Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
399/09.3TMLSB-A.L1-8
Relator: ILÍDIO SACARRÃO MARTINS
Descritores: ATRIBUIÇÃO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
DIVÓRCIO LITIGIOSO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/16/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: - Compete ao cônjuge que pretende que lhe seja atribuída a casa de morada de família alegar e provar que necessita mais que o outro da referida casa, sendo que a necessidade da habitação é uma necessidade actual e concreta (e não eventual ou futura), a apurar segundo a apreciação global das circunstâncias particulares de cada caso.
- A norma do artigo 1793º do Código Civil tem como objectivo fundamental proteger o ex-cônjuge mais atingido pelo divórcio quanto à estabilidade da habitação familiar.
- Na situação de divórcio litigioso, sendo a situação económica do ex-marido muito superior à da sua ex-mulher, vivendo esta com as duas filhas maiores num apartamento arrendado, é de atribuir a ela a casa de morada de família.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

I - RELATÓRIO:

I... deduziu contra F..., incidente de atribuição da casa de morada de família, pretendendo que seja alterado o acordo, celebrado à data da convolação dos autos de divórcio, ficando o imóvel atribuído a si e às suas filhas até à efectiva venda ou partilha.
Em síntese, alegou que acordou com o réu que este ficaria a viver naquela que foi a casa de morada de família até à venda, no pressuposto de que a venda seria realizada a curto prazo. Tal ainda não aconteceu por o requerido não facilitar o acesso ao imóvel, colocando obstáculos à venda. A requerente vive numa situação de precariedade laboral e com as duas filhas do casal, estudantes, totalmente dependentes. A filha mais velha tem problemas de saúde. O requerido tem um emprego estável que lhe permite auferir rendimentos suficientes a encontrar uma outra alternativa habitacional.
 
O réu deduziu oposição, arguindo a excepção do caso julgado, já que a questão foi apreciada no âmbito do processo de divórcio que constitui os autos principais.
Mais impugna que não tenha cooperado na venda do imóvel, defendendo que também ele quer vender a casa. Alega que a sua situação laboral é igualmente precária, trabalhando como fotógrafo, tendo rendimentos variáveis e incertos e suportando muitas despesas, designadamente as relativas à casa com a amortização do empréstimo, condomínio, seguros e impostos e ainda os consumos domésticos.
Termina pedindo que, caso não se julgue procedente a excepção do caso julgado, se julgue improcedente o pedido formulado pela autora, mantendo-se o acordo nos seus precisos termos e sendo a requerente condenada como litigante de má fé na quantia de €1.500,00 a pagar ao requerido a título de indemnização e multa condigna ao tribunal.

A autora vem responder à excepção deduzida e ao pedido de condenação como litigante de má fé.
Foi proferido despacho julgando improcedente a excepção deduzida.

Foi proferida SENTENÇA que atribuiu à autora a casa de morada de família sita na Rua ..., até à partilha definitiva ou venda do bem, pagando esta todas as despesas relativas ao mesmo, incluindo a prestação mensal devida pelo empréstimo hipotecário.
Indeferiu o pedido de condenação da requerente como litigante de má fé.

Não se conformando com a sentença, dela recorreu o réu, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES:

1ª - O recorrente discorda da douta sentença, porquanto não só a mesma considera a requerente uma pessoa carenciada e é com esse fundamento que lhe entrega a casa, "condenando-a" a pagar todas as despesas da mesma, o que esta não tem possibilidades de fazer, como foram omitidos factos fundamentais da matéria de facto, como sejam os encargos fixos totais da casa de morada de família, oportunamente demonstradas por documentos juntos aos autos.
2ª - A decisão recorrida não repõe a justiça entre os ex-cônjuges, porquanto obriga o requerido a sair da casa onde sempre viveu, sem nenhuma culpa da sua parte no insucesso de venda da mesma e também não é justa relativamente à requerente quando sobre ela faz recair os brutais encargos de um apartamento de dois pisos na periferia de Lisboa.
3ª - Os encargos da casa de morada de família são bastante superiores àqueles que a douta sentença recorrida dá como provados e nas quais fundamenta a sua decisão.
4ª - Além da prestação do crédito hipotecário, cujo valor varia constantemente, rondando os € 300 mensais, a casa de morada de família tem os respectivos custos fixos, todos devidamente comprovados por documentos respeitantes aos anos de 2011 e 2012, reconduzindo-se esses encargos ao valor mensal de € 258,79 (duzentos e cinquenta e oito euros e setenta e nove cêntimos).
5ª - Foi incorrectamente julgado o ponto 3.1.13 da resposta à matéria de facto, que deverá ter a seguinte redacção: O imóvel aqui em questão tem um encargo bancário mensal de € 302,85 que vem sendo suportado pelo requerido, bem como um prémio de seguro multi riscos no ano 2012 na importância anual de € 203,00; um encargo anual de seguro de vida junto da Ocidental Vida inerente ao crédito a habitação na importância anual no ano de 2011 de € 760,86; encargo com a tarifa de conservação de esgotos no ano de 2011 na importância anual € 221,99; encargo anual com o Imposto Municipal de Imóveis respeitante ao ano de 2011 na importância anual de € 1.078,24; encargo mensal com o condomínio da fracção na importância de € 70,12.
6ª -  A requerida não pode suportar esses custos, face aos rendimentos auferidos.
7ª - O cumprimento da sentença carece de aprovação pelo Millennium BCP, entidade que é credora do mútuo hipotecário e que, atendendo às frágeis condições financeiras da requerente, certamente que não irá aprovar esta alteração.
8ª - O requerido terá muito provavelmente que continuar a cumprir as obrigações atinentes à casa de morada de família.
9ª - Mesmo tendo o requerido direito de regresso sobre a requerente, pergunta-se que efeitos práticos terá esse ditame não auferindo sequer a requerente a retribuição mínima mensal garantida e não tendo quaisquer bens em seu nome.
10ª - A sentença recorrida pode com fortes possibilidades criar a seguinte situação: A requerente reside na casa, não paga as despesas total ou parcialmente porque não tem possibilidades para tal, e o requerido não só tem pagar as despesas da casa de morada de família afim de não incumprir os seus compromissos com o banco e outras entidades oficiais, e pôr assim em risco a própria casa de morada de família, como terá que suportar as despesas de uma nova casa que terá que arrendar, correndo o risco de ficar ele próprio em situação de carência económica.
11ª - A sentença recorrida funda a sua decisão em dois pressupostos que não se concretizam: o interesse dos filhos e a situação patrimonial dos ex-cônjuges.
12ª - Quanto ao interesse dos filhos, cremos que a doutrina e jurisprudência se referem aos filhos menores, o que claramente não é o caso.
13ª - A requerente não alega nem prova que as filhas estejam a frequentar algum tipo de formação profissional, o que seria requisito essencial para se manter a obrigação dos pais providenciarem pelo sustento dos filhos, nos termos do artigo 1880º do Código Civil.
14ª - Quanto à situação patrimonial dos ex-cônjuges, também não procedem os respectivos argumentos, porquanto a sentença parte de uma premissa errada: a de que as despesas com a habitação suportadas pela requerente são neste momento superiores às que irá ter com as despesas relativas à casa de morada de família, o que, como já se viu não é verdade, sucedendo exactamente o oposto: as despesas fixas de casa de morada de família são bastante superiores às da actual habitação arrendada da requerente.
15ª - Não colhem os pressupostos de alteração do regime da casa de morada de família, pelo que não pode proceder a respectiva alteração de regime.
16ª - Não há sequer alteração de circunstâncias nos pressupostos em que as partes fundaram o acordo do destino da casa de morada de família.
17ª - A sentença recorrida esquece-se que está pendente um inventário no mesmo processo como apenso B, pelo que a partilha do bem não tardará muito, mandando o bom senso que até lá se mantenha o status quo ante.
18ª - Não sendo assim, adivinha-se o pior dos cenários: a perda da casa de morada de família, por incumprimento ao Millennium BCP das respectivas prestações, porque o requerido não pode pagar duas casas e, consequentemente, a perda do investimento que o requerido fez nela, ou a venda ao desbarato de um bem que é a única riqueza das partes.
19ª - Atendendo ao disposto no artigo 987º do Código de Processo Civil, a solução mais conveniente e oportuna é a revogação da sentença recorrida, mantendo-se o regime de atribuição de casa de morada de família que antes vigorava, destinando-a a habitação do requerido até à sua partilha definitiva ou venda do bem, suportando este as respectivas despesas, o que tem vindo a fazer desde sempre.
Termina, pedindo que seja dado provimento ao recurso, revogando-se a sentença recorrida e alterando-se a matéria de facto dada como provada nos termos expostos.

A parte contrária contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

Colhidos os vistos, cumpre decidir:

II - FUNDAMENTAÇÃO:

A) Fundamentação de facto:

Mostra-se assente a seguinte matéria de facto:

1º – Requerente e requerido contraíram casamento civil em 29 de Julho de 1989, sem precedência de convenção antenupcial, no regime de comunhão de adquiridos.
2º - Tal casamento veio a ser dissolvido por divórcio nos autos principais, convolados para divórcio por mútuo consentimento, tendo as partes alcançado acordo a 15 de Abril de 2010, homologado por sentença proferida nessa mesma data, transitada em julgado.
3º - No acordo de atribuição da casa de morada de família, subscrito pelas partes nessa mesma data, ficou definido que tal bem sito na Rua ..., é bem comum do casal e casa de morada de família e que fica destinado à habitação do cônjuge marido até à partilha definitiva ou venda do bem, pagando este todas as despesas relativas ao mesmo, incluindo a prestação mensal devida pelo empréstimo hipotecário.
4º - Requerente e requerido combinaram colocar o bem imóvel à venda, tendo contratado os serviços de uma agência imobiliária – a Remax – que colocou o imóvel à venda por um período de seis meses.
5º - Volvidos os seis meses, porque não tinha sido possível encontrar comprador interessado, a requerente propôs ao requerido que houvesse mudança da agência imobiliária, ao que este anuiu, tendo ambos comparecido numa outra agência, também da Remax, que se propunha celebrar contrato de mediação, logo que as partes comprovassem que haviam rescindindo o contrato com a anterior agência.
6º -Nem a requerente, nem o requerido, comprovaram junto desta a rescisão do contrato de mediação com a anterior agência.
7º - A requerente exerce funções de maquilhadora como “free-lancer”, não tendo rendimentos certos, auferindo um valor mensal situado entre os € 350,00 e € 400,00.
8º - As filhas do dissolvido casal: F... nasceu a 11 de Janeiro de 1990 e M... nasceu a 21 de Dezembro de 1991 e integram o agregado da requerente.
9º - Embora maiores, não exercem actividade laboral, dependendo do auxílio dos seus progenitores.
10º - A filha mais velha, F..., padece de distúrbios psicológicos e de anorexia nervosa, sendo acompanhada em psiquiatria no Hospital de Santa Maria.
11º - A requerente solicitou ajuda à Santa Casa da Misericórdia, tendo beneficiado de um subsídio eventual em Dezembro de 2011, no valor de € 150,00, para fazer face às suas necessidades básicas.
12º - A requerente requereu à Câmara Municipal de Lisboa o benefício de acesso a habitação municipal, o qual lhe foi negado por a requerente ser co-proprietária de um bem imóvel.
13º -O imóvel aqui em questão tem um encargo bancário mensal de € 302,85 (trezentos e dois euros e oitenta e cinco cêntimos) que vem sendo suportado pelo requerido.
14º - O requerido suporta ainda as despesas correntes dos consumos domésticos realizados na casa de morada de família, de água, luz e gás, em montante não concretamente apurado e as despesas de condomínio e taxa de conservação de esgotos.
15º - O requerido contribui com uma prestação mensal de € 280,00 a favor de cada uma das filhas.
16º - A requerente paga de renda mensal da casa onde habita com as suas duas filhas, a quantia mensal de € 402.00 (quatrocentos e dois euros).
17º - A requerente acordou com o requerido que o mesmo ficava a residir na casa de morada de família convencida de que iriam proceder de forma rápida à venda do imóvel.
18º - O requerido é fotógrafo profissional, auferindo rendimentos variáveis mas que se situam num valor não inferior a € 1.500,00 por mês, tendo declarado no ano de 2011 às finanças, para efeitos de liquidação do IRS, que auferiu o rendimento global anual de €19.747,00.
19º - Requerente e requerido, no dia 19 de Agosto de 2011, denunciaram o contrato com a imobiliária que estava a comercializar o imóvel, mediante carta endereçada à “Remax – Alfragide”.

B) Fundamentação de direito:

As questões colocadas e que este tribunal deve decidir, nos termos dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2 do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, aplicável por força do seu artigo 5º nº 1, em vigor desde 1 de Setembro de 2013, são as seguintes:

- Matéria de facto incorrectamente julgada;
- A atribuição da casa de morada da família.

MATÉRIA DE FACTO INCORRECTAMENTE JULGADA:

Alega o apelante que o ponto nº 13 da Fundamentação de facto foi incorrectamente julgado, pois omitiu gastos fixos relevantes da casa de morada de família, todos devidamente documentados. Assim, propõe a seguinte redacção:
“O imóvel aqui em questão tem um encargo bancário mensal de € 302,85 que vem sendo suportado pelo requerido, bem como um prémio de seguro multi riscos no ano 2012 na importância anual de € 203,00; um encargo anual de seguro de vida junto da Ocidental Vida inerente ao crédito a habitação na importância anual no ano de 2011 de € 760,86; encargo com a tarifa de conservação de esgotos no ano de 2011 na importância anual € 221,99; encargo anual com o Imposto Municipal de Imóveis respeitante ao ano de 2011 na importância anual de € 1.078,24; encargo mensal com o condomínio da fracção na importância de € 70,12”.

A apelada contra-argumenta, dizendo que nenhuma prova documental foi produzida nos presentes autos.

Cumpre decidir:

Na fundamentação da resposta à matéria de facto e na parte que interessa foi referido que a decisão “assentou genericamente na análise crítica da prova documental junta aos e no depoimento das testemunhas inquiridas, conjugando estas provas com as regras da experiência”.

Esta matéria havia sido alegada pelo réu no artigo 40º da contestação, onde o protestou juntar os documentos comprovativos. Porém, não o fez, pois no seu requerimento de 29.05.2013, juntou apenas aos autos documentos relativos às despesas mensais de água, electricidade e gás, bem como cópia da declaração de IRS de 2001 e respectiva nota de liquidação – Cfr fls 132 a 145.
No que respeita aos documentos comprovativos das restantes despesas e que, no seu dizer, constituem “ gastos fixos relevantes da casa de morada de família” e que foram alegados no artigo 40º da contestação, no requerimento de 29.05.2013 o réu limitou-se a dizer que “já juntou com a relação de bens do apenso B toda a documentação descrita no artigo 40º da sua contestação nos presentes autos. Assim sendo, oferece o merecimento dos 17 documentos que juntou com a peça processual entregue no dia 20 de Junho de 2012, pelas 19.48, que atestam as despesas invocadas no já referido artigo 40º da contestação” – cfr fls 132.
A atribuição da casa de morada de família é um processo de jurisdição voluntária em que, nas providências a tomar, o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adoptar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna – Cfr artigos 990º e 987º do Código de Processo Civil.
Todavia, preceitua o nº 1 do artigo 986º que são aplicáveis aos processos regulados neste capítulo as disposições dos artigos 292º a 295º.
E o artigo 293º (Indicação das provas e oposição), preceitua no seu nº 1 o seguinte:
“No requerimento em que se suscite o incidente e na oposição que lhe for deduzida, devem as partes oferecer o rol de testemunhas e requerer os outros meios de prova”.
Não se mostrando junta tal prova documental, é evidente que o tribunal não poderia ter dado como provada a matéria alegada pelo réu no artigo 40º da contestação.

A ATRIBUIÇÃO DA CASA DE MORADA DA FAMÍLIA:

Requerente e requerido pretendem que lhe seja atribuída a casa de morada de família. A sentença recorrida atribuiu à requerente a casa de morada de família até à partilha definitiva ou venda do bem, pagando esta todas as despesas relativas à mesma, incluindo a prestação mensal devida pelo empréstimo hipotecário.

Cumpre decidir:

- No acordo de atribuição da casa de morada de família, subscrito pelas partes em 15 de Abril de 2010, ficou definido que a casa de morada de família, que é bem comum do casal fosse destinada à habitação do cônjuge marido até à partilha definitiva ou venda do bem, pagando este todas as despesas relativas ao mesmo, incluindo a prestação mensal devida pelo empréstimo hipotecário – (3º).
A única notícia dos presentes autos relativa à partilha é a que foi anunciada no despacho proferido a 03.07.2012 (fls. 88) e cujo teor é o seguinte:
“ Aguardem os presentes autos o decurso do prazo para a reclamação à relação de bens apresentada nos autos de inventário que se encontra agora a correr termos entre as partes como apenso B”.
Tal notícia levará a crer que, do ponto de vista processual, estará para breve a partilha dos bens do dissolvido casal e, consequentemente, a resolução do litígio ora em análise.
O artigo 990º do actual CPC, inserido no capítulo relativo aos processos de jurisdição voluntária, prevê, no âmbito das providências relativas aos filhos e aos cônjuges, o processo para atribuição da casa de morada de família, na sequência decretamento de divórcio.
O objecto deste incidente é a chamada “casa de morada de família”, conceito que é passível de ser integrado por elementos factuais, para poder ser concebido como tal, e que, na definição de Nuno Salter Cid[1], constitui residência permanente da mesma, ou seja, a residência permanente dos cônjuges e dos filhos, a sua residência permanente ou principal[2].
Refere Nuno de Salter Cid,[3] que “a família precisa, naturalmente, de um espaço físico que lhe sirva de base, de sede, de um local onde possa viver e conviver, e é de algum modo essa exigência que tem em vista o artº 65º nº 1 da C.R.P., ao reconhecer a todos, para si e para a sua família, o direito a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”, que, a propósito do conceito de casa de morada de família, escreve que “a expressão «casa de morada de família» é, no sentido comum imediato das palavras que a compõem, o edifício destinado a habitação, onde reside um conjunto de pessoas do mesmo sangue ou ligadas por algum vínculo familiar, e que «residência da família» é o lugar onde esse conjunto de pessoas tem a sua morada habitual, a sua sede.
Sendo a casa dos autos um bem comum dos cônjuges, prevê o nº 1 do artigo 1793º (Casa de morada da família) que pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer essa seja comum quer própria de outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal.
No caso de haver dúvidas podem tomar-se em consideração outras circunstâncias secundárias tais como os factos respeitantes à culpa no divórcio ou os relativos à ocupação da casa de morada de família[4]. Não se tratando de castigar o cônjuge culpado, muito menos se há-de querer premiá-lo[5].
Segundo os Profs. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira[6], o tribunal deve atribuir o direito de arrendamento da casa de morada de família ao cônjuge que mais precise dela, necessidade esta a inferir, por exemplo, da sua situação económica líquida, do interesse dos filhos, da idade e do estado de saúde dos cônjuges ou ex-cônjuges, da localização da casa em relação aos seus locais de trabalho, da possibilidade de disporem doutra casa para residência, e que só quando as necessidades de ambos os cônjuges ou ex-cônjuges forem iguais ou sensivelmente iguais haverá lugar para considerar a culpa que possa ser ou tenha sido efectivamente imputada a um ou a outro na sentença de divórcio ou separação judicial de pessoas e bens.
A questão suscitada pelo apelante consiste em saber se a sentença recorrida não lhe deveria ter atribuído a casa de morada de família, na continuação do acordo celebrado com a sua ex-mulher em 15 de Abril de 2010.
Assim, importa verificar se se mostram provados os pressupostos legais no âmbito da previsão do artigo 1793º do Código Civil: as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal.

