Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2050/13.8TVLSB-A.L1-1
Relator: RIJO FERREIRA
Descritores: DISPENSA DE SIGILO BANCÁRIO
GARANTIA BANCÁRIA AUTÓNOMA
INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS
PUBLICIDADE DO PROCESSO
TAXA DE JUSTIÇA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/29/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I.O sigilo bancário é estabelecido em benefício dos cidadãos clientes directos dos bancos, em benefício de terceiros (clientes indirectos) e também em benefício da própria actividade bancária (confiança no sistema financeiro)
II.A dispensa do sigilo bancário é uma situação excepcional, sujeita a apreciação casuística segundo critérios restritivos, só se justificando se necessária e proporcional.
III.É de dispensar o sigilo bancário relativamente ao processo negocial que procedeu a sua emissão quando está em causa apurar a natureza autónoma ou não de garantia bancária porquanto o mesmo é necessário para apurar os critérios de interpretação do contrato e não se mostra desproporcionada a compressão daí resultante para os interesses protegidos pelo sigilo bancário.
IV.A informação divulgada na sequência da dispensa do sigilo bancário deve ficar apenas acessível às partes e para efeitos do processo, sendo excluída da publicidade do processo.
V.A taxa de justiça visa o financiamento do serviço prestado, a regulação da utilização do sistema e a redistribuição de encargos pelo que na determinação do seu montante, quando variável, o juiz deve também ter em consideração a capacidade contributiva evidenciada pelas partes.

(Sumário elaborado pelo Relator)

Decisão Texto Parcial: Acordam os Juizes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


NESTE INCIDENTE DE DISPENSA DE SIGILO BANCÁRIO
ENTRE:

...International LLC
E
...Group LP
Requerentes.


CONTRA:


... Suplly...,SA
E
... Portugal... e Transporte Ldª
E
Caixa Económica... Geral
E
Banco... Português,SA
Requeridos.


I–Relatório:

As Requerentes intentaram contra as Requeridas acção declarativa de condenação na qual se discute, entre outras questões a natureza autónoma ou não de garantias bancárias prestadas, a pedido da 1ª Requerida, pelos 3º e 4º Requeridos em benefício das Requerentes.

Cientes dessa controvérsia logo na Réplica as Requerentes solicitaram a notificação da 1ª Requerida para juntar “cópia de toda a documentação trocada entre a Ré ... e as RR. BCP e ..., através da qual a primeira solicitou a cada uma destas a emissão das garantias bancárias objeto dos presentes autos, desde a data da primeira comunicação entre as partes para o efeito até 15 de Fevereiro de 2012, nomeadamente, (mas não exclusivamente), a documentação que contenha (i) o pedido de emissão das garantias; (ii) troca de minutas do documento entre as partes; (iii) indicação de custos de emissão das garantias a ser cobrados pelas RR. BCP e ... à Ré ...; e (iv) demais documentação trocada entre as partes para o efeito”.

Na sequência do prazo concedido para o efeito na audiência prévia veio a ser junta aos autos diversa documentação, tendo tribunal vindo a reconhecer que a mesma sofria de deficiência (designadamente de ordenação), a qual deveria ser corrigida.

Pronunciando-se sobre os documentos apresentados as Requerentes requereram se ordenasse “aos RR. BCP e ..., a junção da totalidade da documentação interna (dossier interno) que serviu de base à emissão das referidas garantias bancárias, desde a data de entrada das propostas de garantia bancária subscritas nesse sentido pela R. ... até à sua efetiva emissão, aqui incluída, toda a documentação que serviu de base à apreciação das referidas propostas, definição das condições contratuais, nomeadamente no que respeita à remuneração dos Bancos pela emissão das garantias, incluindo pareceres internos dos departamentos competentes, até à sua aprovação final e respetiva emissão”.

