uma “lacuna oculta” (ausência de uma restrição) cuja integração se realiza acrescentando, por via da redução teleológica da norma, a restrição omitida.
III – Deste modo, não é abrangida pelo âmbito da extinção uma acção declarativa como esta em que se discute a existência de créditos e o seu valor, por isso relacionados (no PER) “sob condição” - sem prejuízo de a decisão de homologação do plano vincular os credores da devedora, aqui R., nos termos do nº 6 do art. 17-F do CIRE, encontrando-se a A. obrigada a observá-la nos precisos termos previstos no processo especial de revitalização, com a única especificidade de os créditos “estabilizarem” deixando de depender da “condição” ali mencionada.
IV – Não se verificando o condicionalismo que permitiria concluir pela inutilidade superveniente da lide não procede a consequente extinção da instância nesses termos.
V - A decisão de homologação do plano vincula os credores da devedora, logo, também, a aqui A., a qual terá de respeitar o consignado no âmbito do PER, não havendo, todavia, uma excepção de caso julgado a impedir o prosseguimento desta acção.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível (2ª Secção) do Tribunal da Relação de Lisboa:

                                                                       *

  I – «Multi 24 – Sociedade Imobiliária, SA» intentou acção declarativa com processo ordinário contra «Universo dos Sabores – Restauração e Turismo, SA», MA e AL.

            Alegou a A., em resumo:

         A A. celebrou com os RR. um contrato de utilização de loja em centro comercial, facultando à 1ª R. a utilização de uma loja no centro comercial designado como “Fórum Barreiro”, obrigando-se a 1ª R. ao pagamento de uma retribuição periódica mensal e a comparticipar em despesas e encargos comuns.

O contrato foi celebrado pelo prazo de seis anos com início em 5-11-2008 e como caução e garantia do bom cumprimento das obrigações a R. obrigou-se a entregar à A. uma garantia bancária à 1ª solicitação, intervindo os 2ª e 3ª RR. na qualidade de fiadores.

A loja encerrou, por decisão unilateral da 1ª R., em 1-6-2013, encontrando-se então esta em dívida para com a A. de prestações acordadas.

Através do accionamento da garantia bancária a A. recebeu a quantia de 27.082,94 € que imputou à quantia em dívida em 21-6-2013 no montante de 56.364,66 €. O valor em dívida à data da propositura da acção soma 38.866,14 € - a que acrescem juros moratórios sendo os vencidos no valor de 1.353,85 € - vendo-se, ainda, a A. privada de auferir a remuneração mensal devida pela exploração da loja até ao final do período previsto, contabilizando-se o valor de 41.592,85 €.

Pediu a A. a condenação solidária dos R. a pagarem-lhe a quantia de 40.219,99 €, acrescida de juros vincendos, bem como uma indemnização por lucros cessantes no valor de 41.592,85 €.

Os RR. contestaram, invocando a excepção do não cumprimento, alegando que foi a A. quem incumpriu o contrato, designadamente não atraindo clientes ao centro comercial, e defendendo-se por impugnação. Deduziram, também, reconvenção alegando que a garantia bancária foi accionada indevidamente, sendo a A. devedora aos RR. da quantia de  27.082,94 €.

Concluíram pela sua absolvição do pedido e pela condenação da A. a pagar-lhes 27.082,94 €, encargos com a prestação e reembolso.

A A. replicou.

Em 28-3-2014 a R. «Universo dos Sabores» veio requerer a suspensão da acção em razão da instauração de PER (fls. 282), decidindo o Tribunal indeferir a requerida suspensão da instância (fls. 298).

O pedido de suspensão da instância foi reiterado por requerimento de 13 de Abril de 2014 (fls. 301) o que mereceu despacho referindo que a questão já fora decidida (fls. 311).

A R. «Universo dos Sabores» interpôs recurso o qual não foi admitido porque intempestivo (fls. 342-343).

Em 23-4-2015 a R. «Universo dos Sabores» veio requerer a extinção da acção no que a si diz respeito, ao abrigo do disposto no art. 17-E, nº 1, do CIRE atento o facto de o plano de revitalização apresentado pela R. se encontrar homologado e transitado em julgado (fls. 360), o que igualmente fez no seu requerimento de 12-10-2015 (fls. 598).

No início da audiência final, foi proferido despacho que indeferiu a requerida extinção da instância (fls. 608).

A final foi proferida sentença que condenou os RR. a pagarem à A. a quantia de 38.866,14 € acrescida de juros de mora, bem como a quantia a apurar em posterior liquidação respeitante à privação desde 1 de Setembro de 2013 do recebimento da remuneração mensal devida pela exploração da loja, no valor mensal de 2.942,89 €, até data não concretamente apurada mas anterior a 4 de Novembro de 2014 e absolveu a A. do pedido reconvencional.

Apelaram os RR. concluindo nos seguintes termos a respectiva alegação de recurso:

I. A sentença proferida nos presentes autos não se poderá manter.

QUESTÃO PRÉVIA

II. O presente recurso tem por base o facto de a Recorrente sociedade ter estado em Processo Especial de Revitalização e ter esta questão, entretanto, sido suscitada nos autos.

III. Não obstante tal facto e de ter o tribunal “a quo” se pronunciado sobre a possibilidade de admissão de um recurso interposto por parte da Recorrente sociedade, tendo determinado que a questão já se encontraria dirimida e já transitada em julgado, a verdade é que o momento próprio para se interpor recurso sobre tal questão é após a prolação da sentença final, ou seja apenas é admissível recurso da decisão final e não de um despacho interlocutório, como se afigurava ser o caso.

IV. Daí que esta questão apenas com a decisão final é passível de ser apreciada por esse Exmo. Tribunal não estando, pois, tal questão já transitada em julgado.

