Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
568/20.5T8MTJ.L1-7
Relator: DIOGO RAVARA
Descritores: FERRAMENTAS INFORMÁTICAS
GOOGLE MAPS
STREET VIEW
UTILIZAÇÃO PELO JULGADOR
OBSERVÂNCIA DO CONTRADITÓRIO
NULIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I. A utilização, pelo Juiz, na fase de instrução e julgamento da causa, das ferramentas informáticas Google Maps e Street View, disponíveis na internet, configura uma forma de prova por inspeção.
II. Na utilização de tais ferramentas, ainda que oficiosa, nos termos supra expostos deve o Tribunal observar os princípios processuais que presidem à produção de prova, desde logo o princípio da audiência contraditória, consagrado (art.º 415º do Código de Processo Civil).
III. A utilização das ferramentas acima aludidas, nos termos ali expostos, sem observância do disposto nos art.ºs 415º, 491ºe 493º do CPC configura uma nulidade processual, decorrente da omissão de atos e formalidades legalmente prescritos, visto que tais irregularidades podem influir na decisão da causa, sempre que o facto averiguado com recurso a tais ferramentas seja de qualificar como facto essencial (art.º 195º, nº 1, do Código de Processo Civil).
IV. Quando o tribunal profere uma decisão depois da omissão de um ato obrigatório, tendo essa omissão relevância para o exame ou decisão da causa verifica-se não só uma nulidade secundária (art.º 195º do CPC), mas também a nulidade da decisão, por excesso de pronúncia (art.º 615º, nº 1, al. d)), uma vez que, ao proferir tal decisão, o Tribunal que conhece de matéria de que, naquelas circunstâncias, não podia apreciar.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório
A e B  intentaram ação declarativa de condenação com processo comum contra Seguradoras Unidas, S.A., pedindo a condenação desta a pagar-lhes as seguintes quantias:
a €4.796,59, a título de indemnização por danos patrimoniais decorrentes da reparação da sua viatura automóvel;
b) €760,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais decorrentes da privação do uso da mesma viatura, pelo período de 119 dias;
c) €1.000,00, a título de danos morais sofridos pela autora;
d) Juros de mora sobre todas as quantias peticionadas à taxa legal, desde a citação, até efetivo pagamento.
Subsidiariamente, e para o caso de não procederem os pedidos referidos em a) e b), peticionaram os autores a condenação da ré a pagar-lhes a quantia de €4.215,00, a título de indemnização pela perda total do veículo.
Para tanto alegaram, em síntese, que nas circunstâncias de tempo, de lugar e de modo que descreveram, o veículo automóvel ligeiro, propriedade do autor e conduzido pela autora, foi embatido e arrastado pelo veículo automóvel pesado segurado pela ré, conduzido por MB, tendo o acidente ocorrido na sequência de uma manobra de ultrapassagem mal calculada. Mas sustentaram que e que, sendo este o condutor do veículo pesado o único e exclusivo responsável pelo acidente de viação, e tendo eles, autores sofrido danos patrimoniais e não patrimoniais, lhes assiste direito a verem tais danos ressarcidos.
Citada a ré, a mesma contestou, impugnando os factos e conclusões de Direito invocados pelos autores na petição inicial, sustentando que o acidente ocorreu por culpa exclusiva da autora, e concluindo pela total improcedência da ação.
Dispensada a realização de audiência prévia, foi proferido despacho saneador, realizou-se audiência final, após o que foi proferida sentença, absolvendo a ré de todos os pedidos.
Inconformados, os autores interpuseram o presente recurso de apelação, invocando diversas nulidades da sentença apelada, e pugnando pela sua revogação e consequente condenação da ré nos pedidos que haviam formulado.
A apelada contra-alegou, pugnando pela improcedência da apelação e consequente confirmação da sentença apelada.
Admitido o recurso, e remetido o mesmo a este Tribunal, o relator proferiu despacho convidando os apelantes a aperfeiçoarem as conclusões de recurso, no sentido da redução da sua extensão.
Correspondendo a tal convite, os apelantes apresentaram as seguintes conclusões[1]:
I - A Douta Sentença recorrida encontra-se ferida por diversas Nulidades Insanáveis as quais inviabilizam a produção dos seus efeitos jurídicos no caso sub judice.
II - Deste modo, verifica-se o preceituado no disposto no artigo 615.º, n.º 1 do C.P.C., alíneas b), c) e d) respetivamente.
III - No dia 14 de Outubro de 2020, após a fase dos articulados foi proferido douto despacho pelo Meritíssimo Juiz do Tribunal “a quo” entendendo ser de aplicar ao processo o regime legal constante do artigo 597.º do C.P.C. (Ref.ª Citius 399488123);
IV - Não foi dado cumprimento ao disposto nos artigos 590.º, 591.º, 592.º, 593.º, 596.º e 597.º do C.P.C.;
V - Não foi convocada pelo Tribunal “a quo” a realização de Audiência Prévia ou por aquele justificada a sua dispensa, sendo tal obrigatório.
VI - Não foi proferido despacho destinado a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova, conforme legalmente se impunha.
VII - O presente processo não reveste manifesta simplicidade.
VIII - O Tribunal “a quo” não proferiu despacho sobre as supra referidas matérias, sendo que tal omissão constitui uma GRAVE VIOLAÇÃO DA LEI, e do disposto nos artigos 596.º e 597.º, do C.P.C. inviabilizando o exercício de direitos fundamentais pelos Recorrentes.
IX - O Tribunal “a quo” ao determinar a aplicabilidade do regime jurídico constante no artigo 597.º, não identificou as alíneas aplicáveis ao caso sub judice.