Sobre tal requerimento o tribunal pronunciou-se nos seguintes termos:
A prova documental pretendida, a existir, está na posse dos bancos.
A documentação interna referente ao processo negocial que levou à emissão das garantias bancárias (que é aquilo que se pretende que seja junto) releva evidentemente para o conhecimento do mérito da causa, como instrumental para o apuramento da vontade das partes expressa posteriormente nos documentos que titulam as declarações de vontade expressas nas garantias.
Portanto, existe todo o interesse na sua junção aos autos.
Sem prejuízo, é legítima a recusa da sua junção, ao abrigo da invocação do sigilo bancário (Art. 78º do R.G.I.C.S.F., aprovado pelo Dec.Lei n.º 298/92 de 31/12). Mas a R. ... pode dispensar esse sigilo, devendo desde já declarar se autoriza ou não essa pretensão.
Caso não autorize, as A.A. terão que lançar mão do incidente próprio, por requerimento a autuar por apenso e dirigido ao Tribunal da Relação de Lisboa (Art.s 417º n.º 4 do C.P.C. e 135º do C.P.P.)”.

A 1ª Requerida opôs-se a pretensão das Requerentes invocando que se não verificam condições de excepcionalidade que justifiquem a dispensa do sigilo bancário, dado que a documentação junta não só é suficiente para espelhar a vontade das partes na emissão das garantias como no texto destas nada foi acrescentado ao texto que foi previamente acordado com as Requerentes.

II–Questões a Resolver.

Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.

De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.

Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.

Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, a questão a resolver é a de saber se deve ou não ser dispensado o sigilo bancário relativamente aos documentos em causa.

III–Fundamentos de Facto.

A factualidade relevante é a constante do relatório deste acórdão, para o qual se remete.

IV–Fundamentos de Direito.

Segundo o art.º 417º, nºs 1 e 3, al. c), do CPC, todas as pessoas têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade salvo se tal colaboração importar violação do segredo profissional. Deduzida escusa com tal fundamento remete o mesmo artigo para o procedimento regulado no CPP, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa.

Dessa aplicação subsidiária do artº 135º do CPP resulta que invocada a escusa compete ao juiz do processo onde ela é invocada aferir da sua legitimidade. Caso conclua pela ilegitimidade da escusa ordena a prestação da colaboração; caso contrário reconhece que a colaboração não pode ser prestada.

Pode, no entanto, o tribunal superior àquele onde foi invocada a escusa, dispensar o segredo profissional, ordenando a prestação de colaboração com quebra do mesmo, sempre que tal se mostre justificado segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente a imprescindibilidade da colaboração para o apuramento dos factos, a relevância do litígio e a necessidade de protecção de bens jurídicos.

Resulta dos normativos citados que a dispensa do sigilo profissional é desde logo uma situação excepcional e por consequência sujeita a apreciação casuística e segundo critérios restritivos; por outro lado, que ela apenas se justifica se for necessária (por ser de utilidade manifesta para o apuramento dos factos) e proporcional (quer relativamente à relevância do litígio, quer relativamente ao sacrifício imposto aos valores protegidos pelo segredo, num balanceamento dos interesses em conflito que deverá compor entre eles uma concordância prática entre eles, tendo como limite referencial o núcleo essencial de todos esses interesses.

No caso concreto dos autos já foi reconhecido pelo juiz do processo que a documentação cuja junção foi requerida se encontra coberta pelo segredo bancário; decisão essa que, por transitada, se impõe a este Tribunal da Relação; pelo que apenas haverá de apreciar se ocorre justificação para afastar esse segredo.

Está em causa determinar a natureza autónoma ou não de garantias bancárias em que os termos literais utilizados na sua formulação são dúbios pois que tanto usam a expressão ‘on first demand’ como a expressão ‘it shall pay to the Beneficiaries, or to any of them, for one or more times, always upon prior written notice sent by the Beneficiaries to the Bank’ (abrindo espaço à discussão se são ou não expressões equivalentes”, mas também afirmam que ‘the bank hereby declares itself jointly and severally responsible with the Buyer as per the terms of the article 638 of the Portuguese Civil Code (benefício da excussão prévia)’.

Na interpretação dessas garantias importa, assim, sobremaneira conhecer qual era a vontade real dos intervenientes na sua emissão (art.º 236º, nº 2, do CCiv) e, subsidiariamente, todas as circunstâncias que rodearam a emissão das garantias de forma a poder determinar com a maior minúcia possível a ‘posição’ (cf. art.º 236º, nº 1 do CCiv) em que devemos situar o normal declaratário que irá servir de guia da interpretação dessas mesmas garantias. E para isso surge como manifestamente relevante o conhecimento de todas as vicissitudes do itenário negocial, designadamente aqueles que se encontram evidenciadas em suporte físico por terem sido elaboradas de forma escrita.

