Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9857/2004-7
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: RESERVA DE PROPRIEDADE
PENHORA
RENÚNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/14/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: A reserva de propriedade apenas pode ser convencionada e registada a favor do transmitente, nos termos do art. 409º do CC, não existindo no ordenamento jurídico nacional base legal para que a reserva seja feita a favor da entidade que financiou a aquisição do bem.
Apesar de ter sido registada a reserva de propriedade do bem a favor da entidade que financiou a sua aquisição, na acção executiva para pagamento de quantia certa intentada pela mutuante contra o adquirente/mutuário a nomeação do referido bem á penhora depende da prévia declaração de renúncia à reserva de propriedade e da respectiva comprovação através de certidão do registo.
Efectuada a penhora, na pressuposição de que não existia reserva de propriedade a favor da exequente, a acção executiva não pode prosseguir, designadamente para efeitos de se proceder à venda do bem, sem que a exequente comprove, mediante certidão do registo, a renúncia à reserva de propriedade.
Porque a reserva de propriedade não constitui uma garantia real cuja caducidade resulte da venda do bem, nos termos do art. 824º do CC e do art. 888º do CPC, o seu cancelamento constitui um ónus da exequente e não uma tarefa de que deva encarregar-se o tribunal ou que deva ser transferida para o adquirente do bem em venda judicial.
Decisão Texto Integral: I – BANCO MAIS, SA,
no âmbito de uma acção executiva para pagamento de quantia certa que intentou contra
C. JESUS
e
L. FAUSTINO
foi proferido despacho determinando a notificação da exequente para comprovar o cancelamento do registo de propriedade a seu favor relativamente ao veículo penhorado, sob pena de a execução não poder prosseguir para a fase da venda.

Por decisão individual e sumária do relator, acompanhada de cópia de outro acórdão relatado pelo mesmo e que incidira sobre a mesma questão, proferido no âmbito do processo nº 4667-03, de 27-5-03, foi negado provimento ao agravo.

A agravante reclamou para a conferência e juntou cópia de acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que decidiu em sentido inverso.

A exequente agravou de tal decisão e concluiu que:

 
a) Nos autos em que sobe o presente recurso foi logo de início requerida a penhora sobre o veículo automóvel com a matrícula 33-19-HX, penhora que foi ordenada;
b) Não é por existir uma reserva de propriedade sobre o veículo dos autos em nome da ora recorrente que é necessário que esta requeira o cancelamento da dita reserva, não tendo o Mº Juiz a quo competência para proceder a tal notificação à exequente, ora recorrente;
c) O facto de a reserva de propriedade estar registada não impede o prosseguimento da penhora, pois de acordo com o disposto no art. 824º do CC e art. 888º do CPC, aquando da venda do bem penhorado, o Tribunal deve, oficiosamente, ordenar o cancelamento de todos os registos que sobre tal bem incidam;
d) No caso de surgirem dúvidas sobre a propriedade dos bens objecto de penhora, se deve agir de acordo com o que se prescreve no art. 119º do CRP caso a penhora já tenha sido realizada;
e) Tendo a exequente optado pelo pagamento coercivo da dívida em detrimento da resolução do contrato e do funcionamento da reserva de propriedade para chamar a si o bem sobre a qual a mesma incide; tendo a exequente renunciado ao domínio sobre o bem, pois desde o início afirmou que o mesmo pertencia ao recorrido; tendo a reserva de propriedade sido constituída apenas como mera garantia; prevendo-se nos artigos 824º do CC e 888º do CPC, que aquando da venda do bem penhorado, o Tribunal deve, oficiosamente, ordenar o cancelamento de todos os registos que sobre tal bem incidam; e não se prevendo no art. 119º do CRP que se notifique o detentor da reserva de propriedade para que requeira o seu cancelamento, é manifesto que no despacho recorrido, se errou e decidiu incorrectamente;
f) Caso, assim, não se entenda, sempre se dirá, que a exequente deveria ter sido notificada para se pronunciar pela renúncia ou não à propriedade do veículo, como o foi, tendo respondido, mas não ser notificada para requerer o seu cancelamento;
g) No despacho recorrido, ao decidir-se pela forma como se decidiu claramente se violou e erradamente se interpretou e aplicou o disposto no art. 888° do CPC; violou também o disposto nos arts. 5°, n° 1, e 29º do Dec. Lei nº 54/75, os arts. 7º e 119º do CRP, e os arts. 408º, 409º, 601º e 879º, al. a), do CC.

Não houve contra-alegações.

Cumpre decidir.