V. Na medida em que não está em causa uma decisão cuja impugnação com o recurso da decisão final seria absolutamente inútil, já que não está em causa uma inutilidade absoluta do recurso em si, devendo, ainda, estar em causa o facto de a retenção do recurso inviabilize a finalidade do próprio recurso, o que não nos parece que tenha ocorrido no caso em apreço, pois a questão suscitada no recurso anteriormente interposto mantém toda a sua actualidade após a declaração da sentença final, pois a questão mantém-se passível de ser apreciada.

VI. Neste mesmo sentido já se pronunciou o Tribunal da Relação de Coimbra, no processo n.º 732/16.1T8CVL-A.C1, em 15.12.2016, que decidiu o seguinte em situação muito semelhante à dos presentes autos: “Na hipótese de, sendo interposto recurso da decisão final, e na linha do citado entendimento desta secção cível, vir a ser dada razão à Ré no seu entendimento de que há lugar à extinção da instância, nos termos descritos, o efeito será o da absoluta irrelevância dos actos praticados posteriormente ao despacho recorrido, incluindo a audiência de julgamento e a sentença, com as consequências daí decorrentes em termos do processamento e do desfecho da acção, nunca se podendo falar de inutilidade na retenção do recurso, por inutilizar a finalidade ou a própria razão de ser do mesmo. E não cabendo o recurso em questão em nenhuma das hipóteses do n.º 2 do citado artº 79-A, designadamente a sua al. h), a decisão sob censura só poderá ser impugnada no recurso que venha a ser interposto da decisão final, ou, caso não exista tal recurso, após o trânsito em julgado da mesma e desde que a decisão interlocutória tenha interesse para o apelante independentemente daquela decisão final – nºs 3 e 5 do mesmo artigo. Como tal há que considerar extemporâneo o recurso de apelação interposto pela Ré, neste momento processual.”.

VII. Aplicando ao caso em apreço a jurisprudência emanada do citado Acórdão, temos que é este o momento processual correcto para recorrer da questão suscitada referente ao Processo Especial de Revitalização, não estando, ainda, consequentemente, tal questão transitada em julgado, já que o anterior recurso interposto tem de ser considerado extemporâneo.

VIII. Nesta conformidade, requer-se que o recurso agora apresentado da decisão final seja apreciado por esse Exmo. Tribunal.

Isto posto e sem prescindir,

IX. A Recorrente sociedade comercial apresentou-se a processo especial de revitalização, tendo sido declarada em tal estado no processo que correu termos junto da Secção do Comércio de Lisboa, Juiz 1, com o n.º 415/14.7TYLSB, conforme documento já constante dos autos.

X. No identificado processo de revitalização foi proferida sentença de homologação do plano apresentado, tendo tal sentença transitado já em julgado, conforme documento igualmente já constante dos autos.

XI. Em face do exposto, temos que estava a Recorrida impedida de propor a presente lide atento o que dispõe o artigo 17.º- E, n.º 1, do CIRE.

XII. Perante o que determina o artigo 17-E, n.º 1, do CIRE e dado que o plano não previu a continuação da presente lide, dúvidas não restam que deveria ter sido a presente acção extinta não devendo prosseguir os seus termos, dando-se, assim, cumprimento ao que determina o supra citado artigo.

XIII. Acresce que os eventuais créditos que a Recorrida venha a ver reconhecidos nos presentes autos, porque configuram créditos anteriores à prolação do despacho inicial a que alude o artigo 17.º-C, n.º 3, a), do CIRE, apenas no âmbito do plano de revitalização apresentado, nos já supra identificados autos, poderão ser pagos, pelo que a sentença condenatória proferida nenhum efeito prático tem, já que a mesma não será passível de execução.

XIV. A Recorrida reclamou os seus créditos no valor de €83.877,51, no predito processo, os quais foram reconhecidos pelo Sr. Administrador Judicial Provisório, indo assim ser ressarcida, como os demais credores, nos termos previstos no plano de recuperação já aprovado e homologado por sentença transitada em julgado.

XV. Face à homologação do plano de recuperação da Recorrente sociedade comercial, esta está obrigada a cumprir com os seus exactos termos, não podendo pois pagar de forma mais favorável um determinado credor em detrimento de todos os demais, sob pena de estar a privilegiar um credor em detrimento dos demais, facto expressamente proibido pelas normas do CIRE,

XVI. Pelo que sempre existiria uma impossibilidade legal de a Recorrente sociedade comercial liquidar o valor a que foi condenada de forma distinta daquela que decorre do seu plano de revitalização.

XVII. Nesta conformidade, e atento tudo quanto foi exposto temos que atenta a homologação do plano de revitalização, deveria ter sido, de imediato, proferido despacho em cumprimento do que determina o artigo 17.º-E, n.º 1, do CIRE.

XVIII. Ocorre que não obstante a existência de lei – artigo 17.º-E, n.º 1, do CIRE - que determina que uma vez homologado plano de revitalização as acções que estejam em curso contra o devedor devem ser extintas, a verdade é que o Tribunal “a quo”, contra a lei, determinou o prosseguimento dos presentes autos.

XIX. Perante o que determina o artigo 17-E, n.º 1, do CIRE e dado que o plano não previu a continuação desta lide, dúvidas não restam que deveria ter a presente acção sido extinta e nunca deveria ter sido determinada a sua prossecução.

XX. O Tribunal “a quo” andou mal ao não aplicar aos presentes autos o que determina o artigo 17.º-E, n.º 1, do CIRE, impondo-se a esse Exmo. Tribunal a revogação da sentença proferida, mais sendo determinada a extinção dos presentes autos, o que se requer que seja determinado.

Em complemento do exposto, temos que

XXI. Atenta a identidade e similitude dos processos de insolvência e especial de revitalização deverá ter aplicação nos presentes autos o que determina o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, com o n.º 1/2014 - processo n.º 170/08.0TTALM.L1.S1 - publicado em Diário da República, em 25 de Fevereiro de 2014, já que em nada se distingue, para efeitos de aplicação do fixado no referido Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, o processo de insolvência do PER, pois em ambos os processos, no que diz respeito aos créditos, o que está em causa é a sua reclamação no processo, o que acontece e tem, obrigatoriamente de ser feito, em ambos os processos, já que em ambos os processos é determinada e obrigatória a reclamação de créditos por todos os credores, incluindo os fornecedores.