As necessidades de cada um dos cônjuges:

Este é o primeiro facto que a lei manda considerar, havendo que ter em conta também, se for caso disso, a posição que cada um dos cônjuges fica a ocupar, depois da dissolução do casamento, em face do agregado familiar[7].

Dos critérios a ter em conta há que destacar a situação patrimonial dos cônjuges, as circunstâncias de facto relativas à ocupação da casa e à culpa na separação ou no divórcio
A questão da culpa não se coloca, já que o divórcio foi convolado para mútuo consentimento.

Vejamos então os outros factores.

A situação patrimonial dos cônjuges e as circunstâncias de facto relativas à ocupação da casa:

O tribunal deve atribuir o direito de arrendamento da casa de morada de família ao cônjuge que mais precise dela, necessidade esta a inferir, por exemplo, da sua situação económica líquida, do interesse dos filhos, da idade e do estado de saúde dos cônjuges ou ex-cônjuges, da localização da casa em relação aos seus locais de trabalho, da possibilidade de disporem doutra casa para residência.
O artigo 1793º do Código Civil visa a protecção da casa de morada de família e do cônjuge ou ex-cônjuge que mais seria atingido pelo divórcio ou pela separação quanto à estabilidade da habitação familiar, não se destinando, pois, a sancionar o culpado pelo divórcio ou a compensar o inocente, nem a nela manter ou dela expulsar o cônjuge ou o ex-cônjuge que nela está, nem a expulsar um para nela ficar o outro[8].
Como já se disse, o objectivo fundamental é proteger o ex-cônjuge mais atingido pelo divórcio quanto à estabilidade da habitação familiar.

Feitas estas considerações preliminares, vejamos o caso concreto:
- Requerente e requerido casaram um com o outro em 29.07.1989, tendo o casamento sido dissolvido por divórcio por mútuo consentimento de 15 de Abril de 2010.
- Têm duas filhas, F... e M..., nascidas, respectivamente, em 11.01.1990 e 21.12.1991, que não exercem qualquer actividade laboral, dependendo do auxílio dos seus progenitores.
- No acordo de atribuição da casa de morada de família, subscrito pelas partes nessa mesma data, ficou definido que tal bem é bem comum do casal e casa de morada de família e que fica destinado à habitação do cônjuge marido até à partilha definitiva ou venda do bem, pagando este todas as despesas relativas ao mesmo, incluindo a prestação mensal devida pelo empréstimo hipotecário.
- O requerido é fotógrafo profissional, auferindo rendimentos variáveis mas que se situam num valor não inferior a €1.500,00 por mês, tendo declarado no ano de 2011 às Finanças, para efeitos de liquidação do IRS, que auferiu o rendimento global anual de €19.747,00.
- A requerente exerce funções de maquilhadora como “free lancer”, não tem rendimentos certos, auferindo um valor mensal que se situa entre os € 350,00 e € 400,00.
- O requerido contribui com uma prestação mensal de € 280,00 a favor de cada uma das filhas.
- A requerente paga de renda mensal da casa onde habita com as suas duas filhas, a quantia mensal de € 402.00.
Compete ao cônjuge que pretende que lhe seja atribuída a casa de morada de família alegar e provar que necessita mais que o outro da referida casa sendo que a necessidade da habitação é uma necessidade actual e concreta (e não eventual ou futura), a apurar segundo a apreciação global das circunstâncias particulares de cada caso.