O acesso à documentação em causa afigura-se, pois, como necessário para a boa administração da justiça do caso concreto.

Resta aferir se no balanceamento entre as necessidades da boa administração da justiça e os interesses protegidos pelo sigilo bancário o acesso à documentação em causa se afigura como proporcional.

O sigilo bancário é estabelecido em benefício dos cidadãos clientes directos dos bancos (para protecção do seu bom nome, reputação e reserva da vida privada), mas também em benefício de terceiros, clientes indirectos (clientes da actividade embora não da instituição) e em benefício da própria actividade bancária para a qual a confiança e discrição são elementos basilares (funcionamento das instituições bancárias).

Ora no caso dos autos a informação a que se pretende aceder está claramente delimitada a uma concreta operação bancária, havendo uma coincidência entre os intervenientes nessa operação e as partes na acção o que leva a concluir que a circulação da informação não extravasará os limites dos directamente interessados mantendo-se num círculo relativamente íntimo, não se vislumbrando a possibilidade de dano grave, extravasante do equilíbrio justificado pelas necessidades de boa administração da justiça, para os interesses que se visam salvaguardar. Pelo contrário, afigura-se que a disponibilização da informação em causa realiza adequadamente uma concordância prática entre todos os valores em causa.
    
V–Decisão.
Termos em que, deferindo ao requerido, se dispensa, na acção de que este incidente é apenso, o sigilo bancário relativo à totalidade da documentação interna (dossier interno) que serviu de base à emissão das referidas garantias bancárias, desde a data de entrada das propostas de garantia bancária subscritas nesse sentido pela 1ª Requerida até à sua efectiva emissão, aqui incluída, toda a documentação que serviu de base à apreciação das referidas propostas, definição das condições contratuais, nomeadamente no que respeita à remuneração dos Bancos pela emissão das garantias, incluindo pareceres internos dos departamentos competentes, até à sua aprovação final e respectiva emissão, devendo o 2º e 3º Requeridos juntar a mesma aos autos em 30 dias.
Custas pelos 1º e 4º Requeridos, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC’s.

II.Da transcrita decisão reclamaram para a conferência os 1º, 3º e 4º Requeridos invocando, em síntese:
1)Erro nos pressupostos de facto dado que as garantias prestadas não contêm a expressão ‘on first demand’;
2)Errada ponderação dos interesses em causa por não ponderar a possibilidade de divulgação de informação sensível, designadamente a posição financeira global do grupo;
3)E não ser seguro que a informação disponibilizada fique circunscrita às partes dado o processo ser público;
4)A decisão reclamada violar por isso os artigos 26º e 18º da Constituição da República (aqui apenas o 1º Requerido);
5)Ser injustificada a fixação da taxa de justiça pelo máximo;
6)Não dever ser condenado em custas por não ter dado causa ao incidente (aqui apenas os 3º e 4º Requeridos).

A parte contrária, respondendo à reclamação da 1ª Requerido, defende a improcedência da reclamação.

III.Entende o Tribunal que a decisão lavrada pelo relator é de manter, por concordar inteiramente com os respectivos fundamentos e considerar insubsistentes os fundamentos das reclamações.

Com efeito:

Em parte alguma da decisão reclamada se afirma que a expressão ‘on first demand’ consta do texto das garantias prestadas, mas apenas que na sua formulação (esta entendida como os diversos documentos que levaram à elaboração dessas garantias, como os próprios reclamantes reconhecem na sua alegação) surge essa expressão, a par de outras, de sentido equivalente ou contraditório, que tornam dúbio o sentido preciso dessa declaração, o que exige um esforço interpretativo complexo, para o que o acesso à documentação em causa se mostra assaz pertinente.