XXII. No sentido de que existe uma similitude de situações entre ambos os processos, veja-se o Acórdão proferido por esse Supremo Tribunal de Justiça, no processo n.º 414/13.6TYLSB.L1.S1, proferido em 25.11.2014, que determinou, mutatis mutandis, o seguinte: “IV. A unidade do sistema jurídico, impõe que as leis se interpretem umas às outras, o que no caso em apreço conduz à asserção de que não contendo as regras especificas relativas ao PER – constantes dos artigos 17ºA a 17ºI, qualquer dispositivo especifico de onde deflua quais os items a observar aquando da elaboração do «plano» e remetendo aquele normativo, para o Titulo IX, respeitante ao «Plano de Insolvência», embora se destacando o que preceituam os artigos 215º e 216º, igualmente insertos naquele Titulo, mas não descartando a aplicação de todos os outros que o enformam, parece não se poder concluir que as regras respeitantes àquele plano insolvencial não tenham aplicação no PER.”.

XXIII. O que nos leva a concluir que não existem razões ponderosas para que o artigo 17-E n.º 1, do CIRE não tenha alcance semelhante ao previsto no Acórdão Uniformizador da Jurisprudência a que já supra aludimos.

XXIV. Cumpre informar que a Recorrida reclamou créditos no valor que entendeu ser-lhe devido (podendo, ainda ter reclamado créditos sob condição, facto que não ocorreu), créditos esses que lhe foram reconhecidos no processo especial de revitalização da Recorrente sociedade comercial, sendo que é através desse processo que os seus créditos serão pagos.

XXV. Acresce que se a Recorrida não concorda com o valor do crédito que lhe foi reconhecido ou com a sua qualificação, deveria ter impugnado o seu crédito, ou recorrido a final, no PER, sendo esse o meio próprio para tal questão ser dirimida e nunca através do presente processo de acção de processo comum, sendo certo que a Recorrida não impugnou o crédito que lhe foi reconhecido, conformando-se, naturalmente, com o mesmo!

XXVI. Posição semelhante decorre do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça ao determinar que “Declarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência; - A partir daí, os direitos/créditos que a A. pretendeu exercitar com a instauração da acção declarativa só podem ser exercidos durante a pendência do processo de insolvência e em conformidade com os preceitos do CIRE – cujos momentos mais marcantes da respectiva disciplina deixámos dilucidados –, seja por via da reclamação deduzida no prazo fixado para o efeito na sentença declaratória da insolvência (…e, no caso, a A. não deixou de o fazer), seja pela sua inclusão na listagem/relação subsequentemente apresentada pelo administrador da insolvência, não subsistindo qualquer utilidade, efeito ou alcance (dos concretamente peticionados naquela acção[13]), que justifiquem, enquanto fundado suporte do interesse processual, a prossecução da lide, assim tornada supervenientemente inútil.”.

XXVII. Acabando, por concluir, o identificado Acórdão Uniformizador de Jurisprudência que “1 – Negar a Revista, confirmando inteiramente o Acórdão impugnado, com custas pela recorrente. 2 – Uniformiza-se Jurisprudência, fixando o seguinte entendimento: Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.º do C.P.C.”.

Isto posto temos que:

XXVIII. Salvo melhor entendimento, e sempre com o devido respeito, não existe melhor processo para apreciar os créditos em causa, do que o Processo Especial de Revitalização, vendo o tribunal que aprecia este último processo de revitalização aumentada e estendida a sua competência material, tendo naturalmente capacidade e competência para apreciar a questão do reconhecimento ou não (se forem impugnados) dos créditos.

XXIX. Igualmente quanto a esta ideia acompanhamos o que decorre do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência quando determina que “Tendo a verificação por objecto todos os créditos sobre a insolvência, qualquer que seja a sua natureza e fundamento – n.º 3 do art. 128.º, como antedito – a jurisdição conferida ao Tribunal/decisor da insolvência, neste conspecto, tem necessariamente implícita uma verdadeira extensão da sua competência material. (É esclarecedora a oportuna ponderação de Maria Adelaide Domingos[11]: ‘O carácter universal e pleno da reclamação de créditos determina uma verdadeira extensão da competência material do tribunal da insolvência, absorvendo as competências materiais dos Tribunais onde os processos pendentes corriam termos, já que o Juiz da insolvência passa a ter competência material superveniente para poder decidir os litígios emergentes desses processos na medida em que, impugnados os créditos, é necessário verificar a sua natureza e proveniência, os montantes, os respectivos juros, etc.’).”.

XXX. Desta forma, e atento tudo quanto exposto nas presentes alegações de recurso deverá a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que determine, ao abrigo do que determina o artigo 17.º-E, n.º 1, do CIRE, a extinção da presente acção.

Ainda sem prescindir de tudo quanto foi exposto,

XXXI. Tendo em conta a homologação por sentença já transitada em julgado do plano de revitalização da Recorrente sociedade comercial, é entendimento dos Recorrentes que deverá ter total aplicação ao presente caso o disposto no artigo 619.º, n.º 1, do C.P.C., já que está em causa uma sentença proferida sobre a mesma questão – pagamento do crédito detido pela Recorrida – e que tem de ter aplicabilidade nos presentes autos.

XXXII. A decisão proferida no âmbito do PER tem força obrigatória fora do seu próprio processo, já que está em causa a mesma questão a decidir, estando igualmente em causa os mesmos sujeitos, o pedido e a mesma causa de pedir.

XXXIII. Nesta conformidade, deverá ser a excepção de caso julgado aplicável ao caso em apreço, por estar em causa a mesma questão já decidida por anterior sentença proferida e já transitada em julgado, tornando-se despicienda uma nova decisão sobre a mesma questão.

XXXIV. No que diz respeito aos fiadores, igualmente Recorrentes nos presentes autos, entendemos que igualmente a sentença não deverá produzir os seus efeitos, tendo em conta que a responsabilidade dos fiadores é subsidiária.

XXXV. Existindo uma forma de pagamento específica do crédito, prevista no plano especial de revitalização, é nesta exacta medida que devem os fiadores responder e caso a devedora originária o não cumpra.

XXXVI. Veja-se que a devedora principal – a sociedade comercial – não se encontra em incumprimento perante os seus credores; pelo contrário; a devedora principal encontra-se a cumprir o plano de revitalização aprovado e homologado, razão pela qual inexistindo incumprimento da devedora principal nenhum valor pode ainda ser exigido aos fiadores, o que se requer que V. Exa. determinem.

XXXVII. Neste sentido já se pronunciou o Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão proferido em 21.01.2014, no processo n.º 6466/05.5TVLSB.L1.S1, que determinou o seguinte: “ III - O fiador está obrigado a prestar, perante o credor, o correspondente ao que o devedor se havia comprometido a fazer. O incumprimento, por parte do devedor principal, da prestação a que ficou adstrito, compele o fiador a realizar a prestação em falta, nos precisos termos em que essa obrigação deveria ter sido prestada, independentemente da qualidade, ou qualificação jurídico-legal, em que o devedor principal contraiu ou assumiu a dívida principal.”.

XXXVIII. Continuando o referido aresto “O fidejussor não fica responsável pelo cumprimento da dívida perante o devedor principal mas sim, como se deixou assinalado supra nas palavras do Professor Januário da Costa Gomes “o fiador, sendo devedor, é-o de uma dívida própria: a dívida de fiança ou dívida fidejussória, que tem a peculiaridade de, pela técnica da acessoriedade, estar moldada nos termos da dívida principal: ela é moldada per relationem (arts. 631 e 634).” Daí que a sua relação (de interioridade obrigacional) se constitua relativamente ao devedor, este sim o portador da relação principal perante o credor. Embora assumindo uma dívida própria, a dívida da fiança ou dívida fidejussória, que se reverbera ou se molda pela dívida principal, o fiador não assume a qualidade especifica ou qualitativa do fidejussório. A assumpção qualitativa de que fala GS configura uma acepção que atina, não com a qualidade do devedor, mas sim com a qualidade da dívida. De passo, refere este autor, quando se refere ao aspecto ou conteúdo qualitativo da dívida, que a obrigação fidejussória reveste normalmente a característica de uma obrigação pecuniária. Isto é, a qualidade da dívida é referenciada ao conteúdo ou objecto da obrigação ou da prestação a garantir e não à qualidade do devedor na relação com o credor. Daí que, a qualidade em que o devedor assume a dívida perante o credor, não possa ser transmitida ao fidejussor pela simples razão de que este se obriga a prestar, perante o credor, um quantitativo correspondente ao que o devedor se comprometeu a prestar, independentemente, da qualidade em que assumiu a obrigação.”.

XXXIX. Nesta conformidade, e atento o exposto temos que uma vez sendo a sentença proferida revogada e sendo o pagamento do crédito detido pela Recorrida liquidado no âmbito do cumprimento do plano de revitalização, os fiadores apenas deverão ser chamados a liquidar qualquer valor à Recorrida apenas se a devedora principal incumprir com o plano de revitalização, e não de forma autónoma e sem que exista um prévio incumprimento por parte da devedora principal, o que se requer que V. Exa. determine.

A A. contra alegou nos termos de fls. 687 e seguintes.

                                                           *

II – São as conclusões da alegação de recurso, no seu confronto com a decisão recorrida, que determinam o âmbito da apelação, salvo quanto a questões de conhecimento oficioso que possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo. Deste modo, tendo em consideração o teor das conclusões da alegação de recurso, as questões que essencialmente se colocam são as seguintes: se a decisão que indeferiu a suspensão da instância não transitou em julgado, devendo ser agora considerada; se, face à homologação do plano, a presente acção deveria ter sido julgada extinta, não devendo prosseguir os seus termos; se, atenta a identidade e similitude dos processos de insolvência e especial de revitalização deverá ter aplicação nos presentes autos o que foi determinado no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, com o n.º 1/2014 verificando-se a inutilidade superveniente da lide; se se verifica a excepção do caso julgado.

                                                           *

III - Com interesse para a decisão a proferir salientam-se as seguintes ocorrências, para além do que decorre do relatório supra:

1 – A presente acção foi intentada em 30-8-2103.

2 – Em 12-1-2015, na 1ª Secção do Comércio de Lisboa, no processo com o nº 415/14.7TYLSB, autos de processo especial de revitalização em que figura como devedora a aqui R. «Universo dos Sabores – Restauração e Turismo, SA», foi proferida decisão de homologação do plano de recuperação, decisão esta que transitou em julgado (fls. 576).

3 – Na lista provisória de créditos constante daquele processo incluem-se os créditos da ora A. no valor de 42.284,66 € e 41.592,85 € respeitantes, respectivamente a rendas vencidas e a lucros cessantes, figurando como créditos comuns “sob condição” (fls. 557).

4 – No Plano apresentado é referido, no que concerne aos «Fóruns (Almada, Algarve, Montijo) o pagamento da dívida em 24 prestações mensais e sucessivas, vencendo-se a primeira no último dia útil de Setembro de 2014» (fls. 403-v e 478-v).

