Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3707/18.2T8LSB.L1-7
Relator: MICAELA SOUSA
Descritores: ARRENDAMENTO
RESOLUÇÃO
INTERESSE EM AGIR
OBRAS DE CONSERVAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/02/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – A circunstância de o senhorio poder efectuar a resolução do contrato de arrendamento por via extrajudicial não o priva da possibilidade de recorrer a uma acção judicial destinada àquela resolução, posto que o procedimento especial de despejo é apenas um meio processual colocado à disposição do senhorio em alternativa à acção de despejo, nada obstando a que o senhorio a esta recorra em lugar de instaurar esse procedimento, quer ali deduza o pedido isolado de resolução com fundamento na falta de pagamento de rendas, quer o deduza em cumulação com outros pedidos.
II - O que se impõe questionar é se os senhorios, podendo resolver e tendo resolvido o contrato mediante comunicação extrajudicial enviada à arrendatária, afinal não possuem interesse em agir relevante para recorrer à acção judicial.
III - O autor tem interesse processual se, da situação descrita, resulta que essa parte necessita da tutela judicial para realizar ou impor o seu direito; a acção instaurada deve ser o meio judicial mais rápido, económico e adequado para obter a tutela visada.
IV - A necessidade de tutela judicial não pode ser negada quando, após a comunicação da resolução do contrato, a arrendatária persiste na ocupação do locado, ao longo de cinco anos, sem o pagamento de qualquer renda e assim se mantém não obstante a interpelação para a entrega do locado e respectivas chaves.
V - Na identificação do objecto do litígio o juiz terá de lhe atribuir uma qualificação jurídica provisória, procedendo à enunciação das questões em litígio de acordo com as várias soluções plausíveis da questão de direito, o que fará através da ponderação da relevância jurídica dos factos carreados para os autos pelas partes e em função também da matéria factual a que oficiosamente possa atender, nos termos do art. 5º, n.º 2 do Código de Processo Civil, considerando as soluções jurídicas que são, razoavelmente, suscitadas pela sua perspectiva provisória (atendendo também à jurisprudência e à doutrina), pela perspectiva do autor e pela perspectiva do réu.
VI – A identificação do objecto do litígio e a enunciação dos temas de prova delimitam o âmbito da instrução, sendo esta balizada pela causa de pedir e pelas excepções deduzidas, pelo que deverá incidir sobre os factos relevantes para o exame e decisão da causa que devam considerar-se controvertidos ou necessitados de prova e que constituem, impedem, modificam ou extinguem o direito controvertido, tal como decorre do vertido nos articulados.
VII - Recaindo sobre o senhorio a obrigação de realizar as obras de conservação, ordinárias ou extraordinárias, requeridas pelas leis vigentes ou pelo fim do contrato, nos termos do artigo 1074º, n.º 1 do Código Civil, a falta de cumprimento dessa obrigação pode constituir fundamento de resolução do contrato pelo arrendatário, nos termos do artigo 1083º, n.º 1 do referido diploma legal.
VIII - No entanto, tem sido uniformemente entendido que, enquanto se mantiver no gozo do imóvel, o arrendatário não poderá utilizar a excepção de não cumprimento do contrato para se recusar a pagar a renda, em consequência da não realização das obras, apenas podendo efectuar a redução da renda na medida proporcional à privação ou diminuição do gozo. Se existe cumprimento defeituoso ou parcial pelo senhorio, tal apenas dispensa o arrendatário de pagar a renda correspondente à falta verificada; no caso de mora do senhorio na reparação dos defeitos, o arrendatário não pode, mantendo-se no gozo da coisa locada, e enquanto subsistir o contrato, deixar de pagar a renda no momento oportuno, sob pena de incorrer em mora.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as Juízas na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
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I – RELATÓRIO
A., B. e C. intentaram contra D. a presente acção declarativa de condenação, com processo comum formulando os seguintes pedidos:
· A declaração de resolução do contrato de arrendamento de duração limitada, para habitação celebrado em 1 de Agosto de 1999 com a ré e a condenação desta a entregar aos autores o locado, livre e devoluto de pessoas e bens;
· A condenação da ré a pagar aos autores a quantia de € 21 997,08 (vinte e um mil novecentos e noventa e sete euros e oito cêntimos), por rendas vencidas e não pagas desde Novembro de 2012, acrescida do valor das rendas que se vencerem até ao trânsito da sentença que decretar a resolução do contrato de arrendamento;
· A condenação da ré no pagamento da quantia de € 698,32 (€ 349,16 x 2) por cada mês de atraso na entrega do locado livre e devoluto, a partir da data do trânsito em julgado da sentença que declare a resolução do contrato e a ré se constitua em mora e até efectivo pagamento;
· No caso de assim se não entender, deve o pedido subsidiário ser julgado procedente e a ré ser condenada a entregar o locado desocupado de pessoas e bens e a pagar aos autores a quantia de € 5 586,56 (cinco mil quinhentos e oitenta e seis euros e cinquenta e seis cêntimos) correspondente a rendas não pagas;
· E ainda o valor de € 15 400,00, a título de indemnização por enriquecimento sem causa, a que acresce a quantia mensal de € 350,00, enquanto a ré mantiver a ocupação ilícita do locado e até à sua efectiva entrega;
· Tudo acrescido de juros à taxa legal contados do trânsito em julgado da sentença.
Alegam para tanto, muito em síntese, o seguinte:
· Os autores são proprietários do segundo andar direito, destinado a habitação, do prédio sito em ..., freguesia da Ameixoeira, Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número 2... e actualmente inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Santa Clara sob o artigo 3..., direito que lhes adveio por óbito de DS, falecido em 25-07-2015 e de quem são os únicos herdeiros;
· O referido imóvel foi dado de arrendamento à ré pelo falecido DS por contrato de arrendamento de duração limitada, celebrado em 1 de Agosto de 1999, com destino a habitação, mediante o pagamento de renda mensal fixada no valor de Esc. 70 000$00 (€ 349,16);
· A ré pagou a renda referente ao mês de Novembro de 2012 e nunca mais pagou qualquer outra renda;
· Ainda em vida do senhorio DS, este e a mulher, notificaram a ré, por notificação judicial avulsa, comunicando a resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas, notificação que esta assinou em 30 de Janeiro de 2014, recusando-se, contudo, a entregar o locado livre e desocupado de pessoas e bens.
A ré contestou suscitando a excepção de falta de interesse em agir dado o fundamento da resolução ser a falta de pagamento de rendas, o que permite ao senhorio proceder à resolução por comunicação à contraparte, tanto mais que os autores procederam a tal comunicação por notificação judicial avulsa, assinada pela ré em 30 de Janeiro de 2014, tendo cessado então o contrato de arrendamento, pelo que deveriam recorrer ao Balcão Nacional de Arrendamento para executar o despejo; mais invocou a prescrição das rendas que se venceram até Fevereiro de 2013, impugnando ainda o seu valor mensal.
Alegou ainda que lhe assiste o direito de recusar o pagamento das rendas porque o locado não apresenta as condições mínimas de habitabilidade, o que coloca em causa a sua segurança e saúde, nomeadamente, apresenta os armários da cozinha apodrecidos, o autoclismo não funciona, ausência de isolamento na caixa de estores, porta e janela, e as paredes e tectos têm manchas e fissuras e uma tomada eléctrica encontra-se em estado que coloca em causa a segurança da ré, pelo que o senhorio incumpriu o dever de lhe proporcionar o gozo do imóvel, sendo que solicitou a realização de obras, sem sucesso; mais refere que mesmo que assim não se entenda, sempre o valor da renda terá de ser reduzido em dois terços, durante todo o período após Fevereiro de 2013, face ao avançado estado de degradação do locado.
Os autores apresentaram resposta sustentando ser admissível o recurso à acção judicial ainda que tenham ao seu dispor a via extrajudicial, para além do que à data da interpelação feita não tinham as obrigações fiscais, imposto de selo, cumpridas, o que os impedia de recorrer ao Balcão Nacional de Arrendamento; mais afastaram a falta de condições de habitabilidade do locado e consideram essa invocação um exercício abusivo de direito, refutando também a prescrição das rendas.
Em 8 de Outubro de 2018 foi proferido despacho convidando a ré a concretizar a data em que ocorreram as situações que impediram o gozo do imóvel e a data e modo pelo qual solicitou a realização de obras e ainda a extensão da afectação do gozo do imóvel.
A ré acedeu ao convite, por requerimento de 22 de Outubro de 2018, esclarecendo que os problemas mencionados, com excepção do autoclismo, agravaram-se há cerca de sete/oito anos e desde então solicitou ao senhorio a realização de obras, através de contactos verbais, confirmando que reside no imóvel mas sente a sua segurança e saúde colocadas em causa.
Os autores responderam ao novo articulado.
Em 9 de Janeiro de 2019, teve lugar a realização de audiência prévia com prolação do despacho saneador em que foram aferidos os pressupostos processuais relevantes, sendo julgadas improcedentes as excepções de falta de interesse em agir e de prescrição das rendas.
Foi fixado o objecto do litígio e foram enunciados os temas da prova.
A ré reclamou do objecto do litígio por considerar que tendo invocado a diminuição do gozo do imóvel locado decorrente do seu estado de degradação, tal privação do gozo deve determinar uma diminuição da renda mensal, conforme pedido efectuado na contestação.
Foi proferido despacho que indeferiu a aludida reclamação.
Realizada a audiência de julgamento foi proferida sentença, em 11 de Fevereiro de 2019, que decidiu a causa nos seguintes termos:
“a) Declarar que o contrato de arrendamento dos autos se extinguiu, por via da comunicada resolução, por notificação avulsa, no dia 30.01.2014.
b) Condenar a Ré a entregar aos Autores o locado livre e devoluto de pessoas e bens.
c) Condenar a Ré a pagar aos Autores as rendas vencidas desde Novembro de 2012 e até Janeiro de 2014 (isto é, até à data da resolução), no valor total de € 4.888,24 (quatro mil oitocentos e oitenta e oito euros e vinte e quatro cêntimos).
d) Condenar a Ré a pagar aos Autores as rendas peticionadas vencidas desde Fevereiro de 2014 (posteriormente à resolução) a Fevereiro de 2018, na quantia total de € 17.108,84 (dezassete mil cento e oito euros e oitenta e quatro cêntimos), a título de indemnização (artigo 1045º, n.º 1 do Código Civil) e, bem assim, as rendas vencidas desde Março de 2018 em diante e vincendas até à restituição, igualmente a título de indemnização.
e) Após o trânsito em julgado da presente sentença, caso a Ré não proceda à entrega do locado livre de pessoas e bens, haverá lugar a indemnização do valor correspondente à renda em dobro, pelo atraso na restituição da coisa (cfr. artigos artigos 1045º, n.º 2 do Código Civil).
f) Condenar a Ré no pagamento aos Autores de juros de mora, à taxa legal, contados desde o trânsito em julgado da sentença.
g) Conceder à Ré o prazo de trinta dias, após o trânsito em julgado da presente sentença, para desocupar o locado.”
É desta sentença que a ré interpõe o presente recurso concluindo as suas alegações do seguinte modo:
1. Nos presentes autos os Recorridos requereram como pedido principal a resolução do contrato de arrendamento com falta de pagamento das rendas, a qual, nos termos do no n.º 2 do artigo 1084.º do Código Civil, opera por comunicação à contraparte, isto é, sem necessidade de intervenção judicial (artigo 14.º n.º 1 do NRAU)
2. Ainda que se admita no seguimento de alguma jurisprudência, que a via extrajudicial é, apenas, uma via alternativa não imperativa, que não faz claudicar o recurso à via judicial, os presentes autos gozam de um atributo que escapam ao âmbito da citada jurisprudência, e tornam evidente a verificação da excepção da falta de interesse em agir, que o Tribunal a quo julgou improcedente no douto despacho saneador.
3. É que, por notificação avulsa assinada pela R. em 30.10.2014, os anteriores senhorios fizeram cessar o contrato de arrendamento
4. É manifesto que os Recorridos não necessitavam do Tribunal para fazer valer o seu alegado direito de obter a resolução do contrato de arrendamento uma vez que este já havia cessado, por via extrajudicial, e por opção dos Recorridos.
5. Deveriam, isto sim, os Recorridos recorrer de imediato ao BNA, para executar e tornar efectivo o despejo na sequência de cessação do contrato que já tenha operado extrajudicialmente, como in casu sucedeu.