A sentença recorrida considerou que, face à condição sócio-económica que ficou demonstrada, ponderando todas as circunstâncias envolventes, e designadamente as necessidades habitacionais de cada um dos cônjuges, afigura-se-nos que há um claro desequilíbrio entre as necessidades da requerente e as do requerido, em que as da requerente são muito mais significativas, por ter as filhas na sua dependência e a integrar o seu agregado familiar e que as necessidades deste agregado, no seu todo, justificam a atribuição de uma casa com as características da casa de morada de família.
É manifesto que a sentença não merece qualquer censura, pois, no quadro factual acima referido, a integração dos factos apurados nos critérios legais não aponta para a resolução do diferendo a favor do requerido.

O interesse dos filhos do casal:

Quanto ao interesse das filhas, apesar de não serem menores, ainda estão na dependência económica dos progenitores, e a residirem ambas com a apelada, o que constitui um elemento a considerar pelo tribunal na avaliação da premência da necessidade da casa por parte desta, interferindo os interesses das filhas na regulação do caso, fazendo com que o tribunal não pondere apenas os interesses da requerente e do requerido.

Finalmente, relevam complementarmente outras circunstâncias que envolvem a fracção em causa. Colocando o acento tónico no factor ligado à necessidade absoluta ou relativa da casa como local que possa ser destinado à habitação da requerente ou do requerido, a balança pende, efectivamente, para os interesses da requerente.
Dir-se-á ainda que, estando as partes divorciadas desde 15 de Abril de 2010, nada justifica que persista entre ambos a situação de indivisão da fracção, enquanto um e outro se digladiam sobre quem deverá habitar a fracção, com perturbação nas esferas jurídico-pessoais de cada um, com especial destaque para a requerente. Impõe-se, pois, a urgência da partilha a realizar no apenso B, com a evidente conveniência na resolução definitiva da questão através da divisão do património comum.

SÍNTESE CONCLUSIVA:

- Compete ao cônjuge que pretende que lhe seja atribuída a casa de morada de família alegar e provar que necessita mais que o outro da referida casa, sendo que a necessidade da habitação é uma necessidade actual e concreta (e não eventual ou futura), a apurar segundo a apreciação global das circunstâncias particulares de cada caso.
- A norma do artigo 1793º do Código Civil tem como objectivo fundamental proteger o ex-cônjuge mais atingido pelo divórcio quanto à estabilidade da habitação familiar.
- Na situação de divórcio litigioso, sendo a situação económica do ex-marido muito superior à da sua ex-mulher, vivendo esta com as duas filhas maiores num apartamento arrendado, é de atribuir a ela a casa de morada de família.

III - DECISÃO: 

Atento o exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.


Lisboa,  16/04/2015

Ilídio Sacarrão Martins
Teresa Prazeres Pais
Isoleta de Almeida Costa


[1] A Protecção da Casa de Morada de Família no Direito Português, página 38.
[2] Tomé d’Almeida Ramião, “ O Divórcio e Questões Conexas, Regime Jurídico Actual”, Quid Júris, 2009, pág. 123.
[3]  Ob cit, pág. 26.
[4]  Neste sentido o Ac. RL de 19.02.2008, in CJ I/2008, pág. 111.
[5]  Ac RP de 21.05.2002, Processo nº 0220648, in www.dgsi.pt.
[6]  Curso de Direito da Família, Vol I, 3ª edição, pág. 721 e segs.
[7]  Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume IV, 2ª Edição, pág. 570.
[8]  Pereira Coelho e Guilherme Oliveira Martins, ob, cit, págs. 720, 725 e 726; Ac STJ de 16.12.1999, in www.dgsi.pt e Ac. RE de 24.02.94, in CJ I/94, pág. 286.