X - O “regime jurídico especial” e inovador contido no artigo 597º, do C.P.C., ainda que inspirado no princípio da adequação formal, não permite que o Tribunal “a quo” derrogue o disposto nos artigos 591.º, 592.º, 593.º, 596.º e alíneas a) a g) do artigo 597.º do C.P.C.
XI - Os recorrentes apenas tiveram conhecimento dos factos relevantes para a decisão da causa com a prolação da sentença recorrida, o que torna NULO e de nenhum efeito o despacho proferido com as inerentes consequências legais.
XII - O Tribunal “a quo” com relevância para a decisão da causa deu como provados os factos contantes dos pontos 1. a 33. da decisão sobre a matéria de facto, expressa na douta sentença e para a qual se remete, dizendo relativamente aos factos não provados o seguinte: “…”.
XIII - O Tribunal “a quo” não fundamentou os factos não provados os quais são enunciados de forma vaga e genérica.
XIV - Os recorrentes foram objeto de uma DECISÃO SURPRESA já que apenas tomaram conhecimento dos factos não provados com a notificação da douta sentença.
XV - O Tribunal “a quo” ao não identificar os temas da prova e objeto do litígio, inviabilizou que os recorrentes tivessem conhecimento dos factos a provar.
XVI - O Tribunal “a quo” errou ao não dar como provado que o local do acidente ocorreu na A33 ao km 31.9 conforme afirmado no artigo 1º e 2º da P.I.
XVII - A recorrida expressamente aceitou e não impugnou os factos contantes dos artigos 1º e 2º da P.I., conforme resulta do artigo 2º da sua Contestação como segue:
(…)
XVIII - O Meritíssimo Juiz do Tribunal “a quo” ERROU já que na fundamentação dos factos provados com relevância para a decisão da causa deu como provado sob o artigo 1º os seguintes factos:
(…)
XIX - O acidente entre as duas viaturas ocorreu ao KM 31.900 e na A33, sendo certo que o km 31.900 não é ladeado por qualquer via de acesso à A33.
XX - O Agente da GNR NEC testemunha arrolada pelas partes, confirmou perentoriamente nas suas declarações em sede Audiência de Julgamento que o acidente ocorreu ao KM 31.900.
XXI - O referido agente, foi dos primeiros a chegar ao local do acidente sendo responsável pelas medições, recolha de vestígios na via, fotografias e recebimento das declarações prestadas pelos 2 condutores.
XXII - O Tribunal “a quo” não fundamenta com rigor e precisão os factos considerados como não provados já que após elencar os factos provados, limitou-se a dizer o seguinte:
(…)
XXIII - A decisão, relativa aos factos não provados, é omissa na fundamentação, consubstanciando a NULIDADE DA SENTENÇA proferida pelo Tribunal “a quo”, nos termos do disposto nos art.ºs 607º, nº 4, e 615º, nº 1, als. c) e d) do Código de Processo Civil, a qual desde já se invoca   com todos os efeitos legais.
XXIV - Neste sentido o acórdão do S.T.J. proferido em 26-02-2019, no Proc. Nº 1316/14.4TBVNG-A.P1.S2, in bases jurídico documentais dgsi.pt.
XXV - O Tribunal “a quo” não se pronunciou relativamente à prova por inspeção judicial requerida pelos recorrentes conforme afirmara no despacho proferido em 14/10/2020 (Ref.ª Citius399488123).
XXVI - O Meritíssimo Juiz do Tribunal “a quo”, na motivação da douta sentença, desvaloriza o “croqui” elaborado pelo agente da GNR NEC e o seu testemunho, sem fundamento.
XXVII - O único relatório técnico abordando a dinâmica do acidente de viação foi junto pelos recorrentes aos autos, o qual foi elaborado pelo técnico NEC com formação em acidentes de viação, estando aí devidamente fundamentados os factos relativos à dinâmica do acidente, o qual foi desvalorizado pelo Tribunal “a quo” sem fundamento.
XXVIII - A decisão sobre a matéria de facto é repleta de juízos conclusivos, incertezas, probabilidades, constituindo uma frágil narrativa, sem rigor técnico, afastando-se notoriamente dos factos e provas produzidas em juízo conforme se cita:
(…)
XXIX - O Tribunal “a quo” ao não se pronunciar sobre a requerida prova por inspeção judicial preteriu uma formalidade essencial, encontrando-se a douta sentença ferida de nulidade por OMISSÃO DE PRONUNCIA, violando o disposto nos artigos 607.º e 615.º, n.º 1, al. d) do C.P.C. e o artigo 20º da CRP.
XXX - O Tribunal “a quo” na motivação da sua decisão e convicção sobre os factos provados números 1 a 7, 10, 13, 16, 17, 18, 20, 21, 27 e 31 a 33 não podia socorrer-se da observação da auto estrada e nas medições feitas com recurso à ferramenta de medição disponível no “Google Maps”.
XXXI - Tal meio de prova não foi requerido pelas partes sendo certo que as imagens correspondentes à observação da auto-estrada, medições com recurso à ferramenta de medição disponível no “Google Maps”, não se encontram junto aos autos.
XXXII - Os Recorrentes não foram informados de como, onde, e quando foram efetuadas tais diligências, não se encontrando atualizadas as imagens à data da ocorrência do acidente ou identificado o ano a que se reportam.
XXXIII - As observações efetuadas com o recurso ao “Google Maps”, tiveram influência direta no julgamento efetuado pelo Tribunal “a quo” sendo tal meio de prova NULO e de nenhum efeito tornando nula a douta sentença proferida.
XXXIV - O Tribunal “a quo” deu, como provados os seguintes factos:
(...)