6. O procedimento especial de despejo é o meio processual que se destina, justamente, a efectivar a cessação do arrendamento, quando o arrendatário não desocupe o locado na data prevista na lei, e não ficou demonstrado nos presentes autos qualquer dificuldade dos Recorridos no recurso ao citado procedimento, que pudesse justificar a presente acção.
7. Acresce que não foi alegada e, por conseguinte, provada, qualquer dificuldade dos Recorridos no recurso ao citado procedimento, que pudesse justificar a presente acção.
8. Por conseguinte, o douto Tribunal, ao ter julgado improcedente a excepção da falta de interesse em agir dos Recorridos violou o disposto nos artigos 1083.º e 1084.º do Código Civil e artigo 14.º do NRAU.
9. Por outro lado, o Tribunal não levou ao objecto do litígio a matéria invocada pela Recorrente na contestação relacionada com a excepção do não cumprimento do contrato de arrendamento (falta de condições de habitabilidade do bem locado), indeferindo a Reclamação apresentada pela Recorrente ao douto despacho, decisão com a qual a Recorrente não se conforma.
10. Ao não permitir a inclusão da referida questão no objecto do litígio e temas da prova, o Tribunal comprometeu a boa e justa composição do litígio, violando o artigo 596.º do CPC.
11. Ou o douto Tribunal, entendendo possuir todos os elementos necessários, conhecia expressamente da excepção deduzida, julgando-a improcedente, com os fundamentos invocados para indeferir a Reclamação ou, não o fazendo, como não o fez, não poderia deixar de levar a matéria ao objecto do litígio e aos temas da prova
12. Termos em que deverá ser revogado o despacho que indeferiu a reclamação apresentada, acrescentando-se ao objecto do litígio a matéria relacionada com a invocada excepção do não cumprimento, isto é, a falta de condições do imóvel locado, submetendo-a à prova necessária.
13. Por fim, a douta Sentença é nula por oposição entre os fundamentos e a decisão.
14. Na verdade, nos termos do artigo 1087.º, o prazo mínimo supletivo legal para desocupação do locado é de 30 dias.
15. Ora, consigna-se na douta Sentença que “considerando que a Ré se encontra desempregada e que não lhe são conhecidos rendimentos, concede-se à mesma um prazo de (….)”
16. Seria expectável que, com base em tais considerandos, o Tribunal fixasse um prazo superior ao supletivo, porém, limita-se a conceder “o prazo de trinta dias”, isto é, o prazo supletivo legal.
17. Pelo que, em bom rigor, as considerações tecidas a propósito da situação económica da Recorrente não tiveram qualquer reflexo na decisão do Tribunal, isto é, a fundamentação foi num sentido e a decisão foi noutro, o que acarreta a nulidade da Sentença nos termos e para efeitos do disposto na alínea c), do n. º1 do artigo 615.º do CPC.
18. Ainda que assim não se entenda, o que por mero dever de patrocínio se concebe, e atentos os factos provados n.º 14 e 15.º, deverá a douta Sentença ser revogada por outra que conceda à Recorrente um prazo nunca inferior a 90 dias para a desocupação do locado.
19. Em suma, a douta Sentença violou o disposto no artigo 1087.º do Código Civil e alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
Nestes termos […] deve o presente Recurso ser julgado procedente.
A recorrida A. apresentou contra-alegações pugnando pela improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida.
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II – OBJECTO DO RECURSO
Nos termos dos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, é pelas conclusões do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso. De notar, também, que o tribunal de recurso deve desatender as conclusões que não encontrem correspondência com a motivação - cf. A. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016, 3ª edição, pág. 95.
Na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abrange tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 635º, n.º 3, do CPC), contudo o respectivo objecto, assim delimitado, pode ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (cf. n.º 4 do mencionado art. 635º). Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
Por outro lado, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não podendo o tribunal ad quem pronunciar-se sobre questões novas - cf. A. Abrantes Geraldes, op. cit., 2016, 3ª edição, pág. 97.
Assim, perante as conclusões da alegação da ré/apelante, o objecto do presente recurso consiste na apreciação das seguintes questões:
· Da excepção de falta de interesse em agir;
· Da existência ou não de erro na definição do objecto do litígio;
· Nulidade da sentença por oposição entre os fundamentos e oposição.
Colhidos que se mostram os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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III - FUNDAMENTAÇÃO
3.1. – FUNDAMENTOS DE FACTO
A sentença sob recurso considerou como provados os seguintes factos:
· Os Autores são proprietários do segundo andar direito, destinado a habitação, do prédio sito... freguesia da Ameixoeira, Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o Número 2... e actualmente inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Santa Clara sob o artigo 3..., que proveio dos artigos ...  da extinta freguesia da Ameixoeira, concelho de Lisboa.
· O imóvel que integra o referido andar veio à posse dos Autores por sucessão de DS, falecido em 25/07/2015, e de que são os únicos herdeiros.
· O locado foi dado de arrendamento à Ré pelo falecido DS e mulher A. por contrato de arrendamento de duração limitada celebrado em 1 de Agosto de 1999.
· O locado destinava-se a habitação da Ré, não podendo sublocar ou ceder, no todo ou em parte os direitos do arrendamento (cláusula quinta).
· O contrato tinha a duração de 5 anos, com início em 1 de Agosto de 1999 e termo aprazado para 1 de Agosto de 2004 (cláusula primeira).
· O contrato renovar-se-ia automaticamente no fim do prazo, por períodos de três anos (cláusula primeira).
· A renda estipulada foi de 70 000$00, que feita a conversão equivale a € 349,16 (trezentos e quarenta e nove euros e dezasseis cêntimos) mensais e devia ser paga por depósito ou transferência bancária para a conta de que o senhorio era titular ou em casa do seu representante na Rua...  – Lisboa, no primeiro dia do mês anterior a que respeitar (cláusula segunda).
· A Ré pagou a renda referente ao mês de Novembro de 2012 e nunca mais pagou qualquer renda.
· Ainda em vida do senhorio DS, este e a mulher, aqui Autora, notificaram a Ré, por notificação judicial avulsa cuja cópia se mostra inserta a fls. 17 a 26, da resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas vencidas de Dezembro de 2012 a Dezembro de 2013.
· A Ré assinou a certidão de notificação avulsa em 30 de Janeiro de 2014.
· Apesar da comunicada resolução do contrato a Ré recusou-se a entregar aos Autores o locado livre e desocupado de pessoas e bens.
· Em 6 de Junho de 2017 a Ré foi interpelada pelo Advogado dos Autores, em representação destes, para entregar as chaves do andar e pagar as quantias peticionadas a título de rendas.
· A Ré não deu resposta à referida interpelação.
· A Ré encontra-se desempregada e não lhe são conhecidos rendimentos.
· A Ré apresentou na Câmara Municipal de Lisboa pedidos de atribuição de uma habitação municipal que não foram deferidos.
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O Tribunal a quo considerou não provados os seguintes factos:
· O valor actual da renda cifra-se em € 320,00.
· A Ré pagou todas as rendas relativas ao ano de 2013.
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3.2. – APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
Da excepção dilatória de falta de interesse em agir
A ré/apelante vem recorrer da decisão proferida em sede de despacho saneador que julgou improcedente a excepção de falta de interesse em agir que aquela havia suscitado na sua contestação.
Sustenta a apelante que sendo o fundamento do pedido de resolução do contrato de arrendamento a falta de pagamento de rendas, a resolução pelo senhorio opera por comunicação à contraparte, nos termos dos art.ºs 1083º, n.º 3 e 1084º, n.º 2 do C. Civil, estando a acção de despejo reservada, nos termos do art. 14º, n.º 1 do Novo Regime do Arrendamento Urbano (aprovado pela Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro e subsequentes alterações), para as situações em que a lei impõe o recurso à via judicial, pelo que não existe qualquer interesse relevante dos autores/senhorios em interpor a presente acção, o que, neste caso, é mais evidente porque aqueles já fizeram cessar o contrato de arrendamento por notificação judicial avulsa, assinada pela ré; assim, o procedimento especial de despejo era o meio processual próprio para efectivar a cessação do arrendamento e a desocupação do locado.
A recorrida pugna pela manutenção da decisão recorrida entendendo que nada obsta à instauração da acção judicial, tanto mais que os autores nesta não são os mesmos que procederam à notificação judicial avulsa, para além de o contrato de arrendamento não ter sido declarado na Repartição de Finanças, sendo que o pagamento do imposto de selo é condição de aceitação do requerimento de procedimento especial de despejo.
O Tribunal a quo apreciou a questão em apreço nos seguintes termos:
“Apreciando dir-se-á que a acção de despejo constituiu meio processual adequado para a cessação coerciva, por iniciativa do senhorio, de um contrato de arrendamento válido (artigo 14º NRAU).
A referida acção tem por fundamento qualquer facto que, segundo a lei, confira ao senhorio o direito de fazer cessar uma relação jurídica de arrendamento e tem por escopo final obter a condenação do arrendatário a despejar o prédio que gozava (Alberto dos Reis, in Processos Especiais, vol. I, pág. 159 e Pais de Sousa, Extinção do Arrendamento Predial).
O Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU) foi aprovado pela Lei n.º 6/2006 de 27/2, e entrou em vigor em 28/6/2006 (artigos 1º e 65º).
Prescreve o artigo 59º n.º 1 do NRAU que este se aplica aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias.
À situação sub judice é incontroverso que se aplica o Novo Regime do Arrendamento Urbano.
Como bem se decidiu no douto Acórdão da Relação do Porto, datado de 17.10.2013 (disponível em www.dgsi.pt): “As disposições do NRAU abandonaram a ideia que provinha da anterior legislação segundo a qual a resolução do contrato de arrendamento apenas podia ser decretada judicialmente (artigo 1084.º do Código Civil) e, em conformidade com essa inovação, criaram um mecanismo para, nos casos de falta de pagamento da renda em caso de mora superior a três meses, o senhorio poder resolver o contrato mediante mera comunicação extrajudicial ao arrendatário (artigo 9.º, n.º 7, da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro).
Esta inovação legislativa logo suscitou uma dúvida: se, nesses casos, o senhorio apenas pode operar a resolução através da comunicação extrajudicial, não possuindo interesse em agir para recorrer à acção de despejo ou se o senhorio, apesar de ter à sua disposição àquela via, pode optar por lançar mão da acção de despejo possuindo para o efeito interesse em agir suficiente. (…)
O facto de o n.º 1 do artigo 1084º do Código Civil prescrever que a resolução do arrendamento pelo senhorio com fundamento na falta de pagamento de renda opera por comunicação à contraparte, apenas pode significar que a declaração de vontade no sentido da resolução pode ser manifestada por essa forma, mas já não que o senhorio esteja impedido de lançar mão de uma acção judicial manifestando essa vontade e pedindo a condenação do réu nas consequências legais do seu incumprimento. (…)
Assiste ao senhorio o direito a instaurar acção declarativa destinada à resolução do contrato de arrendamento, mesmo quando tenha ao seu dispor a via da resolução extrajudicial (art. 9º do CC)”.
Aqui chegados, como é consabido o interesse processual é pressuposto do recurso a juízo (cfr. Lebre de Freitas, J. redinha e R. Pinto, “CPC Anotado”, vol. I, p. 14 e Ac. do STJ de 16/09/2008 in www.dgsi.pt).
“O interesse processual (ou interesse em agir) pode ser definido como o interesse da parte activa em obter a tutela judicial de uma situação subjectiva através de um determinado meio processual e o correspondente interesse da parte passiva em impedir a concessão daquela tutela” (Miguel Teixeira de Sousa “As partes, o objecto e prova na acção declarativa”, p. 97).
Como se refere no Ac. do STJ de 8/03/2001 “O interesse em agir constitui um pressuposto processual, que não se confunde com a legitimidade processual”.
A admissibilidade da demanda judicial está subordinada à subsistência de um interesse em agir.
O interesse em agir, enquanto pressuposto processual, tem sido definido como a necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção e constitui excepção dilatória inominada, de conhecimento oficioso, conducente à absolvição da instância (neste sentido vide Abrantes Geraldes, 1 Vol. (2ª Ed. Revista e ampliada, Almedina, pág. 262 e 263).