                                                           *

IV – 1 - No caso dos autos, como resulta do relatório supra, a R. «Universo dos Sabores» fez saber nestes autos do decurso do processo especial de revitalização e requereu a suspensão da instância, ao abrigo do nº 1 do art. 17-E do CIRE, o que o tribunal de 1ª instância indeferiu. Do despacho de indeferimento afigura-se-nos que caberia apelação autónoma, nos termos do nº 2-h), do art. 644 do CPC, sob pena daquele específico recurso deixar de ter qualquer interesse para o devedor, revelando-se absolutamente inútil, no circunstancialismo apontado e dadas as razões subjacentes à suspensão. Aliás, assim entenderam os ora apelantes que interpuseram recurso o qual não foi admitido porque extemporâneo, despacho de que não reclamaram. Aquele despacho de indeferimento da suspensão transitou em julgado, fazendo caso julgado formal (art. 620 do CPC).

A circunstância de o despacho que indeferiu a suspensão da instância ter feito caso julgado formal no âmbito do processo não impede que apreciemos, agora, a questão da extinção da acção, nos termos da mesma disposição legal (nº 1 do art. 17-E do CIRE) suscitada posteriormente pelos ora apelantes e decidida pelo despacho de fls. 208.

O recurso de tal despacho não se incluiu em qualquer das alíneas do nº 2 do art. 644 do CPC, cabendo agora a sua impugnação nos termos do nº 3 do art. 644.

Questão diferente é a de se a extinção apenas ocorrerá nos casos em que houve previamente uma suspensão da instância, ou seja se somente as acções em que ocorreu uma suspensão poderão vir a ser posteriormente julgadas extintas. Ora, isso não parece decorrer necessariamente do preceito em análise, afigurando-se, antes, face ao teor do nº 1 do art. 17 –E que “aquelas” acções - «quaisquer ações para cobrança de dívidas contra o devedor»  - se extinguem  logo que seja aprovado e homologado o plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação, independentemente de anteriormente ter havido uma suspensão da acção.                                                                                      *

IV – 2 - O nº 1 do art. 17–E do CIRE dispõe: «A decisão a que se refere a alínea a) do n.º 3 do artigo 17.º- C obsta à ins­tauração de quaisquer ações para cobrança de dívidas contra o devedor e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto ao devedor, as ações em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação».

Referem a propósito Carvalho Fernandes e João Labareda ([1]): «O despacho em questão obsta à instauração de quaisquer novas ações dirigidas à cobrança de dívidas pelas quais responde o devedor: além disso, importa a suspensão das que estiverem em curso com idêntica finalidade, incluindo os processos em que tenha já sido proferida sentença declaratória». Bem como: «No processo de revitalização, as ações suspensas só se extinguirão, em definitivo, se vier a ser aprovado e homologado um plano de recuperação, que será igualmente determinante para condicionar novas iniciativas processuais dos credores». Salientando que «diferentemente do que ocorre em sede de processo de insolvência, a paralisação aqui determinada abrange todas as ações para cobrança de dívidas e não apenas as executivas, incluindo-se, assim, as ações declarativas condenatórias».

Do mesmo modo, consideram Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões ([2]) que no conceito de acções para cobrança de dívidas cabem quer acções declarativas de condenação quer acções executivas.

Alexandre de Soveral Martins ([3]) entende, igualmente, que como «estão em causa “quaisquer acções de cobrança de dívida contra o devedor”, os termos da lei parecem indicar que neles não são apenas abrangidas as ações executivas», não vendo razão para afastar as ações declarativas.

Fátima Reis Silva ([4]) menciona que como «bem refere João Labareda estão aqui incluídas quer as ações executivas quer as ações declarativas condenatórias, podendo incluir também ações especiais e procedimentos cautelares».  Dizendo seguidamente, no que respeita à suspensão: «A ideia é proporcionar ao devedor algum espaço e tempo para se concentrar exclusivamente nas negociações, sem perturbações de defesa, diligências executivas, prazos processuais, etc., inculcando que o devedor deve também tentar resolver aqui as demais ações (ou pelo menos prever a sua continuação)». Mas, salientando: «Não vemos exatamente qual o sentido útil de fazer extinguir todas as ações de cobrança de dívida com a aprovação e homologação do plano. A suspensão serve o propósito de retirar pressão do devedor e dar-lhe uma “folga” para negociar. No entanto, nada obstaria que os processos prosseguissem (pode haver créditos litigiosos e se tal não estiver previsto no plano os credores pura e simplesmente terão que intentar novas ações) já que nem sempre o plano aprovado tem efeito sobre tais créditos – cfr- art.º 17.º - F, nº 6».

Já Nuno Salazar Casanova e David Sequeira Dinis ([5]) sustentam que a «expressão acções para cobrança de dívidas a que se refere o artigo 17º- E, nº 1, abrange apenas as acções executivas para pagamento de quantia certa (e as demais execuções sempre e quando se verifique a conversão das mesmas…) e os procedimentos cautelares antecipatórios de acções que deveriam ser suspensas ao abrigo do citado normativo legal», encontrando-se excluídas do âmbito do nº 1 do artigo 17º - E as acções declarativas. Acrescentando: «Não existe na acção de condenação realização coactiva do direito, pelo que também não se poderá falar de cobrança de dívida. Está-se ainda numa fase prévia, em que se discute e se reconhece judicialmente a existência de um devedor e de uma dívida».

Nesta ordem de ideias entende Maria do Rosário Epifânio ([6]) que no nº 1 do art. 17º - E «estão abrangidas apenas as acções executivas, ou as diligências executivas e ainda as providências cautelares de natureza executiva, propostas contra o devedor, e respeitantes a quaisquer dívidas. De facto, o PER é um processo especial de cariz concursal, à semelhança do processo de insolvência (embora com uma forte componente extrajudicial) não faz sentido suspender as ações declarativas ou impedir a sua propositura. Até porque a verificação dos créditos tem eficácia de caso julgado formal (só tem efeitos no âmbito do PER), podendo o respetivo credor ter interesse na prossecução dessa ação declarativa. Ora, se as ações declarativas forem paralisadas no âmbito do PER, extinguir-se-ão, nos termos do art. 17º - E, nº 1, se vier a ser homologado um plano de recuperação (solução excessivamente gravosa do ponto de vista da economia processual)».

Na jurisprudência das Relações, designadamente desta Relação, tem ocorrido divergência de entendimentos.

Sucede, todavia, que o STJ não tem aderido à interpretação da expressão acções para cobrança de dívidas não inclusiva das acções declarativas.

Deste modo, no acórdão do STJ de 17-11-2016 ([7]) entendeu-se resultar da análise do nº1 do art. 17 – E do CIRE que os efeitos da decisão ali referida «podem conduzir a uma das seguintes situações:

1.º- Tanto “obstam à instauração de quaisquer acções para cobrança de dívidas contra o devedor”;

2.º - Como “suspendem, quanto ao devedor, as acções em curso com idêntica finalidade”;

3.º - Ou “extinguem aquelas acções logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação”.

Exceptuando-se, apenas, nessa norma, as situações em que se preveja a sua continuação».

Sendo que no «conceito de “acções para cobrança de dívidas”, previsto no art. 17º-E do CIRE, estão abrangidas não apenas as acções executivas para pagamento de quantia certa, mas também as acções declarativas em que se pretenda obter a condenação do devedor no pagamento de um crédito que se pretende ver reconhecido».

No acórdão do mesmo Tribunal de 15-9-2016 ([8]) entendeu-se como acção para cobrança de dívidas, aquela em que o Autor peticione a condenação da R. no pagamento de créditos com expressão monetária. 

E no acórdão do STJ de 5-01-2016 ([9]) decidiu-se que a «expressão “acções para cobrança de dívidas” que consta do art.º 17.º-E, n.º 1, do CIRE deve ser interpretada no sentido de que abrange quer as acções executivas quer as acções declarativas que tenham por finalidade obter a condenação do devedor numa prestação pecuniária». Neste acórdão mencionou-se que se trata de questão que tem dividido, e continua a dividir a doutrina e a jurisprudência nacionais, a ponto de já se ter sustentado, por se considerar a lei dúbia e pouco clara, a conveniência duma “intervenção do legislador para esclarecer aquele sentido». Todavia, «esta interpretação é a única que se adequa e mostra inteiramente compatível com o objectivo do legislador ao instituir o PER», também se afigurando claro que a circunstância de o legislador «não ter distinguido entre acções declarativas e executivas, nos moldes previstos no artº 4º do CPC então em vigor (a que corresponde o artº 10º do CPC actual), indicia, por si só, que no artº 17º-E, nº 1, houve a pretensão de incluir ambos os tipos de acções, desde que visem a cobrança de dívidas contra o devedor».

Neste contexto, ponderadas as razões apontadas num e noutro sentido, parece-nos que a frase constante da lei engloba as acções declarativas de condenaçãose assim não fosse o legislador, ciente de que existem acções declarativas e acções executivas, não teria utilizado uma expressão tão abrangente.

Como salienta Catarina Serra ([10]) «o argumento literal torna quase indefensável um entendimento que exclua, sem mais, as acções declarativas», não havendo «sinais da vontade do legislador em delimitar o efeito às acções executivas»; atendendo «tanto à sua letra como ao seu espírito (a intenção de propiciar ao devedor a estabilidade necessária ao bom curso do processo), a norma é passível de aplicação, em concreto, a todas as acções directa ou indirectamente dirigidas a fazer valer direitos ou a exigir o seu cumprimento, independentemente da sua classificação como declarativas ou executivas no CPC».

Não se nega, todavia, alguma perplexidade nesta solução, tendo em conta a economia processual e uma vez que a verificação dos créditos no âmbito do PER apenas fará caso julgado formal, podendo o credor ter interesse no prosseguimento da acção declarativa. Não esqueçamos que, como referem Nuno Salazar Casanova e David Sequeira Dinis ([11]) o «PER não tem como finalidade dirimir litígios sobre a existência, natureza ou amplitude dos créditos. A decisão sobre a reclamação de créditos é meramente incidental pelo que nos termos do nº 2 do art. 96 do CPC não constitui caso julgado fora do processo».

Dizendo Catarina Serra ([12]) que a «tese da interpretação mais ampla tem contra si o facto de resultarem dela inconvenientes de monta no que toca aos créditos litigiosos, ilíquidos e, em geral, todos aqueles que ainda necessitam de definição jurisdicional».

Sobre este aspecto nos debruçaremos mais concretamente adiante.

                                                           *

IV – 3 - Como vimos, no caso dos autos, na lista de créditos do PER incluem-se créditos da ora A. no valor de 42.284,66 € e 41.592,85 € respeitantes a rendas vencidas e a lucros cessantes, figurando como créditos comuns “sob condição”. São créditos que na lista provisória (que, atentos os elementos de que dispomos se terá tornado a lista definitiva) são relacionados como “sob condição”. Não se diz que condição é aquela; o Plano a que nos reportamos, consoante resulta da sua análise, contém um elevado número de créditos “sob condição”, sendo que, por exemplo, no que concerne a créditos dos trabalhadores é mencionado “sob condição de cessação do CT”.

Concretamente quanto à “condição” dos créditos da A. não é feita qualquer nota específica na cópia do Plano junta a fls. 401-v e seguintes, embora ali sejam tecidas considerações sobre a regularização da dívida para com as “locadoras dos estabelecimentos de restauração” (fls. 408-v/410), entre as quais a do «Fórum Almada» - e é a essa dívida que nos reportamos. Refira-se que no que respeita aos créditos para com o pessoal é feita menção aos créditos sob condição, dizendo-se que aos «créditos cuja condição se verificou na pendência do processo ou se venha a verificar, a administração da devedora propõe proceder ao seu pagamento nos mesmos e exatos termos em que ficaria estabelecido para os créditos do mesmo tipo e natureza, já verificados sem condição, aproveitando o prazo remanescente à referida verificação da condição» (fls. 410-v); do mesmo modo quanto a créditos fiscais (fls. 412) dizendo-se que aos «créditos cuja condição se verificar após encerramento do processo especial de revitalização, a administração da devedora propõe proceder ao seu pagamento nos mesmos e exatos termos em que ficaria estabelecido para os créditos do mesmo tipo e natureza, já verificados sem condição, aproveitando o prazo remanescente à referida verificação da condição».