A possibilidade de divulgação de informação sensível, em particular a posição financeira global do grupo, para além de questão nova porque não invocada na oposição, não se afigura relevante na medida em que a posição financeira das sociedades é matéria sujeita a publicidade uma vez que estas estão obrigadas a publicitar as suas contas e também porque dizendo a informação respeito à situação financeira de 2012 não se vislumbra que a sua divulgação possa vir a divulgar qualquer informação sensível. Por outro lado, e fundamentalmente, tendo em conta a própria natureza do negócio subjacente à emissão das garantias não é crível que esse informação não tivesse sido solicitada e acedida pelos Requerentes, pelo que se não vislumbra que possam vir a ceder a algo que não conhecessem já.

A publicidade do processo civil não é irrestrita, como resulta expressamente da parte final do nº 1 (“salvas as restrições previstas na lei”) e do nº 2 (“revele interesse atendível”) do art.º 163º do CPC. E os casos de dispensa de sigilo configuram, em nosso entender, uma daquelas situações em que não há lugar à publicidade do processo; a dispensa do sigilo é para efeito da boa decisão da causa e a informação divulgada ao abrigo dessa dispensa deve ficar apenas acessível às partes e para efeitos do processo. Isso mesmo se induz do disposto no art.º 418º do CPC.

Em função do que vem dito não se afigura ocorrer qualquer violação dos preceitos constitucionais, designadamente dos artigos 18º e 26º da Constituição, nem a reclamante consubstancia tal invocação, que assim, se configura apenas como abertura da via de acesso a recurso de constitucionalidade como instrumento de protelamento do trânsito em julgado da dispensa de sigilo bancário.

É hoje consensual, mesmo a nível da jurisprudência constitucional, que as taxas (incluindo a taxa de justiça) incorporam uma tríplice função: financiamento do serviço, regulação da utilização do sistema e redistribuição de encargos. Esta última função faz apelo a que se exija uma maior contribuição por parte de quem evidencia maior capacidade contributiva, ou seja, e num português mais ‘plano’, que ‘quem mais tem, mais pague’. Nesse contexto afigura-se-nos que em face da capacidade contributiva evidenciada pelas partes, em particular por estar em causa um negócio que envolve valores de cerca de 3 milhões de euros seja proporcional exigir como taxa de justiça, respeitando os valores da respectiva tabela (e que é para aplicar em toda a sua extensão), a quantia de 510,00 euros. Desproporcional seria cobrar a essa situação o mesmo que se cobraria em idêntico incidente em que esteja em causa um valor de duas ou três centenas de milhares de euros.

Para além do referido circunstancialismo, e por último, haverá igualmente de considerar-se que a condenação em custas proferida foi solidária, pelo que a quantia fixada não deve a final ser exclusivamente suportada por um só dos condenados. A invocação de exagero na fixação da taxa de justiça na presente situação afigura-se assim como verdadeiro despautério.

O 3º Requerido não foi condenado em quaisquer custas, pelo que não se compreende que reclame de uma condenação que não sofreu.

O princípio fundamental em matéria de custas é que estas devem ser suportadas por quem dá causa ao processo ou dele tira proveito, no sentido de que as custas devem ser imputadas a quem tornou necessário (pelo seu comportamento ou porque pretende obter um benefício) o recurso ao processo judicial; isso independentemente de ter ou não deduzido oposição no respectivo procedimento. No caso concreto dos autos a necessidade de dedução do presente incidente adveio da expressa arguição do sigilo bancário por banda do 4º Requerido (cf. pág. 2034 do histórico do processo principal) seguida da não autorização do seu levantamento por parte do 1º Requerido (cf. pág. 2144 do histórico do processo principal), que assim se tornaram responsáveis pelas custas do incidente a que deram causa.

IV.-Decisão:

Termos em que se decide indeferir as reclamações, confirmando a decisão reclamada, corrigindo-se, no entanto, o manifesto lapso de escrita constante da decisão singular ora confirmada no sentido de a injunção nela cominada ser dirigida aos 3º e 4º Requeridos (e não 2º e 3º Requeridos, como dela constante).

Cada um dos reclamantes vai condenado nas custas da respectiva reclamação, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s para cada uma das reclamações.



Lisboa, 29NOV2016


                                                                      
(Rijo Ferreira)
(Afonso Henrique)                                                                      
(Rui Vouga)


Decisão Texto Integral: