Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
770/10.8TATVD.L1-9
Relator: MARIA DO CARMO FERREIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA CULPOSA
PRINCÍPIO DA ADESÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/21/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIMENTO
Sumário: I - Vigorando o sistema da adesão obrigatória no nosso ordenamento processual penal, é com carácter de excepção que se permite que o Tribunal quebre este princípio.

II - Só em nome da verificação de questões especificamente civis e complexas que inviabilizem uma decisão rigorosa pelo Tribunal Penal, ou de incidentes que possam retardar de forma grave a decisão da matéria penal se admite a remessa do julgamento da questão para o foro cível.

III - O crime de insolvência dolosa- p.p. no artigo 227 do C.Penal- tem como bem protegido o património dos credores e mediatamente, o correcto funcionamento da economia de mercado, como peça fundamental do sistema socioeconómico, assim, a complexidade das questões surge “previamente” ao pedido cível , isto é, serão evidentes na produção das provas, ou seja, se atentarmos na alínea b) do tipo legal pelo qual o arguido vem pronunciado (artigo 227 -1, a), b) e nº. 3 do C.P.P.), verificamos que os elementos da prova, (os quais devem ser lidos conjugada e não isoladamente, bem como conexionados com os depoimentos das testemunhas), correspondem a “standards” probatórios objectivos que exigem conhecimentos sobre as “performances” contabilísticas e financeiras empresariais. E, estes serão os elementos submetidos a um juízo crítico de (des)construção dos factos, pelo julgador que, em regra os possui de uma forma pouco precisa.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9ª. Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.

I. RELATÓRIO.

No âmbito do processo supra identificado que corre termos na então denominada Instância Local da Comarca de Lisboa Norte-Torres Vedras, a demandante Massa Insolvente de F...,SA., interpôs recurso do despacho judicial proferido em 8/1/2015 (fls. 1097 e 1098 destes autos), que decidiu remeter as partes para os meios comuns quanto ao pedido de indemnização deduzido nestes autos.

Na motivação do recurso, conclui a recorrente, como se transcreve:

1 – O recurso tem como objecto a matéria de direito do Despacho proferido nos presentes autos, que remete as partes para os meios comuns relativamente ao pedido de indemnização civil apresentado pela Demandante/ora Recorrente.

2 – Sendo o n° 3, do artigo 82° uma excepção ao princípio da adesão obrigatória enunciado no artigo 71 °, ambos do CPP, a sua aplicação deve cingir-se aos casos nele expressamente previstos e deve ser objecto de uma particular fundamentação.

3 – Pelo que o poder do Tribunal remeter as partes para os meios comuns não significa a atribuição de um poder arbitrário, livre ou discricionário, exigindo antes uma avaliação das questões suscitadas pela dedução do pedido cível, reenviando-o para os meios comuns apenas se concluir que ocorre grande desvantagem na manutenção da adesão.

4 – Salvo o devido respeito, in casu o Tribunal a quo fundamenta de forma insuficiente a opção expressa no Despacho, na medida em que pouco mais faz do que reproduzir a fórmula encontrada pelo legislador no n° 3, do artigo 82% do CPP.

Porquanto,

5 — A "complexidade da questão a dirimir" invocada pelo Tribunal a quo é uma falsa questão, na medida em que os factos que integram a causa de pedir da pretensão da Demandante/Recorrente constituem o próprio ilícito criminal, consistindo, por isso, a manutenção do princípio da adesão nos presentes autos uma vantagem.

6 — No pedido cível que foi deduzido, não se mostram suscitadas questões que pela sua complexidade ou dificuldade pudessem inviabilizar uma decisão rigorosa, sendo certo que aqui como na instância cível as condições para o conhecimento do pedido são as mesmas.

7 — Quanto ao retardamento intolerável do processo penal devido à apreciação do pedido cível, igualmente invocado no Despacho recorrido, diga-se que passados estes cinco anos, e analisadas as ocorrências processuais, verificamos que o eventual retardamento do processo não se ficou de todo a dever à manutenção do princípio da adesão.

8 — Importa ainda lembrar os atrasos provocados pelas profundas alterações introduzidas pela reorganização do sistema judiciário, que in casu acabaram por atirar as audiências de julgamento para o ano de 2015.