II – Elementos a ponderar:

1. Logo no requerimento executivo foi pela exequente nomeado à penhora o veículo automóvel com a matrícula 33-19-XX, tendo a exequente referido no requerimento respectivo que o mesmo pertencia ao executado Carlos;
2. A penhora foi ordenada, efectuada e registada;
3. Foi apresentada a certidão de fls. 100 e segs., de onde consta que a “propriedade” se encontra registada, com data anterior, a favor do executado E. Moreira, recaindo o “encargo - reserva” a favor da exequente;
4. Perante tal certidão, o Mº Juiz a quo proferiu o despacho agravado de fls. 103, no qual determinou a notificação da exequente para dizer se renuncia à reserva de propriedade sobre o veículo e, em caso afirmativo, para proceder ao cancelamento de tal registo, sob pena de não prosseguir a execução para a fase da venda.
5. A exequente veio deixar expresso que renunciava à reserva de propriedade e, relativamente à segunda parte do despacho, veio agravar, entendendo que não tem que proceder ao cancelamento do registo na CRA.

III – Decidindo:
1. O objecto do agravo resume-se a apurar se, constando do registo automóvel a reserva da propriedade a favor da exequente, a execução deve prosseguir sem estar previamente demonstrado o cancelamento daquele registo.

2. A situação reflectida pelos autos no que respeita ao veículo causa alguma perplexidade.
Referindo a agravante que apenas interveio numa operação de financiamento para a aquisição do veículo pelo executado (fls. 15), não pode deixar de se estranhar a existência de um registo de “reserva de propriedade” que, nos termos do art. 409º, apenas pode beneficiar o alienante (“é lícito ao alienante reservar para si a propriedade”).[1]
Não se conhecem os passos que conduziram a um tal resultado. Certo é que, tal como a exequente reconhece nas alegações (fls. 15) e o registo deixa transparecer, a situação mais se assemelha a uma hipoteca do que a um ónus de reserva de propriedade, conseguindo a exequente, por via do registo da reserva de propriedade a seu favor, efeitos semelhantes aos da alienação fiduciária em garantia [2] que noutros sistemas vigora mas que, entre nós, ainda não logrou alcançar consagração legal. A situação configurada pela certidão do registo automóvel contraria tudo quanto a respeito da figura da reserva de propriedade se possa invocar, designadamente o facto de se tratar de uma figura qualificável como alienação sob condição suspensiva.
Nos termos do art. 5º, nº 1, al. b), e nº 2, do Dec. Lei nº 54/75, de 12-2, prevê-se a inscrição obrigatória no registo automóvel da reserva de propriedade. Mas, como resulta art. 46º do Reg. do Reg. Automóvel, aprovado pelo Dec. Lei nº 55/75, de 12-2, tal reserva é a que for estipulada nos contratos de alienação de veículos em que intervêm apenas o vendedor (proprietário) e o comprador (adquirente).
Também no art. 6º, nº 3, al. f), do Dec. Lei nº 359/91, de 21-9 (contratos de aquisição a crédito) se prevê que fique a constar do texto do contrato de financiamento o “acordo sobre a reserva de propriedade”. Mas tal disposição reporta-se apenas a situações em que o vendedor, proprietário do bem, mantém essa qualidade, por efeito da reserva, ao mesmo tempo que financia a aquisição através de alguma das formas previstas no art. 2º (diferimento do pagamento, mútuo, utilização de cartões de crédito ou outro acordo de financiamento semelhante).
Não pode essa norma ter aplicação a situações previstas no art. 12º de tal diploma, em que o crédito é concedido por terceiro para financiar o pagamento de bem adquirido ao vendedor. Em situações, como esta, em que o financiamento à aquisição do veículo veio da exequente, que tinha a qualidade de terceiro relativamente ao negócio de compra e venda, não pode ser encarada com a naturalidade suposta pela exequente a inclusão no texto do contrato de compra e venda da cláusula de reserva de propriedade a favor do mutuante, em violação das mais elementares características do instituto que suspende, até ao preenchimento das circunstâncias contratualmente previstas pelas partes, a efectiva integração da propriedade do bem na esfera jurídica do adquirente. Muito menos pode ser desvalorizada e tratada com a superficialidade que a exequente pretende o facto de ter sido levada ao registo automóvel e de nele se manter tão exdrúxula situação capaz de pôr em causa a confiança que deve ser conferida ao registo de direitos em cadastros estaduais.