Que “condição” é esta? Apenas poderemos interpretar a expressão como tratando-se de créditos a ser considerados se reconhecidos por decisão judicial – a decisão deste processo, impropriamente assim contemplada como “condição”, com base no disposto no art. 50 do CIRE que diz considerarem-se (para efeitos daquele Código) créditos sob condição aqueles cuja constituição ou subsistência dependa de decisão judicial.

Aliás, na decisão recorrida menciona-se que o crédito da A. foi relacionado sob condição, apontando para o «reconhecimento futuro pela suposta devedora, ou por efeito de decisão judicial» - o que os apelantes não põem em causa no seu recurso.

Dissemos acima, seguindo as palavras de Catarina Serra, que a «tese da interpretação mais ampla tem contra si o facto de resultarem dela inconvenientes de monta no que toca aos créditos litigiosos, ilíquidos e, em geral, todos aqueles que ainda necessitam de definição jurisdicional».

Os créditos da aqui A. necessitam, ainda, de definição jurisdicional, consoante decorre do que mencionámos.

Artur Dionísio Oliveira ([13]) interrogando-se sobre se o legislador pretendeu efectivamente impor a extinção de todas as acções para cobrança de dívidas pendentes contra o devedor concluiu que aquilo que «o legislador pretendeu foi, num primeiro momento, assegurar as condições adequadas ao estabelecimento de negociações entre o devedor e os seus credores, tendo em vista a revitalização daquele, e, num segundo momento, a efectiva sujeição de todos os créditos ao plano de recuperação acordado e homologado pelo tribunal. Mas já não pretendeu impedir a apreciação judicial e o eventual reconhecimento dos créditos litigiosos ou a liquidação dos créditos ilíquidos». Lembra que a parte final do nº 1 do art. 17 – E abre uma excepção à extinção das acções para cobrança de dívida por força da aprovação e homologação de um plano de recuperação, admitindo que o próprio plano preveja a sua continuação. Prosseguindo: «A leitura que fazemos da parte final do n.º 1 do artigo 17.º-E do CIRE, conjugada com as finalidades próprias do PER, permite concluir com segurança que o legislador efectivamente não pretendeu incluir na extinção das acções por força da homologação do plano de recuperação aquelas onde se discutem créditos que continuam a necessitar de definição jurisdicional para que possam ser satisfeitos, ainda que em obediência àquele plano». Concluindo que «a letra do preceito que vimos analisando vai além do pensamento legislativo nele vertido, pois não expressa uma restrição que esteve presente na formulação daquele pensamento, isto é, que corresponde à respectiva intencionalidade normativa», tratando-se da chamada “lacuna oculta” cujo preenchimento se leva a cabo acrescentando pela via de uma “redução teleológica” da norma a restrição omitida». E que essa redução se traduz, no caso, «em excluir do âmbito de aplicação da norma que fixa como efeito da homologação de um plano de recuperação a extinção das acções para cobrança de dívidas pendentes contra o devedor, as situações em que os créditos continuam a necessitar de definição jurisdicional para que possam ser cobrados, ainda que com as limitações introduzidas pelo plano homologado».

Catarina Serra ([14]) expõe esta tese da redução teleológica, «dirigida a subtrair ao efeito extintivo os créditos que, no momento da homologação do plano, permaneçam litigiosos ou ilíquidos» dizendo que «ela parte do pressuposto de que aquilo que o legislador pretendeu foi, num primeiro momento, assegurar as condições adequadas ao estabelecimento de negociações entre o devedor e os seus credores, tendo em vista a revitalização daquele, e, num segundo momento, sujeitar todos os créditos ao plano de recuperação e não, de todo, impedir a apreciação judicial e o eventual reconhecimento dos créditos litigiosos ou a liquidação dos créditos ilíquidos». Aludindo à “lacuna oculta” diz que ela consiste na ausência de uma restrição e que a sua integração se realiza acrescentando, por via da redução teleológica da norma, a restrição omitida. Acrescentando que, em síntese, «de acordo com esta tese, o ponto central do debate sobre os efeitos da homologação de um plano de recuperação sobre as acções para cobrança de dívidas não se situará tanto na natureza declarativa ou executiva destas, mas antes na necessidade ou desnecessidade destas acções para assegurar a tutela jurisdicional efectiva dos créditos». Concluindo que a «solução é razoável e consegue, efectivamente, evitar alguns dos desejáveis resultados acima identificados. Evita, nomeadamente, que as acções em que se discute, por exemplo, a validade ou o valor do crédito sejam condenadas a uma abrupta extinção»

Aderimos a esta tese que se nos afigura ter adequada aplicação ao caso dos autos. Assim, não é abrangida pelo âmbito da extinção uma acção declarativa como esta em que se discute a existência de créditos e o seu valor, por isso relacionados “sob condição”.

Poderíamos, mesmo, sustentar que se o Plano documentado nos autos não previu expressamente a continuação da presente lide – no âmbito do permitido na parte final do nº 1 do art. 17-E - admitiu tacitamente que a acção prosseguisse a fim de que por efeito da decisão judicial nela proferida os créditos se definissem, deixando de se encontrar “sob condição” como ali é referido ([15]).

Conclui-se, pois, que a extinção desta acção, defendida pelos apelantes, não tem lugar.

Isto, obviamente, sem prejuízo de a decisão de homologação do plano vincular os credores da devedora, aqui R., nos termos do nº 6 do art. 17-F do CIRE, encontrando-se a A. obrigada a observá-la nos precisos termos previstos no processo especial de revitalização, com a única especificidade de os créditos “estabilizarem” deixando de depender da “condição” ali mencionada.

                                                           *

IV – 4 - Argumentam, seguidamente os apelantes sobre a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, por aplicação da doutrina que levou a que fosse proferido o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 1/2014. Este Acórdão Uniformizador tem o seguinte dispositivo: «Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.º do C.P.C».

Não estamos, manifestamente, perante uma situação em que fora declarada a insolvência, daí o acórdão ter aplicação “directa”.

Referindo o art. 277 do CPC as causas de extinção da instância, nelas se incluiu, efectivamente, a inutilidade superveniente da lide.

A lide tornar-se-á inútil quando é patente que por qualquer causaprocessual ou extraprocessual – o efeito jurídico pretendido deixa de ter interesse, redundando a actividade processual subsequente em verdadeira inutilidade; em teoria a lide continua possível mas, na prática, face ao seu objecto imediato, torna-se desnecessária ([16]).

Segundo o texto do acórdão de uniformização de jurisprudência acima referido, a «inutilidade do prosseguimento da lide verificar -se -á, pois, quando seja patente, objectivamente, a insubsistência de qualquer interesse, benefício ou vantagem, juridicamente consistentes, dos incluídos na tutela que se visou atingir ou assegurar com a acção judicial intentada».

Ora, não é isso que sucede, no caso que nos ocupa, dadas as circunstâncias que acabámos de expor em IV – 3), pelo que a argumentação dos apelantes no sentido de se verificar a inutilidade superveniente da lide não procede.

                                                           *

IV – 5 - Na sequência referem-se os apelantes à verificação da excepção do caso julgado.

Consoante consta do art. 619 do CPC, transitada em julgado a sentença, a decisão sobre a relação material controvertida fica tendo força obrigatória dentro do processo e fora dele, nos limites fixados pelos arts. 580 e 581 - quando constitui uma decisão de mérito, a sentença produz, também fora do processo, o efeito de caso julgado material.

Em dois aspectos se pode revelar a força do caso julgado: o da excepção do caso julgado (ou seja, da decisão transitada em julgado); o da autoridade do caso julgado. Pela excepção visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade de uma segunda acção, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito; a autoridade do caso julgado tem, antes o efeito positivo de impor a primeira decisão como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito ([17]).

«A excepção do caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior: a excepção do caso julgado garante não apenas a impossibilidade de o tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira diferente (...) mas também a inviabilidade do tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira idêntica...» ([18])

Ora, não temos aqui propriamente um idêntico objecto processual (o objecto da acção identifica-se através do pedido e da causa de pedir, nos termos que são definidos pelos nºs 3 e 4 do art. 581 do CPC) não se reconduzindo a situação, face à decisão proferida no PER, à acima definida excepção do caso julgado

Certo é que, como já dissemos, a decisão de homologação do plano vincula os credores da devedora, logo, também, a aqui A., a qual  terá de respeitar o consignado no âmbito do PER.

Não há, todavia, uma excepção de caso julgado a impedir o prosseguimento desta acção.

                                                           *

IV – 6 - Tendo em conta à posição por nós assumida torna-se inútil analisar os efeitos decorrentes do PER relativamente aos RR. Manuel Pedro e Ana Cristina que nesta acção surgem como fiadores.

                                                           *

V - Face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.

Custas pelos apelantes.

                                                           *

Lisboa, 13 de Julho de 2017

Maria José Mouro

    Teresa Albuquerque

             Jorge Vilaça

   _______________________________________________


[1]             Em «Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado», Quid Juris, 2ª edição, pags. 164-165.
[2]             Em «Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas», Almedina, 2013, pag. 64.
[3]             Em «Um Curso de Direito da Insolvência», Almedina, 2ª edição, pags. 521-522.
[4]             Em «Processo Especial de Revitalização – Notas Práticas e Jurisprudência Recente», Porto Editora, 2014, pag. 53.
[5]             Em «PER – O Processo Especial de Revitalização», Coimbra Editora, 2014, pags. 97 e seguintes.
[6]             Em «O Processo Especial de Revitalização», Almedina, 2016, pag. 33.
[7]             Ao qual se pode aceder em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/, processo 43/13.4TTPRT.P1.S1.
[8]             Ao qual se pode aceder em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/, processo 2817/09.1TTLSB.L1.S1.
[9]             Ao qual se pode aceder em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/, processo 172724/12.6YIPRT.L1.S1.
[10]            Em «O Processo Especial de Revitalização na Jurisprudência», Almedina, 2ª edição, pag. 63.
[11]            Obra citada, pag. 79.
[12]            Obra citada, pag. 65.
[13]            Em «Os efeitos processuais do PER e os créditos litigiosos», «III Congresso de Direito da Insolvência», coordenação de Catarina Serra, Almedina, 2015, pags. 199 e seguintes.
[14]            Obra citada, pags. 66-67.
[15]            Sobre situação com alguns contornos semelhantes ver o acórdão da Relação d e Évora de 5-11-2015 ao qual se pode aceder em http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/, processo 2843/11.0TBEVR.E1, em que se diz:  «A conjugação dos interesses em causa – o do processo especial de revitalização, nomeadamente, a sua celeridade e o do credor que veio a Tribunal pedir o reconhecimento de um alegado crédito – aponta, apenas, para circunscrever os efeitos do plano de recuperação, no âmbito do aludido procedimento, aos “créditos sob condição” (efectivamente) e não, também, os créditos litigiosos, quanto à sua constituição ou validade».
[16] Ver, a propósito, Francisco Ferreira de Almeida, «Direito Processual Civil», vol. I, Almedina, pag. 664.
[17]     Ver Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, «Código de Processo Civil Anotado», Almedina, vol. II, pag. 325.
[18]     Miguel Teixeira de Sousa, «O objecto da sentença e o caso julgado material», BMJ nº 325, pags. 49 e segs., na pag. 176.