9 — Conforme se deixou demonstrado nas Alegações, certo é que chegados à fase processual em que se encontram os presentes autos, a desvantagem que a lei quis evitar ao excepcionar a remessa para os meios comuns – o retardar do processo penal - já ocorreu, donde nada justificaria neste momento a remessa para os meios comuns.

10 – Defende a Demandante/Recorrente que a manutenção nos presentes autos do pedido cível traria seguramente sérias vantagens em termos de economia processual e de celeridade, pois existe in casu uma estreita conexão entre a acção penal e a acção cível, dado terem origem nos mesmos factos ilícitos.

11 – Pelo exposto, considera a Demandante/Recorrente que o douto Despacho recorrido não interpretou, nem aplicou correctamente e, por isso, violou o disposto nos artigos 71º, 72º n° 1 (a contrario), 82º n° 3, 125° e 124º n° 2, do CPP.

12 – Pelo que pede a Demandante/Recorrente a revogação da Decisão que reenviou as partes para os tribunais civis e a sua substituição por outra que promova o julgamento pelo Tribunal a quo do pedido de indemnização civil deduzido, pelos factos constantes da acusação.

***

Respondeu o demandado Banco Comercial Português, na forma constante de fls.1215 a 1223, pugnando pela improcedência do recurso.

Remetidos os autos a esta Relação, nesta instância a Exm.ª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta teve vista no processo.

Prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento em conferência, nos termos do Art.º 419º do C.P.Penal.

Cumpre, agora, apreciar e decidir.

II.MOTIVAÇÃO.

Discorda o recorrente do despacho que inviabilizou a decisão sobre a questão cível a dirimir nestes autos juntamente com a decisão do processo penal.

   A fim de melhor percebermos a questão suscitada, vejamos o que consta do despacho recorrido:

(transcreve-se)

Nos presentes autos foi liminarmente admitido o pedido de indemnização civil contra o arguido e os demais demandados civis.

Tal situação já motivou adiamentos.

Por outro lado e atenta a complexidade da questão a dirimir e os incidentes suscitados, bem como atenta a necessidade de outros dados que cumpre obter, consideramos que a sua apreciação nestes autos poderá retardar intoleravelmente o processo penal, sendo que os factos em apreciação remontam aos anos de 2003 a 2008.

Pelo exposto e ao abrigo do Art.° 82.º, n°3 do Código do Processo Penal remeto as partes para os meios comuns, no que tange ao pedido de indemnização civil.

Para a realização da audiência de julgamento, designo o próximo dia 08 de Abril de 2015, pelas 09 horas e 30 minutos, neste tribunal, e não antes por indisponibilidade de agenda, para a audição do arguido, podendo continuar e se necessário pelo período da tarde.

Fica igualmente e desde iá designado o dia 09 de Abril de 2015, pelas 09 horas e 30 minutos neste tribunal, para a continuação da realização da audiência de julgamento, com a audição das testemunhas de acusação, se necessário continuando no período da tarde e o dia 10 de Abril de 2015, pela mesma hora e local, para a audição das testemunhas de defesa

Designa-se ainda o dia 17 de Abril de 2015, pelas 09h e 30m neste tribunal para a audição das restantes testemunhas e alegações finais.

***
Vejamos agora o que vem disposto nas normas penais sobre a matéria em causa.
 Artigo 71.º
Princípio de adesão
O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei.

Artº. 82 do C.P.P.
1 - Se não dispuser de elementos bastantes para fixar a indemnização, o tribunal condena no que se liquidar em execução de sentença. Neste caso, a execução corre perante o tribunal civil, servindo de título executivo a sentença penal.
 2 - Pode, no entanto, o tribunal, oficiosamente ou a requerimento, estabelecer uma indemnização provisória por conta da indemnização a fixar posteriormente, se dispuser de elementos bastantes, e conferir-lhe o efeito previsto no artigo seguinte.
3 - O tribunal pode, oficiosamente ou a requerimento, remeter as partes para os tribunais civis quando as questões suscitadas pelo pedido de indemnização civil inviabilizarem uma decisão rigorosa ou forem susceptíveis de gerar incidentes que retardem intoleravelmente o processo penal.

Como resulta da disposição  do artigo 71 supra transcrito, consagra o nosso ordenamento jurídico, o princípio da adesão obrigatória no sistema processual.

São conhecidas as vantagens apontadas pela doutrina sobre a consagração legal de tal princípio da adesão obrigatória:

- a celeridade processual, decorrente da própria tramitação;

- a economia de meios de prova;

-  a maior amplitude do sistema investigatório;

- a economia de custos de natureza pecuniária;

- a eliminação do risco da oposição de julgados;

- por outro lado, o próprio julgador conseguirá apreender a globalidade das questões com maior compreensão da realidade em causa.

Como desvantagens, são normalmente apresentadas através das críticas dirigidas ao facto de estarem em causa diferentes responsabilidades, a civil e a penal, e de estas terem diferentes critérios de apreciação, diferentes objectivos e até diferentes sujeitos processuais, bem como o risco de se verificar alguma “pressão” da parte sancionatória criminal sobre a decisão da reparação civil; muito embora, também no sistema independente possa ocorrer que a absolvição verificada no processo crime influencie de forma negativa o sucesso da posterior acção da jurisdição civil, posto que, os factos, a realidade da vida é a mesma e foi já objecto de apreciação anterior.

Não obstante vigorar o princípio da adesão obrigatória ao processo penal, a obrigação indemnizatória mantém o cariz substantivo cível, como resulta evidenciado no disposto no artigo 129 do C.P. e também nas disposições dos artigos 71 e ss. do C.P.P. e ainda no que ao recurso diz respeito. Nesta vertente, posto que de alguma forma se possa ter por excepção “afastado” o princípio da adesão do pedido de indemnização no processo penal, foi com vista a uma maior igualdade dos participantes civis que o artigo 400 do C.P.P., no seu nº. 3, na redacção introduzida pela Lei 48/2007 de 29 de Agosto (actualmente mantém-se esta redacção, na alteração introduzida pela Lei 20/2013 de 21.2, vigente desde 23.3.2013), subtraíu ao regime adjectivo de recurso penal, as decisões proferidas em processo penal relativamente á matéria civil, submetendo-a ao regime civilista vigente fora do processo penal.[1] Na parte processual Penal, optando o legislador, pela adesão obrigatória da acção cível no processo penal, teve em consideração razões de ordem económica (processual), de uniformização de julgados, de celeridade na reparação dos danos, como deixámos acima referido.

Perseguindo estes princípios permite-se (artº. 73 do C.P.P.) aos responsáveis meramente civis que intervenham no processo crime através do seu chamamento ou da intervenção voluntária, mantendo no processo uma posição idêntica à do arguido (artº. 74 nº. 4 do C.P.P.).

Como sustenta Germano Marques da Silva, ([2]) “Sucede é que o pedido de indemnização civil, a deduzir no processo penal, há-de ter por causa de pedir os mesmos factos que são também pressuposto da responsabilidade criminal e pelos quais o arguido é acusado. A autonomia da responsabilidade civil e criminal não impede, por isso, que, mesmo no caso da absolvição da responsabilidade criminal, o tribunal conheça da responsabilidade civil que é daquela autónoma e só por razões processuais, nomeadamente de economia e para evitar julgados contraditórios, deve ser julgada no mesmo processo.”

Com efeito, são os mesmos, os factos que consubstanciam a responsabilidade criminal e a responsabilidade civil, havendo apenas que acrescentar, que em relação a esta última, haverão de verificar-se ainda os factos que indicam o dano e o nexo causal entre o dano e o facto ilícito.

Podemos pois concluir que vigorando o sistema da adesão obrigatória no nosso ordenamento processual penal, é com carácter de excepção que se permite que o Tribunal quebre este princípio; só em nome da verificação de questões especificamente civis e complexas que inviabilizem uma decisão rigorosa pelo Tribunal Penal, ou de incidentes que possam retardar de forma grave a decisão da matéria penal se admite a remessa do julgamento da questão para o foro cível.

Adiantemos desde já que este circunstancialismo não ocorre no caso vertente. Para melhor compreensão faremos uma “incursão histórica” no processado.

 No caso em apreço, o Tribunal alegou que já houve adiamentos motivados pela dedução do pedido Cível, contudo, não os indica.

--Do processado vislumbramos a fls. 886 a admissão do pedido civil e conjuntamente nesse despacho judicial a marcação do julgamento, com duas sessões de julgamento, sendo a segunda com a finalidade da inquirição das testemunhas do pedido cível.

