Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
931/15.3TDLSB.L1-5
Relator: JORGE GONÇALVES
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
APRECIAÇÃO DA PROVA
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/03/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: – Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.

– O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados.

– Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa.

– E, havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação (não bastando a simples remissão para a totalidade de um ou vários depoimentos), pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 4 e 6 do artigo 412.º do C.P.P.), salientando-se que o S.T.J, no seu acórdão N.º 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, N.º 77, de 18 de abril de 2012, fixou jurisprudência no seguinte sentido: «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações».

– É sabido que os crimes sexuais em geral (e os praticados num contexto intrafamiliar ou de algum modo análogo, em particular), decorrem de forma oculta, longe da “vista” de terceiros pelo que se compreende que, no âmbito do elenco dos meios de prova admissíveis – constituindo princípio legal o de que «são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei» (artigo 125.º do C.P.P,) –, a apreciar segundo as regras da experiência comum e a livre convicção (embora motivada e juridicamente controlável) da entidade decisora, assumem particular relevo as declarações das ofendidas (ou ofendidos), designadamente se forem menores, pois atenta a natureza do bem jurídico violado, o seu sujeito activo procura rodear-se, na prossecução dos seus propósitos, das maiores cautelas, longe dos olhares intrusos, actuando sem dar nas vistas, para não se comprometer.

– Quer isto dizer que a prova da verificação dos factos, nos crimes de natureza sexual, por força das circunstâncias, pode ser particularmente difícil, já que escasseia a prova directa e, regra geral, só o arguido e a vítima têm conhecimento da maioria dos factos pelo que assume especial relevância o depoimento da vítima, desde que, como é evidente, o mesmo seja credível e esteja em sintonia com as regras da experiência comum, de molde a formar a convicção do julgador.

– E, atentas as naturais dificuldades de reconstituição do facto delituoso, sobretudo quando perpetrado de forma oculta e longe da vista de terceiros, há que recorrer, por vezes, à prova indirecta, devidamente valorada, para basear a convicção da entidade competente sobre a existência ou não da situação de facto .
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.



I–Relatório:


1.– No processo comum com intervenção do tribunal colectivo n.º 931/15.3TDLSB, o arguido JA, melhor identificado nos autos, foi julgado pela imputada prática, em autoria material, de um crime de abuso sexual de crianças, previsto e punível pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal, por que tinha sido pronunciado.

IM (assistente nos autos) deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, pretendendo a sua condenação no pagamento à menor, ofendida, de indemnização por danos não patrimoniais e patrimoniais, com o acréscimo de juros calculados à taxa legal, desde a notificação de tal pedido, e no pagamento de todos os tratamentos/consultas médicas que a menor tenha que frequentar no futuro, na sequência dos factos praticados pelo arguido, conforme fls. 189 e seguintes.

Antes da leitura do acórdão, foi o arguido advertido da possibilidade de alteração não substancial dos factos descritos na acusação, nada tendo oposto ou requerido.

Realizado o julgamento, foi proferido acórdão que decidiu nos seguintes termos:

«Pelo exposto, tudo visto e ponderado, julga este Tribunal Colectivo procedente a pronúncia e, consequentemente, decide:
Condenar JA  pela prática de 1 (um) crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.°, n.º 1, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão.
Suspender a execução desta pena de prisão por um período de 3 (três) anos, com sujeição ao cumprimento de um regime de prova, que contemple uma abordagem terapêutica à parafilia sexual, devendo o arguido cumprir o plano de readaptação social a efectuar, e ficando proibido de contactar, por qualquer meio, com a ofendida CM  .
Condenar JA  no pagamento a CM das quantias de € 15.000 (quinze mil euros), a título de danos não patrimoniais, e de € 1.040 (mil e quarenta euros) a título de danos patrimoniais, ambas acrescidas de juros desde a data da notificação do pedido de indemnização civil, esta última acrescida da quantia de € 490 (quatrocentos e noventa euros) referentes aos danos patrimoniais entretanto liquidados, cujos juros se vencerão desde o trânsito em julgado, até ao integral pagamento dessas quantias, bem como no que se liquidar em execução de sentença quanto ao valor dos tratamentos/consultas médicas de que a ofendida necessite em consequência do crime praticado pelo arguido, absolvendo-o do remanescente pedido de indemnização civil.
(…)»
 
2.– O arguido recorreu deste acórdão, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
A)– O suporte probatório do douto acórdão condenatório do Tribunal a quo, fundamentalmente suportado pelas declarações da testemunha MBP , psicóloga, cuja corroboração com os outros elementos de prova (testemunhal e documental) constante nos autos, e da sua análise crítica, não poderia resultar a condenação do Recorrente, mas sim imporia a sua absolvição.
B)– O ora recorrente foi condenado pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.°, n.° 1, do Código Penal.
C)– Porém tal condenação só foi possível porque o Tribunal Coletivo quis, ignorando uma realidade fática.
D)– A menor CM  só alega o "abuso" perpetrado pelo recorrente, inventa uma estória que não pode ter credibilidade, porque é falsa. Porque afinal se trata de pessoa que mente reiteradamente.
E)– A menor recorre à mentira com uma facilidade chocante. E fez um papel surpreendente para convencer, temos que reconhecer, NOTÁVEL.
F)– Sendo que, não se compreende é como o Tribunal fez "orelhas mocas" às mentiras contadas aos pais, avó e também constantes nos documentos formulados pela Psicóloga Prof. Doutora CS e também pelos Técnicos de Medicina Legal.
G)– Ora, as conclusões encontram-se completamente distorcidas e não poderão vingar, conforme adiante se demonstra.
H)– Dos depoimentos da mãe e do pai, onde este último é severamente "punido" pela filha sobre uma mentira contada com todos os pormenores e também acompanhada de uma teatralidade notável. GRANDE RÁBULA!!!
I)– A cena é repetida perante a Psicóloga da Escola, "mutatis, mutandis" no dia seguinte. Desta a "vítima" não é o pai, mas sim o "tio Zé".
J)– De notar, que a cena é acompanhada exatamente com os mesmos gestos e atitude, mas com uma diferença. Enquanto que no primeiro caso a cena termina com uma chamada para o pai onde esta é de imediato desmascarada, seguindo-se um veemente pedido de desculpas, desta vez não é feita a confrontação e daí a mentira subsistir até aos dias de hoje.
K)– Seguramente que se tal tivesse acontecido, teríamos uma CM a pedir, veemente, desculpa pela maldade cometida, foi pena.
L)– Mas, mais pena mostra o Tribunal que não foi capaz de discernir que perante uma adolescente que mente a torto e a direito, não tenha tido o cuidado de pôr, pelo menos, em dúvida o relato mentiroso da menor.
M)– Contudo, veio ainda o Tribunal, numa forma perfeitamente descabida, considerar a conduta mentirosa da menor como um alerta pelo sofrimento, da mágoa, etc, etc, que a menor esteve a ser vítima.
N)– Tal encontra-se espelhado nas considerações tecidas.
O)– Mas já assim não sucedeu quanto ao depoimento da testemunha MJB , avó materna da menor, das testemunhas ACR , RIR  , MGA e MAG, arroladas pelo arguido, e quanto ao próprio arguido.
P)– Que critério é este???
Q)– Não se questiona a faculdade por parte dos julgadores em apreciar livremente a prova, mas também não é, nem pode ser, aceitável, porque as regras a observar para se alcançar a desejada verdade material são aqui completamente ignoradas, diremos mesmo, gravemente distorcidas.
R)– Sendo que, o recorrente não pretende colocar em crise o princípio de livre apreciação da prova com o qual estão oneradas as Ilustres Julgadoras(es). No entanto, a liberdade de apreciação da prova está balizada pelos factos demonstrados e não demonstrados em juízo e, "in casu", os factos demonstrados em juízo foram outros, por isso, outros devem ser os factos provados e não provados.
S)– Pelo que, da nossa análise da prova registada e produzida em audiência de discussão e julgamento serão respeitados, sempre os limites e cumprimento do ónus de especificação impostos pela lei, como sejam os princípios do n.° 3 e 4, do artigo 412.° do Código de Processo Penal.
T)– E é de acordo com este normativo que se considera os pontos de facto que foram incorretamente julgados, o que implica uma reformulação do douto acórdão proferido pelo Tribunal a quo.
U)– Ora, a liberdade da convicção e apreciação da prova produzida em audiência de julgamento, que é livre, artigo 127° do CPP e de ver que as(os) llustre(s) Julgadoras(es) são detentores, não é arbitrária. Esta está condicionada, porque motivada e controlável, condicionada também pelo princípio da persecução da verdade material.
V)– Ademais, o Tribunal, na pessoa da MM.ª Juiz Presidente, ao impedir o contraditório, por parte da defensa do arguido, à testemunha MBP , psicóloga, violou gravemente um dos seus deveres que é o de garantir o contraditório como resulta do disposto da al. f), do artigo 323.° do CPP.
W)– Tal é por demais notório e evidente na transcrição da prova onde se dá conta da impossibilidade em inquirir a aludida testemunha MBP , psicóloga.
X)– Como sendo exemplo disso as expressões proferidas pela Sra. Juiza Presidente - Não! Eu quero saber qual é a pergunta!; Não admito a pergunta. Sr Dr. está...; eu estou a interferir porque; Eu compreendo o seu desacordo; As que eu admitir Sr. Pr (entenda-se, perguntas); A Sr.ª pára já de responder; que já referiu desconhecer?; Qual é a relevância da pergunta, no âmbito destes autos?
Y)– Em especial destaque, "o tribunal não deixa é que a testemunha responda várias vezes à mesma questão."
Z)– Aqui resulta claro o comportamento violador do Tribunal a quo, ao coartar o direito e princípio do contraditório e de inquirição da testemunha, pela defesa do Recorrente.
AA)– Isto porque, as testemunhas deveriam, e devem, responder tantas vezes quanto as necessárias à mesma questão, ou a outras que se demonstrem pertinentes e relevantes, no sentido de atingir o fim último, ou seja, apurar a verdade material, essencial e imprescindível à boa decisão da causa.
BB)– Sendo por ora, como na altura, igualmente evidente o nosso profundo repúdio pela atitude da Juiz Presidente em impedir tal inquirição.
CC)– Assim, o coletivo, ao agir como agiu não se deu conta da gravidade da situação criada pela Sra. Juiz Presidente, pois tal conduta é por nós considerada como um ato de vandalismo perpetrado contra o princípio do contraditório que é imposto ao tribunal.
DD)– Da mesma forma que a prova recolhida pelo depoimento da testemunha MBP , psicóloga, forte sustentáculo para a condenação do Recorrente, deverá ser tida como nula e de nenhum efeito, conforme disposto nos artigos 18.°, 20.°, 30°, todos da Constituição da República Portuguesa.
EE)– Isto porque, a testemunha em causa foi questionada previamente ao início do seu depoimento sobre se o sigilo profissional a que está adstrita a permitia responder, e se sim, responder com verdade. Tendo expressado que sim, que iria responder a todas as questões que lhe fossem colocadas e com verdade.
FF)– Contudo, quando questionada sobre temas ou situações específicas, que na nossa análise levariam o tribunal a ver com outros olhos a menor, as suas atitudes e comportamentos, bem assim como deitariam por terra toda a construção fática aí descrita, a referida testemunha socorreu-se do até então "levantado" sigilo para se furtar a responder com verdade, conforme juramento prestado no início da sua inquirição.
GG)– O acórdão proferido veio ainda determinar a comunicação à Ordem dos Médicos, o que não se concebe, nem compreende.
HH)– Resulta da matéria de facto provada que o Recorrente exerceu a profissão de médico oncologista no IPO de Coimbra e que actualmente é médico oncologista no SAMS em Lisboa;
II)– No entanto, não foi dado como provado qualquer segmento em que se identifique a população alvo que trata, mais concretamente as idades dos seus pacientes.
JJ)– Sendo que, o Recorrente exerce a sua profissão de médico oncologista em pessoas com idade superior a 18 anos de idade, não consultando nem tratando crianças e jovens de idade inferiores a 18 anos, não praticando oncologia pediátrica.
KK)– Apesar do Recorrente ter sido condenado a uma pena de prisão de 3 anos suspensa por igual período de tempo, sujeito à injunção de não se aproximar da vítima e praticar um curso relacionado com a problemática da sexualidade, não foi imposto no regime de prova qualquer restrição ao exercício da actividade médica pelo arguido durante esse hiato temporal de 3 anos.
LL)– Tal como não foi definida a idade do público alvo do seu tratamento, facto que se revela importante para apurar em que termos é que esta decisão poderá afectar o exercício da profissão de médico pelo Recorrente.
MM)– Importante e necessário é também a decisão definir se o Recorrente fica impedido de ministrar tratamento médico a menores de 18 ou 14 anos de idade e durante quanto tempo, devendo especificar o seu fundamento.
NN)– O que, igualmente, se verifica não sucedeu no acórdão proferido, consubstanciando violação dos preceitos legais e constitucionais aplicáveis.
OO)– Reza o Art.° 68.° do EOM, que a Ordem dos Médicos exerce o poder disciplinar sobre os médicos, logo o acórdão deverá fundamentar a comunicação e delimitar a injunção que impende sobre o Recorrente, em consequência da condenação pela prática do crime de abuso sexual de criança.
PP)– Visto que a Ordem dos Médicos só poderá delimitar o exercício da actividade médica em função da definição pelo Tribunal da população alvo com que o Recorrente não pode ou não deve ter contacto, tendo presente que este crime se verifica com menores de 14 anos e o Recorrente não trabalha com pessoas de idade inferior a 18 anos.
QQ)– Acresce que, o Tribunal a quo ao ordenar a comunicação da decisão à Ordem dos Médicos também deverá estabelecer o hiato temporal que esta decisão tem consequências no exercício da actividade médica, não devendo deixar em aberto esse poder nas mãos da Ordem dos Médicos.
RR)– Até porque, nos termos do Art.° 145.°, n.° 2, a) do EOM, a Ordem dos Médicos pode instaurar um processo de averiguação da idoneidade para o exercício da profissão em consequência da condenação da prática de crime de natureza sexual, pelo que é importante que a decisão delimite e defina os aspectos que a Ordem dos Médicos deve ter em consideração nesse processo de averiguação, tendo sempre presente que as injunções só vigoram durante os três anos de pena suspensa.
SS)– Ademais, não pode haver condenação "ad eterno". Tal é de todo vedado legalmente, num Estado de Direito, como é o nosso, e ainda bem que assim é, senão estaríamos perante um estado de selvajaria.
TT)– Aqui também andou mal o Tribunal a quo violando o princípio da equidade e proporcionalidade ao ter proferido condenação do Recorrente nos moldes em que o fez.
UU)– Atente-se que o caso vertente, foi o Recorrente ainda condenado "(...), bem como no que liquidar em execução de sentença quanto ao valor dos tratamentos/consultas médicas de que a ofendida necessite em consequência do crime praticado pelo arguido (...)."
W)– Ora, tal condenação consubstancia uma violação clara e gravíssima dos direitos, liberdades e garantias do Recorrente, nomeadamente, constante do artigo 30.° da CRP - Limites das penas e das medidas de segurança - o qual estatuí que "não pode haver penas nem medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade com carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida."
WW)– Por todo o supra exposto, considera-se que o douto acórdão proferido pelo Tribunal a quo, em sede da prova registada e produzida em audiência de discussão e julgamento não respeitou os limites e cumprimento do ónus de especificação impostos pela lei, como sejam os princípios do n.° 3 e 4, do artigo 412.° do Código de Processo Penal.
XX)– E ainda, o Tribunal ao impedir o contraditório, por parte da defesa do arguido, à testemunha MBP , psicóloga da escola da menor, violou gravemente um dos seus deveres que é o de garantir o contraditório como resulta do disposto da al. f), do artigo 323° do CPP.