XXXV - O Tribunal “a quo” equivocou-se já que parte da matéria de facto dada como provada não teve suporte na prova produzida e encerra contradições intrínsecas e insanáveis.
XXXVI - Os factos constantes dos artigos 1º, 2º, 8º, 9º, 11º, 12º e 19º da decisão sobre a matéria de facto devem ser considerados como não provados.
XXXVII - Os factos constantes dos artigos 1º a 36º da Petição Inicial devem ser dados como provados.
XXXVIII - O Tribunal “a quo” errou na apreciação da prova produzida sobre a matéria de facto, não valorando como devia a prova junta aos autos, verificou-se ainda erro de Julgamento e erro na aplicação da matéria de direito.
XXXIX - A decisão proferida sobre a matéria de facto e direito deve ser revogada.
XL - Em consequência deve ser proferida outra decisão pelo Tribunal “ad quem” que julgue a acção intentada pelos recorrentes totalmente procedente por provada.
XLI - Os meios de prova que consubstanciam a procedência do presente recurso são os seguintes:
(…)
XLII - Contrariamente ao entendimento do Tribunal “a quo” nos artigos 1º, 2º, 8º, 9º, 11º e 12º, dos factos dados como provados, a dinâmica, culpa e responsabilidade do acidente deve ser imputada em exclusivo ao condutor do veículo pesado de mercadorias, e à RÉ.
XLIII - Resulta da participação do acidente de viação “croqui” efetuada pelo NEC CABO DA GNR, que o local onde ocorreu o acidente de viação é ao km 31.900, em plena A33 e muito à frente da chamada via de aceleração.
XLIV - O local do acidente é o ponto fulcral para se perceber a sua dinâmica e qual dos condutores é responsável pela sua ocorrência.
XLV - A Recorrida no artigo 2º da sua contestação aceitou ipsis verbis que efetivamente, no dia 19/09/2019, pelas 10:40 horas, na A33 – Km 31.9, na localidade de Lançada – Montijo, ocorreu o acidente de viação entre o veículo ligeiro e o veículo pesado seu segurado.
XLVI - O Acidente de viação ocorreu ao KM 31.9 (ou metros após) NA A33.
XLVII - O Tribunal “a quo” de forma totalmente infundada e contraditória veio dizer nos artigos 8º e 9º dos factos dados como provados que o acidente ocorrera ainda no acesso à A33, no fim da via de aceleração, mas que as marcas do embate se verificavam na via a contar do km 31,883 até à imobilização dos veículos.
XLVIII - O Tribunal “a quo” erra de forma notória, já que o KM 31.900 se situa em plena A33, inexistindo qualquer via de aceleração, ou zona de acesso à A33.
XLIX - E é facto notório que o citado KM 31,883 se situa após o KM 31.900, já que a contagem dos Kms no referido local se dá por ordem decrescente, 31.900, 31.800, 31.700, 31.600 e assim sucessivamente.
L - É ainda facto notório que o KM. 31.900 e o 31,883 se situam ambos em plena A33, inexistindo qualquer via de aceleração ou de acesso à A33.
LI - O Sr. Agente da GNR em declarações prestadas em Audiência de julgamento não teve a menor dúvida que o local do acidente foi ao KM 31.900, NA A33, (ou após) e não na via de aceleração ou na zona de acesso à A33, conforme erradamente deu como provado o Tribunal “a quo”, nos termos seguintes:
(…)
LII - Todos os vestígios do acidente na via encontram-se localizados após o km 31.900 numa extensão de 200 metros.
LIII - Conforme resulta do “croqui” elaborado pelo Sr. Agente NEC, confirma-se que entre o local do acidente indicado pelo condutor do veículo de pesados e o km 31.900 não existem quaisquer vestígios na via.
LIV - Conforme resulta das declarações prestadas pelos condutores no dia do acidente, o condutor do veículo de pesados indicou como local de embate o km 31.700, ou seja, 200 metros após o local do acidente ao Km 31.900.
LV - As fotos juntas aos autos pelo sr. Agente da GNR revelam que os chamados “pilaretes”, foram colocados em plena A33, e não na via de acesso ou de aceleração.
LVI - Se o acidente ocorresse ainda na via de aceleração ou final ou na zona de acesso, teriam sido recolhidas imagens pormenorizadas de tal local, o que exclui qualquer possibilidade do local do acidente ou do provável embate tenha ocorrido no termo da via de aceleração.
LVII - A via de aceleração termina aproximadamente ao KM 32.200.
LVIII - Os Quilómetros na via são registados por ordem decrescente o que significa que o KM 32.200 se situa a aproximadamente a 300 metros do KM 31.900 local onde ocorreu o acidente/embate entre os veículos (KM 32.200 – KM 32.100 – KM 32.00 – KM 31.900)
LIX - O condutor do veículo pesado e a empresa sua entidade patronal indica expressamente no auto da GNR, participação do acidente de viação e declaração amigável juntas aos autos que o mesmo ocorreu ao KM 31.700.
LX - O local de embate indicado pelo condutor do veículo pesado situa-se cerca de 200 metros à frente do KM 31.900 e 500 metros após o termo da via de aceleração.
LXI - Todos os meios de prova indicados pelos Recorrentes são esclarecedores de que o acidente ocorreu por culpa exclusiva do condutor de pesados qual não circulava na via da direita, mas na via da esquerda da faixa de rodagem, tendo calculado mal a manobra de ultrapassagem ao veículo ligeiro.
LXII - O veículo pesado embateu com a frente lateral direita da cabine, na lateral esquerda traseira do veículo ligeiro.
LXIII - A condutora do veículo ligeiro circulando na via da direita em plena A33, viu ser o seu veículo embatido pelo veículo pesado na sua lateral esquerda traseira, tendo o pesado o arrastado ao longo da faixa de rodagem durante mais de 200 metros.