Como se exarou no acórdão da Relação de Évora de 12.07.2007 (proc. n.º 728/07-3, consultável em www.dgsi.pt) há falta de interesse em agir quando, entre o objecto da acção e o pedido formulado não existe uma situação de conflitualidade sobre o direito, uma situação e incerteza objectiva e grave sobre o direito de que o autor se arroga.
A este propósito decidiu-se no acórdão da Relação de Lisboa de 21.11.2013 (proc. n.º 1303/12.7 TVLSB.L2-6, consultável em www.dgsi.pt), “o interesse em agir consiste na necessidade e utilidade da demanda considerado o sistema jurídico aplicável às pretensões invocadas e a sua verificação basta-se com a necessidade razoável do recurso à acção judicial. (…)
Na jurisprudência é aceite que o interesse em agir é verdadeiro pressuposto processual inominado determinante da absolvição da instância.
O interesse em agir consiste assim na verificação da necessidade ou utilidade da acção, sendo definido como «a necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção».
Em conclusão, o interesse em agir consiste na necessidade e utilidade da demanda considerado o sistema jurídico aplicável às pretensões invocadas. (…)
O pressuposto processual em causa deve ser analisado também à luz dos princípios constitucionais do acesso ao direito e à justiça, em dupla vertente: consagração e limitação. (…)
Em conclusão, extrai-se dos princípios constitucionais e do desenho da acção enquanto adjectivação do direito (artigo 2.º, n.º 2 do CPC) que o interesse em agir é pressuposto processual e que a sua verificação se basta com a necessidade razoável do recurso à acção judicial a que alude o Professor Antunes Varela.
Assim, tem de considerar-se que a sua verificação ocorre sempre que o demandante tenha necessidade de intervenção judicial para reconhecimento da sua pretensão, tal como a configura no exercício da sua liberdade de conformação da acção”.
O que manifestamente se verifica na hipótese sub judice, sendo certo que a Ré se mantém até ao presente no locado e que os Autores pretendem efectivar o seu despejo, com a entrega do locado livre e devoluto de pessoas e bens e, bem assim, a sua condenação no pagamento das quantias peticionadas.
“Havendo uma relação jurídica, havendo incumprimento por uma das suas partes das respectivas obrigações, havendo do incumpridor a não-aceitação pacífica das consequências desse incumprimento e permanecendo a situação fáctica aquém do que adviria dessas consequências, deve entender-se, de acordo com um critério de razoabilidade e de justa medida, que a parte não inadimplente tem interesse em agir bastante para (optar) recorrer a uma acção judicial que lhe reconheça o direito e condene a outra nas consequências do seu incumprimento” (Acórdão da Relação do Porto, datado de 17.10.2013, já anteriormente citado).
Pelo que, considerando a causa de pedir e os pedidos formulados pelos Autores, impõe-se concluir pela improcedência da suscitada excepção de falta de interesse em agir.
I.I – 3 – Decisão
Termos em que, atentas as considerações expendidas e as normas legais citadas, se julga improcedente a suscitada excepção de falta de interesse em agir.”
O excurso doutrinário efectuado na decisão recorrida a propósito do pressuposto processual de interesse em agir menciona correcta e adequadamente a sua configuração jurídica, o que dispensa ulteriores considerações a esse propósito, havendo apenas que analisar sobre o bem fundado da decisão a que aportou, ou seja, se no caso em apreço se verifica por parte dos autores o interesse em agir ou na obtenção da decisão judicial que visam alcançar com a interposição da presente acção.
O contrato de arrendamento em apreço nos presentes autos foi celebrado em 1 de Agosto de 1999, na vigência do Regime do Arrendamento Urbano aprovado pelo DL 321-B/90, de 15 de Outubro, com destino a habitação e duração limitada.
O art. 26º, n.º 1 da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro estipula que os contratos para fins habitacionais celebrados na vigência do Regime do Arrendamento Urbano (RAU) passam a estar submetidos ao NRAU, com as especificidades dos números seguintes, ou seja, as atinentes à transmissão por morte, denúncia e indemnização por benfeitorias.
Nos termos do art. 12º, n.º 1 do C. Civil “a lei só dispõe para o futuro”.
Porém, de acordo com o n.º 2 da referida disposição legal “quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor”.
“As normas jurídicas que determinam o efeito de um facto (de que derivam, portanto, o nascimento, a extinção ou a modificação de uma relação jurídica) referem-se unicamente aos factos futuros dessa espécie. As normas que se referem imediatamente aos próprios direitos, isto é, abstraindo dos factos do seu nascimento ou da sua extinção, do seu conteúdo ou do seu efeito, da sua existência ou da sua inexistência, regem, igualmente, para o futuro, mas abrangem os direitos dessa índole já existentes” – cf. J. Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, vol. I, pág. 47; no mesmo sentido, Fernando Baptista de Oliveira, Contratos Privados – Das Noções à Prática Judicial, Vol. I, pág. 143.
O arrendamento configura uma situação jurídica duradoura, como tal visada na segunda parte do n.º 2 do art. 12º do C. Civil.
Por sua vez, o art. 59º, n.º 1 da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro dispões que “O NRAU aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data.”
À data do início da vigência do aludido diploma – 28-06-2006 (art.ºs 1º e 65º do NRAU) -, o contrato de arrendamento objecto dos autos ainda se mantinha em vigor.
A presente acção deu entrada em juízo em 16-02-2018, momento temporal que corresponde ao da sua instauração (cf. art. 267º do CPC), data em que vigorava o regime instituído pelo NRAU.
Estando em causa, na presente acção, normas de direito substantivo atinentes à extinção de um contrato de arrendamento, com fundamento na ocorrência de factos integrativos da sua resolução, ter-se-á de considerar o regime em vigor à data da propositura da acção, que, no caso, não é o correspondente ao que vigorava à data da celebração do referido contrato, mas sim o decorrente do NRAU – cf. neste sentido, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22-05-2012, relator Sousa Leite, processo n.º 66/03.1TBCLB.C2.S1 acessível na Base de dados Jurídico-documentais do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, IP, em www.dgsi.pt.
Adianta-se, desde já, que se adere à jurisprudência maioritária segundo a qual, no âmbito do NRAU, a comunicação extrajudicial prevista no art.º 1084º do Código Civil não constitui o único meio ao dispor do senhorio para operar a resolução do contrato de arrendamento, com fundamento no incumprimento pelo arrendatário da obrigação de pagamento das rendas, tendo este, de igual modo, a possibilidade de, para esse efeito, recorrer à acção judicial (de despejo), competindo-lhe optar pelo uso de um ou outro meio, pois que esta se afigura ser este o entendimento que melhor se ajusta a uma interpretação sistemática e teleológica das normas jurídicas que, no âmbito do novo RAU, se destinam a regulamentar o arrendamento e os modos da respectiva cessação.
Com efeito, da conjugação do vertido no art. 9º, n.º 7 do NRAU, que define a forma por que deve concretizar-se a notificação ou comunicação (notificação judicial avulsa ou contacto pessoal) para a cessação do contrato de arrendamento, no art. 15º, n.º 1, e) (que determina que o comprovativo de tal comunicação ou notificação e o contrato de arrendamento passam a constituir título executivo) e no ar.º 14º, n.º 1 (que estipula que a acção de despejo constitui meio para fazer cessar a situação jurídica do arrendamento) não se pode concluir que resulta afastada a admissibilidade de recurso à via judicial para operar a resolução do contrato de arrendamento com fundamento na situação de mora por mais de três meses, por parte do arrendatário, no pagamento das rendas vencidas.
Note-se que o próprio art. 1048º, n.º 1 do C. Civil, ao prever a caducidade do direito à resolução do contrato por falta de pagamento da renda quando o locatário, até ao termo do prazo para a contestação da acção declarativa, pague, deposite ou consigne em depósito as somas devidas e a indemnização, ressalva a sua aplicabilidade “quando for exercido judicialmente” o direito à resolução do contrato por falta de pagamento da renda, ou seja, deixa claramente em aberto a possibilidade de o exercício do direito à resolução poder ocorrer seja por via judicial, seja por via extrajudicial.
Aliás, no ponto 1 da Exposição de Motivos da Proposta de Lei do Arrendamento nº 34/X consta expressamente: “O regime jurídico mantém a sua imperatividade em sede de cessação do contrato de arrendamento, mas abre-se a hipótese à resolução extrajudicial do contrato, com base no incumprimento que, pela sua gravidade, ou consequências, torne inexigível à outra a manutenção do arrendamento”, o que não pode deixar de significar que, para além de se manterem os mecanismos pré-existente para a cessação do contrato de arrendamento com fundamento na falta de pagamento de rendas, se criou um novo mecanismo visando idêntico fim, mas com o objectivo de agilizar o procedimento relativo à resolução do contrato e entrega do locado, que surge, não em substituição dos anteriormente existentes, mas em aditamento a estes.
Atente-se na explanação elucidativa que a este propósito consta do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11-12-2018, relator Jorge Leal, processo n.º 10901/17.1T8LSB.L1-2 (aliás, expressamente convocado pela recorrente, que dele, contudo, pretendeu retirar ilação contrária, que não se afigura consonante com o que dele consta):
“É sabido que até à entrada em vigor do NRAU o contrato de locação só podia ser resolvido pelo locador judicialmente (art.º 1047.º do Código Civil: “a resolução do contrato fundada na falta de cumprimento por parte do locatário tem de ser decretada pelo tribunal”; art.º 63.º n.º 2 do RAU – Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Dec.-Lei n.º 321-B/90, de 15.10: “a resolução do contrato fundada na falta de cumprimento por parte do arrendatário tem de ser decretada pelo tribunal”).
O NRAU alterou o art.º 1047.º do Código Civil, aí passando a figurar que “a resolução do contrato de locação pode ser feita judicial ou extrajudicialmente.”
No que concerne à resolução do contrato de arrendamento urbano, passou a prever-se uma cláusula geral, que inclui a resolução por iniciativa do senhorio, nos termos da qual “é fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento (…)” […] No que concerne, em particular, àquela que constitui a principal obrigação do arrendatário, o pagamento da renda, no n.º 3 do art.º 1083.º do CC passou a estipular-se, na versão inicial do NRAU, que “é inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento em caso de mora superior a três meses no pagamento da renda, encargos ou despesas, ou de oposição pelo arrendatário à realização de obra ordenada por autoridade pública (…)”. No que respeita a este último fundamento de resolução do contrato de arrendamento, prescreve-se (na versão inicial do NRAU) no n.º 1 do art.º 1084.º do CC que a resolução pelo senhorio opera “por comunicação à contraparte onde fundamentadamente se invoque a obrigação incumprida.” Essa comunicação deverá ser efetuada mediante notificação judicial avulsa ou mediante contacto pessoal de advogado, solicitador ou solicitador de execução, sendo neste caso feita na pessoa do notificando, com entrega do duplicado da comunicação e cópia dos documentos que a acompanhem, devendo o notificando assinar o original (art.º 9.º n.º 7 do NRAU – versão inicial). Se o locado não for desocupado (e o arrendatário não se socorrer da faculdade de fazer abortar a resolução pondo fim à mora no prazo de três meses após a comunicação – n.º 3 do art.º 1084.º do CC – versão inicial do NRAU) o senhorio poderá instaurar execução para entrega de coisa certa, servindo de título executivo o contrato de arrendamento, acompanhado do comprovativo da comunicação ao arrendatário da declaração de resolução (alínea e) do n.º 1 do art.º 15.º do NRAU – versão inicial).
Quanto aos restantes fundamentos de resolução do contrato de arrendamento urbano, a resolução pelo senhorio será, conforme se enuncia no n.º 2 do art.º 1084.º do CC, “decretada nos termos da lei de processo”, ou seja, através de ação que a lei continua a designar de “acção de despejo” (art.º 14.º do NRAU).
Face a este regime discutia-se se o senhorio poderia peticionar a resolução do contrato em ação judicial nos casos de mora do inquilino, no pagamento de renda, superior a três meses, ou seja, em situações em que, em princípio, poderia resolver o contrato pela via extra-judicial.
O texto dos citados n.ºs 1 e 2 do artigo 1084.º do CC, conjugado com o disposto no art.º 1080.º do Código Civil – versão original do NRAU (“o disposto nesta subsecção tem natureza imperativa, salvo disposição em contrário”), assim como a redação do n.º 1 do art.º 14.º do NRAU (“a acção de despejo destina-se a fazer cessar a situação jurídica do arrendamento, sempre que a lei imponha o recurso à via judicial para promover tal cessação, e segue a forma de processo comum declarativo”) podiam inculcar a ideia de que o senhorio não podia recorrer aos tribunais para obter a declaração judicial da resolução do contrato de arrendamento nos casos ora referidos.