3.– O Ministério Público junto da 1.ª instância apresentou resposta em que conclui (transcrição das conclusões):
1.- O arguido procede à transcrição do depoimento da assistente, mãe da CM  e do depoimento do pai da CM , da testemunha, avó da CM  e companheira do arguido, da testemunha, psicóloga, sublinhando o que reputa, para si, relevante,
2.- Transcreve igualmente uma declaração exarada pela psicóloga clinica prof. Dra. CS, da qual procura extrair que a menor mente compulsivamente, quando diga-se, em abono da verdade, é precisamente o contrário que dali resulta
3.- O que acontece igualmente com o relatório pericial psicológico a fls. 290 dos autos.
4.- Em suma, a discordância do recorrente limita-se a questionar a valoração da prova pelo Tribunal recorrido, valoração essa livremente formada e fundamentada.
5.- «o julgador é livre, ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja "vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, (...) regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório»(Cavaleiro Ferreiro, in (Curso de Processo Penal", 1986, I- vol., pág,211).
6.- Daqui decorre que a crítica à convicção do tribunal a quo, sustentada na livre apreciação da prova e nas regras da experiência, não pode ter sucesso se se alicerçar apenas na diferente convicção do Recorrente sobre a prova produzida.
7.- Ora, ouvida a prova gravada, há que reconhecer, que a versão dada como provada tem cabimento nos meios probatórios produzidos em julgamento, apresentando-se a fundamentação exarada pelo tribunal a quo consistente com os elementos de prova e as regras da experiência comum.
8.- Afirma ainda o arguido que foi violado o princípio do contraditório porquanto o tribunal não permitiu inquirira testemunha MP .
9.- Contudo, e como claramente resulta da própria transcrição que refere, a própria juiz acabou por fazer a pergunta que o ilustre mandatário intentava colocar,
10.- Nessa altura, o que se verifica é que o mesmo pretendia ser ele a colocar tais perguntas, mas fazendo-o de forma que se afigura capciosa e indutiva, repetindo perguntas, pelo que se afigura ajustada a intervenção da Meritíssima Juiz Presidente
11.- E relevantemente, mais do que o testemunho de MP , revela a perícia que foi realizada cujas conclusões se transcreveram.
12.- Sendo opinião unanime que a menor não está a mentir.
13.- O arguido insurge-se ainda com o facto de ter sido ordenada a comunicação à Ordem dos Médicos da sua condenação.
14.- A verdade é que em sede de alegações se teve em conta que o art. 69.º-B do Código Penal implica uma ponderação quanto ao exercício de certas funções e, no caso do arguido, médico, se entendeu ser de aplicar uma restrição no sentido de consultar menores, durante o período de suspensão, acompanhado de colega de profissão, o que foi por mim alegado.
15.- Nada foi referido pelo douto tribunal a quo e, por isso, neste tocante, ainda que por motivos diversos, entende-se que o acórdão deixou de se pronunciar sobre algo que deveria ter feito, nem que fosse no sentido de nada ser aplicado.
16.- E isto independentemente da sanção disciplinar que a Ordem dos Médicos entenda ser de aplicar, que aqui não cumpre apreciar.
17.- Finalmente, o arguido não concorda em ter sido condenado na indemnização, a liquidar em execução de sentença, quanto ao valor dos tratamentos e consultas médicas de que a ofendida necessite em consequência do seu crime por, no seu entender, constituir uma pena ou medida de segurança com caracter perpetuo ou de duração ilimitada ou indefinida violando, portanto, o art. 30.º da CRP.
18.- Aqui entende-se existir alguma confusão pois não se está perante qualquer pena ou medida de segurança mas perante uma indemnização civil resultante de facto ilícito que não pode ser integralmente conhecida devido à natureza da lesão e á idade da vítima pelo que deferida para ulterior momento.
           
4.– A assistente respondeu, igualmente, ao recurso, concluindo (transcrição das conclusões):
a)-Veio o acórdão recorrido pelo arguido a condenar o mesmo pela prática de um crime de abusos sexuais, p. e p. pelo art. 1719 do Código Penal.
b)-Como fundamento desta condenação, existe a muita prova produzida - declarações para memória futura da menor CM  
c)-Declarações estas, em que a menor descreveu os actos praticados pelo arguido, o circunstancialismo e contexto em que os mesmos sucederam. Estas declarações prestadas, na forma em que o foram (contexto da idade, de espaço, tempo e da relação existente entre as demais pessoas), os pormenores a descrição, a forma simples, contida, sincera, emocionada, o choro o sofrimento, tornam as declarações totalmente credíveis, demonstrando o impacto emocional do crime perpetrado pelo arguido sobre a menor CM .
d)-Existem ainda, nos autos, três relatórios, de um pedo-psiquiatra (Dr. PS) e de duas psicólogas, todos os profissionais, são unânimes ao considerar que a experiência foi efectivamente vivida, sendo verdade que o arguido praticou o crime sobre a menor, CM .
e)-Existe ainda, o relatório do Instituto de Medicina Legal, atenta a perícia efectuada á menor - que vem comprovar de forma objectiva - que a menor foi abusada sexualmente pelo arguido no sábado à noite em sua casa.
f)-Relatório do pediatra da menor CM , que vem comprovar que desde a data dos factos, 24 de Janeiro de 2015, a menor passou a ter diversas crises, ataques de pânico, tendo sido por diversas vezes internada. Demonstrando a perda de qualidade de vida e o intenso sofrimento em que a menor CM  se encontra.
g)-As imagens da sala da casa da menor CM , que demonstram o enquadramento da mesma e a localização exacta dos móveis, sendo ainda possível concretizar onde se encontrava cada pessoa, à data e hora do crime perpetrado pelo arguido sobre a menor.
h)-Declaração da professora do F., sobre onde o mesmo se encontrava e onde se encontravam os outros intervenientes no espaço e o que estavam a fazer, sendo este documento, também coincidente com os depoimentos e declarações prestadas, pelas testemunhas MRM , Dra. MBM e Assistente.
i)-A factualidade existente foi ainda, dada como provada pelo depoimento da Assistente, das testemunhas MRM  e Dra. MBP. Depoimentos que se mostraram isentos, objectivos, tidos e valorados de forma coincidente.
j)-Pelo que razão não assiste ao recorrente quando afirma que inexiste prova dos factos ou que a mesma foi incorrectamente valorada.
k)-A prova de que o arguido praticou o crime, conforme factos dados como provados e correctamente valorados pelo Douto Tribunal, nos termos do vertido no art. 127.º do Código de Processo Penal, mas também de todos os demais artigos consagrados em termos de aquisição, produção e valoração de prova.
I)-O Douto Tribunal para além da análise crítica de toda a prova produzida, faz uma análise crítica dos circunstancialismos que conjugada sempre de acordo com as regras da lógica e da experiência, resulta na convicção que o arguido praticou o crime de que veio acusado.
m)-Todas as provas produzidas, gritam e expressam a culpa do arguido.
n)-Inexiste conforme, pretende também o arguido qualquer violação ou atropelo ao princípio do contraditório por parte do Tribunal.
o)-Existe sim, por parte da defesa do arguido um atropelo e uma violação, ao art. 326.º e art. 138.º n.º 2, ambos do Código de Processo Penal, aquando da inquirição da testemunha, Dra. MBP.
p)-Situação, que o Douto Tribunal, poderia no âmbito dos seus poderes de disciplina e direcção da Audiência de Discussão e Julgamento, ter retirado a palavra ao Ilustre Defensor, art. 323.º e 326.º ambos do Código de Processo Penal.
q)-Mesmo assim, demonstrando-se a defesa, mal educada, desnecessariamente agressiva, sugestiva e impertinente, o Douto Tribunal, veio a permitir as perguntas, as mesmas perguntas!, mas feitas por intermédio do Tribunal, cumprindo assim com o vertido no art. 323.º do Código de Processo Penal.
r)-A defesa do arguido, violou de forma grosseira o vertido no art. 326.º do Código de Processo Penal.
s)-Não existindo, conforme pretendido pelo arguido qualquer violação a princípios Constitucionais, arts. 18.º, 20.º e 30.º.
t)-O arguido não logrou qualquer prova, nem sequer logrou provar que o seu estado de saúde contende com a prática dos factos.
u)-Nem tão pouco logrou provar como pretendia ser uma pessoa idónea, uma vez que as testemunhas por este arroladas apenas privaram há muito com o arguido, mas apenas de forma pontual no tempo. Optando por usar uma tese que é useira e vezeira, pelos agressores sexuais, uma tese, tosca, confusa e por provar e comprovar que a menor CM  é que é uma mentirosa - Pese embora e sublinhe-se toda a prova diga exactamente o oposto.
v)-O acórdão recorrido encontra-se pleno nos termos do vertido no art. 375.º do Código de Processo Penal, não existindo qualquer vício no mesmo. Pelo que ao arguido não lhe assiste qualquer fundamento legal que obste à condenação nos moldes e extensão em que a mesma se encontra proferida.

5.– Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que se reporta o artigo 416.º do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de C.P.P.), pronunciou-se no parecer de fls. 706-708, no sentido de que o recurso não merece provimento.

6.– Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º2, do C.P.P., procedeu-se a exame preliminar e foram colhidos os vistos, após o que os autos foram à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º3, do mesmo diploma.

II–Fundamentação.

1.- Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do C.P.P., que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Constitui entendimento constante e pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2.ª ed. 2000, p. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 2007, p. 103; entre muitos, os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, p. 196).
Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem de forma condensada as razões de divergência do recorrente com a decisão impugnada, as questões a decidir no recurso são:
- Do erro de julgamento da matéria de facto;
- Da violação do disposto na alínea f) do artigo 323.º do C.P.P., relativamente ao depoimento de MBP , e bem assim dos artigos 18.º, 20.º e 30.º da Constituição da República;
- Da violação dos n.ºs 3 e 4, do artigo 412.º do C.P.P.;
- Da comunicação à Ordem dos Médicos;
- Da condenação no que se liquidar em execução de sentença quanto ao valor dos tratamentos/consultas médicas de que a ofendida necessite em consequência do crime praticado pelo arguido, em alegada violação do artigo 30.º da Constituição da República.

2.–Do acórdão recorrido.

2.1. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:

1º.- CM nasceu a 04.11.2002, sendo filha de ISM e de MRM , que se encontram divorciados.
2º.- Após o divórcio dos seus pais, CM ficou a viver com a mãe, sendo que em 24.01.2015 residiam num apartamento sito na R. JF, em Lisboa, habitando com elas o irmão da CM e F , à data com nove anos de idade.
3º.- Os menores tinham uma relação muito próxima com a avó materna, MJB  , e com o namorado desta, o arguido JA .
4º.- No âmbito desse relacionamento e convívio, na noite de 24 de Janeiro de 2015, porque a mãe dos menores teve de sair, não se podendo fazer acompanhar dos filhos, pediu à avó dos mesmos, a referida MJB, que se deslocasse para casa dela, ficando a fazer companhia aos menores CM e F, para o que aquela se disponibilizou.
5º.- Por isso, nessa noite, MJB foi para casa da sua filha e netos, acompanhada do arguido.
6º.- Uma vez aí, acomodaram-se na sala da residência, que, de um lado, tem os sofás, uma estante e a televisão, e do outro, a mesa das refeições e cadeiras.
7º.- MJB deitou-se então num dos sofás, que ficava de costas para a mesa de refeições.
8º.- Por sua vez, o F colocou-se em frente à televisão a jogar consola, ficando de costas para a mesa de refeições.
9º.- CM sentou-se à mesa de refeições, posicionando-se ao lado do arguido, a pedido do mesmo, para instalar dois jogos no seu tablet.
10º.- Estava CM a fazer aquela instalação, quando, por debaixo da mesa, o arguido lhe puxou a mão, colocando-a sobre o seu pénis, ao mesmo tempo que lhe disse: "dá uma festa ao tio", apontando, com a outra mão, para o seu membro viril.
11º.- Repelindo a sua atitude, CM fugiu de imediato com a mão.
12º.- Porém, o arguido insistiu, abriu a carcela das calças, puxou de novo a mão da menor e colocou-a directamente sobre o seu pénis, forçando CM a tocar-lhe, ao mesmo tempo que lhe dizia "aperta, aperta".
13º.- CM  , horrorizada e em pânico, retirou a mão, levantou-se e pediu ao F , seu irmão, que se fossem deitar.
14º.- Como este recusou o pedido, CM, sentindo a mão que o arguido forçara a colocar sobre o seu pénis húmida e a cheirar a urina, passou pela casa de banho, lavou-a e foi-se deitar no quarto da sua mãe, onde se sentia menos insegura.
15º.- Pouco tempo depois, o arguido foi ter com ela, pediu-lhe desculpa e pediu-lhe ainda que não contasse nada a ninguém.
16º.- Enquanto o arguido actuou do modo descrito, MJB , avó da menor, dormia profundamente, de tal modo que, quando IM regressou a casa, custou-lhe muito a despertar.
17º.- Por sua vez, o F estava completamente absorvido pelos jogos que desenvolvia.
18º.- Por essa razão, MJB e o F não tinham condições para se aperceber da atitude do arguido, que disso se aproveitou.
19º.- O arguido, até à data dos factos, merecia todo o afecto de CM, que o considerava como seu avô, e gozava de toda a confiança dos seus progenitores, do que se aproveitou para, naquele dia, obter gratificação sexual e satisfazer os seus instintos libidinosos.
20º.- Sabia bem que CM tinha apenas doze anos de idade.
21º.- Com a sua conduta, o arguido molestou CM, pondo em causa o seu desenvolvimento psicológico e a sua autodeterminação sexual.
22º.- Em consequência da sua conduta, CM passou a andar inquieta, a ter sucessivos ataques de pânico, a não dormir sossegada e a manifestar medo de se manter na residência onde ocorreram os factos, onde se encontrava com grande sofrimento, assegurando-se sempre de que a porta estava totalmente trancada, impossibilitando a entrada do arguido.
23º.- Aliás, foi num daqueles momentos de pânico que, na Segunda-feira a seguir à ocorrência dos factos, durante a aula de português, teve um ataque de choro, acabando no gabinete da psicóloga do colégio que frequenta, a quem relatou o ocorrido com o arguido, no Sábado anterior.
24º.- O arguido agiu sempre deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era punida por lei.
25º.- Na sequência dos mencionados factos praticados pelo arguido em 24.01.2015, CM nunca mais quis, nem conseguiu, estar na presença daquele.
26º.- Em consequência da conduta do arguido, CM, que antes era uma criança feliz e bem disposta, passou a viver em sobressalto, com grande sofrimento emocional, com medo constante de que o arguido surgisse, tornando-se deprimida, ansiosa e atormentada com o que lhe foi imposto pelo arguido.
27º.- CM, para além do medo, sentiu vergonha, decepção e angústia, que vieram a constranger a sua vida, nomeadamente o seu desenvolvimento psicológico, social e sexual, e a sua identidade, por causa da conduta do arguido;
28º.- pelo que teve que passar a frequentar o pedopsiquiatra mensalmente, com quem ainda faz terapia.
29º.- Até à prática, em 24.01.2015, dos mencionados factos pelo arguido, CM confiava totalmente no mesmo e este era-lhe muito querido.
30º.- Até 26.01.2015 a menor teve um óptimo relacionamento com a sua avó.
31º.- Aquando e na sequência do acima referido nos pontos 10.º a 21.º e 24.º, a menor não pediu ajuda e apoio à avó.
32º.- Quando IM regressou a casa, já o arguido se encontrava pronto para sair, tendo aquela telefonado antes a avisar que estava a chegar.
33º.- Noutras ocasiões, anteriores à noite de 24 de Janeiro de 2015, atento o nível de confiança, proximidade e carinho de todos os envolvidos uns para com os outros, foi pedido ao arguido, pela mãe dos menores, que ficasse a tomar conta dos mesmos, o que o arguido fez sozinho, nunca tendo ocorrido qualquer situação semelhante.
34º.- CM vem sendo acompanhada pelo Serviço de Psicologia do Colégio desde há alguns anos e é seguida pela psicóloga Dra. SAS pelo menos desde Dezembro de 2014.
35º.- Antes do acima referido nos pontos 10.º a 21.º e 24.º, o arguido sempre demonstrou carinho e afecto por CM, preocupação com o seu bem-estar e felicidade, nutrir pela mesma sentimento de protecção, como se de um familiar directo se tratasse, muito por causa da sua relação com MJB.
36º.- Nada consta do CRC do arguido.
37º.- O arguido JA  é natural de Lagos, sendo o primeiro de uma fratria de dois filhos de um casal que manteve um bom relacionamento entre si e com os descendentes ao longo da vida.
38º.- Os pais, ambos dedicados ao comércio, com negócio por conta própria, conseguiram providenciar as condições materiais para a concretização dos primeiros objetivos de vida, nomeadamente a nível da formação académica do arguido.
39º.- JA  viveu inserido no agregado familiar de origem até à entrada para a Faculdade de Medicina de Coimbra, aos 19 anos de idade. O percurso escolar foi regular, tendo concluído a licenciatura aos 25 anos. Após a conclusão da licenciatura não iniciou logo o internato de especialidade, tendo exercido actividade como clínico geral até aos 30 anos, altura em entrou para a especialidade de oncologia, que concluiu aos 35 anos. Durante a frequência do curso, o arguido foi apoiado no primeiro ano pelos seus pais, apoio que veio a preterir em benefício de alguma autonomia, tendo para tal começado a trabalhar, numa primeira fase elaborando sebentas e numa segunda fase como monitor no seu curso.
40º.- No que concerne às experiências amorosas e de intimidade, JA  manteve relações de namoro durante a adolescência, nunca tendo mantido relações sexuais no decurso das mesmas. As suas primeiras experiências afectivas juvenis foram gratificantes, mas teve uma vivência de perda intensa, com sentimentos de revolta, numa dessas relações. Essa relação, mantida entre arguido e uma jovem filha de um médico da sua terra natal, oriunda de uma família com estatuto elevado, veio a ser interrompida pelo pai da jovem, que considerava que o arguido não possuía estatuto social para namorar com a sua descendente, atendendo ao facto de ser filho de comerciantes. Essa vivência foi sentida como traumática pelo arguido, que, assim que concluiu a licenciatura, a primeira pessoa a quem comunicou o facto foi ao pai da ex-namorada.
41º.- Na faculdade, JA veio a conhecer aquela que veio a ser sua mulher, tendo casado quando tinha 21 anos. Foi no âmbito deste relacionamento que manteve a sua primeira experiência sexual, após o casamento, considerando ser muito inexperiente, tal como a sua mulher, e sendo, ainda, ambos pouco exigentes a este nível. Foi casado até 2003, tendo o divórcio ocorrido por comum acordo e por entenderem que já se encontravam a viver uma relação de amizade com coabitação, atendendo a que deixaram de dormir no mesmo quarto, bem como de manter relações sexuais. Deste relacionamento tem dois descendentes, uma filha, actualmente com 43 anos, e um filho, com 41 anos.
42º.-Ainda que o arguido não tenha mantido nenhum relacionamento extraconjugal na vigência do casamento, esteve apaixonado por uma aluna, facto que, ao ser conhecido pelo seu cônjuge, teve uma resolução particular, que consistiu na assunção da jovem como elemento da família, pelo facto de esta ter pouco suporte familiar. Acrescenta ainda que, com o reposicionamento do papel da jovem e a entrada na esfera familiar, o enlevo amoroso foi ultrapassado.
43º.- Posteriormente ao divórcio, JA estabeleceu uma relação, que durou escassos meses, com uma cidadã sul-africana.
44º.- O arguido conheceu MJB, há cerca de 13 anos, tendo estabelecido relacionamento com esta, pensando na solidão e no envelhecimento, mas também por considerar que esta reunia os requisitos necessários (-sic.), ainda que, nas suas palavras, não a considerasse sexualmente atraente. Não obstante, nos primeiros anos da relação, chegaram a coabitar, situação que não resultou para ambos, por possuírem hábitos de autonomia inconciliáveis. Mantiveram-se assim numa relação gratificante para ambos, frequentando a casa um do outro, mantendo relações de carácter íntimo até há cerca de quatro anos. A inexistência de vida sexual não constituiu problema ou sensação de frustração, quer para MJB , quer para o arguido.
45º.- (…).
46º.- À data dos factos acima descritos a que respeita este processo, o arguido residia em Lisboa, num imóvel arrendado - onde ainda reside -, pelo qual pagava, como actualmente, 530 euros por mês, renda suportada pela empresa de que é sócio com os seus dois filhos. Mantinha uma relação com MJB, que também possuía um imóvel nas imediações da sua habitação, pernoitando em alguns dias juntos, mas possuindo agregados familiares autónomos.
47º.- A relação mantida com MJB era afectivamente gratificante, apesar de, à data, já não manterem relações sexuais, facto que atribuem a problemas de saúde do arguido que impossibilitavam o desempenho sexual (diabetes e patologia da próstata).
48º.- Já  mantém bom relacionamento com ambos os filhos, e também com os netos, muito embora, após a emergência do presente processo, tenha evitado estar com estes, com receio de que os filhos possam vir a tomar conhecimento do processo e a censurá-lo futuramente.
49º.- depois dos factos que estão na origem deste processo, JA deixou de manter relação com a família alargada de MJB, nomeadamente com CM. MJB foi também afectada, no relacionamento que mantinha com os descendentes, nomeadamente a filha e a neta, não mantendo praticamente relação com nenhuma das duas.
50º.- A relação do arguido com MJB mantém-se, ainda que com perturbação decorrente da presente situação judicial, manifestando MJB  uma postura de incredulidade e ambivalência.
51º.- O arguido JA encontra-se laboralmente activo - ainda que beneficiando também da pensão de reforma, no valor mensal de 2.500 euros(…). Este trabalho é prestado através de uma empresa da qual é proprietário com os seus dois filhos, mencionando que aufere o salário mínimo nacional e referindo que a empresa foi constituída para apoiar os filhos laboralmente. O arguido consegue desfrutar de situação económica estável com os seus rendimentos.
52º.- O arguido manifesta falta de sentido crítico relativamente aos factos que praticou.

2.2.Quanto a factos não provados ficou consignado no acórdão recorrido (transcrição):

Não se provou que:
a)- aquando do referido no ponto 6.º dos factos provados MJB  se sentou num dos sofás;
b)- aquando do referido no ponto 14.º dos factos provados, CM sentiu a mão ali mencionada pegajosa;
c)- em consequência da conduta do arguido, CM baixou as notas, não se conseguindo concentrar na escola e deixou de ter motivação e vontade de viver;
d)- desde 26.01.2015 a menor tem óptimo relacionamento com a sua avó;
e)- MJB   passou o tempo a jogar no seu tablet e a conversar com o arguido e seus netos, mantendo igualmente contacto visual;
f)- quando IM regressou a casa, já MJB   se encontrava pronta para sair;
g)- o telefonema referido no ponto 32.º dos factos provados foi feito cerca de 10 minutos antes de IM chegar a casa.

2.3.– O tribunal recorrido fundamentou a sua convicção nos seguintes termos (transcrição):

A convicção do tribunal quanto à matéria de facto vertida nos pontos 1.º a 35.º dos factos provados resultou da análise crítica e conjugada, de acordo com as regras da experiência e da lógica, de toda a prova produzida, nomeadamente:

- do teor do cartão de cidadão de CM  , cuja cópia consta de fls. 18;
- do teor dos cartões de cidadão de IM e MM, cujas cópias constam de fls. 16 e 17;
- das declarações (declarações para memória futura, cujo auto está junto de fls. 61 a 63, constando a respectiva gravação do CD junto a fls. 64), convictas e recordadas, de CM que descreveu os factos praticados pelo arguido no mencionado contexto, assim como a relação afectuosa que até então teve com o mesmo e com a avó;
- das declarações da assistente IM, mãe de CM, que, de modo que se revelou isento e foi convincente, descreveu as circunstâncias em que na noite de 24 de Janeiro de 2015 (Sábado) deixou os filhos (a CM  e o irmão), em casa, na companhia da avó materna e do arguido, aquelas em que cerca de 4 horas e meia depois ali os voltou a encontrar, o estado emocional francamente perturbado que a CM  manifestou na noite seguinte e aquele em que a mesma se encontrava quando, na Segunda-feira que se lhe seguiu, na escola, onde a assistente e o pai da CM  foram chamados, lhes foi relatado o sucedido naquela noite de Sábado, assim como o estado emocional e o comportamento da CM  no período de tempo subsequente;
-dos depoimentos das testemunhas MM e MPM - respectivamente, pai de CM e psicóloga que integra o Serviço de Psicologia do Colégio … , frequentado por aquela -, que, pelo modo como foram prestados, se revelaram isentos e foram convincentes, tendo descrito as circunstâncias em que, na referida Segunda-feira, lhes foram relatados pela CM  os contactos de natureza sexual que a mesma teve com o arguido nos termos descritos, o estado emocional em que a CM  se encontrava aquando desse relato, na noite que o antecedeu (nesta parte, apenas o depoimento de MRM ) e posteriormente;
- do depoimento de MJB  - avó materna de CM -, na parte em que se revelou convincente, no que concerne às circunstâncias em que, na noite de 24 de Janeiro de 2015, os seus netos foram deixados pela sua filha consigo e com o arguido e à relação da sua neta para consigo anterior e posteriormente a tal noite;
- dos depoimentos de ACR , de 38 anos de idade, RIR  , de 35 anos de idade, MGA, que conhece o arguido há 30 anos, desde o tempo em que era aluna da faculdade de medicina, e MAG, colega do arguido, que conhece há 8 anos (não foi considerado o depoimento escrito de RR, uma vez que na sequência da não prestação de juramento pelo mesmo, o arguido prescindiu de tal testemunha);
- do relatório pericial psicológico de CM junto de fls. 290 a 307;
- do teor dos documentos juntos a fls. 6 e 7 - registo de acompanhamento do serviço de psicologia do colégio frequentado pela menor, datado de 02.02.2015 -, 10 a 14 - informação médica, datada de 02.02.2015 -, 29 - documento subscrito por psicóloga clínica datado de 04.04.2015, considerado no que concerne à análise psicológica nele constante -, 93 e 94 – relatório elaborado pela directora de turma da CM respeitante ao seu aproveitamento escolar -, 132, 133 e 363 - fichas informativas do colégio respeitantes ao aproveitamento escolar da CM  -, 102, 106, 107 e 131 - imagens da sala referida no ponto 6.º dos factos provados -, 104 e 105 - anúncio de venda da casa -, 196 a 208 e 586 a 591 - relativos às consultas médicas -, 362 e 422 – informações clínicas relativa à CM  -, 236 a 240 e 446 – relatórios médicos e facturas relativos ao arguido.

O arguido negou a prática dos factos e descreveu a boa relação que tinha com a ofendida CM  - a quem “fazia as vontades todas” -, o irmão desta e a sua mãe, a ajuda económica e os presentes que lhes dava e a ausência de problemas entre si, até que os factos em causa lhe foram imputados, na Segunda-feira seguinte à noite em que, com a avó da CM , ficou a tomar conta da mesma e do irmão; afirmou que a única vez que a CM  se aborreceu consigo, embora não chegando a discutir nem a amuar, aconteceu naquela noite, por o arguido ter dado o seu antigo tablet a uma neta, mas depois disso a CM  ainda foi chamar o irmão para jogarem dominó consigo, o que o F  não aceitou, por ter estado sempre “bastante entusiasmado” a jogar playstation; soube da descrita imputação através da avó das crianças, na sequência do que, na mencionada Segunda-feira, se dirigiu à porta do colégio da CM , para “ver o que se estava a passar”.

As testemunhas ACR, RIR , MGA e MAG revelaram não ter conhecimento directo dos factos, cuja imputação lhes foi relatada pelo arguido, tendo deposto sobre as características pessoais do mesmo, como por ele lhes tinha sido pedido, descrevendo-o como uma pessoa correcta, que nunca teve para com as testemunhas mulheres, com quem conviveu também na infância, adolescência e juventude, nem para com alguém do conhecimento das mesmas, qualquer comportamento impróprio, nomeadamente de natureza sexual. No que concerne ao que constataram no convívio que revelaram ter tido com o arguido, os depoimentos das testemunhas foram prestados de modo convicto, isento e com conteúdo expectável, sendo óbvio o critério que presidiu à escolha e apresentação das mesmas pelo arguido, que naturalmente não as teria arrolado se tivessem razões para dizer algo não positivo acerca do seu comportamento.

No que concerne à factualidade provada plasmada nos pontos 1.º a 3.º e 20.º, o tribunal baseou-se no teor dos documentos constantes de fls. 16 a 18 e nas declarações e depoimentos prestados a respeito, de modo coincidente, por IM, MRM , CM, MJB   e pelo arguido.

No que tange à factualidade vertida nos pontos 4.º a 6.º, o tribunal baseou-se nas declarações e nos depoimentos prestados nesse sentido por IM, CM, MJB e pelo arguido, em conjugação com as imagens da referida sala constantes de fls. 102, 106, 107 e 131. Relativamente a estas imagens, IM descreveu, de modo isento e convincente, que o que nelas se vê corresponde à disposição dos móveis ali existente à data da prática dos factos, e referiu que quando nessa noite saiu de casa a sua mãe já se tinha deitado, tapada com um casaco castanho, no sofá amarelo que se encontrava de costas para a mesa, com a cabeça na ponta esquerda desse sofá, na perspectiva de quem estivesse atrás do mesmo; o filho estava no lugar mencionado nos factos provados a jogar ou quase a jogar; o arguido estava a puxar a cadeira da cabeceira oposta da mesa que se encontrava atrás desse sofá e a CM ao lado dele a ajeitar o tablet, na esquina da mesa, entre os dois. Quando regressou a casa, a mãe estava nesse sofá, dormia profundamente, coberta com o casaco castanho; a filha estava a dormir na sua cama (na da assistente); o F  estava a jogar, sentado no chão, absorvido pelo jogo e o arguido sentado num sofá paralelo. A assistente abanou a mãe para acordar (estava “ferrada a dormir”), pediu desculpa por chegar tão tarde, teve que convencer o F  a largar o jogo e a ir para a cama. Pensou que o arguido só estava com pressa para se ir embora, porque já era tarde. Nada lhe suscitou então questão nenhuma. Mais revelou que a sua mãe não tinha ângulo para ver, do lugar onde estava deitada, o lugar onde o arguido e a CM  se sentaram.

No que se refere, nomeadamente, aos contactos de natureza sexual ocorridos entre o arguido e a ofendida CM, às circunstâncias em que ocorreram, ao que se lhes seguiu, e às consequências deles resultantes (pontos 7.º a 35.º), nos termos descritos nos factos provados, o tribunal atendeu à pormenorizada e impressiva descrição que deles fez a ofendida, de forma manifestamente simples, contida, sincera e emocionada, de um modo perfeitamente consentâneo com a experiência de tais factos no mencionado contexto de idade, de espaço, de tempo e da relação existente entre/com as demais pessoas presentes aquando da sua ocorrência, tudo justificativo das subsequentes reacções/comportamentos e sentimentos da CM , quer na parte em que não comunicou mais cedo os factos, quer na angústia manifestada na noite seguinte no âmbito de desentendimento que “provocou” com os pais, quer na que, de modo igualmente expressivo, revelou no dia que se lhe seguiu (Segunda-feira), na escola, quando se dirigiu à psicóloga MP . 

Através das declarações prestadas pela ofendida, pela sua mãe, pela sua avó materna e pelo arguido foi possível verificar que os factos em causa aconteceram num contexto em que o arguido e a avó materna da CM colaboravam regularmente com a sua mãe nos cuidados a prestar-lhe e ao seu irmão, colaboração feita num registo de confiança entre todos e que a CM  vivenciava como manifestação de atenção e carinho, tendo sido esse o contexto de que o arguido se aproveitou para, na referida noite de 24.01.2015, praticar os descritos factos de que foi vítima a menor, enquanto a sua avó dormia e o seu irmão jogava entusiasmado com a playstation, com o som de tal modo alto que, mesmo nas alturas da noite em que a avó esteve acordada, não lhes permitia ouvir qualquer conversa.

Foram patentes o constrangimento e a falta de isenção manifestados por MJB ao depor, procurando sustentar uma versão de acordo com a qual os factos em causa não ocorreram, porque, caso contrário, ter-se-ia apercebido dos mesmos (versão distinta da verificada com base nas declarações da sua neta CM e da sua filha IM, tudo levando a crer que porque comprometida com a defesa da posição do arguido e com o objectivo de não suportar qualquer responsabilidade, ainda que apenas emocional, pelo sucedido com a CM ).

O arguido e MJB procuraram levar o tribunal a crer que os factos em causa não aconteceram, com base no modo como os móveis e as pessoas presentes na sala se encontravam ali posicionados na referida ocasião, pretensamente impeditivo da verificação dos factos sem que dela se tivessem apercebido quer o irmão da CM , quer a sua avó.

Ora, IM , como também resulta do acima referido, foi absolutamente convincente ao declarar que, quando chegou a casa, a mãe estava no sofá, dormia profundamente (o que era normal, disse, por se sentir muito cansada, por trabalhar muitas horas), tanto que teve que a abanar para a acordar; pediu desculpa por chegar tão tarde (tinha saído cerca das 20.45 horas e chegou cerca da 01.00/01.15 horas); teve que convencer o F a largar o jogo, no qual estava absorvido, e a ir para a cama; nessa noite, quando saiu do restaurante telefonou para o telemóvel da mãe (MJB ), que não atendeu e, por isso, telefonou então para o telemóvel do arguido e disse que estava a chegar.

O arguido afirmou ser falso que MJB dormisse profundamente, referiu que naquela noite falou várias vezes com ela, embora não saiba se a mesma esteve ou não sempre acordada.

MJB afirmou que “passou pelas brasas”, mas tem o sono muito leve e estava acordada; não ouvia o que diziam o arguido e a neta enquanto estavam à mesa, porque o neto estava muito entusiasmado a jogar playstation e, com o som desta, não conseguia ouvir mais nada.

Foi notória a atitude comprometida do arguido enquanto escutava o relatado pelos pais da CM , pela sua avó (na parte em que o depoimento desta não se mostrou coerente com a versão do sucedido que o arguido procurou ver sustentada), pela testemunha MP  e pela CM  (em declarações para memória futura).

O conteúdo das declarações de CM a respeito dos factos em causa, o grau de pormenor nelas revelado (entre o mais, com descrição do que se apercebeu pelo toque e pelo cheiro) e o modo como foram prestadas - a evidenciar a efectiva vivência dos factos pela mesma -, o impacto emocional provocado na CM  por tal vivência, manifestado no choro convulsivo e aflito na noite seguinte, no contexto de um desentendimento com os pais, assim como, logo no dia posterior, na escola, no choro convulsivo e na aflição que precederam e acompanharam o relato dos factos que fez a MP  e o logo após feito perante os seus pais, impacto emocional também evidenciado pelo pânico manifestado pela CM  quando nessa data viu o arguido a aproximar-se do seu colégio e cuja verificação foi corroborada pelas declarações e depoimentos de IM , MRM , MP  e pelas mencionadas declarações prestadas pela CM  - ouvindo-se os soluços de choro que a mesma não conseguiu conter na gravação a fls. 64 -, levaram a que o tribunal concluísse, sem qualquer dúvida, que os factos em apreço ocorreram como descrito na factualidade provada.

O depoimento de MP  foi particularmente claro na expressão da aflição com que a CM  se lhe dirigiu para lhe contar o sucedido, assim como da aflição com que lhe fez tal relato, sendo patente que a reacção fisiológica que então manifestou – chorando compulsivamente, com o coração muito acelerado durante dez a quinze minutos, tremendo de forma descontrolada, o que apenas acalmou com o auxílio de MP  -, foram congruentes com a situação de pânico resultante da efectiva experiência dos factos que relatou.

IM revelou, de forma absolutamente convincente, que aquando do desentendimento provocado pela CM  na noite de Domingo, esta tremia, chorava convulsivamente, “com ranho”, não conseguia acalmá-la; o pai, pelo telefone, foi tentando acalmá-la e ela só dizia “desculpa, desculpa papá”. Quando IM entrou no gabinete de MP , no dia seguinte, a CM  estava igual ou pior, relativamente ao estado manifestado na noite anterior. Não lhe passou pela cabeça que a filha tivesse inventado o relato que fez, “não tinha contactos com ninguém, o pormenor, o cheiro, o toque...”, disse a respeito. Quando, ao sair do colégio, na Segunda-feira, a CM  viu o arguido, “começou aos gritos, assustada e cheia de medo” e foi levada para dentro do colégio. A sua mãe, MJB , disse-lhe que era impossível aquilo ter acontecido, “porque ele era impotente” e porque não tinha ouvido nada. Nessa sequência, a CM  deitou para o lixo tudo o que o arguido lhe tinha oferecido, não queria a cama que a avó lhe tinha dado e também não queria viver ali, porque sempre que lá entrava se lembrava do arguido; não se sentava à mesa, queria as portas trancadas, a partir daí passou a perguntar se a porta estava trancada; tinha ataques de pânico, de ansiedade, de choro convulsivo, de modo a tremer e a perder os sentidos; antes nunca tinham acontecido tais ataques e passaram a acontecer muitas vezes; chegava a passar seis horas no hospital; tinha pesadelos, começou a melhorar desde há uns meses, sendo acompanhada pelo pedopsiquiatra; ainda tem algumas fobias, agora anda sempre a esfregar as mãos com álcool, passou a ser seca, era feliz e passou a ser triste, deixou de gostar de afectos. Antes dos factos em causa, o acompanhamento pela Dr.ª MP deveu-se ao facto de lhe ter sido detectada dislexia na 2.ª classe e também ao divórcio dos pais.

MRM , também de modo absolutamente convincente, revelou que quando viu a CM  na escola, na Segunda-feira, a mesma tinha os olhos raiados de chorar, choro convulsivo. Referiu, para além do mais, que ouviu a CM  a falar “da mão a cheirar a xi-xi e húmida” e de a ter ido lavar; à porta da escola, quando se iam embora, a CM viu o arguido e começou novamente a chorar e com dificuldade em respirar. A CM  disse que não contou logo à mãe o que se tinha passado, porque tinha medo que não acreditassem nela, que o arguido lhe fizesse mal, porque tinha ido ao quarto dela. Por causa do sucedido, a CM  durante meses tinha medo de estar sozinha, tem receios, era muito alegre, ficou triste, é fechada para a idade que tem, não fala com ninguém.

MP , igualmente de modo absolutamente convincente, referiu que acompanhou a CM  desde o 1.º ano do 1.º ciclo, na sequência da separação dos pais e de dificuldades de aprendizagem de leitura e escrita. Para além do já exposto a respeito do seu depoimento, afirmou, referindo-se ao estado da CM quando se lhe dirigiu na Segunda-feira, que “era impossível alguém fingir aquela reacção fisiológica”, tecnicamente denominada activação fisiológica involuntária, a angústia, o “nível de sofrimento impossível de fingir”, “chorava convulsivamente”, ajudou-a a respirar de forma controlada, “10 a 15 minutos com o coração muito acelerado”, tremia descontroladamente; a CM  disse-lhe que não aguentava mais, que precisava de falar. Com base na conversa que tiveram, percebeu que a CM  se sentia muito culpada, verbalizando “mas porque é que eu estava ali?”, “se eu não estivesse com o tablet...”, porque é que eu não estava com o meu irmão?”. A mesma disse-lhe que não falou antes, porque teve medo, porque estavam sozinhos com o arguido; a CM  estava muito indignada, porque não esperava aquele comportamento do arguido; também teve medo que não acreditassem nela, teve vergonha e tinha medo de novo confronto com o arguido. Na Segunda-feira em que a mesma a procurou no referido estado, a sua mãe tinha previamente entrado em contacto consigo, relatando-lhe o sucedido no Domingo à noite, na sequência do que MP  até já tinha agendado uma sessão para essa semana. De acordo com a sua experiência profissional, referiu que depois de uma situação grave como a descrita, é normal a CM  ter passado o Domingo contida, por vergonha e com medo de que não acreditassem nela. MP  afirmou ainda que nessa Segunda-feira, por telefone, falou com a avó da CM , que lhe disse que “era impossível terem relações sexuais” e, quando lhe perguntou se tinha estado a dormir, a avó disse que sim.

Também o teor do relatório da perícia psicológica a CM, constante de fls. 290 a 307, corrobora a descrita conclusão a que o tribunal chegou quanto à factualidade provada.

É de tal forma evidente o choque provocado na CM  pelo comportamento do arguido, que choca também a atitude deste em audiência, na qual, podendo remeter-se ao silêncio, sem que tal o prejudicasse, procurou desacreditar, entre o mais fazendo alusão a um desentendimento por causa de um tablet, a criança contra quem actuou do modo descrito, aproveitando-se dos conhecidos sentimentos de afecto, de surpresa, de pânico, de vergonha, de culpa, de inferioridade.

O facto de no documento a fls. 12 se mencionar a “explosão” na “aula de inglês” não põe de modo algum em causa a credibilidade das declarações da CM  e do depoimento de MP  - que, pelo seu conteúdo e pelo modo como foram prestados, se revelaram absolutamente isentos e rigorosos -, nem o documento por esta redigido constante de fls. 6 e 7 (apenas considerado no que concerne aos períodos de acompanhamento), desde logo porque na data em que o documento de fls. 10 a 14 foi redigido já tinham passado sete dias sobre aquela em que, na escola, a CM  descreveu o sucedido e quatro dias sobre a data da consulta em que se baseou tal documento e aquando do relato a que tal documento se refere o essencial não era se aquela “explosão” foi na aula de português ou na de inglês, sendo certo que aquela menção tanto pode ter resultado de lapso do médico que a redigiu como da criança cuja aflição ali é descrita, esclarecendo-se, também, que o que consta de fls. 10 a 14 apenas é considerado na medida em que se traduz numa informação de natureza médica.

Não sendo posta em causa a existência de problemas de saúde do arguido, considerando nomeadamente o teor dos documentos constantes de fls. 236 a 240 e 446, a verdade é que tal existência não contende com a verificação da prática dos factos pelas razões e nos termos descritos - para a qual o arguido não careceu de capacidade eréctil (a própria CM  revelou, pelo teor das suas declarações a esse respeito, que tal capacidade não se manifestou aquando daquela prática) -, contendendo apenas com uma vida sexual saudável por parte do arguido, não resultando daqueles documentos, nem de qualquer outra prova produzida, que o arguido não tem líbido, mas apenas, a esse respeito, que a medicação que lhe foi instituída tem como consequência muito frequente a diminuição quer da líbido, quer da capacidade eréctil. A negação dos factos pelo arguido, também com fundamento na patologia de que padece e nas consequências por si afirmadas não se revelou, por todas as razões expostas, credível, verificando-se que o mesmo procurou, desde que os praticou e não obstante o mal que causou a CM, afastar de si a responsabilização por essa prática.

Atentemos:

CM, nas declarações que prestou para memória futura, foi clara na descrição que fez dos factos.

Prestou tais declarações de modo contido, simples e emocionado, levando o tribunal a concluir, sem qualquer dúvida, que a mesma relatou o que viveu e, por conseguinte, que tais factos ocorreram como os descreveu. O seu choro, audível na parte final dessas declarações, é elucidativo do sofrimento provocado pela conduta do arguido.

Com base nas declarações e depoimentos prestados em sentido convergente pelo arguido, por IM , CM e MJB  , provou-se que esta última e o arguido ficaram com a CM  e o F , em casa destes, na noite de 24.01.2015, no descrito contexto daquela noite e da relação de afecto e confiança até então existente entre todos.

Da análise crítica e conjugada, sempre de acordo com as regras da experiência e da lógica, das declarações e depoimentos prestados por CM , IM , pelo arguido e por MJB  , resultou para o tribunal a convicção de que o arguido praticou os factos descritos, de que foi vítima CM, aproveitando-se do facto de o irmão desta, de 9 anos de idade, se encontrar completamente absorvido pelo jogo que desenvolvia na playstation, de costas para o lugar onde se encontravam o arguido e a irmã, e o de a avó da mesma se encontrar a dormir estendida no sofá que estava colocado de costas para aquele lugar, sendo que, mesmo nos momentos em que não esteve a dormir, MJB  não conseguia ouvir qualquer conversa, tal era o barulho resultante do jogo desenvolvido pelo neto (como a própria revelou), do que o arguido necessariamente se apercebeu.

Que MJB  se encontrava a dormir profundamente quando os factos foram praticados resulta evidente também da circunstância, revelada pelo seu depoimento e pelas declarações de CM, de não se ter apercebido de que a sua neta, depois de pedir ao irmão para se irem deitar, saiu da sala, tendo acabado por se ir deitar sozinha, para além do que, apesar de (MJB ) ter o telefone no sofá onde se encontrava, não ter ouvido o telefonema que, pouco antes de chegar a casa, lhe fez a filha, IM , para lhe comunicar que estava a chegar, razão pela qual, como por esta e pelo arguido foi revelado em audiência, IM telefonou então para o arguido.

Foi para o tribunal absolutamente claro que tanto o arguido como MJB procuraram, nomeadamente com base no relato inverídico de pormenores relacionados com o posicionamento dos objectos e das pessoas presentes na referida sala na noite de 24.01.2015, e embora com motivos distintos (no caso do arguido, a pretensão de fuga à responsabilização pelos seus actos e à assunção das respectivas consequências; no caso da avó da CM , pelo peso emocional da aceitação da responsabilidade pela presença do arguido naquela sala e pela relação com o mesmo mantida) desacreditar o a respeito relatado por CM e por IM . Ora, o relato por estas últimas feito, considerado apenas relativamente aos factos de que revelaram ter conhecimento directo, foi, pelo modo como foi feito, pelo seu conteúdo, pela sua contenção, pela emoção sincera que o acompanhou, absolutamente convincente no sentido da verificação dos factos em causa.

Como resulta da experiência comum no que concerne ao que é da natureza humana, o comportamento da CM  na sequência dos factos praticados pelo arguido – procurando afastar-se do mesmo, não verbalizando imediatamente o sucedido, acabando por criar um desentendimento com os pais na noite seguinte em circunstâncias que vieram a revelar-se elucidativas do descontrolo emocional em que então se encontrava e desembocando, no dia subsequente a essa noite, na escola, no pedido de ajuda em que se traduziu o relato dos factos a MP , precedido de 10 a 15 minutos em que o coração da CM  batia de modo muito acelerado (como aquela constatou pondo-lhe a mão no peito), em que a mesma chorava compulsivamente e tremia de forma descontrolada –, é perfeitamente congruente com a situação de pânico que para a criança em causa resultou da descrita actuação do arguido.

Foi justamente por saber que o comportamento natural de uma criança perante factos como os que o arguido praticou, em face do choque, do sentimento de inferioridade em razão da idade e da credibilidade que julga em regra merecerem os relatos das crianças e dos adultos, do sentimento de culpa (obviamente injustificada, mas emocionalmente compreensível, na perspectiva da criança) pela proximidade e pela confiança depositada no adulto, do medo das consequências do relato do sucedido, da vergonha daí decorrente, foi justamente por saber isso, que o arguido actuou do modo descrito para com a CM  nas referidas circunstâncias, como habitualmente se verifica acontecer relativamente a quem pratica factos dessa natureza contra crianças.

Os depoimentos, prestados com isenção, contenção, de modo convincente, por IM, MRM e MP foram absolutamente esclarecedores acerca do estado emocional em que CM ficou em consequência da conduta do arguido, nos termos descritos na factualidade provada.

O choro visível, mas silencioso, de IM ao longo da audiência de julgamento traduz o sofrimento pungente resultante do que constatou ter sido experienciado pela sua filha CM,  por força daquela conduta, e o ar comprometido e envergonhado do arguido são próprios de quem, sendo julgado, ouve como evidência os relatos dos factos imputados que sabe verdadeiros.

Os depoimentos prestados pelas testemunhas arroladas pelo arguido – ACR , RIR  , MGA e MAG – em nada contrariaram a convicção do tribunal nos termos expostos na factualidade provada e pelas razões elencadas, apenas tendo levado à conclusão de que com as testemunhas, ou que seja do seu conhecimento, o arguido não adoptou comportamentos de semelhante natureza.

A expressão “silêncio do afogado” reflecte, como nenhuma outra encontrada pelo tribunal, aquilo com que conta quem procede como procedeu o arguido para com uma criança e o sentimento que se abate sobre esta ao sofrer tal actuação. Se não contasse com isso, o arguido não teria actuado como actuou, para mais naquele contexto. O que aconteceu na noite do dia seguinte, o comportamento da CM  para com os pais, foi um grito por ajuda: conseguiu, por instinto, com o conflito que criou, chamar a atenção de ambos os pais para a aflição em que se encontrava e esse instinto e o comportamento adoptado pela CM  no dia que se lhe seguiu, na escola, são reveladores da sua inteligência e vontade e capacidade, apesar das inevitáveis dificuldades, de superação face ao sucedido.

Pelas razões expostas, o tribunal ficou absolutamente convicto da verificação da factualidade plasmada nos factos provados, sendo que o teor do relatório da perícia psicológica realizada à CM , assim como a prova documental junta aos autos, nomeadamente a fls. 6 e 7, 10 a 14, 29, 362 e 422, 196 a 208 e 586 a 591, para além de demonstrarem as despesas realizadas em virtude do estado provocado na CM  pela conduta do arguido, apenas corroboram a conclusão a que o tribunal chegou pela análise crítica e conjugada, de acordo com as regras da experiência e da lógica, das referidas declarações e depoimentos.

O facto descrito no ponto 36.º foi apurado pela análise do teor do CRC junto aos autos a fls. 509.

Especificamente quanto aos factos relativos à situação pessoal, familiar e económica do arguido, o tribunal atendeu ao teor do relatório social constante de fls. 552 a 554, em face dos meios de prova que suportaram a elaboração desse documento, e às declarações prestadas pelo arguido, tendo conjugado com a restante prova produzida.

Os factos não provados descritos nas als. a), d), e) e f), assim foram considerados por terem sido infirmados pela análise crítica e conjugada da prova nos termos acima expostos, sendo ainda de destacar que CM, nas suas declarações para memória futura, revelou que deixou de se relacionar com a avó por esta não ter acreditado em si, na sequência do relato que fez acerca da actuação do arguido.

No que se refere à factualidade não provada vertida nas als. b), c) e g), não foi produzida prova apta a demonstrá-la.

Nem os documentos constantes de fls. 93 e 94 - relatório elaborado pela Directora de Turma da CM  – e de fls. 132, 133 e 363 - fichas informativas do colégio respeitantes ao seu aproveitamento escolar -, nem qualquer outra prova produzida, permitiram concluir algo sobre o impacto dos factos praticados pelo arguido no seu desempenho escolar, sendo desde logo manifestas e naturais, em qualquer contexto, as pequenas variações verificadas nas suas classificações. No entanto, a não verificação de tal impacto em nada contende com a força probatória de toda a prova produzida no sentido da verificação da factualidade provada, sobre o que, como exposto, o tribunal não teve qualquer dúvida, sendo que a experiência comum revela que um trauma não tem que se traduzir em qualquer visível alteração do rendimento escolar, uma vez que, por exemplo, uma maior dificuldade pode ser compensada com um maior esforço para a superar.  

Todavia, de tais documentos extrai-se algo de relevante, para mais quando conjugado com as declarações e os depoimentos prestados pela CM , pelos seus pais e por MP : a imagem da CM , previamente aos factos de que foi vítima – pelo seu olhar e pelo seu sorriso francos, visivelmente a de uma criança feliz.
***
           
3.–Apreciando.

Passamos, agora, a apreciar as questões colocadas no recurso.

3.1.- O recorrente discorda da decisão sobre a matéria de facto tomada pelo tribunal recorrido.
Para alicerçar a sua discordância, procede à transcrição de declarações da assistente IM , mãe da menor CM, do depoimento de MRM , pai da CM , de MJB  , avó da CM  e à data dos factos companheira do arguido, e, finalmente, de MPM , psicóloga, sublinhando o que reputa, para si, relevante.
Transcreve, igualmente, uma declaração exarada pela psicóloga clinica prof. Dra. CS, e cita o relatório pericial psicológico da menor e um relatório médico elaborado por um urologista.
Tudo isto com o propósito de demonstrar que a menor CM é alguém que mente reiteradamente – a “torto e a direito”, segundo diz nas conclusões - e que os factos por que foi acusado e condenado não passam de invenções da menor.
No essencial, o recorrente questiona a credibilidade que o tribunal recorrido reconheceu à versão dos factos apresentada pela menor.

3.1.1.-Dispõe o artigo 428.º, n.º 1, do C.P.P., que os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito.
A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do C.P.P., no que se convencionou chamar de “revista alargada”; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.º3, 4 e 6, do mesmo diploma.
No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410.º, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 16. ª ed., p. 873; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª ed., p. 339; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 2007, pp. 77 e ss.; Maria João Antunes, RPCC, Janeiro-Março de 1994, p. 121).

No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do C.P. Penal.

Quer isto dizer que enquanto os vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, são vícios da decisão, evidenciados pelo próprio texto, por si ou em conjugação com as regras da experiência comum, na impugnação ampla temos a alegação de erros de julgamento por invocação de provas produzidas e erroneamente apreciadas pelo tribunal recorrido, que imponham diversa apreciação. Neste caso, o recorrente pretende que o tribunal de recurso se debruce não apenas sobre o texto da decisão recorrida, mas sobre a prova produzida em 1.ª instância, alegadamente mal apreciada.

Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, os acórdãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, de 3 de Julho de 2008, Processo 08P1312, de 29 de Outubro de 2008, Processo 07P1016 e de 20 de Novembro de 2008, Processo 08P3269, in www.dgsi.pt., como todos os que venham a ser indicados sem outra indicação).

Precisamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir determinados erros in judicandoou in procedendo,que o recorrente deverá expressamente indicar, impõe-se a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º, n.º3, do C.P. Penal:

«3.Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a)- Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b)- As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c)- As provas que devem ser renovadas.»

A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.

A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.

Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1.ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do C.P.P. e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430.º do C.P.P.).

Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação (não basta a simples remissão para a totalidade de um ou vários depoimentos), pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 4 e 6 do artigo 412.º do C.P.P.), salientando-se que o S.T.J, no seu acórdão N.º 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, N.º 77, de 18 de abril de 2012, fixou jurisprudência no seguinte sentido:
«Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações».

Assim, o ónus processual de indicação das provas que impõem decisão diversa da recorrida, previsto na alínea b), do n.º 3, do artigo 412.º, do C.P.P., apresenta uma configuração alternativa, conforme a acta da audiência de julgamento contenha ou não a referência do início e do termo de cada declaração gravada, nos seguintes termos:
se a acta contiver essa referência, a indicação das concretas passagens em que se funda a impugnação faz-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º (n.º 4 do artigo 412.º do C.P.P.);
– se a acta não contiver essa referência, basta a identificação e transcrição nas motivações de recurso das ditas “passagens/excertos” dos meios de prova oral gravados  (acórdão da Relação de Évora, de 28/05/2013, processo 94/08.0GGODM.E1).

Na reapreciação da prova importa articular os poderes de conhecimento do tribunal de recurso com os princípios relativos à produção e à valoração da prova no tribunal de 1.ª instância, especialmente com o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do C.P.P., princípio que vale também para o tribunal de recurso. Essa articulação há-de necessariamente ter em conta que as condições de que beneficia a 1.ª instância – em particular, a oralidade e a imediação – para avaliar os depoimentos prestados, no contexto de toda a prova produzida, se não verificam (pelo menos em toda a extensão) quando o tribunal de recurso vai julgar.

Traduzindo-se a livre apreciação das provas numa valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, a falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, a não vivência do julgamento, sede do contraditório, com privação da possibilidade de intervir na produção da prova pessoal, serão, por assim dizer, limites epistemológicos a que a Relação deverá atender na sua apreciação, ainda que não barreiras intransponíveis a que faça a ponderação, em concreto e autónoma, das provas identificadas pelo recorrente, que pode conduzir à conclusão de que tais elementos de prova impõem um juízo diverso do da decisão recorrida.

3.1.2.– No caso em apreço, o arguido/recorrente, na conclusão ww), imputa ao acórdão recorrido, em termos incompreensíveis, a nosso ver, o desrespeito dos “limites e cumprimento do ónus de especificação impostos pela lei, como sejam os princípios do n.°s 3 e 4, do artigo 412.° do Código de Processo Penal”.
Dizemos “incompreensíveis” porque o ónus de tríplice especificação recai, como é evidente, sobre o recorrente e não sobre o tribunal, pelo que não se vislumbra como poderia o acórdão recorrido desrespeitar os ditos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º que não o têm como destinatário.
Por sua vez, o recorrente é quem, efectivamente, não cumpre adequadamente o ónus de especificação, pois não especifica, como lhe cabia, quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, transcrevendo na motivação do recurso a totalidade do elenco de factos provados e não provados.
Ainda assim, resultando do recurso que se pretende sindicar a apreciação da prova, através da impugnação ampla da decisão sobre a matéria de facto, concedemos em proceder à audição da prova gravada indicada, confrontando-a com a demais prova, pessoal, documental e pericial, e bem assim com a motivação da decisão de facto exposta no acórdão recorrido.
Procedeu-se dessa forma tendo sempre em vista que, como realçou o S.T.J., em acórdão de 12 de Junho de 2008 (Processo:07P4375), a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que debruçando-se sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações, que sintetizam o que se disse supra:
- a que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- a que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com a prova pessoal ao que consta das gravações;
- a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso;
- a que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º – também neste sentido o ac. da Relação de Lisboa, de 10.10.2007, proc. 8428/2007-3].

Como se diz no acórdão da Relação de Évora, de 1 de Abril de 2008 (processo n.º 360/08-1.ª):
«Impor decisão diversa da recorrida não significa admitir uma decisão diversa da recorrida. Tem um alcance muito mais exigente, muito mais impositivo, no sentido de que não basta contrapor à convicção do julgador uma outra convicção diferente, ainda que também possível, para provocar uma modificação na decisão de facto. É necessário que o recorrente desenvolva um quadro argumentativo que demonstre, através da análise das provas por si especificadas, que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de facto impugnados, é impossível ou desprovida de razoabilidade. É inequivocamente este o sentido da referida expressão, que consubstancia um ónus imposto ao recorrente
           
Assim, ouvida a gravação da prova, importa cotejá-la com a motivação da decisão de facto e verificar se as provas indicadas pelo recorrente (e agora reapreciadas) impõem decisão diversa da proferida pela 1.ª instância.

3.1.3.– O recorrente questiona a credibilidade das declarações da menor CM, que teria inventado os factos por ser alguém que, segundo o recorrente, mente de forma reiterada.

Antes de mais, importa reter que, a partir da audição da prova gravada, resulta que as sínteses de declarações e depoimentos constantes da motivação da decisão de facto correspondem, com fidelidade, à prova efectivamente produzida em audiência de julgamento.

O arguido negou a prática dos factos, dizendo que sempre tinha mantido uma boa relação com a menor, CM , a quem “fazia as vontades todas”. Era nas semanas em que a CM  ficava com a mãe que estavam juntos, mas não sempre. Na altura, fazia uma “vida de casal” com a avó da menor, mas essa relação, após os factos, foi-se deteriorando e hoje é mais “uma amizade”. Na noite em causa, ficou a tomar conta da menor e do irmão, F , na companhia da avó da CM . Tinha uma relação próxima com ambos os menores. A única vez que a CM  se aborreceu consigo – “levou a mal” -, embora não chegando a discutir nem a amuar, aconteceu naquela noite, por o arguido ter dado o seu antigo tablet a uma neta e ao filho, mas depois disso a menor ainda foi chamar o irmão, para jogarem dominó consigo, o que o F  não aceitou, por ter estado sempre bastante entretido a jogar playstation. Foi nessa altura que a CM  deixou de estar ao pé dele, arguido, indo a menor, ao que julga, para junto do irmão.

Por conseguinte, a versão apresentada pelo arguido é a de que nada do que lhe foi imputado aconteceu.

A menor prestou, em 13 de Abril de 2015, declarações para memória futura, que foram ouvidas em audiência de julgamento, na sessão de 31 de Outubro de 2017 (cfr. acta de fls. 581-584).

Sobre essas declarações, diz-se na motivação da decisão de facto:
«No que se refere, nomeadamente, aos contactos de natureza sexual ocorridos entre o arguido e a ofendida CM , às circunstâncias em que ocorreram, ao que se lhes seguiu, e às consequências deles resultantes (pontos 7.º a 35.º), nos termos descritos nos factos provados, o tribunal atendeu à pormenorizada e impressiva descrição que deles fez a ofendida, de forma manifestamente simples, contida, sincera e emocionada, de um modo perfeitamente consentâneo com a experiência de tais factos no mencionado contexto de idade, de espaço, de tempo e da relação existente entre/com as demais pessoas presentes aquando da sua ocorrência, tudo justificativo das subsequentes reacções/comportamentos e sentimentos da CM , quer na parte em que não comunicou mais cedo os factos, quer na angústia manifestada na noite seguinte no âmbito de desentendimento que “provocou” com os pais, quer na que, de modo igualmente expressivo, revelou no dia que se lhe seguiu (Segunda-feira), na escola, quando se dirigiu à psicóloga MP .»