LXIV - O acidente entre o ligeiro de passageiros (veículo nº 1 – V1) e o pesado de mercadorias (veículo nº 2 – V2), com base no croqui da Participação de Acidente de Viação da G.N.R. e nas fotos dos 2 veículos, vislumbra-se que o V1 (LIGEIRO) sofreu um embate na parte traseira esquerda o que fez com que entrasse em despiste (versão indiscutível).
LXV - Estes tipos de acidentes correspondem a um ato físico que leva o veículo embatido a ter este tipo de comportamento, não sendo necessária uma grande distância e ocorre numa fração de segundo.
LXVI - É na verdade uma metodologia muitas vezes utilizada pelos agentes policiais americanos para pôr fim à fuga de suspeitos como pode ser visto no vídeo/link:
https://www.youtube.com/watch?v=pRG3tPgQGOs
LXVII - A versão do condutor do veículo pesado (V2) não merece acolhimento já que o embate deu-se após o final da via de aceleração e dentro da A33, com base nas distâncias verificadas pelo cabo NEC da G.N.R. e visto que existe o sinal complementar O2a - demarcação quilométrica da via – Via (AE) (A33-km 32) à direita após o final da referida via de aceleração.
LXVIII - O que faz com que o quilómetro 31,900 referido pelo cabo NEC, pertença à A33 que é ladeada por berma E NÃO POR NENHUMA VIA DE ACESSO OU ACELERAÇÃO, facto que é indesmentível com a ida ao local do acidente.
LXIX - O condutor do veículo pesado “V2” ao concluir a manobra de ultrapassagem, visto que circulava na via da esquerda da A33, não verificou se reunia as condições de segurança para mudar para a via da direita, muito provavelmente devido aos ângulos mortos a que os veículos pesados estão sujeitos, pois têm uma cabine volumosa e numa posição alta relativamente aos veículos ligeiros.
LXX - Se o V2 estivesse a circular na via da direita da A33, (descrito como “faixa da direita” em todos os documentos, de acordo o seu testemunho), teria embatido na parte traseira do V1 (ligeiro) pois este já estava dentro da autoestrada supracitada.
LXXI - Os veículos ligeiros são mais vulneráveis no ambiente rodoviário que os veículos pesados e fez então com que o condutor do V2 (pesado) tenha desrespeitado fundamentalmente a alínea b) do nº2 e o nº4 do art.º 38 – realização da manobra de ultrapassagem, e nº 1 do art.º 35 – disposição comum da subsecção I – princípio geral, secção V – algumas manobras em   especial.
LXXII - O acidente deveu-se à incúria e ao incumprimento das citadas regras de trânsito previstas no código da estrada, por parte do condutor do V2, o qual foi embater na lateral esquerda traseira do V1 conduzido pela B ora recorrente.
LXXIII - A recorrente não omitiu ou violou quaisquer deveres de cuidado que um condutor/cidadão normal está adstrito, quando colocado em uma situação real idêntica ao dos autos.
LXXIV - O tribunal “a quo” erra quando dá como provado que o acidente se deu no final da via de aceleração circulando o veículo ligeiro no final dessa via.
LXXV - Ora tal facto provado é impossível de ser verdadeiro já que no final da via de aceleração, a via não tem largura suficiente para que um carro (com largura de 1.80 – VW JETTA) permaneça na mesma.
LXXVI - A via tem uma largura de 1.70, sendo que no final da via de aceleração tal medida é reduzida ao mínimo.
LXXVII - Deste modo, a ser verdade, o veículo ligeiro dever-se-ia encontrar na berma da via, pelo espaço diminuto existente, CONTUDO NÃO FICOU PROVADO QUE O VEÍCULO LIGEIRO ESTIVESSE A INVADIR A BERMA DA VIA.
LXXVIII - O que conduz ao raciocínio lógico dedutivo que o veículo ligeiro encontrava-se a circular em plena A33, cerca de 300 metros após terminar a via de acesso ou de aceleração, quando foi embatido pelo veiculo pesado ao Km 31.900.
LXXIX - Logo jamais se poderá dar como provado que foi o veículo ligeiro no final da via de aceleração a entrar na A33 e a embater no veículo pesado.
LXXX - Ora atenta a prova produzida e os meios de prova indicados pelos Recorrentes, associados às regras da experiência comum, não subsistem duvidas que o veículo ligeiro já circulava na via da direita na A33, já que o km 31.900 se situa após a via de aceleração, e os vestígios aparecem na via após o local do acidente indicado pela condutora do veículo ligeiro.
LXXXI - Acresce que ficou provado através das declarações da testemunha MB arrolada pela R. (PERITO QUE ELABOROU O RELATÓRIO DO TACÓGRAFO DO VEÍCULO PESADO) que o condutor do veículo pesado, removeu o seu veículo 2 ou 3 minutos (sem autorização) após o acidente inviabilizando a recolha de prova, o que explica que tal veículo não esteja presente/identificado no croqui elaborado pelo agente da GNR NEC.
LXXXII - Não se encontrando provado que foram as forças policiais a dar ordem “2 minutos após ocorrer o acidente” para o condutor do veículo pesado movimentar o veículo para outro local da faixa de rodagem.
LXXXIII - O condutor do veículo pesado, MB, em sede de Audiência de Julgamento ao ser inquirido referiu que viu a condutora do veículo ligeiro a falar ao telemóvel e posteriormente diz que não viu o veículo ligeiro o que se revela incoerente.
LXXXIV - O condutor do veículo pesado não deixou rastos de qualquer travagem na via, não obstante arrastar o veículo ligeiro ao longo de mais de 230 metros, o que acentua a sua desatenção e imprudência.