Porém, tal interpretação da lei deixaria em sérias dificuldades os senhorios nas situações em que não fosse possível interpelar o arrendatário para lhe comunicar a resolução, nomeadamente por se desconhecer o seu paradeiro, assim como nos casos de contratos de arrendamento não reduzidos a escrito […] Por outro lado, o próprio legislador concebia a existência de ações em que o direito à resolução do contrato por falta de pagamento da renda era exercido por meio de ação declarativa, conforme decorria desde logo, do disposto no n.º 1 do art.º 1048.º do Código Civil – redação original do NRAU […] De resto, mesmo no âmbito de normas atinentes ao arrendamento urbano, o legislador previa e subentendia como admissível a propositura de ações de resolução do contrato de arrendamento fundadas na falta de pagamento de renda. Assim, quando o arrendatário procede ao depósito de rendas, estipulava o n.º 2 do art.º 21.º do NRAU (redação original) que “quando o senhorio pretenda resolver judicialmente o contrato por não pagamento de renda, a impugnação [do depósito] deve ser efectuada em acção de despejo a intentar no prazo de 20 dias contados da comunicação do depósito ou, estando a acção já pendente, na resposta à contestação ou em articulado específico, apresentado no prazo de 10 dias contados da comunicação em causa, sempre que esta ocorra depois da contestação.”
Na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 34/X, que deu origem ao NRAU (D.A.R. II série-A, n.º 47, de 07.09.2005, pág. 57 e seguintes), escreve-se, a propósito de normas propostas de conteúdo idêntico às que foram aprovadas, que “o regime jurídico mantém a sua imperatividade em sede de cessação do contrato de arrendamento, mas abre-se a hipótese à resolução extrajudicial do contrato, com base em incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento. As partes devem pautar-se pelo princípio da boa fé no cumprimento das suas obrigações, dando um sinal ao mercado de que o arrendatário deve primar pelo pontual cumprimento das obrigações, prevendo-se expressamente que é sempre inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento em caso de mora no pagamento da renda superior a três meses, ou de oposição pelo arrendatário à realização de obra ordenada por autoridade pública. (…) A almejada agilização da actual acção de despejo passa pela separação entre a fase declarativa e executiva, através da alteração de algumas normas do Código de Processo Civil (CPC). (…). Tendo em vista aligeirar a pendência processual em fase declarativa, prevê-se a ampliação do número de títulos executivos de formação extrajudicial, possibilitando-se ao senhorio o recurso imediato à acção executiva, por exemplo, nos casos em que o contrato de arrendamento tenha cessado por revogação das partes, por caducidade por decurso do prazo ou por oposição à renovação. De igual modo, nos casos de cessação por resolução com base em mora no pagamento da renda superior a três meses, ou devido a oposição pelo arrendatário à realização de obra ordenada por autoridade pública, se o senhorio proceder à notificação judicial do arrendatário, ou à sua notificação através de contacto pessoal pelo advogado ou solicitador de execução, e o arrendatário mantiver a sua conduta inadimplente, permite-se a formação de título executivo extrajudicial.”
Pese embora a almejada preocupação de agilização processual, não se surpreendia na exposição de motivos a intenção de retirar ao senhorio a possibilidade de, facultativamente, buscar junto dos tribunais a extinção do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas. Assim, caberia ao senhorio apreciar qual a via que melhor servia os seus interesses, sendo certo que, para além dos casos gritantes já supra enunciados, o recurso à via judicial seria desde logo mais aconselhável quando se antevisse controvérsia no que concerne à própria caraterização do contrato como sendo de arrendamento, à identificação das respetivas partes, ao montante das rendas devidas, ou quando se pretendesse demandar igualmente o fiador do contrato de arrendamento, prevenindo eventual controvérsia acerca da formação de título executivo contra este (no sentido da necessidade da acção declarativa, vide, v.g., acórdãos da Relação de Lisboa, de 23.10.2007, processo 6397/2007-7 e de 08.11.2007, processo 7685/2007-6; entendendo que o título executivo complexo definido no art.º 15.º n.º 2 do NRAU pode ser utilizado para reclamar rendas também do fiador, v.g., acórdão da Relação de Lisboa, de 12.12.2008, processo 10790/2008-7 e acórdão da Relação de Coimbra, de 21.4.2009, processo 7864/07.5TBLRA-B.C1, todos publicados na internet, dgsi-itij). Acresce ainda, entre outras vantagens do recurso aos tribunais, a possibilidade de por via da citação judicial o senhorio encurtar o prazo então previsto (na redação original do NRAU) no art.º 1084.º n.º 3 do CC para a purgação da mora (“a resolução pelo senhorio, quando opere por comunicação à contraparte e se funde na falta de pagamento da renda, fica sem efeito se o arrendatário puser fim à mora no prazo de três meses”), uma vez que em sede de ação declarativa as somas devidas e a respetiva indemnização deveriam (e devem) ser prestadas até ao termo do prazo para a contestação (art.º 1048.º n.º 1). Mais relevante ainda, a faculdade da purgação da mora só poder ser exercida uma vez, em fase judicial (n.º 2 do art.º 1048.º), contrariamente ao que, à luz do regime original do NRAU, ocorria em sede extrajudicial.
Por outro lado, nos termos do art.º 930.º-B, n.º 1, al. a), do CPC de 1961, a oposição a execução para entrega de imóvel arrendado que se fundasse em título executivo extrajudicial suspenderia a execução. […]
A imperatividade proclamada no art.º 1080.º do CC não colidiria com a facultatividade do recurso à via extrajudicial para o senhorio resolver o contrato de arrendamento com base na mora no pagamento da renda superior a três meses […]
Se o senhorio resolvesse extrajudicialmente o contrato de arrendamento, por falta de pagamento de rendas, e, em lugar de instaurar as competentes execuções para entrega de imóvel arrendado e pagamento das rendas e indemnização, instaurasse ação de despejo, ou, afinal, ação de apreciação da cessação do contrato de arrendamento por resolução justificada, eventualmente cumulada com o pedido de condenação do arrendatário no pagamento das rendas em dívida e indemnização e na entrega do locado, poderia, na falta de apresentação de justificação para tal por parte do autor e de contestação pelo arrendatário, ser condenado em custas, nos termos do art.º 449.º, n.º 2, al. c) do CPC de 1961 (neste sentido, Rui Pinto, Manual da execução e despejo, Coimbra Editora, 2013, p. 1099; Laurinda Gemas e outros, ob. cit., p. 49, nota 3).
A Lei n.º 31/2012, de 14.8, que reviu o NRAU, não interferiu nesta polémica […]
Mas haverá que registar que, por força das alterações introduzidas pela Lei n.º 31/2012 ao NRAU, desapareceram algumas das diferenças […]
Porém, na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 38/XII, que esteve na origem da Lei n.º 31/2012, não se anunciou nenhum propósito restritivo dos direitos do senhorio nesta matéria, nem se expressou especial motivação no sentido do interesse público de poupança de recursos e de retirada dos litígios de arrendamento para fora dos tribunais.
Veja-se o que ali se contém: “A reforma do regime do arrendamento urbano que agora se propõe procura encontrar soluções simples, assentes em quatro dimensões essenciais: (i) alteração ao regime substantivo, vertido no Código Civil; (ii) revisão do sistema de transição dos contratos antigos para o novo regime; (iii) agilização do procedimento de despejo; e (iv) melhoria do enquadramento fiscal.” (…) “No que respeita ao regime processual, reconhece-se a necessidade e a premência de reforçar os mecanismos que garantam aos senhorios meios para reagir perante o incumprimento do contrato, assim tornando o mercado de arrendamento e o investimento na reabilitação urbana para colocação no mercado de arrendamento uma verdadeira opção para os proprietários e, mais relevantemente ainda, uma opção segura. Esta medida, concretizada mediante a agilização do procedimento de despejo, é fundamental para recuperar a confiança dos proprietários. Até à presente data, o senhorio tinha de recorrer a um processo de despejo apresentado junto de um tribunal. Mesmo dispondo de um título executivo nos termos previstos na Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, verificou-se que o tempo médio de duração da correspondente acção executiva é ainda de dezasseis meses. Tal longa espera, muitas vezes acompanhada pelo não recebimento das rendas, revelou ser um motivo de desincentivo para a colocação de imóveis no mercado do arrendamento pelos proprietários, ou ainda para a elevação do valor da renda como forma de controlo do risco. Para tornar o arrendamento num contrato mais seguro e com mecanismos que permitam reagir com eficácia ao incumprimento, é criado um novo procedimento extrajudicial que permite que a desocupação do imóvel seja realizada de forma célere e eficaz, num prazo médio estimado de três meses, no caso de incumprimento do contrato por parte do arrendatário. Promove-se, por esta via, a confiança do senhorio no funcionamento ágil do mercado de arrendamento e o investimento neste sector da economia.
Concentrando-nos na resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas, constata-se que na sequência da revisão do NRAU a lei deixou de atribuir à comunicação da resolução do contrato força de título executivo. A comunicação de resolução do contrato, que passou a admitir, nos contratos celebrados por escrito em que tenha sido convencionado o domicílio, a notificação por carta registada com aviso de receção (al. d) do n.º 7 do art. 9.º) passará a instruir o procedimento especial de despejo, instituído pelo NRAU (revisto) no art.º 15.º. […]
O procedimento especial de despejo é pois, conforme o define o art.º 15.º n.º 1 do NRAU, um “meio processual que se destina a efetivar a cessação do arrendamento, independentemente do fim a que se destina, quando o arrendatário não desocupe o locado na data prevista na lei ou na data fixada por convenção entre as partes”.
Trata-se, seguindo a terminologia de Rui Pinto (obra citada, páginas 1160 e 1169), de um “processo especial sincrético”, isto é, declarativo e executivo, que se inicia com uma fase injuntória a que poderá seguir-se uma fase contenciosa, tendo em vista a formação de um título executivo, prosseguindo, se for o caso, com uma fase executiva, destinada à realização coativa do direito à entrega do locado.
Deduzida válida oposição ao requerimento de despejo, segue-se a fase contenciosa, que é “uma fase declarativa pura perante um juiz” (Rui Pinto, obra citada, pág. 1191) e que constitui, pois, um processo declarativo especial, a que se aplicarão, nos termos do art.º 549.º n.º 1 do CPC, no que não estiver especialmente regulado, as regras gerais e comuns do Código do Processo Civil e, se for o caso, as regras do processo comum (Rui Pinto, obra citada, pág. 1191).
Como se vê, o novo regime não acarreta ou visa, propriamente, poupança de recursos económicos, nem o afastamento dos tribunais: cria novas estruturas, que tenderão a servir com especial eficácia os legítimos interesses dos senhorios, mas sem se prescindir, se for necessário, da intervenção dos tribunais para dirimirem os litígios emergentes do legítimo acautelamento dos interesses dos arrendatários.
Note-se que, apesar de instalada a aludida polémica, o art.º 1048.º manteve a referência genérica à possibilidade de o direito à resolução do contrato por falta de pagamento da renda ser exercido judicialmente (n.º 1 do artigo), tendo inclusive sido aditado um n.º 4, que tem por objeto o exercício extrajudicial do direito à resolução do contrato por falta de pagamento de renda e de aluguer […]
Permanece, pois, aberta a via para os senhorios, na livre e independente apreciação dos seus interesses, optarem pelo meio judicial de prossecução da defesa da sua situação jurídica, mesmo no caso de incumprimento da obrigação de pagamento de renda. Desde logo, quando se pretenda a apreciação de cumulativos fundamentos de resolução que não possam operar extrajudicialmente […] Ou quando se desconheça o paradeiro do arrendatário […]
Defendendo, atualmente, que o procedimento especial de despejo “é apenas um meio processual colocado à disposição do senhorio em alternativa à ação de despejo, pelo que nada o impede de recorrer a essa acção em lugar de instaurar esse procedimento”, não havendo até, nesse enquadramento, lugar à suportação das custas pelo senhorio, nos termos do art. 535.º, n.º 2 c) do CPC, uma vez que o senhorio não dispõe atualmente de qualquer título executivo prévio à ação, só o podendo formar por recurso ao BNA, vide Luís Menezes Leitão, Arrendamento Urbano, 8.ª edição, Almedina, p. 206, nota 212.
Dando relevância e operatividade ao interesse processual nesta temática, mas reconhecendo a necessidade de se atender às especificidades de cada caso em concreto, e considerando que é sempre admissível uma ação de despejo fundamentada na falta de pagamento de rendas pelo arrendatário, devendo o demandante pagar as respetivas custas se já houver título executivo para esse pagamento e o arrendatário não deduzir oposição, vide Miguel Teixeira de Sousa, in Leis do Arrendamento Urbano Anotadas, Almedina, 2014, coordenação de António Menezes Cordeiro, pp. 396 a 399.”
Na ponderação do confronto efectuado neste acórdão das normas pretéritas e vigentes, não se vê como concluir de modo diverso, pois que em momento algum parece ter estado na intenção do legislador arredar a possibilidade de os senhorios lançarem mão da acção judicial para resolução do contrato de arrendamento com fundamento na falta de pagamento de rendas, tanto mais que, na redacção actual do NRAU, como bem se evidencia da exposição acima transcrita, a comunicação ao arrendatário da resolução do contrato não constitui, por si só, título executivo, acarretando ainda a necessidade de intentar o procedimento especial de despejo, onde não deixa de estar prevista a possibilidade de oposição (cf. art. 15º-F do NRAU), pelo que não se vislumbra fundamento, sequer de economia processual, que justifique impedir o recurso à acção judicial.
E também como se retira do acima exposto, não é a circunstância de o senhorio ter procedido à comunicação extrajudicial da resolução do contrato que o impede de lançar mão da acção judicial (ainda que, se se reconhecer a prévia existência de um título executivo, deva aquele suportar as respectivas custas judiciais), havendo que aferir das circunstâncias específicas do caso concreto para avaliar do interesse processual na demanda – cf. Luís Menezes Leitão, Arrendamento Urbano, 9ª Edição, pág. 208, nota 213, no sentido de que, nos termos do art. 15º, n.º 1 do NRAU, o procedimento especial de despejo é apenas um meio processual colocado à disposição do senhorio em alternativa à acção de despejo, nada obstando a que o senhorio a esta recorra em lugar de instaurar esse procedimento; Fernando de Gravato Morais, Novo Regime do Arrendamento Comercial, 2011, 3ª Edição, pp. 255-257; Manteigas Martins et al., Novo Regime do Arrendamento Urbano Anotado e Comentado, 2ª Edição, pág. 28; cf. Elsa Sequeira Santos, Código Civil Anotado, Ana Prata (Coord.) Volume I (Artigos 1º A 1250º), 2ª Edição Revista e Actualizada, 2019, pág. 1367, no sentido de a circunstância de o senhorio poder efectuar a resolução por via extrajudicial não o priva da possibilidade de recorrer a uma acção judicial destinada àquela resolução, quer como pedido isolado, quer em cumulação com outros pedidos.
Assim, o que se impõe questionar é se os senhorios, podendo resolver e tendo resolvido o contrato mediante comunicação extrajudicial enviada à arrendatária, afinal não possuem interesse em agir relevante para recorrer à acção judicial.
Ou seja, há que determinar se havendo duas possibilidades de exercer um direito, o seu titular deve exercer primacialmente a via extrajudicial, incorrendo em falta de interesse em agir na utilização imediata da via judicial.
O Prof. Miguel Teixeira de Sousa define o interesse processual como o interesse da parte activa em obter a tutela judicial de um direito subjectivo através de um determinado meio processual, de modo que é aferido em função da necessidade de tutela judicial e da adequação do meio processual escolhido pelo autor
A necessidade da tutela judicial é aferida objectivamente perante o direito subjectivo alegado pelo autor. Assim, “o autor tem interesse processual se, da situação descrita, resulta que essa parte necessita da tutela judicial para realizar ou impor o seu direito” – cf. O Interesse Processual na Acção Declarativa, AAFDL, 1989, pág. 9.
Além disso, a acção instaurada deve ser o meio judicial mais rápido, económico e adequado para obter a tutela visada. Logo, “a parte não tem interesse processual quando pode obter o mesmo resultado visado com a propositura da acção através de um outro meio, processual ou extraprocessual, que importa menos custos económicos.” – cf. Prof. M. Teixeira de Sousa, op. cit., pág. 11.
Realce-se, contudo, que “a necessidade de recorrer às vias judiciais, como substractum do interesse processual, não tem que ser uma necessidade absoluta, a única ou a última via aberta para a realização da pretensão formulada. Mas também não bastará para o efeito a necessidade de satisfazer um mero capricho (de vindicta sobre o réu) ou puro interesse subjectivo (moral, científico ou académico) de obter um pronunciamento judicial. O interesse processual constitui um requisito a meio termo entre os dois tipos de situações. Exige-se, por força dele, uma necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a acção – mas não mais que isso.” – cf. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, pp. 180-181.
Atente-se nos seguintes factos:
· A ré pagou a renda referente ao mês de Novembro de 2012 e nunca mais pagou qualquer renda;
· DS e a mulher, A., notificaram a ré, por notificação judicial avulsa, da resolução do contrato de arrendamento celebrado em 1 de Agosto de 1999, por falta de pagamento das rendas vencidas de Dezembro de 2012 a Dezembro de 2013, notificação que esta assinou, em 30 de Janeiro de 2014;
· A ré recusou-se a entregar o locado aos autores e notificada para entregar as chaves, em 6 de Junho de 2017, não deu resposta a tal interpelação;
Tal como refere a recorrida A. nas suas contra-alegações, a notificação judicial avulsa foi promovida por DS e pela própria, tendo falecido, entretanto, o primeiro, em 25 de Julho de 2015, o que conduziu à habilitação dos seus herdeiros, os aqui autores.
À partida, o óbito do senhorio não afastaria a possibilidade de recurso ao procedimento especial de despejo por parte dos autores, demonstrada a sua qualidade de herdeiros e instruído o processo com o comprovativo da comunicação prevista no art. 1084º, n.º 2 do C. Civil (cf. art. 15º, n.º 2, e) do NRAU).
De todo o modo, pode aceitar-se que essa circunstância tenha contribuído para a opção pelo recurso à via judicial.
Atente-se, também, que tal como a própria ré/recorrente reconheceu, desde logo, no seu articulado de contestação, a notificação foi por si assinada, considerando a própria que operou os seus efeitos com a inerente cessação do contrato de arrendamento.
Todavia, tal não obstou a que, decorridos mais de cinco anos, a ré permaneça no locado, não obstante os pedidos de entrega do imóvel e chaves, a que sempre se recusou.
Ora, em termos de economia de meios e rapidez, não se vislumbra que a opção pela acção judicial de despejo deva ser tida como mais onerosa ou desadequada, tendo em conta que, ainda que a via escolhida fosse a do procedimento especial de despejo, sempre seria possível a dedução de oposição pela requerida, que, a ter lugar, determinaria a sua remessa à distribuição, com eventual realização de audiência de julgamento e necessidade de prolação de uma decisão.
Certo é que, na ausência de oposição, os autores poderiam obter mais rapidamente o título de desocupação do locado e, subsequentemente, o despejo do locado. Contudo, não é seguro que essa via viesse a se revelar mais célere e eficaz.
Além disso, como se menciona na decisão recorrida, a necessidade de tutela judicial não pode, de todo, ser negada, quando após a comunicação da resolução do contrato, a arrendatária persiste na ocupação do locado, ao longo de cinco anos, sem o pagamento de qualquer renda.
Acresce que a notificação judicial avulsa e o contrato de arrendamento não contêm, por si só, força executiva, constituindo apenas pressuposto para a obtenção de título de desocupação do locado, este sim, passível de ser executado.
Aliás, nem o Código de Processo Civil veda o recurso à acção declarativa quando o demandante dispõe de título executivo, pois que prevê expressamente que estando já aquele munido de título executivo possa ainda assim instaurar uma acção declarativa para obter uma sentença que reconheça o seu direito, situação em que apenas responsabiliza o autor pelas respectivas custas (cf. artigo 535º, n.ºs 1 e 2, alínea c) do CPC).
Logo, para o próprio Código de Processo Civil existe interesse em agir ainda quando o autor já possua um título executivo, caso em que o releva é o interesse em obter os efeitos jurídicos consentâneos com o direito que a decisão reconhece. “Por isso, o que afasta esse interesse não é a existência ou a possibilidade de obtenção deste outro título, há-se ser algo que em concreto dispense a acção em si mesma. E isso só pode ser evidentemente algo que coloque o autor na mesma posição a que aspira com a acção judicial, na mesma posição que resultará da existência de uma decisão judicial que reconheça o direito.” – cf. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17-10-2013, relator Aristides Rodrigues de Almeida, processo n.º 2541/11.5TBOAZ.P1.
Assim, havendo um manifesto, reiterado e ostensivo incumprimento por banda da ré/apelante das obrigações que sobre si impendiam quer na vigência do contrato de arrendamento, quer após a sua cessação, face à subsistente recusa de entrega do objecto locado e mantendo-se uma situação fáctica incompatível com os efeitos jurídicos da comunicação da resolução do contrato de arrendamento, deve aceitar-se, à luz do critério da razoabilidade, justa medida e adequação, que a parte não inadimplente, os aqui autores/recorridos, tem interesse em agir bastante para poder recorrer a uma acção judicial que lhe reconheça o direito e condene a outra nas consequências do seu incumprimento – cf. no sentido apontado, para além dos acórdãos já referidos, os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 29-11-2018, relator António Valente, processo n.º 19373/17.0T8SNT.L1-8 e de 28-05-2013, relatora Teresa de Sousa Henriques, processo n.º 317/12.1T2MFR.L1-1; acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26-03-2019, relatora Ana Lucinda Cabral, processo n.º 1208/17.5T8MTS.P1; acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 25-10-2012, relatora Maria Luísa Ramos, processo n.º 481/11.7TBCMN.G1.
Assim, tal como se concluiu em sede de despacho saneador, improcede a excepção dilatória de falta de interesse processual em agir e improcede o recurso nesta parte (conclusões 1. a 8.).
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Da Existência de erro na definição do Objecto do Litígio
Sustenta a apelante que o despacho que indeferiu a reclamação apresentada relativamente à definição do objecto do litígio deve ser revogado com fundamento no facto de ter invocado na contestação a excepção de não cumprimento do contrato de arrendamento, em virtude de falta de condições de habitabilidade do bem locado, matéria que o Tribunal a quo não integrou na determinação do objecto do litígio e temas de prova, inviabilizando assim a produção de prova e a justa composição do litígio; mais alega que ou o Tribunal conhecia desde logo da excepção invocada, o que não fez, ou não poderia deixar de levar a matéria ao objecto do litígio e aos temas de prova.
A recorrida alega que o fundamento do Tribunal a quo para a rejeição da reclamação assentou na circunstância de não ter sido deduzido pedido reconvencional, para além do que, tendo a ré admitido que se manteve a residir no locado, não se poderia deixar de concluir que incorreu em mora, pois o máximo a que poderia ter direito seria a uma redução da renda e não à suspensão total dessa obrigação.
Conforme resulta do relatório supra, a ré contestou a acção admitindo que deixou de pagar a renda, pelo menos desde Fevereiro de 2013, mas sustentando que lhe assistia o direito a recusar esse pagamento porque o locado não apresenta as condições mínimas de habitabilidade, o que coloca em causa a sua segurança e saúde, tendo solicitado a realização de obras, sem sucesso; mais referiu que, de todo o modo, sempre o valor da renda teria de ser reduzido em dois terços, durante todo o período pós Fevereiro de 2013, face ao avançado estado de degradação do locado.
No decurso da audiência prévia realizada em 9 de Janeiro de 2019, o Tribunal a quo procedeu à identificação do objecto do litígio e fixação dos temas da prova nos seguintes termos:
“II - Identificação do objecto do Litígio
Na presente acção impõe-se fundamentalmente apreciar as questões atinentes à resolução do contrato dos autos e seus efeitos e se a Ré pode ser responsabilizada pelo pagamento das quantias reclamadas pelos Autores.
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III - Enunciação dos Temas da Prova
Considerando o objecto do litígio acima identificado, os pedidos formulados, as posições assumidas pelas partes nos respectivos articulados e as soluções plausíveis da questão de direito controvertida, importa apurar:
1. O valor da renda (ajustada) devida desde Dezembro de 2012 em diante.
2. Se alguma das rendas reclamadas na acção por referência ao período de Dezembro de 2012 a Dezembro de 2013 (sendo que relativamente ao mais não se mostra controvertido o seu não pagamento) se mostram pagas e, em caso afirmativo, quais.”
Concedida a palavra às partes para se pronunciarem, pela ilustre defensora oficiosa da ré foi apresentada a seguinte reclamação:
“A ré vem reclamar do objecto do litígio doutamente fixado por considerar que, tendo invocado em sede de contestação a diminuição do gozo do imóvel locado, em virtude do seu elevado grau de degradação, deverá tal privação do gozo impor uma diminuição da renda mensal acordada com os autores, conforme pedido subsidiário efectuado na contestação."
Os autores pronunciaram-se da seguinte forma:
“Os autores entendem que não assiste razão à ré por duas ordens de razões. A primeira é que foram pagas rendas desde o início do contrato e até determinada altura, quando as condições do locado eram do inteiro conhecimento da ré que com elas se conformou e aceitou. E, em segundo lugar, pelo facto de, aceitando-se o alegado pela ré, em tese, sempre esta deveria ter notificado o senhorio de tal facto e, bem assim, fixar o valor da renda que julgava ser devida e pagá-la.
Ao não ter liquidado qualquer valor a título de rendas durante mais de cinco anos, parece-nos ser perfeitamente acessório discutir esta questão em sede julgamento, uma vez que os autos fornecem todos os elementos para que seja proferida decisão."
Pela senhora juíza a quo foi então proferido o seguinte despacho:
“A excepção de não cumprimento do contrato pode ser deduzida numa acção de resolução do arrendamento por falta de pagamento de rendas, se o arrendatário alega que suspendeu o pagamento de toda a renda por incumprimento do locador que exclua totalmente o uso da coisa ou que suspenda o pagamento de parte da renda por incumprimento do locador que exclua o uso parcial do locado e não pode proceder se decorrer dos factos que a falta de pagamento das rendas ocorreu depois da questão da privação do uso.
No caso concreto, decorre da contestação apresentada pela ré que:
a) a alegada privação do gozo do locado é anterior à falta (admitida) de pagamento da totalidade da renda.
b) a privação do gozo do locado não é total considerando que a ré sempre se manteve, e mantém até ao presente, a residir no locado, não obstante o que alega quanto ao estado do mesmo.
Por outro lado, como se constata da contestação apresentada, a ré, relacionada com a questão da invocada excepção do não cumprimento do contrato, não deduziu qualquer pedido reconvencional contra os autores.
Em face do exposto, entende-se que a matéria relacionada com a invocada excepção do não cumprimento do contrato, não deve integrar o objecto do litígio e, consequentemente, os respectivos temas da prova.
Nestas condições, indefere-se a reclamação apresentada pela ré.”
Considerando irrelevante para a apreciação do mérito da causa a suscitada questão da excepção de não cumprimento do contrato com fundamento na falta de condições de habitabilidade do imóvel locado, o Tribunal a quo não levou aos temas da prova a matéria de facto integrante da aludida excepção e sobre ela não se pronunciou na fixação dos factos provados e não provados, vindo, a final, não obstante isso [num iter processual menos rigoroso], a apreciar tal excepção, em sede de sentença final, para concluir, demonstrada a resolução do contrato de arrendamento, que tal excepção nunca poderia funcionar porque o seu pressuposto é que o cumprimento da prestação em falta ainda seja possível.
Dispõe o art. 596º, n.º 1 do CPC que “Proferido despacho saneador, quando a ação houver de prosseguir, o juiz profere despacho destinado a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas da prova.”
Este despacho tem por função condensar o objecto do processo, tal como se previa no art. 511º do CPC de 1961, substituindo a anterior especificação e questionário, precedendo os actos processuais de instrução, discussão e sentença que se seguirão, dado que a causa irá prosseguir.
Com efeito, a possibilidade de conhecimento do mérito da causa no despacho saneador estava consagrada no art. 510º, n.º 1, alínea b) do CPC de 1961, o que, a não ocorrer, implicava que o juiz fixasse a base instrutória, seleccionando a matéria de facto relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, que deva considerar-se controvertida – cf. art. 511º, n.º 1 do CPC de 1961.
O actual art. 595º, n.º 1, b) do CPC de 2013 continua a contemplar a possibilidade de conhecimento imediato do mérito da causa, sempre que o estado do processo permita, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória.
Nessa decisão, o tribunal deve observar, com as devidas adaptações, as regras da sentença, designadamente as vertidas nos art.ºs 607º e 608º do CPC, declarando os factos que julga provados, tomando em consideração os admitidos por confissão judicial, por acordo expresso ou tácito das partes nos articulados, por funcionamento de presunção legal inilidível, por documento com força probatória bastante ou factos notórios ou de que o juiz tem conhecimento.
Com a consagração deste regime processual visa-se evitar o protelamento de acções que logo nessa fase já contenham todos os elementos necessários a uma boa decisão e em que as partes apenas discordem da solução jurídica da questão a dirimir.
Contudo, apesar das razões de celeridade subjacentes a tal opção, importa ter presente que deverá ser sempre concedida às partes a possibilidade de discussão e prova, em sede de audiência, da factualidade que alegam e que poderá conduzir a soluções jurídicas muito mais abrangentes, ainda que se não afigurem possíveis na fase do saneador ou, pelo menos, a um desfecho diverso daquele que ao juiz do processo pareça ser o correcto nesse momento processual.
Assim, quando não seja clarividente a sua inutilidade ou não se verifique a demonstração dos factos necessários para a prolação de uma decisão sobre o objecto da causa, impondo-se antes uma clarificação da factualidade alegada, o juiz deverá prosseguir a tramitação processual até à realização de audiência de julgamento, posto que é este o momento processual adequado à efectiva compreensão e ponderação das soluções plausíveis de direito que no caso se possam configurar.
Assim é que, “este conhecimento só deve ter lugar quando o processo contenha todos os elementos necessários para uma decisão conscienciosa, segundo as várias soluções plausíveis de direito e não apenas tendo em vista a partilhada pelo juiz da causa […] Havendo mais de uma causa de pedir ou mais de uma exceção peremptória, o conhecimento de uma delas, que prejudique as restantes, no despacho saneador, quer conduza ao termo do processo, quer a uma decisão de mérito parcial […] só deve ter lugar quando haja uma muito razoável margem de segurança quanto à solução a proferir, pois de outro modo o aparente ganho de economia processual pode resultar, pela via da revogação da decisão em recurso, em perda real na duração do processos.”- cf. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 3ª Edição, pp. 659-661.
Não havendo lugar ao conhecimento imediato do mérito da causa, ao despacho saneador seguia-se, no CPC de 1961, a selecção dos factos assentes e dos carecidos de prova, que era feita a partir dos factos articulados pelas partes que integram a causa de pedir e os que fundam as excepções, ou seja, os factos principais da causa, sem prejuízo de poderem ser integrados na base instrutória, os factos acessórios e instrumentais, enquanto passíveis de constituírem a base de uma presunção legal ou um facto contrário ao presumido.
A selecção dos factos assentes e dos controvertidos era feita tendo em conta as várias soluções plausíveis da questão de direito, ou seja, o juiz não podia cingir-se aos factos essenciais ou relevantes para a solução das questões que, no seu entender, fossem pertinentes; “fosse qual fosse a sua visão da que devia ser a decisão jurídica da causa e o caminho para a atingir, o juiz tinha de seleccionar também os factos que interessassem a outras vias de solução possível do litígio, tidas em conta as posições assumidas pelas partes quanto à fundamentação jurídica das pretensões e excepções e as correntes doutrinárias e jurisprudenciais formadas em torno dos tipos de questão que elas levantassem” – cf. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, op. cit., pág. 667.
No actual CPC de 2013, o conteúdo do novo despacho que identifica o objecto do litígio e enuncia os temas de prova não está descrito no diploma legal, embora se deva ter como constituindo uma “síntese narrativa do que se afigura ao tribunal como sendo a causa de pedir e o efeito pretendido pelo autor, as impugnações do réu e as exceções opostas” – cf. Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume II, 2018, pág. 128.
José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre ensaiam a seguinte delimitação de tal despacho:
“Em termos amplos […] dir-se-á que tal despacho consiste na explicitação dos pedidos deduzidos sobre os quais haja controvérsia e das questões fundamentais (causa de pedir e exceções) que se encontram controvertidas e servirão para orientar, num momento subsequente, a actividade probatória. Ao exigir a nunciação dos temas da prova, não pretendeu o legislador que o juiz elencasse factos descritos segundo a sua perspectiva sobre a distribuição do ónus da prova, mas apenas questões genéricas […] que podem ser formuladas mediante o uso de qualificações jurídicas e que têm como referência a causa de pedir as exceções alegadas pelas partes. […]
Entendendo que “[n]o regime processual que actualmente vigora, embora inexista [não exista] norma que preveja a organização dos temas de prova em função das soluções plausíveis de direito […], a organização daqueles temas deverá ter em consideração as diversas soluções plausíveis das questões de direito decidendas, pois só assim, por um lado, se respeitarão as exigências de um processo jutos e equitativo, com respeito do princípio do contraditório, e, por outro lado, se evitarão as delongas decorrentes da eventual necessidade de ampliação da matéria de facto, no tribunal ad quem, por se ter desconsiderado uma ou várias vertentes fácticas daquelas questões de direito […]” – cf. op. cit., pp. 670-671.
Rui Pinto refere que na identificação do objecto do litígio o juiz terá de lhe dar uma provisória qualificação jurídica, sendo que “o equilíbrio entre o dever de condensação e a proibição de antecipar a decisão final, impõe, necessariamente, que a enunciação das questões em litígio seja feita segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito. […] Para tal, o juiz deve ponderar a relevância jurídica dos factos trazidos pelas partes e o quadro de relevância factual oficiosa que o novo artigo 5º, n.º 2 lhe concede, considerando as soluções jurídicas que são, razoavelmente, suscitadas pela sua perspectiva provisória (onde já considera a jurisprudência e a doutrina), pela perspectiva do autor e pela perspectiva do réu.” – cf. op. cit., pp. 129-130.
Nos termos do n.º 2 do art. 596º do CPC, as partes podem reclamar do despacho de identificação do objecto do litígio e enunciação dos temas de prova, sendo que o despacho que incida sobre tais reclamações apenas pode ser impugnado no recurso interposto da decisão final (cf. n.º 3) – cf. art. 644º, n.º 3 do CPC.
Pode suceder, contudo, que nem se chegue a conhecer do recurso se se considerar que a infracção cometida não irá modificar a decisão final – cf. art. 660º do CPC -, sendo que a manutenção do interesse na impugnação de tal decisão interlocutória depende da subsequente evolução processual e do resultado que vier a ser declarado a final – cf. A. Abrantes Geraldes, op. cit., pág. 238.
Naturalmente que, tendo a apelante ficado vencida na presente causa, a eventual procedência do recurso relativo ao despacho que apreciou a reclamação que apresentou quanto à identificação do objecto do litígio e temas de prova, com eventual reconhecimento de não terem sido atendidos factos essenciais ou nucleares de uma das pretensões ou excepções deduzidas, acarretaria a anulação da decisão, revelando-se aqui o interesse da apelante na aludida impugnação – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17-12-2014, relator Jorge Teixeira, processo n.º 2777/12.1TBBRG.G1.
Dado que a lei concede ao juiz uma grande margem de autonomia na elaboração do despacho previsto no n.º 1 do art. 596º do CPC, os fundamentos para a sua impugnação devem reconduzir-se, no essencial, àqueles que poderiam ser aduzidos contra as antigas selecção da matéria de facto assente e fixação da base instrutória, isto é, deficiência, excesso ou obscuridade. “Assim, a deficiência consistirá na omissão de pontos relevantes para a decisão da causa; o excesso, na inclusão de pontos irrelevantes, fora do objecto do processo ou não introduzidos pelas partes, devendo sê-lo; a obscuridade, em redacção que suscite dúvidas quanto à identificação do objecto do litígio ou ao enunciado dos temas de prova.” – J. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, op. cit., pág. 671.
Estando assente que a identificação do objecto do litígio e a enunciação dos temas de prova visam delimitar o âmbito da instrução, que deve ter lugar tendo por limites a causa de pedir e as excepções deduzidas, assegurando a livre investigação e consideração de toda a matéria relevante para a decisão da causa, tal instrução deve ter por objecto os factos relevantes para o exame e decisão da causa que devam considerar-se controvertidos ou necessitados de prova, e que constituem, impedem, modificam ou extinguem o direito controvertido, tal como decorre do vertido nos articulados.
Se os temas de prova delimitam o âmbito da instrução e se esta não pode incidir sobre factos que não os integrem, um eventual facto relevante para a decisão da causa, não ponderado ou não incluído naquele despacho, necessariamente excluído da actividade probatória, determinará a anulação da decisão – cf. neste sentido, acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17-12-2014 acima mencionado.
Importa, assim, determinar se, na situação dos autos, deveria ter sido incluída na identificação do objecto do litígio a questão atinente à excepção de não cumprimento do contrato de arrendamento e, por consequência, se os factos a esta respeitantes deveriam ter sido considerados nos temas de prova e se, não o tendo sido, se impõe revogar o despacho que indeferiu a reclamação apresentada e daí retirar as inerentes consequências.
O arrendamento, como é entendimento uniforme, consiste num contrato sinalagmático, uma vez que a obrigação do senhorio de proporcionar ao arrendatário o gozo da coisa – cf. art.º 1931º, alínea b) do Código Civil - tem como correspectivo a obrigação de pagar a renda ou aluguer – cf. art.º 1038º, alínea a) do mesmo diploma legal -, ou seja, ambos os contraentes ficam sujeitos a obrigações recíprocas.
O pagamento da renda tem como correspectivo a cedência do local arrendado em condições de ser plenamente fruído em vista do fim a que se destina.
Da qualificação do arrendamento como contrato sinalagmático decorre a aplicação de vários institutos jurídicos, entre os quais, a excepção de não cumprimento do contrato, prevista nos artigos 428º e seguintes do Código Civil (constituindo a norma do art. 1040º do C. Civil, que prevê, no caso de o locatário, por motivos que lhe sejam estranhos, sofrer privação ou diminuição do gozo da coisa locada, a possibilidade de redução da renda proporcional ao tempo da privação ou diminuição e à extensão desta, um afloramento desse instituto).
O art. 428º, n.º 1 do C. Civil estatui: “Se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo.”
A excepção de não cumprimento do contrato consiste, assim, na faculdade que, nos contratos bilaterais, cada uma das partes tem de recusar a sua prestação enquanto a outra não realizar ou não oferecer a realização simultânea da sua prestação, pelo que o respectivo exercício pressupõe a existência de um contrato bilateral, a simultaneidade do prazo (mais precisamente, que o excepcionante não se encontre obrigado a cumprir antes da contraparte) e a mora de um dos contraentes – cf. Mário de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 6ª edição, pp. 301-303.
Nos contratos em que a prestação se protela no tempo, denominados de duração ou de prestação duradoura, ainda que o contraente deva efectuar a sua prestação antes do outro pode lançar mão da excepção de não cumprimento do contrato, baseando-se na inexecução de prestações anteriores, isto é, de prestações correspondentes a outras que ele próprio anteriormente tenha efectuado, sendo que a maioria da jurisprudência tem aceitado a aplicabilidade da excepção de não cumprimento do contrato no âmbito do arrendamento.
A exceptio non adimplenti contractus é, no essencial, um meio de conservação do equilíbrio sinalagmático que deverá existir na génese e no próprio desenvolvimento dos contratos bilaterais, em especial no seu cumprimento, justificando-se quando ocorra uma ausência de correspondência ou de reciprocidade entre as obrigações que, no âmbito dos contratos bilaterais, emergem para ambas as partes. Pressupõe, portanto, a existência de um nexo de interdependência causal entre o incumprimento da outra parte e a suspensão da prestação pelo excipiens, devendo ser alegada tendo em vista compelir à execução da obrigação correspectiva por parte do outro contraente.
A excepção de não cumprimento do contrato constitui uma excepção dilatória de direito material, dado que não exclui definitivamente o direito invocado pelo autor e porque se baseia em razões de direito substantivo, recaindo sobre o arrendatário o respectivo ónus de alegação e de prova conducente à demonstração da exceptio que consubstancia, portanto, matéria de excepção.
Recaindo sobre o senhorio a obrigação de realizar as obras de conservação, ordinárias ou extraordinárias, requeridas pelas leis vigentes ou pelo fim do contrato, nos termos do art. 1074º, n.º 1 do C. Civil, a falta de cumprimento dessa obrigação pode constituir fundamento de resolução do contrato pelo arrendatário – cf. art.º 1083º, n.º 1 do referido diploma legal.
No entanto, tem sido uniformemente entendido que, enquanto se mantiver no gozo do imóvel o arrendatário não poderá utilizar a excepção de não cumprimento do contrato para se recusar a pagar a renda, em consequência da não realização das obras, apenas podendo efectuar a redução da renda na medida proporcional à privação ou diminuição do gozo.
Neste sentido se pronuncia, claramente, Luís Menezes Leitão: “Não parece, porém, que, enquanto se mantiver no gozo do imóvel o arrendatário possa utilizar a excepção de não cumprimento do contrato para se recusar a pagar a renda, em consequência da não realização das obras, apenas podendo efectuar a redução da renda na medida proporcional à privação ou diminuição do gozo nos termos do art. 1040.” – cf. op. cit., pág. 80.
Fernando Gravato de Morais refere que a falta de pagamento só pode ser total se o prédio não realizar cabalmente o fim a que é destinado, carecendo das qualidades asseguradas no início do contrato – cf. op. cit., pág. 226.
Com efeito, como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12-10-2017, relatora Ondina Carmo Alves, processo n.º 4058-12.ITJLSB.L1-2:
“[…] o sinalagma existente no contrato de arrendamento reside precisamente na obrigação do arrendatário de pagar a renda, contraposta à obrigação do locador de assegurar o gozo da coisa para o fim a que a mesma se destina. Daí que é pacífico o entendimento de que, enquanto o senhorio não proceder à entrega do prédio arrendado, o arrendatário não está obrigado a pagar a renda, podendo invocar a exceptio, de harmonia com o disposto no citado artigo 428º, nº 1 do C.C. Entregue ao locatário a coisa locada, o sinalagma em grande medida se desfaz, pois a obrigação de proporcionar o gozo da coisa é uma obrigação sem prazo ou dia certo para o seu cumprimento, ao passo que é a termo a do pagamento da renda […]
Já o mesmo não se poderá afirmar com relação à obrigação de realização de obras na casa arrendada, por parte do senhorio e o ónus do arrendatário de habitar o arrendado. Inexiste entre eles a correspectividade ou sinalagma que justifique a invocação da excepção de incumprimento do contrato.
É que, a obrigação de pagar a renda imposta ao locatário, faz parte, como se disse, do sinalagma contratual, na medida em que se contrapõe à obrigação fundamental, imposta ao locador, de proporcionar o gozo da coisa. Mas, o sinalagma liga entre si as obrigações essenciais de cada contrato bilateral, mas não todos os deveres de prestação dele nascidos. Daí que, como se refere no Ac. STJ de 11.10.2007 (Pº 07B2934) […] “no arrendamento, o pagamento da renda tem como correspectivo a cedência do arrendado e não também a obrigação de nela fazer obras”.
De igual modo, refere-se no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22-05-2012, relator Fonte Ramos, processo n.º 3536/10.1TJCBR-A.C1 que:
“Nesta perspectiva das coisas e acolhendo a ideia do equilíbrio ou equivalência das prestações, considera-se que o locatário só poderá suspender o pagamento da renda (de toda a renda) quando se trate de não cumprimento do locador que exclua totalmente o gozo da coisa; no caso de privação parcial do gozo, imputável ao locador, o locatário apenas poderá suspender o pagamento de parte da renda.
E tem vindo a ser admitido o funcionamento do instituto mesmo nas situações de incumprimento parcial ou de cumprimento defeituoso, fazendo intervir então, sempre que as circunstâncias concretas o imponham, o princípio da boa fé e a “válvula de segurança” do abuso do direito (art.ºs 762º, n.º 2, e 334º), donde o imperativo de uma apreciação, em face das circunstâncias concretas, da gravidade do incumprimento, porquanto seria contrário à boa fé que um dos contraentes recusasse a sua inteira prestação, só porque a do outro enferma de uma falta mínima ou sem suficiente relevo. […]
Assim, a exceptio opera sempre que exista correspectividade entre a prestação que uma das partes na relação de locação pretenda recusar e aquela cuja falta se invoca, pelo que se o locatário ficar privado do gozo da coisa, no todo ou em parte, por facto imputável ao locador, pode ele suspender, numa medida proporcional, a sua contraprestação; o locatário tem a faculdade de invocar, nos termos gerais, a excepção da inadimplência, quando se verifique mero incumprimento parcial da correspectiva obrigação do locador mas a boa fé exige, por um lado, que a falta assuma relevo significativo e, por outro lado, que se observe proporcionalidade ou adequação entre essa falta e a recusa do excipiente.
O recurso do arrendatário a este instituto, se existe cumprimento defeituoso ou parcial pelo senhorio, apenas o dispensa de pagar a renda correspondente à falta verificada. A quantificação pode tornar-se mais ou menos difícil. Quando as partes não chegarem a acordo subsiste o remédio da consignação em depósito, mas o arrendatário corre o risco de o seu cálculo pecar por defeito, depositando uma renda menor do que a devida - daí que se imponha uma actuação ponderada e cautelosa sempre que se pretenda exercitar a excepção do não cumprimento no assinalado contexto.
[…] tem-se afirmado que o arrendatário, no caso de mora do senhorio na reparação dos defeitos, não pode, mantendo-se no gozo da coisa locada, e enquanto subsistir o contrato, deixar de pagar a renda no momento oportuno, sob pena de incorrer em mora. Pode, apenas, no caso de vício ou defeito, considerar não cumprido o contrato, ou resolver o mesmo, se os defeitos assumirem a gravidade prevista na lei […]
Um arrendatário, em virtude de defeitos da coisa locada, mesmo em caso de mora do senhorio para a reparação, não pode, mantendo-se no gozo da coisa, e enquanto subsistir o contrato, deixar de pagar a renda no momento oportuno. Não o fazendo incorre em mora.”
No caso em apreço, face ao conteúdo da contestação deduzida pela ré/apelante, era já seguro ao momento da prolação do despacho de identificação do objecto do litígio e enunciação dos temas de prova que, por um lado, a própria reconhecia a cessação do contrato de arrendamento operada por via da comunicação extrajudicial da resolução com fundamento em pagamento das rendas e, por outro, que admitia a falta de pagamento da totalidade da renda, pelo menos desde Fevereiro de 2013.
Ora, o funcionamento da excepção de não cumprimento do contrato não pode ter lugar verificada a cessação do contrato, como é evidente.
Com efeito, decorre expressamente da norma vertida no n.º 1 do art. 428º do C. Civil, que a excepção procede “enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe”, ou seja, reporta-se a um incumprimento temporário, pois que se for incumprimento definitivo haverá lugar, se for culposo, ao direito à resolução do contrato ou, não sendo imputável ao contraente incumpridor, ocorre a impossibilidade não culposa de cumprimento com extinção da obrigação – cf. Ana Prata, Código Civil Anotado, Volume I, 2019, pág. 587.
Em consonância, reconhecendo a ré e aceitando que a cessação do contrato de arrendamento ocorreu com a sua notificação judicial avulsa, concretizada em 30 de Janeiro de 2014, e motivada por falta de pagamento de rendas vencidas, é evidente que não podia nesta acção convocar a excepção de não cumprimento do contrato de arrendamento imputando ao senhorio a falta de gozo do prédio para justificar seja o não pagamento das rendas seja a redução parcial do seu valor.
Pretendendo lançar mão do mecanismo vertido no art. 1040º do C. Civil deveria a ré tê-lo feito durante a vigência do contrato, sendo que a sua invocação no âmbito da contestação dependia da impugnação da verificação da cessação do contrato, a que, de modo evidente, não procedeu.
Neste contexto, há que concluir pela irrelevância da invocada excepção de não cumprimento do contrato, invocação que se afigura contraditória por referência ao conteúdo da contestação e em face da expressa aceitação da cessação do contrato de arrendamento. Logo, irrelevante se afigura integrar tal excepção no objecto do litígio como questão a dirimir e, por consequência, levar a respectiva matéria de facto à enunciação dos temas de prova – cf. neste sentido, acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 3-03-0216, relator Jorge Seabra, processo n.º 328/14.2T8VCT.G1 – “[…] a exceptio non adimplenti contratus só tem cabimento lógico e legal nas hipóteses de mora (incumprimento temporário) ou cumprimento defeituoso pelo devedor, mas já não se o devedor incorrer em situação de incumprimento definitivo da sua prestação, seja este incumprimento definitivo resultante da impossibilidade da realização da prestação - impossibilidade fortuita ou impossibilidade imputável ao devedor -, seja resultante da recusa inequívoca e peremptória do devedor ao cumprimento, seja resultante do facto de, por via do retardamento no cumprimento, ter o credor perdido o seu interesse objectivo na prestação em falta – arts. 801º, n.º 1 e 808º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil”.
Mas ainda que assim se não entendesse sempre se teria de chegar a idêntica conclusão considerando que, não obstante as alegadas deficiências que a ré imputa ao locado, ainda que estas viessem a ser demonstradas, sempre se teria de ter como assente, tal como resulta da expressa confissão da ré nesse sentido, que esta se manteve a residir no locado, como se mantém, e, mais do que isso, deixou de proceder ao pagamento da totalidade das rendas vencidas (ao menos desde Fevereiro de 2013), o que significa que as apontadas deficiências não se apresentaram como absolutamente impeditivas de continuar a ter a residência no prédio arrendado.
In casu, e em conformidade com o acima expendido, não era lícito à ré/apelante deixar de pagar a renda na sua totalidade e daí a verificação da mora com as respectivas consequências, pois que, quando muito, a verificar-se privação parcial do gozo do locado, poderia aquela reduzir a renda, não sendo esta, claramente, a situação pela qual optou.
Assim, porque a ré/recorrente deixou, conforme sua expressa admissão na contestação, de satisfazer a totalidade da renda devida quando o máximo a que eventualmente teria direito seria, face ao expendido, suspender o respectivo pagamento em medida proporcionada à privação parcial do gozo, a conclusão a extrair não pode ser outra senão a de que incorreu em mora, com as inerentes consequências, nomeadamente, a resolução do contrato por falta de pagamento da renda – cf. neste sentido, acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 22-05-2012, acima mencionado e de 6-06-2017, relator Vítor Amaral, processo n.º 467/13.7TBSEI.C1; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9-12-2008, relator Nuno Cameira, processo n.º 08A3302; acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 3-03-0216, relator Jorge Seabra, processo n.º 328/14.2T8VCT.G1 , acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 8-05-2017, relator Manuel Domingos Fernandes, processo n.º 3542/15.0T8GDM.P1.
Como tal, ao momento da identificação do objecto do litígio e enunciação dos temas de prova, a improcedência da excepção de não cumprimento do contrato afigurava-se manifesta, considerando as várias soluções plausíveis da questão de direito, tornando inócua e inútil a sua inclusão em tal despacho para efeitos de posterior instrução, o que se traduziria na prática de actos inúteis e contrários ao princípio da economia processual, porquanto, pelas razões apontadas, ainda que se apurasse a existência das deficiências e a privação parcial do gozo do locado, tal não teria qualquer virtualidade para interferir no desfecho da causa.
Conclui-se, deste modo, pela improcedência do recurso que incidiu sobre o indeferimento da reclamação que visou o despacho de identificação do objecto do litígio e enunciação dos temas de prova e pela respectiva manutenção do decidido (improcedem as conclusões 9. a 12. das alegações da recorrente).
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Da Nulidade da Sentença prevista no art. 615º, n.º 1, c), primeira parte do CPC
Por fim, veio a requerente suscitar a nulidade da sentença por oposição entre os fundamentos e a decisão, o que sustenta no facto de decorrer do estatuído no art. 1087º do Código Civil que a desocupação do locado, nos termos do art. 1081º, é exigível após o decurso de um mês a contar da resolução, se outro prazo não for fixado judicialmente, pelo que, tendo sido referido na sentença que a ré se encontra desempregada e que não lhe são conhecidos rendimentos, seria expectável que o tribunal fixasse um prazo superior, pelo que face às considerações tecidas na fundamentação, a decisão a proferir deveria ter sido necessariamente outra, pelo que deve a sentença, nessa parte, ser substituída, fixando-se um prazo nunca inferior a 90 dias para a desocupação do locado.
A recorrida, nas suas contra-alegações defende que não se verifica tal vício tendo em conta que a recorrente não paga renda há seis anos e que foi interpelada para entregar o locado e as chaves, em 2017, e, em abuso de direito, ainda pretende dispor de noventa dias para o desocupar.
A senhora juíza a quo, ao admitir o recurso, apreciou a nulidade arguida do seguinte modo:
“No caso sub judice, compulsado o teor da decisão sob recurso, entende-se não assistir qualquer razão à recorrente e ser manifesto que não se verifica a apontada (mas infundada) nulidade.
Com efeito, a decisão recorrida, clara e linear, mostra-se fundamentada, especifica os fundamentos de facto e de direito, e como resulta da sua leitura tem os fundamentos de facto e de direito em concordância lógica com a decisão (não se verificando qualquer contradição).
A ré manifestamente faz tábua rasa do que se decidiu, nomeadamente, na alínea a) [“Declarar que o contrato de arrendamento dos autos se extinguiu, pro via da comunicada resolução, por notificação avulsa, no dia 30.01.2014”].
Não se vislumbrando em que se estriba para afirmar (erradamente, porém) que no caso concreto “nos termos do artigo 1087º, o prazo mínimo supletivo legal para desocupação do locado é de 30 dias”.
Por outro lado, a discordância que evidencia face à sentença proferida não autoriza concluir pela alegada, mas não verificada, nulidade.
Em síntese, é manifesto que não correr a alegada nulidade e que a ré apenas pretende, infundadamente (continuar a), protelar, de forma abusiva e censurável, a entrega do locado.
Flui do exposto que não se verifica a invocada nulidade.
A recorrente pode discordar da decisão proferida mas tal não encerra a suscitada nulidade.
Nestas condições, conclui-se que a decisão recorrida não padece da suscitada nulidade.”
As decisões judiciais podem estar feridas na sua eficácia ou validade por duas ordens de razões: por erro de julgamento dos factos e do direito; por violação das regras próprias da sua elaboração e estruturação ou das que delimitam o respectivo conteúdo e limites, que determinam a sua nulidade, nos termos do art. 615.º do Código de Processo Civil (CPC).
Dispõe o art. 615º, n.º 1 do CPC o seguinte:
1 - É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.”
Para a correcta interpretação deste preceito importa distinguir entre nulidades de processo e nulidades de julgamento, sendo que apenas a estas últimas se aplica o normativo em referência.
Conforme impõe o n.º 3 do art.º 607º do CPC, o juiz deve especificar os fundamentos de facto e de direito da decisão, observando o disposto quer nesse normativo, quer no respectivo n.º 4, ou seja, o juiz deve discriminar os factos que julga provados e os que julga não provados, analisando criticamente as provas, o que fará em conformidade com a sua livre apreciação (princípio da liberdade de julgamento – cf. n.º 5 do art. 607º do CPC).
É usual verificar-se alguma confusão entre nulidade da decisão e discordância quanto ao resultado, entre a falta de fundamentação e uma fundamentação insuficiente ou divergente da pretendida ou até entre a omissão de pronúncia (quanto a alguma questão ou pretensão) e a falta de resposta a algum argumento de entre os que são convocados pelas partes – cf. A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luí Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, 2018, pág. 737.
A oposição entre os fundamentos e a decisão corresponde a “uma «construção viciosa», ou seja, […] um vício lógico da sentença: o juiz elegeu deliberadamente determinada fundamentação e seguiu um determinado raciocínio para extrair uma dada conclusão; só que esses fundamentos conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a um resultado oposto a esse, isto é, existe contradição entre os fundamentos e a decisão (por ex., toda a lógica fundamentadora da sentença apontaria para a condenação do réu no pagamento da dívida reclamada pelo autor, mas o juiz, na sentença, decreta, de modo contraditório, a absolvição do réu do pedido). Não se trata de um qualquer simples erro material (em que o juiz escreveu coisa diversa da pretendia – contradição ou oposição aparente) mas de um erro lógico-discursivo em termos da obtenção de um determinado resultado – contradição ou oposição real. O que não se confunde, também, com o chamado erro de julgamento, isto é, com a errada subsunção da hipótese concreta na correspondente fattispecie ou previsão normativa abstracta, vício este só sindicável em sede de recurso jurisdicional.” – cf. Francisco Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Volume II, 2015, pp. 370-371; J. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, op. cit., pág. 736.
A leitura da decisão recorrida, no segmento ora convocado, viabiliza a afirmação de que aquela não enferma do vício que a apelante lhe imputa.
Com efeito, conforme realça a senhora juíza a quo no despacho em que conheceu de tal nulidade, há que atentar que a sentença proferida declarou ou reconheceu que o contrato de arrendamento para habitação que vigorou entre as partes cessou por via da comunicação extrajudicial promovida pelos senhorios e realizada em 30 de Janeiro de 2014, data em que a apelante assinou a notificação judicial avulsa – cf. pontos 9. e 10. da matéria de facto provada e alínea a) do dispositivo.
Conforme decorre do disposto no art. 1081º do C. Civil, a regra geral é a de que a cessação do contrato torna imediatamente exigível a entrega da coisa.
Ora, um dos desvios a essa regra dá-se no caso de resolução do contrato de arrendamento, pois que, nessa situação, o arrendatário não pode conhecer o momento em que a cessação vai ocorrer, pelo que não se lhe pode exigir que esteja preparado para, a qualquer momento, abandonar o locado (como sucede, diversamente, na cessação do contrato por decurso do prazo). Por essa razão, a lei concede-lhe o prazo de um mês para a entrega do imóvel locado.
Quando a resolução funciona por via judicial, a sentença pode fixar um prazo diferente para a desocupação, tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, podendo também as partes, ao abrigo da autonomia privada, acordar em prazo diferente para a desocupação, sendo certo que o tempo que decorre entre a resolução e a desocupação obriga o arrendatário ao pagamento da renda, nos termos do n.º 1 do art. 1045º do C. Civil.
É neste enquadramento jurídico que tem de ser interpretada a decisão em referência quando ali se refere:
“Finalmente, considerando que a ré se encontra desempregada e que não lhe são conhecidos rendimentos, concede-se à mesma o prazo de trinta dias, após o trânsito em julgado da presente sentença, para desocupar o locado (artigo 1087º do Código Civil).”
Foi exactamente por ter atendido às específicas circunstâncias económicas em que a ré/apelante se encontra – vertidas nos pontos 14. e 15. da matéria de facto provada – que a senhora juíza a quo, apesar de reconhecer que a cessação do contrato se verificou em 30 de Janeiro de 2014 e, logo, que a entrega do locado deveria ter ocorrido no prazo de trinta dias depois dessa data, ainda assim, concedeu um novo prazo para a desocupação, não obstante o longo tempo decorrido em que é manifesto o incumprimento da ré dessa sua obrigação.
Não existe, assim, qualquer contradição entre a fundamentação aduzida e a concessão de um acrescido período de trinta dias, que apenas se iniciará após o trânsito em julgado da decisão, para a efectiva desocupação do locado e que se mostra fundamentado nas frágeis circunstâncias económicas em que a apelante se encontra e que o tribunal recorrido entendeu relevar.
Improcede, também nesta parte, o recurso e as respectivas conclusões 13. a 19..
Improcede, na íntegra, a apelação devendo manter-se inalterada a decisão recorrida.
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Das Custas
De acordo com o disposto no art. 527º, n.º 1 do CPC, a decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito. O n.º 2 acrescenta que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
Nos termos do art. 1º, n.º 2 do RCP, considera-se processo autónomo para efeitos de custas, cada recurso, desde que origine tributação própria.
A recorrente decai em toda a extensão quanto à pretensão que trouxe a juízo, pelo que as custas (na vertente de custas de parte) ficam a seu cargo.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa, em julgar improcedente a apelação, mantendo, em consequência, a decisão recorrida.
As custas ficam a cargo da apelante.
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Lisboa, 2 de Julho de 2019

Micaela Sousa
Maria Amélia Ribeiro
Dina Maria Monteiro