3. Porém, para efeitos deste agravo, não pode olvidar-se que se encontra em vigor o referido registo.
Apesar disso, tendo as partes optado pela inscrição da reserva de propriedade a favor da exequente-mutuante, em vez de ficar registada a reserva a favor do vendedor, não pode aquela pretender que tal registo seja tratado intraprocessualmente como uma normal garantia real semelhante à hipoteca.
Caso tivesse sido outorgada (e registada) hipoteca sobre o veículo automóvel para garantia do crédito correspondente ao financiamento da aquisição, a penhora recairia prioritariamente sobre o veículo, beneficiando o exequente de preferência na ocasião da distribuição do produto da venda do bem hipotecado. Em tal eventualidade, depois de concretizada a venda, seria promovido o cancelamento dos registos correspondentes aos direitos reais de garantia, como sucede com a hipoteca e com a posterior penhora (art. 888º do CPC e 101º, nº 5, do CRP).
Não assim em situações como a dos presentes autos em que estamos confrontados com a manutenção do registo da “reserva de propriedade” de um bem que, como a exequente confessa, nunca foi da sua “propriedade”, e que apenas pode encontrar justificação na ideia de se acautelar, durante a vigência do contrato de mútuo, contra a penhora do bem por outros credores do adquirente,[3] contra a venda do bem a terceiro (como a exequente admite a fls. 16) ou, quiçá, para se liberar dos custos inerentes ao registo da hipoteca ou do cancelamento da reserva de propriedade.

4. Insiste-se: mantendo-se a reserva de propriedade a favor da exequente, o veículo não deveria nem poderia ter sido penhorado;[4] e uma vez efectuada a penhora, não deveria a mesma ter sido registada em termos definitivos, atento o disposto no art. 92º, nº 2, al. a), do CRP, aplicável ao registo automóvel.
Invoca a agravante que, ao indicar o bem à penhora,  tacitamente renunciou à reserva de propriedade.
Ainda que fosse admissível atender a uma declaração de renúncia desacompanhada da comprovação do cancelamento da reserva de propriedade, a mesma jamais poderia ser o resultado de uma interpretação, sempre duvidosa, de comportamentos processuais, devendo antes ser expressa e formalmente assumida em declaração dotada da força necessária para assegurar a renúncia e para servir de base ao futuro cancelamento registral.[5]
É verdade que na sequência do despacho recorrido (depois de efectuada a penhora) a exequente veio expressar tal renúncia. Mas nem assim se mostra garantida a regularidade processual que permita avançar com o processo para a fase da venda.
Devendo o registo automóvel estar em conformidade com a situação substantiva dos bens, designadamente para defesa de terceiros, a penhora do bem cuja reserva de propriedade está inscrita em nome da exequente exigia que esta, previamente, demonstrasse o cancelamento da reserva de propriedade ou que, ao menos, comprovasse esse cancelamento antes de o processo avançar para a fase da venda executiva.
Tendo a exequente omitido a verdadeira situação do veículo, ao referir que o mesmo pertencia ao executado, quando, afinal, tinha a seu favor a reserva da propriedade, e recusando-se a cancelar, depois, o registo da reserva, deve vedar-se a passagem para a fase da convocação de credores e a posterior venda do bem.

5. Tal regularização é um ónus que recai sobre a exequente e não sobre o Tribunal, como pretende a agravante. Afinal é a exequente a única responsável pelo imbróglio revelado nestes e em centenas de outros processos, malgrado as decisões que contra tal posição têm sido proferidas nesta Relação, facto que a exequente omite, e cujo número é bem mais significativo do que o das decisões de sentido inverso que se aprestou a invocar.
 De todo o modo, mais importante do que a contabilização jurisprudencial é a constatação irrefutável de que a reserva de propriedade não constitui uma garantia real coberta pelas normas dos arts. 824º do CC ou do art. 888º do CPC, que apenas abarcam os direitos reais de garantia e os demais direitos reais (como a reserva de propriedade) que não tenham registo anterior ao registo da penhora.
Ainda que a reserva de propriedade tenha sido funcionalmente utilizada e registada como garantia o cumprimento da dívida (apesar de no registo se não dar qualquer notícia do seu montante, como sucederia se tivesse sido registada hipoteca), não é juridicamente um “direito real de garantia”. Constituindo, em termos rigorosos, uma condição suspensiva aposta ao direito de propriedade e sendo o seu registo anterior ao da penhora, não encontra sustentação nas regras do cancelamento oficioso a pretensão da agravante.[6]
Numa outra perspectiva, de ordem prática, cabe ainda dizer que não é legítimo transferir para os Tribunais, já sobrecarregados com massificadas acções decorrentes de incumprimento de contratos de concessão de crédito ao consumo (entre os quais se encontra uma elevada percentagem em que a agravante é promotora) tarefas que devem ficar a cargo dos credores.
E também não é legítimo que, por via de entendimentos como aquele que defende a agravante, com vista a eximir-se do pagamento dos emolumentos porventura necessários para o cancelamento do registo, se acabe por transferir para o eventual adquirente do bem (“livre de quaisquer ónus e encargos”, como soe dizer-se) a tarefa burocrática de conseguir o cancelamento efectivo do registo da reserva de propriedade, suportando, como decorre das regras do registo, os referidos emolumentos.

7. Contra o referido não é legitimo invocar o disposto no art. 119º do CRP, aplicável ao registo automóvel.
O recurso ao mecanismo previsto em tal disposição apenas se justifica relativamente a discrepâncias entre a titularidade do bem e o respectivo registo que respeitem a pessoas diversas do exequente e não, como ocorre no caso concreto, a situações imputáveis à própria exequente.

8. Não se ignora que sobre a referida questão o Supremo Tribunal de Justiça proferiu o acórdão de 2-11-04, cuja cópia foi junta pela exequente, desconhecendo-se a existência de outros arestos do mesmo tribunal que tenham incidido sobre a referida questão.
A argumentação empregue em tal aresto não abala os fundamentos que expusemos neste e noutros processos.
Confrontado com o mesmo e tendo em conta a necessária extrapolação que de qualquer tese jurídica pode fazer-se para casos semelhantes, é pertinente perguntar: se acaso a mesma questão (isto é, o registo da reserva de propriedade a favor do mutuante, sem que este tenha sido anteriormente proprietário, pretendendo a exequente a penhora e a venda judicial do bem) surgir em processos em que, por exemplo, esteja em causa imóvel de elevado valor poderá avançar-se, com a ligeireza defendida pela exequente e com a argumentação tecida no acórdão do STJ, imediatamente para a fase da venda sem estar definitiva e seguramente decidida a questão da reserva de propriedade? E seria legítimo ou razoável concretizar a venda, passando sobre o referido registo da reserva de propriedade, desvalorizado com base em considerações assentes na interpretação da vontade da exequente como significante de renúncia tácita, transferindo para depois da venda a resolução do problema do cancelamento da reserva de propriedade que efectivamente se encontra registada?
As simples regras de cautelas que tanto se impõem em processos judiciais e, designadamente, em processos de execução, aconselham que não se siga tal caminho. As mesmas regras, aliadas à necessidade de tratamento igual de situações idênticas, determinam que não se adoptem para situações como a dos autos entendimentos que dão prevalência aos interesses da exequente e deixem a descoberto ou em situação duvidosa interesses de terceiros que venham a adquirir direitos por via da venda judicial.

9. Ainda assim, não deixaremos de incidir sobre a referida argumentação.
Relativamente à mesma, recusa-se que tenha constituído acto inútil a notificação do exequente para declarar se renunciava à reserva de propriedade. Tal notificação era imposta pelos valores da segurança e certeza jurídica que devem rodear os mecanismos processuais designadamente os processos de execução que apenas podem incidir sobre bens que inequivocamente integrem o património do executado.
O facto de a actividade do tribunal desembocar na venda dos bens e de a essa venda serem chamados interessados alheios ao processo impõe que tudo quanto seja susceptível de causar dúvidas sobre a situação jurídica dos bens fique antecipadamente definido. Aliás, a decisão proferida acabou por revelar o interesse existente na referida notificação.

Relativamente ao problema da caducidade, é seguro que, com a venda, o agente de execução deve promover oficiosamente o cancelamento dos registos dos direitos reais que caducam (arts. 888º do CPC e 824º, nº 2, do CC). Registos esses que devem ser depois cancelados sem que o adquirente tenha de suportar quaisquer custos (art. 101º, nº 5, do CRP):
Mas tal não abarca a reserva de propriedade, uma vez que não constitui direito real de garantia ou de gozo, antes constitui uma condição suspensiva, pelo que nem sequer se pode alcançar o cancelamento.
Neste contexto, a ausência de actuação prévia relativamente ao registo da reserva de propriedade e a possibilidade de a venda ser concretizada apesar da sua persistência confluem para a manutenção de uma situação nebulosa em redor do direito adquirido que é incompatível com a segurança e certeza jurídicas que pelo tribunal devem ser asseguradas quando, no âmbito da acção executiva, intermedeia a venda de bens.
A exequente insiste, neste e em centenas de processos, na recusa de cancelamento dos registos de reserva de propriedade e na impugnação das decisões que contrariam a sua pretensão apenas porque não quer arrostar com o trabalho burocrático que tal iniciativa envolve ou com os custos do cancelamento, transferindo tudo isso para o tribunal ou para o adquirente.
Já não bastava o facto de ter conseguido, sem o necessário apoio jurídico, o registo da reserva de propriedade, com funções de garantia que lhe evitou os custos de uma outra alternativa (a hipoteca) mais consentânea com a sua posição de mutuante num contrato de concessão de crédito; já não bastava a instrumentalização do processo executivo, tratando a reserva de propriedade como uma verdadeira hipoteca; enfim, já não bastava tudo isso para ainda pretender transferir para o Tribunal o ónus de desembaraçar a situação jurídica do bem cuja penhora requereu, deixando pairar, mesmo depois da sua futura venda, uma situação nebulosa que a ninguém aproveita e que é passível de causar prejuízos ao adquirente e pôr em causa a segurança jurídica pressuposta quando alguém adquire bens em sede de acção executiva.
A aceitação da tese da exequente e daquela em que se fundou o aresto do STJ contém o risco, que de modo algum se encontra arredado, de saírem prejudicados deste imbróglio terceiros interessados.
Com efeito, passada a venda judicial, continuará a figurar no registo a reserva de propriedade, enquanto não for promovido o seu cancelamento, o que pode determinar para o adquirente (maxime, para o adquirente de boa fé, ciente de que adquiriu através do tribunal um bem totalmente desonerado) o escusado envolvimento num processo administrativo-burocrático de cancelamento do registo da reserva, a suportar custos com que não contava ou a defrontar-se com dificuldades de que, em bom rigor, deveria ficar liberto depois de pagar o preço alcançado na venda, designadamente quando pretender vender o bem a terceiros.

Muito menos se aceita a argumentação tecida em redor da reserva de propriedade decorrente de contrato de crédito ao consumo.
Já referimos que a intervenção da exequente na relação trilateral que envolveu a aquisição do automóvel e o seu financiamento é incompatível com a reserva de propriedade, não se compreendendo como foi possível à exequente registar a referida reserva, se a mesma não era titular do direito de propriedade e interveio apenas como financiadora da sua aquisição.
De qualquer modo, é inegável a existência do registo da reserva da propriedade, não fazendo sentido ignorá-lo nos termos sugeridos pelo acórdão do STJ. Pelo contrário, estando registada a reserva, ao abrigo do art. 5º, nº 1, al. b), do Dec. Lei nº 54/75, e não tendo sido concretizada a sua extinção registral, como o determima o art. 5º, nº 1, al. f), do mesmo diploma, não pode o juiz passar para a fase da venda a fim de impedir que sejam goradas ou agravadas as expectativas de terceiro que porventura adquira o bem na venda judicial.
Enfim, sejam quais forem as razões que levaram á verificação da situação registral do veículo, não pode ignorar-se o registo da reserva de propriedade, deve ser a exequente a suportar com os custos burocráticos e/ou financeiros que levem ao seu cancelamento e que potenciam a segurança jurídica que neste momento se não encontra assegurada.

IV – Conclusão:
Face ao exposto, acorda-se em conferência em negar provimento ao agravo, mantendo a decisão sumária proferida pelo relator e mantendo, assim, a decisão recorrida.
Custas da agravante.

Lisboa, 14-12-04

António Santos Abrantes Geraldes
Maria  do Rosário Morgado
Rosa Maria Ribeiro Coelho

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[1] Cfr. Raul Ventura, ROA, ano 43º, pág. 605, Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, pág. 176, e Lima Pinheiro, A Cláusula de Reserva de Propriedade, pág. 23.
[2] Cfr. Antunes Varela, CC anot., vol. II, 4ª edº, pág. 230
[3] Menezes Leitão, ob. cit., pág. 176, e Raul Ventura, ob. cit., pág. 610
[4] Sobre a inadmissibilidade de penhora cfr. Antunes Varela, CC anot., vol. II, 4ª ed., pág. 230, o Ac. desta Relação, de 30-4-02, CJ, tomo II, pág. 124, assim como o Ac. proferido no procº nº 8862-02 (Rel. Maria do Rosário Morgado).
[5] Cfr. neste sentido Lima Pinheiro, A Cláusula de Reserva de Propriedade, pág. 69, e o Ac. desta Relação, de 21-2-02, CJ, tomo I, pág. 114.
[6] Neste sentido se decidiu nos acórdãos desta Relação, de que fui adjunto, de 20-5-03, no procº nº 3693/03, e de 19-12-02, no procº nº 9593-02 (Rel. Jorge Santos).