LXXXV - A versão dos factos dada pelo condutor do veículo pesado e firmada pelo Tribunal “a quo” não colhe e é de impossível concretização.
LXXXVI - A ser verdade que o veículo pesado circularia na via da direita e não na esquerda, os danos registados no veículo ligeiro seriam visíveis em toda a traseira do veiculo ligeiro, o que não se verificou.
LXXXVII - O que significa que o veículo ligeiro já estava a circular na A33, na via da direita e foi o pesado que imprudentemente embateu no mesmo.
LXXXVIII - O Tribunal “a quo” errou ao dar como provados os factos constantes dos artigos 1º, 2º, 8º, 9º, 11º, 12, e 19º devendo ser os mesmos dados como não provados.
LXXXIX - Devendo em consequência ser dados como totalmente provados os factos constantes nos artigos 1º a 36º da Petição Inicial e restantes.
XC - Deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto e consequentemente deverão ser dados como provados pelo Tribunal “ad quem” os seguintes factos:
(…).
Rematou as suas conclusões nos seguintes termos:
“deverá a douta sentença ser revogada e substituída por outra de acordo com as pretensões dos ora recorrentes”.
Notificada da versão revista das conclusões dos apelantes, a apelada não apresentou contra-alegações.
Nada obstando ao conhecimento do mérito do recurso, foram colhidos os vistos.
2. Objeto do recurso
Conforme resulta das disposições conjugadas dos art.ºs 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do CPC, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, seja quanto à pretensão dos recorrentes, seja quanto às questões de facto e de Direito que colocam[2]. Esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação não se verifica em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art.º 5º n.º 3 do CPC).
Não obstante, excetuadas as questões de conhecimento oficioso, não pode este Tribunal conhecer de questões que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas[3].
Assim, as questões a apreciar e decidir são as seguintes[4]:
- As nulidades da sentença – Conclusões I a XV e XXIX;
- A impugnação da decisão sobre matéria de facto - Conclusões XVI a XXVIII, e XXX a XC;
- Se em função da alteração da decisão sobre matéria de facto deve a sentença apelada ser “revogada e substituída por outra de acordo com as pretensões dos ora recorrentes” – Inciso subsequente às conclusões numeradas, que consideramos parte integrante daquelas.
3. Fundamentação
3.1. Os factos
3.1.1. Factos provados
O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:
1. No dia 19 de setembro de 2019, cerca das 10h40, a autora provinha do acesso à autoestrada A33 (A33), no sentido Montijo/Barreiro, sito na freguesia de Sarilhos Grandes, do concelho do Montijo, conduzindo o veículo ligeiro de passageiros, de marca Volkswagen JETTA, 2.0 TDI, de 2006, com a matrícula ..-BD-.. (doravante denominado de BD), pertencente ao autor. 
2. No mesmo dia, hora e sentido da A33, na via de trânsito da direita, circulava o veículo pesado de mercadorias, de com a matrícula ..-..-PE (doravante denominado de PE) conduzido por MB e pertencente a Transgrua - Transportes, Representações e Aluguer de Equipamentos, S.A.. 
3. A autoestrada A33, no local pelo qual circulavam os referidos veículos, configura uma reta com boa visibilidade, com duas hemi-faixas de rodagem de sentidos de trânsito opostos, divididas por um separador central.
4. A hemi-faixa de rodagem pela qual os mencionados veículos circulavam, tem duas vias de trânsito, com a largura de 7,20 m, uma via de aceleração para acesso dos veículos provenientes de Lançada.
5. Na referida via de aceleração existe sinalização horizontal e vertical de tipo B1. 
6. A via de aceleração, desde o sinal horizontal B1 até ao seu vértice tem 260 m de comprimento e uma berma lateral, com 1,40 m de largura.
7. O termo da via de aceleração situa-se, imediatamente a seguir ao km 32, segundo contagem decrescente. 
8. Chegado ao fim da via de aceleração, ao entrar na A33, o veículo BD foi embatido na porta lateral esquerda da traseira pelo canto lateral direito da frente do veículo PE, na via de trânsito da direita. 
9. Na sequência do mencionado embate, o veículo BD rodou para a esquerda e, ficando perpendicular ao veículo PE, foi arrastado à sua frente, deixando marcas dos pneumáticos no piso da direita para a esquerda, com início, na via da direita, a 1,70 m da linha delimitadora da berma e em cerca de 232 m, de comprimento, a contar do km 31,883 até à sua imobilização perpendicular à via do lado esquerdo, de frente para o separador central.
10. O veículo PE não deixou marcas de travagem na via. 
11. O condutor do veículo PE não se apercebeu do embate no veículo BD. 
12. O condutor do veículo PE, apenas se apercebeu que o seu veículo arrastava o veículo BD, na sequência de ter visto o fumo derivado do desgaste da borracha dos pneus provocado pelo arrastamento. 
13. No local do embate, o limite máximo de velocidade é de 120 km/h.
14. O condutor do veículo PE circulava a 80/90 km/h. 
15. A condutora do veículo BD circulava a velocidade não apurada.
16. O tempo esta limpo e seco. 
17. O pavimento estava seco.
18. Em consequência do mencionado embate, o veículo BD sofreu danos em toda a lateral esquerda, nomeadamente na chapa, nas jantes, no guarda-lamas, espelho retrovisor, manípulos das portas, pisca-pisca esquerdo, cuja reparação foi orçada pela ré em €6.807,89.