--Posteriormente, em 7/7/2014- fls. 908-, o demandado civil veio requerer a prorrogação por 10 dias para apresentar a contestação do pedido cível, o que lhe foi deferido- fls. 916- tendo- se dito no respectivo despacho que tal situação poderia colidir com os prazos em curso e o agendamento realizado e ainda pelo conteúdo da deliberação do CSM de 9/4/2014 com a entrada da nova Comarca, pelo que ficavam sem efeito as datas do julgamento, devendo os autos serem conclusos após o dia 1 de Setembro para a marcação do julgamento.

--Ainda no dia 2 de Setembro de 2014 foi lavrada no processo, a cota de fls. 1081 onde a secção informava que a documentação recebida no processo só seria registada no sistema operativo “Citius” quando da sua reiniciação após as alterações decorrentes da nova organização judiciária.

--Em 13 de Outubro de 2014, a Srª. Juíza titular suscita o incidente da sua escusa, decidido por este Tribunal da Relação no acórdão de 13 de Novembro de 2014.

--Após, vem então proferido o despacho que remete as partes para os meios comuns quanto ao pedido de indemnização civil, agora sob recurso.

Desde logo, não vislumbramos que se possa imputar à dedução do pedido civil o retardar grave do andamento do processo: para além da prorrogação do prazo de contestação não encontramos nos autos outro adiamento com conexão com aquele pedido.

 Sobre a complexidade da questão cível, alegada com fundamento em que haveria necessidade de outros dados a obter, sem menção concreta aos dados ou às questões consideradas complexas, salvo o devido respeito pela opinião manifestada, não conseguimos perceber qual a real dificuldade com que em concreto, o Tribunal se deparou.

Sendo certo que, o crime em causa, de insolvência dolosa- p.p. no artigo 227 do C.Penal- tem como bem protegido o património dos credores e mediatamente, o correcto funcionamento da economia de mercado, como peça fundamental do sistema socioeconómico, é bom de ver que, a complexidade das questões surgem “previamente” ao pedido cível , isto é, serão evidentes na produção das provas, ou seja, se atentarmos na alínea b) do tipo legal pelo qual o arguido vem pronunciado (artigo 227 -1, a), b) e nº. 3 do C.P.P.), verificamos que os elementos da prova, (os quais devem ser lidos conjugada e não isoladamente, bem como conexionados com os depoimentos das testemunhas), correspondem a “standards” probatórios objectivos que exigem conhecimentos sobre as “performances” contabilísticas e financeiras empresariais. E, estes serão os elementos submetidos a um juízo crítico de (des)construção dos factos, pelo julgador que, em regra os possui de uma forma pouco precisa. E, aqui sim poderemos encontrar algumas das alegadas dificuldades.

Mas, também é certo que a lei teve isso em atenção e permitiu que o Tribunal pudesse recorrer a auxílio especializado de um economista ou solicitar os pareceres que considerar conveniente ( artigo 151 a 163 do C.P.P.) pelo que, ainda assim será ultrapassável essa complexidade.

Ora, como os fundamentos do pedido civil são os factos da actividade criminal, não vemos, para além destas mencionadas sobre a prova penal, quais as complexidades doutras matérias de cariz civilista que possam ser “adicionais” às questões a decidir na parte penal e que inviabilizem uma decisão correcta sobre a procedência ou improcedência do pedido indemnizatório.

Assim, entendemos que se não verificam, no caso, os requisitos exigidos na norma excepcional da observância do princípio da adesão obrigatória, reportados no artigo 82 nº. 3 do C.P.P. Deverá assim prosseguir o processado na observância do princípio da adesão obrigatória, com o julgamento conjunto da matéria penal e cível.[3]

III. DECISÃO.

Posto o que precede, acordam os Juízes da 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido.

Sem custas.

(Acórdão elaborado e integralmente revisto pelo relator – artº 94º, nº 2 do C.P.Penal)


Lisboa, 21 / 05 / 2015

                                                                       

                                                                                                                   

Maria do Carmo Ferreira

Cristina Branco

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[1] Assim é que o n.º 3 do artigo 400º citado, vem submeter a impugnação de todas as decisões civis proferidas em processo penal ao regime previsto na lei adjectiva civil, no sentido de que às decisões (finais) relativas à indemnização civil proferidas em processo penal é integralmente aplicável o regime dos recursos estabelecido no Código de Processo Civil.
[2] Curso de Processo Penal, 1996, volume I, p.111
[3] Ac.R.Évora de 6/4/2010; Ac.R.Coimbra de 12/12/2012 –dgsi.pt