Mais adiante:

«O conteúdo das declarações de CM a respeito dos factos em causa, o grau de pormenor nelas revelado (entre o mais, com descrição do que se apercebeu pelo toque e pelo cheiro) e o modo como foram prestadas - a evidenciar a efectiva vivência dos factos pela mesma -, o impacto emocional provocado na CM  por tal vivência, manifestado no choro convulsivo e aflito na noite seguinte, no contexto de um desentendimento com os pais, assim como, logo no dia posterior, na escola, no choro convulsivo e na aflição que precederam e acompanharam o relato dos factos que fez a MP  e o logo após feito perante os seus pais, impacto emocional também evidenciado pelo pânico manifestado pela CM  quando nessa data viu o arguido a aproximar-se do seu colégio e cuja verificação foi corroborada pelas declarações e depoimentos de IM , MRM , MP  e pelas mencionadas declarações prestadas pela CM  - ouvindo-se os soluços de choro que a mesma não conseguiu conter na gravação a fls. 64 -, levaram a que o tribunal concluísse, sem qualquer dúvida, que os factos em apreço ocorreram como descrito na factualidade provada.»

E ainda:

«CM , nas declarações que prestou para memória futura, foi clara na descrição que fez dos factos.
Prestou tais declarações de modo contido, simples e emocionado, levando o tribunal a concluir, sem qualquer dúvida, que a mesma relatou o que viveu e, por conseguinte, que tais factos ocorreram como os descreveu. O seu choro, audível na parte final dessas declarações, é elucidativo do sofrimento provocado pela conduta do arguido.»
           
É sabido que os crimes sexuais em geral (e os praticados num contexto intrafamiliar ou de algum modo análogo, em particular), decorrem de forma oculta, longe da “vista” de terceiros. Em muitos casos de abuso sexual, os abusadores são familiares, amigos, vizinhos ou pessoas próximas da vítima.

Compreende-se, pois, que no âmbito do elenco dos meios de prova admissíveis – constituindo princípio legal o de que «são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei» (artigo 125.º do C.P.P,) –, a apreciar segundo as regras da experiência comum e a livre convicção (embora motivada e juridicamente controlável) da entidade decisora, assumem particular relevo as declarações das ofendidas (ou ofendidos), designadamente se forem menores, pois atenta a natureza do bem jurídico violado, o seu sujeito activo procura rodear-se, na prossecução dos seus propósitos, das maiores cautelas, longe dos olhares intrusos, actuando sem dar nas vistas, para não se comprometer.

Quer isto dizer que a prova da verificação dos factos, nos crimes de natureza sexual, por força das circunstâncias, pode ser particularmente difícil, já que escasseia a prova directa e, regra geral, só o arguido e a vítima têm conhecimento da maioria dos factos.

Daí que assuma especial relevância o depoimento da vítima, desde que, como é evidente, o mesmo seja credível e esteja em sintonia com as regras da experiência comum, de molde a formar a convicção do julgador. Se tais declarações, criticamente analisadas com recurso aos subsídios da psicologia judiciária, vierem a mostrar-se verosímeis e credíveis, constituirão um importante e muitas vezes decisivo meio de prova.

Em matéria de apreciação da prova, o referido artigo 127.º dispõe, como já se disse supra, que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.

Na expressão regras da experiência incluem-se as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios, devendo as inferências basear-se na correcção do raciocínio, nas regras da lógica, nos princípios da experiência e nos conhecimentos científicos a partir dos quais o raciocínio deve ser orientado e formulado (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2.ª edição, p. 127, citando F. Gómez de Liaño, La Prueba en el Proceso Penal, 184).

Atentas as naturais dificuldades de reconstituição do facto delituoso, sobretudo quando perpetrado de forma oculta e longe da vista de terceiros, há que recorrer, por vezes, à prova indirecta para basear a convicção da entidade competente sobre a existência ou não da situação de facto.

Quer isto dizer que, na ausência de prova directa (prova que se refere imediatamente aos factos probandos que integram o tema da prova), todos reconhecem a possibilidade de o tribunal deduzir racionalmente a verdade dos factos a partir da prova indirecta, devidamente valorada (cfr. Acórdão da Relação de Coimbra, de 9 de Fevereiro de 2000, C.J., Ano XXV, I, pp. 51 e seguintes; Acórdão da mesma Relação, de 11 de Maio de 2005, proc. 1056/05, www.dgsi.pt).

Revertendo de novo aos crimes sexuais, com vítimas menores, por vezes a prova, para além das declarações da vítima, que esbarra com a negação do arguido, é mais indirecta que directa, cuja apreciação envolve um elevado nível de tratamento cognitivo (deduções e induções), sempre a partir das regras da experiência. É que, na maioria dos casos, o tribunal confronta-se com duas posições acerca dos factos: a da vítima que os denuncia e a do arguido que normalmente os nega.

Assim, a prova no âmbito deste tipo de criminalidade passa, essencialmente, pelas declarações da vítima.

A menor, CM , prestou nos autos, como já se disse, declarações para memória futura, nos termos previstos na lei.

Mediante este tipo de diligência pretende-se, essencialmente, não sujeitar as vítimas a interrogatórios sucessivos e traumatizantes, que as obriguem a um constante rememorar dos factos em questão.

Importa ter todo o cuidado no modo de conduzir a tomada deste tipo de declarações, desde logo adequando a linguagem à idade do declarante, facilitando a comunicação em matérias que mesmo para adultos são extremamente penosas, por estarem em causa quer questões morais, quer de pudor, que podem condicionar o desenrolar da diligência.

A nosso ver, a tomada de declarações teve em conta as necessárias cautelas e não suscita reparos.

Ora, ouvida a gravação dessas declarações, constata-se que, como se realça na motivação da decisão de facto, a menor foi clara na descrição que fez dos factos, prestando declarações de modo contido, simples e emocionado, com descrição do que se apercebeu pelo toque e pelo cheiro, não evidenciando qualquer sinal de exagero, teatralidade e efabulação que faça duvidar da fidedignidade do seu relato. Como se ressalta na motivação, o choro, audível na parte final das declarações, é elucidativo do sofrimento da menor ao ter de recordar e relatar os factos, para si penosos.

Trata-se de declarações coerentes, expressivas, produzidas com recurso a linguagem adequada à idade da menor, não se inferindo da sua audição que esta tenha sido sugestionada a afirmar o que não queria dizer.

Estando em causa um tipo de abuso que não deixa evidência física do ponto de vista médico-legal, vejamos, agora, se existem elementos externos às declarações da menor que corroborem a sua fidedignidade/credibilidade.

A assistente, mãe da CM , relatou ao tribunal as circunstâncias em que deixou aquela e o irmão, F , aos cuidados da sua mãe e do arguido, naquele sábado em que saiu para um jantar de anos. Quando regressou a casa, passava da 01h00 – por volta da 01h10 / 01h15 - a sua mãe estava no sofá, a dormir profundamente - o que era normal acontecer. A CM  estava na cama da depoente, a dormir, o F jogava playstation, sentado no chão, à frente da televisão, “absorto no jogo”, enquanto o arguido estava num sofá paralelo.

Abanou a mãe “ferradinha a dormir”, para a despertar, e esta acordou e saiu com o arguido.

A assistente disse que não era costume a CM  dormir na sua cama (dela, assistente, entenda-se), mas que não a acordou.

No domingo, a assistente não notou nada de especial, a não ser à noite, “um episódio muito estranho com a CM , que eu tive de ligar ao pai”, “porque ela estava com um comportamento como eu nunca tinha visto” e “chorava compulsivamente, tremia, muito gaga, as lágrimas a caírem-lhe, a ranho a cair, não parava de tremer”. Segundo a assistente, não se tratou de uma discussão, mas antes “isto foi ela que teve um ataque enorme a falar com o pai e comigo”, desencadeado sem razão aparente – um comentário da menor do género “o pai disse que tu gastas dinheiro” - e sem paralelo em qualquer outra situação que já tivesse ocorrido. O pai da CM , ao telefone em alta voz, procurava acalmar a menor, enquanto esta dizia “e desculpa, e desculpa, e desculpa papá”.

Na segunda-feira, estava a assistente a trabalhar, quando foi chamada ao colégio da CM , pela Dr.ª MP , psicóloga que aí trabalha. Deslocou-se ao colégio e aguardou pela chegada do pai da CM , após o que foram directos ao gabinete onde estava a menor com a dita Dr.ª MP . A menor estava “igual ou pior” do que a situação da véspera, a chorar e a tremer. A Dr.ª Mónica começou a contar-lhe o que a CM  tinha relatado – o que se passara com o arguido, no sábado - e, à medida que contava, pior ficava esta, que estava “em estado de choque”.

A assistente relatou que a CM  não inventava histórias e não mentia, nunca tinha tido desentendimentos com o arguido. A assistente ficou “em estado de choque” e que não lhe passa pela cabeça que tenha inventado o relato que fez – “não são coisas que se inventam com este pormenor todo”; “tudo tão pormenorizado, o cheiro, o toque, que aquilo parecia meio gelatinoso”.     
      
Disse, igualmente, que quando viram o arguido a descer a rua, em direcção ao colégio, a menor, assim que o viu, começou aos gritos, “começou-se a passar e tivemos que a pôr dentro do colégio”; “começou a gritar, assustadíssima, cheia de medo, cheia de medo, cheia de medo”.

Desde essa altura, a CM  deitou para o lixo tudo o que sabia ter-lhe sido oferecido pelo arguido lhe tinha oferecido, não queria a cama que a avó lhe tinha dado, não conseguia dormir no quarto, acordava durante a noite, tinha pesadelos e dizia que não queria viver naquela casa (em que os factos ocorreram). Também não se sentava à mesa, queria as portas trancadas, passou a perguntar se a porta estava trancada, tinha ataques de pânico que antes nunca tinham acontecido. Começou a melhorar desde há uns meses, sendo acompanhada pelo pedopsiquiatra. Anda sempre a esfregar as mãos com álcool e mostra-se triste.

A testemunha MRM , pai da menor, relatou que na segunda-feira, de manhã, a Dr.ª Mónica telefonou-lhe da escola da CM , a dizer-lhe que precisava de falar com ele, pois tinha acontecido algo grave. O depoente foi, então, à escola, onde lhe foi transmitido que a CM , durante uma aula, tinha tido um episódio nervoso, começou a chorar e a sentir-se mal, ao ponto de sair da sala e ir falar com a Dr.ª Mónica. Segundo a testemunha, a CM , quando a viu na escola, “estava um trapo”, “os olhos raiados, a chorar”, com um choro compulsivo “que uma pessoa não consegue controlar a respiração”.

A testemunha relatou o que lhe foi transmitido como tendo acontecido – em termos coincidentes com o que foi declarado pela menor, dado como provado e que também foi relatado pela assistente -, dizendo ter ficado “um bocado atónito, no inicio”, meio “abananado”. Não tem dúvida alguma de que a menor estava convicta do que dizia e afectada pelo que tinha acontecido.

Concretamente em relação ao que se passou no domingo, o depoente disse que foi uma situação “muito estranha e muito desagradável”. A assistente telefonou-lhe a questioná-lo que ele teria dito que ela gastava o dinheiro e que a “CM  disse não sei o quê” a esse propósito, pelo que puseram o telefone em alta voz. O depoente ouvia a menor a chorar, enquanto ele a questionava sobre o que é que se passava e se o tinha ouvido dizer alguma coisa daquelas, e a CM  “chorou, chorou, chorou”, “estava nervosa, foi muito estranho” e dizia “não sei, não sei”. Segundo o depoente, a menor não costumava mentir, nem inventar histórias e ele ficou desagradado com a situação. Foi uma situação excepcional e estranha que o deixou surpreendido.

Mais disse a testemunha que, na sequência da referida reunião na escola, à porta desta, quando vinham a sair os três – a testemunha, a assistente e a menor -, a CM  começou novamente a chorar, com aquela dificuldade de respirar, a dizer “ele vem aí, ele vem aí”, quando viu o arguido a aproximar-se. O arguido disse, então, ao depoente, que era doente, tomava uns comprimidos e, por isso, era impotente, pelo que a situação não tinha “pés nem cabeça”.

Aqui chegados, não logramos vislumbrar em que é que se baseia o recorrente, para, a partir dos depoimentos dos pais da menor, sustentar a tese de que esta é alguém que mente reiteradamente e que recorre à mentira “com uma facilidade chocante”.

Ambos os pais afirmaram que a menor não costuma mentir e inventar histórias.

O único ponto por onde o recorrente pretende “pegar” é a situação ocorrida no domingo, ou seja, no dia seguinte ao dos factos imputados.

Os relatos dos pais da menor não esclarecem, exactamente, a origem do episódio, mas que terá que ver com algo que a menor teria dito a propósito de um comentário do pai acerca dos gastos que a assistente fazia.

Nem sequer se logrando apurar, concretamente, o que disse a menor e acabou por desencadear a situação – e que pode constituir um simples mal-entendido -, como é que o recorrente consegue concluir que a mesma é uma mentirosa habitual e que o faz com “facilidade chocante”? São os próprios pais da CM  a confirmarem que esta não é de mentir e inventar histórias e que a situação ocorrida naquele domingo foi muito estranha e inédita.
Como salienta a motivação da decisão de facto, o comportamento da CM  na sequência dos factos praticados pelo arguido – procurando afastar-se do mesmo, não verbalizando imediatamente o sucedido, acabando por criar um desentendimento com os pais na noite seguinte “em circunstâncias que vieram a revelar-se elucidativas do descontrolo emocional em que então se encontrava e desembocando, no dia subsequente a essa noite, na escola, no pedido de ajuda em que se traduziu o relato dos factos a MP ”, é perfeitamente congruente com a situação de pânico que para a criança em causa resultou da descrita actuação do arguido. O que aconteceu na noite do dia seguinte aos factos, o comportamento da CM  para com os pais, “foi um grito por ajuda: conseguiu, por instinto, com o conflito que criou, chamar a atenção de ambos os pais para a aflição em que se encontrava”, em que tem o seu papel o “sentimento de culpa (obviamente injustificada, mas emocionalmente compreensível, na perspectiva da criança) ”, explicação que o tribunal recorrido apresenta e que se afigura inteiramente convincente face aos ensinamentos da psicologia judiciária.
           
Prosseguindo:

Sobre o depoimento de MJB  , mãe da assistente e avó da CM , diz-se na motivação da decisão de facto que foram patentes “o constrangimento e a falta de isenção manifestados”, “procurando sustentar uma versão de acordo com a qual os factos em causa não ocorreram, porque, caso contrário, ter-se-ia apercebido dos mesmos (versão distinta da verificada com base nas declarações da sua neta CM  e da sua filha Inês, tudo levando a crer que porque comprometida com a defesa da posição do arguido e com o objectivo de não suportar qualquer responsabilidade, ainda que apenas emocional, pelo sucedido com a CM ) ”.

Ouvido o seu depoimento, verificamos que a testemunha relatou as circunstâncias em que ficou a cuidar dos netos, com o arguido, enquanto a assistente saiu para jantar. Admitiu ter passado “pelas brasas” e que quando a assistente regressou a casa estava acordada. Disse ter o “sono muito leve” e que, enquanto dormitava, estava toda a gente na sala. Não ouvia o que diziam o arguido e a neta enquanto estavam à mesa, porque o neto estava muito entusiasmado a jogar playstation e, com o som desta, não conseguia ouvir mais nada. Não viu passar-se nada do imputado ao arguido. Quando a assistente chegou a casa, foram-se embora, a testemunha e o arguido. No dia seguinte, domingo, esteve com a CM  e o irmão e aquela estava “normal”. Na segunda-feira, de manhã, a assistente telefonou-lhe a dizer que não sabia o que tinha acontecido, mas que a tinham chamado e ao pai da CM  ao colégio. Depois, voltou a telefonar a dizer-lhe “o que tinha acontecido com o JA ”, que este “a tinha mandado fazer uma festa”, “no pénis”. Atente-se que a testemunha começou por dizer não se lembrar do que a filha lhe disse, que tinha vergonha de dizer, acabando por relatar, como manifesta dificuldade, o supra exposto, sobre lhe ter dito que o arguido tinha mandado a CM  “fazer uma festa”, “no pénis”. Até aquela noite, a CM  tinha uma relação normal, simpática, com o arguido, não tendo a depoente percepcionado nada de anormal que se tivesse passado.

Lê-se na motivação de facto:

Da análise crítica e conjugada, sempre de acordo com as regras da experiência e da lógica, das declarações e depoimentos prestados por CM , IM , pelo arguido e por MJB  , resultou para o tribunal a convicção de que o arguido praticou os factos descritos, de que foi vítima CM , aproveitando-se do facto de o irmão desta, de 9 anos de idade, se encontrar completamente absorvido pelo jogo que desenvolvia na playstation, de costas para o lugar onde se encontravam o arguido e a irmã, e o de a avó da mesma se encontrar a dormir estendida no sofá que estava colocado de costas para aquele lugar, sendo que, mesmo nos momentos em que não esteve a dormir, MJB  não conseguia ouvir qualquer conversa, tal era o barulho resultante do jogo desenvolvido pelo neto (como a própria revelou), do que o arguido necessariamente se apercebeu.
Que MJB   se encontrava a dormir profundamente quando os factos foram praticados resulta evidente também da circunstância, revelada pelo seu depoimento e pelas declarações de CM , de não se ter apercebido de que a sua neta, depois de pedir ao irmão para se irem deitar, saiu da sala, tendo acabado por se ir deitar sozinha, para além do que, apesar de (MJB  ) ter o telefone no sofá onde se encontrava, não ter ouvido o telefonema que, pouco antes de chegar a casa, lhe fez a filha, IM , para lhe comunicar que estava a chegar, razão pela qual, como por esta e pelo arguido foi revelado em audiência, IM telefonou então para o arguido.
Foi para o tribunal absolutamente claro que tanto o arguido como MJB   procuraram, nomeadamente com base no relato inverídico de pormenores relacionados com o posicionamento dos objectos e das pessoas presentes na referida sala na noite de 24.01.2015, e embora com motivos distintos (no caso do arguido, a pretensão de fuga à responsabilização pelos seus actos e à assunção das respectivas consequências; no caso da avó da CM , pelo peso emocional da aceitação da responsabilidade pela presença do arguido naquela sala e pela relação com o mesmo mantida) desacreditar o a respeito relatado por CM e por IM . Ora, o relato por estas últimas feito, considerado apenas relativamente aos factos de que revelaram ter conhecimento directo, foi, pelo modo como foi feito, pelo seu conteúdo, pela sua contenção, pela emoção sincera que o acompanhou, absolutamente convincente no sentido da verificação dos factos em causa.”

Da apreciação da prova gravada nada resulta que ponha em causa este juízo efectuado pelo tribunal recorrido.

Quanto ao depoimento de Mónica, psicóloga do colégio frequentado pela menor, diz-se na motivação de facto que “foi particularmente claro na expressão da aflição com que a CM  se lhe dirigiu para lhe contar o sucedido, assim como da aflição com que lhe fez tal relato, sendo patente que a reacção fisiológica que então manifestou – chorando compulsivamente, com o coração muito acelerado durante dez a quinze minutos, tremendo de forma descontrolada, o que apenas acalmou com o auxílio de MP  -, foram congruentes com a situação de pânico resultante da efectiva experiência dos factos que relatou”.

A testemunha disse que acompanhou a CM  desde o 1.º ano do 1.º ciclo, na sequência da separação dos pais e de dificuldades de aprendizagem de leitura e escrita.

Quando, naquele dia (segunda-feira, dia 26 de Janeiro de 2015), a CM  a procurou no seu gabinete, “ela chorava compulsivamente, tinha uma série de sinais fisiológicos que revelavam claramente que ela estava muito angustiada e transtornada e revelava um grande sofrimento”. “Era impossível alguém fingir aquela reacção fisiológica”, tecnicamente denominada activação fisiológica involuntária, impossível de alguém fingir. Ajudou-a respirar de forma controlada, “ durante cerca de 10 a 15 minutos esteve constantemente o coração com um ritmo excessivamente acelerado”. Com base na conversa que tiveram, em que a CM  lhe relatou as circunstâncias em que o arguido terá pegado na mão dela e a direcionado para o seu pénis, dizendo qualquer coisa do género “não queres dar uma festinha no tio, dá uma festinha no tio”, percebeu que a CM  se sentia muito culpada, verbalizando “mas porque é que eu estava ali?”, “se eu não estivesse com o tablet... porque é que eu não estava com o meu irmão?”. A menor disse-lhe que não falou antes, porque teve medo, porque estavam sozinhos com o arguido; também teve medo de que não acreditassem nela, sentia vergonha e receio de novo confronto com o arguido.

Segundo a depoente, a menor apresentava, como sinais físicos, o choro, a batida dos dentes, os tremores de forma incontrolada, que se mantiveram durante algum tempo.

A depoente, com larga experiência de contacto com a menor, disse que nunca verificou qualquer tendência daquela para efabular. Apenas por uma questão de método, teve de colocar em questão o relato da menor, para verificar a sua consistência e coloca-la face às consequências que poderiam resultar. A menor manteve a consistência, o grau de pormenorização – referindo-se, por exemplo, ao odor -, tendo a depoente procurado despistar a eventual contaminação por via de informações que a menor tivesse recebido de outras vias. Inclusivamente, perante um telefonema da avó materna da menor, que lhe disse não ser possível, por razões físicas, o arguido manter actividade sexual, a testemunha procurou saber da menor qual a sensação por esta percepcionada no contacto, que a menor disse ser “mole”.

De todo o relato, circunstanciado, da testemunha Mónica Pinto, resulta que, se questionou o relato da menor, fê-lo por uma questão de método, mas dúvidas não lhe ficaram da sua veracidade.

A propósito da prestação de depoimento por esta testemunha, argumenta o recorrente que o tribunal violou o princípio do contraditório, invocando ter existido violação do disposto na alínea f) do artigo 323.º do C.P.P., e bem assim dos artigos 18.º, 20.º e 30.º da Constituição da República.

De harmonia com o disposto no artigo 322.º, n.º1, do C.P.P., a disciplina da audiência e a direcção dos trabalhos competem ao presidente, a quem cabe, além do mais, nos termos do artigo 323.º, garantir o contraditório, impedir a formulação de perguntas legalmente inadmissíveis, dirigir e moderar a discussão, proibindo, em espacial, todos os expedientes manifestamente impertinentes ou dilatórios.

Pois bem: da audição do depoimento da testemunha MPM resulta que a Mm.ª Presidente mais não fez do que exercer os seus poderes de disciplina da audiência.
A propósito do episódio de domingo, já dissemos que os relatos dos pais da menor não esclarecem, exactamente, a origem do mesmo, mas que terá que ver com algo que a menor terá dito a propósito de um comentário que o pai teria feito acerca dos gastos que a assistente fazia. Não se logra esclarecer, exactamente, o que a menor disse e que o pai desmentiu – pode tratar-se de um mero mal-entendido -, e que acabou por desencadear uma reacção emocional da menor que ambos os pais consideraram muito estranha. Tão estranha que, no dia seguinte, de manhã, antes da menor procurar a psicóloga do colégio, já a assistente tinha telefonado à dita psicóloga, testemunha MPM, a dar-lhe conta do que se tinha passado na véspera.
A interpretação que a testemunha deu daquele episódio, a partir de uma leitura psicológica, foi no sentido de que, aquele comportamento da menor, “fora do padrão normal”, já reflectia o seu mal-estar e sofrimento, que tinha sido contido durante todo o dia, sem ser verbalizado, dando origem àquela “chamada de atenção” e exteriorização de um desarranjo emocional.
O Exm.º mandatário do arguido disse, então, o seguinte: “Vamos lá ver o que aconteceu é que esse episódio que lhe estou a falar com a mãe, dizer que gastava dinheiro de uma forma abusiva, etc. etc, é uma crítica severa que o pai teria feito, isso é antecedido por uma situação exactamente igual …
Nesse momento, interveio a Mm.ª Juíza Presidente no sentido de que o ilustre mandatário formulasse a pergunta que pretendia colocar: “O Sr. Dr. não é testemunha, o Sr. Dr. tem uma pergunta a fazer, qual é?”.
Regista-se uma troca de palavras, em que a Mm.ª Juíza insiste em que o Exm.º mandatário formule a pergunta – que, realmente, estava por concretizar.
O Exm.º mandatário começa, então, a dizer “a pergunta, como é que a Sr.ª Dr.ª MPM diz que é impossível uma coisas destas acontecer”, sendo atalhado pela Mm.ª Juíza Presidente que afirma “não disse isso, Sr. Dr., em momento algum disse”.
Atente-se, no seguinte: a testemunha MPM tinha dito que a activação fisiológica involuntária que a menor tinha exibido na segunda-feira de manhã era impossível de ser fingida, precisando a circunstância de a CM  apresentar tremores e batida de dentes que eram incontrolados e um ritmo cardíaco que se manteve, durante cerca de 10 a 15 minutos, excessivamente acelerado.
Por conseguinte, a testemunha não se referiu, a propósito da activação fisiológica que presenciou, ao episódio de domingo, sendo descabido dizer-se que a testemunha tinha afirmado, em relação à reacção emocional da menor nesse dia – que a testemunha não presenciou -, que “é impossível uma coisa destas acontecer”.
Segue-se o Exm.º mandatário a pretender perguntar se a menor “é ou não capaz de fazer um cenário idêntico em dois momentos diferentes, e aqui no primeiro caso, para entalar o pai perante a mãe?”.
Pergunta que a Mm.ª Juíza Presidente não permitiu fosse formulada nesses termos, no exercício do seu poder legal de não admitir perguntas sugestivas ou impertinentes.
No caso, a pergunta trazia já implícita a afirmação da existência de “cenários” idênticos, em que, no primeiro, a menor queria “entalar o pai perante a mãe”, sendo certo que, como já se disse, a testemunha não presenciou os factos de domingo e não pode, como é óbvio, pronunciar-se sobre as manifestações fisiológicas que a menor então manifestou, em comparação com as detectadas na segunda-feira.
O Exm.º mandatário vai dizendo que a Mm.ª Juíza estava a interferir e que não o podia impedir de formular as perguntas que ele entendia fazer.
Ocorre que é da competência da Mm.ª Juíza Presidente dirigir os trabalhos e impedir a formulação de perguntas legalmente inadmissíveis, entre as quais se contam as sugestivas e impertinentes.
É por isso que a Mm.ª Presidente reformula a pergunta dirigida à testemunha MPM, perguntando-lhe se tinha conhecimento de algo mais sobre o que se tinha passado naquele domingo e lhe tivesse sido relatado pela mãe da CM , pelo pai da CM , pela própria CM  ou qualquer outra pessoa.
Mais adiante, o Exm.º mandatário questiona a testemunha do seguinte modo.
Dr.ª MPM há outra questão que lhe queria perguntar, há aqui na Acusação uma acusação que diz isto - "a menor horrorizada e em pânico retirou a mão" e depois foi por aí fora. É capaz de me explicar o que é que significa uma pessoa, neste caso a menor, possuída de pânico e de horror, qual é o comportamento normal numa pessoa com esta situação?
A Mm.ª Juíza reformula a questão, perguntando “Aquilo que verificou na CM , ao descrever os factos, a Sr.ª Dr.ª caracterizaria como?”, ao que a testemunha respondeu: “Como uma reação fisiológica congruente com uma situação de pânico. A activação fisiológica, essa sim eu disse impossível de ser fingida (...) a activação fisiológica, o batimento cardíaco acelerado, durante cerca de 10 a 15 minutos, os tremores corporais.”
O Exm.º mandatário pergunta, então, “se após esse episódio em que diz aqui na acusação que a CM  ficou horrorizada e em pânico é compatível com a CM  levantar-se, procurar o irmão e ir dormir para a cama? Quando a mãe chegou ela estava a dormir tranquilamente. Como é que se explica aqui o pânico?
A Mm.ª Juíza reformula a questão, colocando-a nos seguintes termos: “Sr.ª Dr.ª, aliás Sr.ª testemunha, é possível que alguém em pânico, na situação que a CM  descreveu, tenha saído do lugar em que se encontrava, segundo disse com o Sr. JA , se tenha dirigido ao pé do irmão e tenha ido para a cama, sem contar o que quer que seja a alguém?
A esta questão respondeu a testemunha afirmativamente, sendo questionada pela Mm.ª Juíza sobre se tinha verificado isso com base na experiência profissional.
Respondeu a testemunha que o medo é suficiente “para a criança, naquele momento, procurar fugir da situação”, ao que o ilustre mandatário perguntou: “E adormeceu tranquilamente?
Aqui chegados, importa reter que este “tranquilamente” não tem cabimento: quando a assistente chegou a casa, a menor estava a dormir – é o que se pode dizer. Se foi dormir “tranquilamente” é acrescento introduzido pelo Exm.º mandatário sendo certo que a testemunha não sabe, sequer, quanto tempo passou entre a ocorrência dos factos e o momento em que a menor foi encontrada a dormir.
Finalmente, seguiram-se perguntas sobre o rendimento escolar da menor, ao que a testemunha disse não saber precisar os resultados da CM  naquela altura, apenas sabendo que houve questões ao nível da atenção que se manifestaram naquele momento.
Segue-se uma troca de palavras entre a Mm.ª Juíza Presidente e o Exm.º mandatário, acabando aquela por dizer que “o tribunal não deixa é que a testemunha responda várias vezes à mesma pergunta”.
A dada altura, questiona o Exm.º mandatário se a menor gostava dos professores ou se não gostava, se gostava de estudar ou não gostava, se a testemunha teve alguma conversa com a menor sobre essas matérias.
Interveio a Mm.ª Presidente no sentido de que fosse esclarecido qual o alcance e o interesse da pergunta em questão, qual a relevância da pergunta no âmbito dos autos.
Esclarece o Exm.º mandatário: “Sr.ª Dr.ª, porque se diz aqui que a CM  perdeu rendimento, que tem medo, não vai para a escola, não fica em casa. Há uma série de situações?
Pergunta, então, a Mm.ª Juíza à testemunha: “Tem mais algum conhecimento para além daquilo que referiu?”. E acrescentou: “Em relação ao desempenho escolar da CM  ou aos motivos de qualquer que seja o seu desempenho escolar que já referiu desconhecer?
Respondeu a testemunha: “Não. Quer dizer... a questão dos métodos de estudo, a organização são questões que foram trabalhados com ela mas não em relação com esta situação”.   
Existem diversos estilos de condução de audiências, que dependem de características pessoais de quem as preside. 
A Mm.ª Juíza Presidente manteve uma condução da audiência viva e interventiva, por vezes marcante.
Está o recorrente no seu direito de criticar a condução da audiência e pode ser discutível a necessidade de determinadas observações.
Porém, dizer-se que o condução da audiência pela Mm.ª Juíza se traduziu num acto de “vandalismo”, é verdadeiramente inadmissível. Só podemos ficar perplexos perante uma afirmação desse jaez.
No essencial, a Mm.ª Presidente, com o seu estilo próprio, mais não fez do que exercer os seus poderes de disciplina da audiência.

A alegação de que existiu violação do disposto na alínea f) do artigo 323.º do C.P.P., e bem assim dos artigos 18.º, 20.º e 30.º da Constituição da República, é totalmente desprovida do mínimo fundamento.

No relatório pericial psicológico à menor – perícia sobre a personalidade -, constante de fls. 290 e seguintes, lê-se, além do mais, que “o relato dos factos da examinanda é feito de uma forma organizada e espontânea, com capacidade de insight crítico sobre os comportamentos descritos e com um discurso íntegro, coerente e consistente”. Segundo o relatório pericial – do serviço de clínica e patologia forenses do INML – os factos descritos pela menor foram por ela vivenciados; o facto de a revelação da situação ter ocorrido dois dias depois “significa apenas que a menor procurou revelá-la num contexto mais neutro e onde se sentisse segura, neste caso à psicóloga da escola, sendo que é também frequente que a revelação de abusos por parte de crianças ocorra não imediatamente após os abusos mas após algum tempo devido a todas inseguranças e impacto emocional disruptivo que a situação acarreta”. Quanto ao quesito sobre se a menor revela propensão para mentir, o relatório pericial responde: “Não se observa qualquer indício sugestivo de tal comportamento.”
O relatório da Prof. Dr.ª CS, junto a fls. 29, que avaliou a menor a pedidos dos pais, concluiu que o seu relato “pareceu-me consistente e os afectos revelados pela criança congruentes”, tendo recomendado que a CM fosse observada em pedopsiquiatria, por não ser a dita Prof. Dr.ª especialista em psicologia infantil. Isto apesar de, no início do relatório, se dizer que a menor mente com alguma frequência e reage agressivamente quando confrontada, afirmação que, com toda a clareza, não resulta de qualquer constatação feita pela psicóloga clínica em causa, mas antes de informação cuja origem se desconhece – e que não impediu a mesma psicóloga de assinalar a consistência do relato e a sua congruência com os afectos revelados.
A declaração médica do professor Dr. PS assinala que “não existem dúvidas sobre a veracidade da narrativa e do episódio traumático.
Regressando à prova pessoal, diz-se na motivação de facto:
O arguido e MJB procuraram levar o tribunal a crer que os factos em causa não aconteceram, com base no modo como os móveis e as pessoas presentes na sala se encontravam ali posicionados na referida ocasião, pretensamente impeditivo da verificação dos factos sem que dela se tivessem apercebido quer o irmão da CM , quer a sua avó.
Ora, IM , como também resulta do acima referido, foi absolutamente convincente ao declarar que, quando chegou a casa, a mãe estava no sofá, dormia profundamente (o que era normal, disse, por se sentir muito cansada, por trabalhar muitas horas), tanto que teve que a abanar para a acordar; pediu desculpa por chegar tão tarde (tinha saído cerca das 20.45 horas e chegou cerca da 01.00/01.15 horas); teve que convencer o F a largar o jogo, no qual estava absorvido, e a ir para a cama; nessa noite, quando saiu do restaurante telefonou para o telemóvel da mãe (MJB  ), que não atendeu e, por isso, telefonou então para o telemóvel do arguido e disse que estava a chegar.
O arguido afirmou ser falso que MJB dormisse profundamente, referiu que naquela noite falou várias vezes com ela, embora não saiba se a mesma esteve ou não sempre acordada.
MJB   afirmou que “passou pelas brasas”, mas tem o sono muito leve e estava acordada; não ouvia o que diziam o arguido e a neta enquanto estavam à mesa, porque o neto estava muito entusiasmado a jogar playstation e, com o som desta, não conseguia ouvir mais nada.
Foi notória a atitude comprometida do arguido enquanto escutava o relatado pelos pais da CM , pela sua avó (na parte em que o depoimento desta não se mostrou coerente com a versão do sucedido que o arguido procurou ver sustentada), pela testemunha MP  e pela CM  (em declarações para memória futura).”

Descontado o que se afirma sobre “a atitude comprometida do arguido” em audiência, pois trata-se de matéria em que se impõe a relação de imediação que é própria de 1.ª instância e que estamos privados de sindicar, não vislumbramos razão para colocar em causa nada do que se diz na motivação: antes a audição da prova gravada e os elementos documentais e periciais o corroboram.

É o que ocorre na passagem da motivação, onde se diz:
O facto de no documento a fls. 12 se mencionar a “explosão” na “aula de inglês” não põe de modo algum em causa a credibilidade das declarações da CM  e do depoimento de MP  - que, pelo seu conteúdo e pelo modo como foram prestados, se revelaram absolutamente isentos e rigorosos -, nem o documento por esta redigido constante de fls. 6 e 7 (apenas considerado no que concerne aos períodos de acompanhamento), desde logo porque na data em que o documento de fls. 10 a 14 foi redigido já tinham passado sete dias sobre aquela em que, na escola, a CM  descreveu o sucedido e quatro dias sobre a data da consulta em que se baseou tal documento e aquando do relato a que tal documento se refere o essencial não era se aquela “explosão” foi na aula de português ou na de inglês, sendo certo que aquela menção tanto pode ter resultado de lapso do médico que a redigiu como da criança cuja aflição ali é descrita, esclarecendo-se, também, que o que consta de fls. 10 a 14 apenas é considerado na medida em que se traduz numa informação de natureza médica.”

O mesmo se diga quanto aos argumentos com base no estado de saúde do arguido, que a motivação de facto aborda, em termos que não oferecem qualquer reparo, do seguinte modo:

Não sendo posta em causa a existência de problemas de saúde do arguido, considerando nomeadamente o teor dos documentos constantes de fls. 236 a 240 e 446, a verdade é que tal existência não contende com a verificação da prática dos factos pelas razões e nos termos descritos - para a qual o arguido não careceu de capacidade eréctil (a própria CM  revelou, pelo teor das suas declarações a esse respeito, que tal capacidade não se manifestou aquando daquela prática) -, contendendo apenas com uma vida sexual saudável por parte do arguido, não resultando daqueles documentos, nem de qualquer outra prova produzida, que o arguido não tem líbido, mas apenas, a esse respeito, que a medicação que lhe foi instituída tem como consequência muito frequente a diminuição quer da líbido, quer da capacidade eréctil. A negação dos factos pelo arguido, também com fundamento na patologia de que padece e nas consequências por si afirmadas não se revelou, por todas as razões expostas, credível, verificando-se que o mesmo procurou, desde que os praticou e não obstante o mal que causou a CM , afastar de si a responsabilização por essa prática.”

Quanto a testemunhas indicadas pelo arguido, afirma o tribunal recorrido:

Os depoimentos prestados pelas testemunhas arroladas pelo arguido – ACR , RIR  , MGA e MAG – em nada contrariaram a convicção do tribunal nos termos expostos na factualidade provada e pelas razões elencadas, apenas tendo levado à conclusão de que com as testemunhas, ou que seja do seu conhecimento, o arguido não adoptou comportamentos de semelhante natureza.

E assim é, pois este tribunal não deixou de ouvir a gravação desses depoimentos, apesar de não ter sido pedida, constatando tratar-se de testemunhas abonatórias, sem conhecimento directo dos factos. As testemunhas ACR e RIR conhecem o arguido desde sempre, porque os seus pais eram amigos dos pais do arguido e passavam férias em Lagos, na casa destes. Infere-se que o convívio com o arguido reporta-se, sobretudo, a dias de férias, no Algarve. A testemunha MGA conhece o arguido há mais de 30 anos, quando a testemunhava estudava medicina e o arguido exercia no hospital da Guarda. Por sua vez, MAG disse conhecer o arguido profissionalmente (a testemunha é médico) e de, eventualmente, tomarem café e poderem ir almoçar ou jantar com amigos. Os depoimentos foram no sentido de que nunca tiveram conhecimento de qualquer conduta do arguido da natureza da que está aqui em causa e que nele confiam.

Tais testemunhos não abalaram a convicção do tribunal recorrido e não se vê que o devessem fazer.

Há que recordar que na tarefa de apreciação da prova, é manifesta a diferença entre a 1.ª instância e o tribunal de recurso, beneficiando aquela da imediação e da oralidade e estando este limitado à prova documental e pericial e ao registo de declarações e depoimentos.

A imediação, que se traduz no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova, podendo também ser definida como «a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá que ter como base da sua decisão» (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra, 1984, Volume I, p. 232), confere ao julgador em 1.ª instância meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe. É essencialmente a esse julgador que compete apreciar a credibilidade das declarações e depoimentos, com fundamento no seu conhecimento das reacções humanas, atendendo a uma vasta multiplicidade de factores: as razões de ciência, a espontaneidade, a linguagem (verbal e não verbal), as hesitações, o tom de voz, as contradições, etc. As razões pelas quais se confere credibilidade a determinadas provas e não a outras dependem desse juízo de valoração realizado pelo juiz de 1.ª instância, com base na imediação, ainda que condicionado pela aplicação das regras da experiência comum.

Quer isto dizer que a atribuição de credibilidade, ou não, a uma fonte de prova testemunhal ou por declarações, tem por base uma valoração do julgador que, enquanto fundada na imediação e na oralidade (nessa medida), o tribunal de recurso, em rigor, só poderá criticar demonstrando que é inadmissível face às regras da experiência comum (cfr. acórdão da Relação do Porto, de 21 de Abril de 2004, Processo: 0314013, www.dgsi.pt).

Tal não significa que o tribunal superior não deva analisar os depoimentos prestados e ajuizar sobre a sua verosimilhança e plausibilidade.

A existência de versões divergentes não significa que o tribunal tivesse de ficar, forçosamente, numa situação de dúvida insolúvel e que não lhe fosse legítimo, no quadro da livre apreciação da prova, dentro de parâmetros de racionalidade e experiência comum, determinar como os factos se passaram.

Foi o que aconteceu no caso vertente.

Não identificamos qualquer violação dos princípios da livre apreciação da prova e do contraditório.

Ouvida a gravação dos depoimentos (e não perdendo de vista que o princípio da livre apreciação da prova também se aplica ao tribunal de 2.ª instância), entendemos que, por via da prova pessoal documentada, conjugada com a prova pericial e documental, não se conclui que o tribunal recorrido tenha apreciado arbitrariamente a prova e que houvesse que decidir de forma diversa.          
           
Face ao exposto, nos limites da reapreciação da prova, não vislumbramos quaisquer razões para divergir do juízo formulado pelo tribunal recorrido em sede de decisão de facto, pelo que, inexistindo vícios de conhecimento oficioso, deve manter-se a factualidade provada e não provada tal como consta do acórdão recorrido.
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3.2.– As questões do invocado erro de julgamento da matéria de facto, da violação do disposto na alínea f) do artigo 323.º do C.P.P. e dos artigos 18.º, 20.º e 30.º da Constituição da República, relativamente ao depoimento de MBP , e bem assim da violação dos n.ºs 3 e 4, do artigo 412.º do C.P.P., foram já conhecidas no ponto anterior: em todas elas o recorrente carece de razão.

Insurge-se o recorrente quanto ao facto de ter sido determinada a comunicação do acórdão à Ordem dos Médicos, bem como contesta a condenação no que se liquidar em execução de sentença quanto ao valor dos tratamentos/consultas médicas de que a ofendida necessite em consequência do crime praticado.

Diz o recorrente, em síntese, que não foi imposto no regime de prova qualquer restrição ao exercício da actividade médica pelo arguido durante o hiato temporal de suspensão da execução da pena, sendo que é importante e necessário definir se o recorrente fica impedido de ministrar tratamento médico a menores de 18 ou 14 anos de idade e durante quanto tempo, delimitando-se “a injunção que impende sobre o recorrente, em consequência da condenação pela prática do crime de abuso sexual de criança” e o “hiato temporal em que esta decisão tem consequências no exercício da actividade médica, não devendo deixar em aberto esse poder nas mãos da Ordem dos Médicos”.

Acontece que o tribunal não aplicou, nem podia aplicar, a pena acessória prevista no artigo 69.º-B, do Código Penal, aditado por diploma que entrou em vigor em data posterior à prática dos factos - Lei n.º 103/2015, de 24 de Agosto.

A comunicação à Ordem dos Médicos, nos termos em que se encontra determinada, é apenas para que esta Ordem tenha conhecimento da condenação do arguido, não estando adstrita a um período temporal, nem impondo que seja desencadeado qualquer processo disciplinar, não existindo, assim, qualquer violação ao princípio da igualdade e proporcionalidade, como o recorrente alega, não se vislumbrando, também, qualquer violação do artigo 30.º da Constituição da República Portuguesa.

Finalmente, no tocante à condenação no que se liquidar em execução de sentença quanto ao valor dos tratamentos/consultas médicas de que a ofendida necessite em consequência do crime praticado pelo arguido, alega o recorrente haver violação do artigo 30.º da Constituição da República, já que “não pode haver penas nem medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade com carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida”.

O acórdão recorrido estabelece que “o arguido responsável pela reparação dos prejuízos causados com a sua conduta ilícita, ou seja, pelos danos patrimoniais causados, e cujo valor se refere ao despendido com os tratamentos/consultas médicas a que CM foi e será sujeita em consequência da actuação do arguido - até ao momento foi possível já liquidar a quantia de € 1.530,00 (art. 609.º do Código de Processo Civil, aplicável por via do disposto no art. 4.º do Código de Processo Penal), sendo o valor dos tratamentos/consultas futuros a liquidar em execução de sentença (art. 82.º, n.º 1, do Código de Processo Penal) -, e pelo pagamento do valor apto a reparar, na medida do possível, os danos não patrimoniais, o sofrimento provocado pelo crime de abuso sexual que cometeu contra CM , pois, pela sua gravidade, merece a tutela do Direito, apreciando os factos de que aquela foi vítima (art. 496.º, n.º 1, do Código Civil)”.

O recorrente incorre, a nosso ver, num equívoco, ao tomar como pena ou medida de segurança o que constitui uma indemnização civil resultante de facto ilícito, que não pode ser integralmente conhecida devido à natureza da lesão e à idade da vítima, o que justificou o recurso ao artigo 82.º, n.º 1, do C.P.P., que contém solução idêntica à do processo civil – artigo 609.º, n.º2, do C.P.C., para os casos em que, havendo prova do facto ilícito, da responsabilidade e do nexo causal, não estiverem suficientemente precisados os elementos para “fixar a indemnização”.

Confundir esta situação indemnizatória com uma pena ou medida de segurança privativas ou restritivas da liberdade, com carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida, é algo que nunca vimos defender – e não tem qualquer fundamento.

Assim, não existe qualquer violação do preceito constitucional invocado.
           
Concluindo: o recurso não merece provimento.

3.3.– Uma vez que o arguido decaiu totalmente no recurso que interpôs, é responsável pelo pagamento da taxa de justiça e dos encargos a que a sua actividade deu lugar (artigos 513.º e 514.º do C.P.P., na redacção da Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro, que aprovou o Regulamento das Custas Processuais – R.C.P.).
Tendo em conta a complexidade do processo, julga-se adequado fixar essa taxa em cinco UC (dentro dos limites da Tabela III a que se refere o artigo 8.º, n.º9, do R.C.P.).
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III–Dispositivo.
Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em negar provimento ao recurso interposto por JA , confirmando o acórdão recorrido.

Custas pelo arguido/recorrente, fixando-se em 5 (cinco) Uc a taxa de justiça.


           
Lisboa, 3 de Julho de 2018
                   

(Jorge Gonçalves) – (o presente acórdão, integrado por cinquenta e três páginas com os versos em branco, foi elaborado e integralmente revisto pelo relator, seu primeiro signatário – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.)
                               
(Maria José Machado)