19. O valor de mercado do veículo BD, à data do acidente, situava-se entre os €7.000,00 e €9.000,00.
20. A ré atribuiu ao veículo sem danos o valor de €6.600,00 e com danos (salvado) o valor de € 2.385,00.
21. A Soauto Barreiro orçou a reparação do BD em €4.796,59.
22. Tendo a ré declinado a sua responsabilidade pela ocorrência do acidente, o autor mandou reparar o veículo BD na oficina ICar de IS, mediante o valor orçamentado de €4.258,26. 
23. A reparação do veículo BD foi concluída em meados de janeiro de 2020, tendo os autores pago o valor orçamentado em prestações, cujo último pagamento ocorreu em outubro de 2021.
24. Os autores não dispunham de outro veículo para além do veículo BD.
25. Na área de residência dos autores, apenas, há transportes públicos de 2 em 2 dias. 
26. Os autores utilizavam o veículo BD para se deslocarem ao médico, supermercados e outros afazeres pessoais. 
27. Após o acidente, a ré não disponibilizou viatura de substituição aos autores. 
28. Após o acidente, o filho dos autores emprestou-lhes um veículo Opel Astra, a gasolina, de 1987, que os mesmos usaram até à conclusão da reparação. 
29. Na sequência do acidente, a autora, além de ter ficado em estado de choque e nervosa, sentiu dores no corpo, durante alguns dias. 
30. A autora, na sequência do acidente, ficou com medo de conduzir e, durante mais de um ano, não voltou a conduzir. 
31. A autora tem carta de condução desde 02/06/1986.
32. O condutor do veículo segurado tem carta de condução desde 10/05/1983.
33. A responsabilidade civil relativa aos danos resultantes da circulação do veículo de matrícula PE, à data do embate, encontrava-se transferida para a ré pela apólice n.º 003655045.
3.1.2. Factos não provados
No que respeita a factos não provados, o Tribunal a quo consignou o que segue:
“Todos os demais factos articulados pelas partes consideraram-se não provados, por serem contrários aos factos provados, irrelevantes para a decisão do caso sub judice ou meras conclusões que encerram juízos de valor e/ou matéria de direito e não factos concretos.”
3.2. Os factos e o direito
3.2.1. Das nulidades da sentença:
3.2.1.1. Considerações gerais
Em jeito de introito à análise das nulidades invocadas, justifica-se plenamente citar ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA, E LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA[5]:
“2. É verdadeiramente impressionante a frequência com que sede de recurso são invocadas nulidades da sentença ou de Acórdão denotando o número significativo de situações em que o verdadeiro interesse da parte não é propriamente o de obter uma correta Apreciação do mérito da causa, mas de anular a toda a força a sentença com que foi confrontada.
3. É claro que certas decisões poderão estar invadidas de nulidades, mas ainda assim seria bom que se interiorizasse que atende o disposto no art.º 655º nº 1, que regula os poderes da relação no âmbito do recurso de apelação, a sua verificação não determina necessariamente a remessa dos autos ao tribunal primeira instância, antes implica a substituição imediata por parte da Relação, a não ser que alguma questão tenha sido considerada prejudicada e haja necessidade recolher outros elementos. Mesmo quando as nulidades respeitam a acórdãos da relação a intervenção do Supremo também se faz em regra em regime de substituição a não ser nas situações excluídas no nº 1 do art.º 684º.
4. Acresce ainda uma frequente confusão entre nulidade da decisão e discordância quanto ao resultado entre a falta de fundamentação e uma fundamentação insuficiente ou divergente da pretendida, ou mesmo entre a omissão de pronúncia (relativamente alguma questão ou pretensão) e a falta de resposta algum argumento dos muitos florescem nas alegações de recurso.
5. Porventura esta tendência encontrar a sua raiz num modelo processual em que curso do prazo para interposição de recurso apenas iniciava depois de serem apreciados pelo tribunal a quo eventuais nulidades decisórias que eram autonomamente arguidas.  Porém há muito que foi ultrapassado esse quadro normativo~, de modo que o prazo para interposição de recurso e apresentação de alegações apontada partir da notificação da sentença (art.º 638º nº 1) sem que haja a possibilidade de a parte dilatar (artificialmente) o exercício desse direito através da dedução de incidente de arguição de nulidade ou de reforma da sentença, questões que, quando surjam devem ser necessariamente integradas nas alegações de recurso, como claramente escreve nº 4. Seguro é que os resultados que se observam através da leitura dos acórdãos são reveladores da generalizada falta de consistência das nulidades que são frequentemente arguidos tendo como Reflexo justificada sua Apreciação sumária que na maior parte das vezes é inteiramente merecida.”
Como bem apontam os citados autores, é realmente impressionante a circunstância de a grande maioria das arguições de nulidade da sentença se revelarem flagrantemente improcedentes e, mais do que isso, grosseiramente fundamentadas, demonstrando as mais das vezes profundo desconhecimento ou absoluta desconsideração do que há mais de setenta anos[6] constitui entendimento pacífico na doutrina e na jurisprudência acerca do correto âmbito de aplicação das normas que cominam a nulidade da sentença, sem que se denote, da parte dos recorrentes, qualquer esforço argumentativo no sentido de convencer o Tribunal de recurso das razões pelas quais arguem o apontado vício ao arrepio dos entendimentos dominantes na matéria.
Infelizmente, como veremos, o caso que nos ocupa constitui, na sua quase totalidade, mais um exemplo dessa postura.

3.2.1.2. Enunciado das questões
Invocando o disposto no art.º 615º, nº 1, als. b), c), e d) do CPC, sustentaram os apelantes que a sentença apelada é nula, porquanto:
a) Não foi convocada nem realizada audiência prévia, a qual também não foi dispensada por decisão fundamentada; e não foi proferido despacho identificando o objeto do litígio, e enunciando os temas da prova;
b) A sentença proferida não discriminou os factos não provados, limitando-se a referi-los de forma genérica;
c) O Tribunal a quo não chegou a pronunciar-se sobre a realização de uma diligência de inspeção ao local que os autores e ora apelantes requereram;
d) Na formação da sua convicção sobre a matéria de facto, o Tribunal a quo fez uso de uma ferramenta informática de medição, a qual constitui um meio de prova que não foi requerido por qualquer das partes e sobre a qual nenhuma das partes teve oportunidade de se pronunciar;
3.2.1.3. Da interpretação dos preceitos invocados pelos apelantes
A dilucidação das questões invocadas pressupõe a prévia interpretação dos preceitos legais invocados, de modo a delimitar o seu âmbito de aplicação. Vejamos então.
3.2.1.3.1. Art.º 615º, nº 1, al. b) do CPC
Nos termos do disposto no artigo 615º, nº 1, al. b) do CPC, a sentença é nula “quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”. Tal vício emerge da violação do dever de fundamentação das decisões judiciais, consagrado no art.º 208º, nº 1 da Constituição da República, e no art.º 154º, do CPC.
Estabelece o nº 1 deste último preceito que “as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”.
E acrescenta o nº 2 do mesmo artigo que “a justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade”.
Esta disposição indicia que o dever de fundamentação das decisões judiciais conhece diferentes graus, consoante o tipo de decisão a proferir e a sua complexidade.
O grau máximo da exigência legal de fundamentação das decisões judiciais é o que norteia a elaboração de sentença em ação contestada (art.º 607º, nºs 3 e 4 do CPC), sendo a lei processual menos exigente no caso das ações não contestadas (vd. art.º 567º, nº 3 do CPC), nas decisões relativas aos incidentes da instância e procedimentos cautelares (art.ºs 295º e 365º, nº 2 do mesmo Código[7]), e nos despachos interlocutórios em que não tenha sido deduzida oposição e a questão a proferir seja manifestamente simples (art.º 154º, n.º 2 do CPC).
Não obstante, não será qualquer infração ao dever de fundamentação que configura a nulidade em apreço.
Com efeito, a doutrina e a jurisprudência têm salientado com insistência que tal vício só se verifica em situações de falta absoluta ou total ininteligibilidade da indicação das razões de facto e de Direito que justificam a decisão e não também quando tais razões constem da sentença, mas de tal forma que pela sua insuficiência, laconismo ou mediocridade, se deve considerar a fundamentação deficiente.
Com efeito, já ALBERTO DOS REIS[8], ensinava que «Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.
Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto.»
Por outro lado, como bem salientou TOMÉ GOMES [9], «(…) a falta de fundamentação de facto ocorre quando, na sentença, se omite ou se mostre de todo ininteligível o quadro factual em que era suposto assentar. Situação diferente é aquela em que os factos especificados são insuficientes para suportar a solução jurídica adotada, ou seja, quando a fundamentação de facto se mostra medíocre e, portanto, passível de um juízo de mérito negativo. / A falta de fundamentação de direito existe quando, não obstante a indicação do universo factual, na sentença, não se revela qualquer enquadramento jurídico ainda que implícito, de forma a deixar, no mínimo, ininteligível os fundamentos da decisão7.»
No mesmo sentido se pronunciou o ac. STJ de 26-04-1995 (Raul Mateus), CJ 1995 – II, p. 58[10], “(...) no caso, no aresto em recurso, alinharam-se, de um lado, os fundamentos de facto, e, de outro lado, os fundamentos de direito, nos quais, e em conjunto se baseou a decisão. Isto é tão evidente que uma mera leitura, ainda que oblíqua, de tal acórdão logo mostra que assim é. Se bons, se maus esses fundamentos, isso é outra questão que nesta sede não tem qualquer espécie de relevância.”
Em sintonia com tal entendimento vd. ac. STJ 15-12-2011 (Pereira Rodrigues), p. 2/08.9TTLMG.P1 [11] onde se sustentou que o vício da nulidade da sentença por falta de fundamentação não ocorre em situações de escassez, deficiência, ou implausibilidade das razões de facto e/ou direito indicadas para justificar a decisão, mas apenas quando se verifique uma total falta de motivação que impossibilite o escrutínio das razões que conduziram à decisão proferida a final.
No fundo, como lapidarmente se consignou no sumário do ac. STJ 02-06-2016 (Fernanda Isabel Pereira), p. 781/11.6TBMTJ.L1.S1, “Só a absoluta falta de fundamentação – e não a sua insuficiência, mediocridade ou erroneidade – integra a previsão da al. b) do n.º 1 do art.º 615.º do NCPC, cabendo o putativo desacerto da decisão no campo do erro de julgamento.”
E porque assim é, concluímos, como fez o ac. RL 17-05-2012 (Gilberto Jorge), p. 91/09.9T2MFR.L1-6, em cujo sumário se pode ler que “A não concordância da parte com a subsunção dos factos às normas jurídicas e/ou com a decisão sobre a matéria de facto de modo algum configuram causa de nulidade da sentença (…)”.
3.2.1.3.2. Art.º 615º, nº 1, al. c) do CPC
Dispõe o art.º 615º, nº 1, al. c) do CPC que a sentença é nula “quando os fundamentos estejam em contradição com a decisão, ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.
Como ensinava ALBERTO DOS REIS[12], a sentença ou acórdão serão obscuros quando neles se contenha “algum passo cujo sentido seja ininteligível” ou cujo sentido exato não se logre alcançar. Já a ambiguidade ocorre quando “alguma passagem se preste a interpretações diferentes. Num caso não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos”.
Por seu turno, sustenta MANUEL TOMÉ SOARES GOMES[13]:
“segundo o artigo 607º, nº 3, parte final, o juiz na sentença deverá concluir pela decisão final, o que se reconduz, analiticamente, ao estabelecimento de uma equação discursiva entre:
. A base da facti species, simples ou complexa, plasmada no quadro normativo aplicável – a dita premissa maior;
. A factualidade dada como provada – a dita premissa menor; e uma conclusão sustentada na estatuição legal correspondente ao referido quadro normativo.
Entre tais premissas e conclusão deve existir portanto um nexo lógico que permita, no limite, a formulação de um juízo de conformidade ou de desconformidade, o que não se verifica quando as premissas e a conclusão se mostrem formalmente incompatíveis, numa relação de exclusão lógica. Na verdade, sobre dois termos excludentes nem tão pouco é possível formular um juízo de mérito ou de demérito; já não assim quando se trate de uma relação de mera inconcludência, sobre a qual é possível formular um juízo de demérito.
Ora, a oposição entre os fundamentos e a decisão da sentença só releva como vício formal, para os efeitos da nulidade cominada na alínea c), do n.º 1, do artigo 615.º do CPC, quando se traduzir numa contradição nos seus próprios termos, num dizer e desdizer desprovido de qualquer nexo lógico positivo ou negativo, que não permita sequer ajuizar sobre o seu mérito. Se a relação entre a fundamentação e a decisão for apenas de mera inconcludência estar-se-á já perante uma questão de mérito, reconduzida a erro de julgamento e, por isso, determinativa da improcedência da acção.”
Finalmente, dizem ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA, e LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA[14]:
“9. A nulidade a que se reporta a 1ª parte da al. c) ocorre quando existe incompatibilidade entre os fundamentos e a decisão, ou seja, em que a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado final. Situação que, sendo violadora do chamado silogismo judiciário, em que premissas devem condizer com a conclusão, também não se confunde com um eventual erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide contrariamente aos factos apurados ou contra norma jurídica que lhe impõe uma solução jurídica diferente.
10. A decisão judicial é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível e é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes.”
3.2.1.3.3. Art.º 615º, nº 1, al. d) do CPC
Nos termos do disposto no artigo 615º, n.º 1, alínea d) do CPC, a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. Trata-se de um vício formal, em sentido lato, traduzido em error in procedendo ou erro de atividade que afeta a validade da sentença.
Esta nulidade configura, no fundo, uma violação do disposto no artigo 608º, nº 2, do mesmo Código, segundo o qual “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”
Neste contexto, há que distinguir entre questões a apreciar e razões ou argumentos aduzidos pelas partes. Conforme já ensinava ALBERTO DOS REIS[15], “São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão.”
Ou seja, a omissão de pronúncia circunscreve-se às questões/pretensões formuladas que o tribunal tenha o dever de apreciar e de que não haja conhecido, realidade distinta da invocação de um facto ou invocação de um argumento pela parte sobre os quais o tribunal não se tenha pronunciado.
Dito de outro modo: esta nulidade só ocorre quando não haja pronúncia sobre pontos fáctico-jurídicos estruturantes da posição das partes, nomeadamente os que se prendem com a causa de pedir, pedido e exceções, e não quando apenas se verifica a mera omissão da ponderação das “razões” ou dos “argumentos” invocados pelas partes para concluir sobre as questões suscitadas. Com efeito, as questões a decidir não são os argumentos utilizada pelas partes em defesa dos seus pontos de vista fáctico-jurídicos, mas sim as concretas controvérsias centrais a dirimir.
Do supra exposto flui que não constitui nulidade da sentença por omissão de pronúncia a circunstância de não se apreciar e fazer referência a cada um dos argumentos de facto e de direito que as partes invocam para sustentar a procedência ou improcedência da ação. Nas palavras precisas de MANUEL TOMÉ SOARES GOMES[16] “(…) já não integra o conceito de questão, para os efeitos em análise, as situações em que o juiz porventura deixe de apreciar algum ou alguns dos argumentos aduzidos pelas partes no âmbito das questões suscitadas. Neste caso, o que ocorrerá será, quando muito, o vício de fundamentação medíocre ou insuficiente, qualificado como erro de julgamento, traduzido portanto numa questão de mérito.”
Pode, pois, concluir-se que não há omissão de pronúncia quando a matéria, tida por omissa, ficou implícita ou tacitamente decidida no julgamento da matéria com ela relacionada, competindo ao tribunal decidir questões e não razões ou argumentos aduzidos pelas partes. O juiz não tem que analisar todos os argumentos invocados pelas partes, embora se ache vinculado a apreciar todas as questões que devem ser conhecidas, ponderando os argumentos na medida do necessário e suficiente.
Assim, incumbe ao juiz conhecer de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente deve conhecer, mas não tem que se pronunciar sobre os pedidos e questões cujo conhecimento esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outros/as (art.º 608º, nº 2, do CPC).
O conhecimento de uma questão pode fazer-se tomando posição direta sobre ela, ou resultar da ponderação ou decisão de outra conexa que a envolve ou a exclui. Por isso, não ocorre nulidade da sentença por omissão de pronúncia quando nela não se conhece de questão cuja decisão se mostra prejudicada pela solução dada anteriormente a outra. 
No que tange ao excesso de pronúncia (segunda parte da alínea d) do nº 1 do art.º 615º), o mesmo ocorre quando o juiz se ocupa de questões que as partes não tenham suscitado. Também neste domínio valem as considerações acima expendidas a propósito da delimitação do conceito de questões.
 Conforme se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-12-2012  (João Bernardo), p. 469/11.8TJPRT.P1.S1[17] à luz do princípio do dispositivo, há excesso de pronúncia sempre que a causa do julgado não se identifique com a causa de pedir ou o julgado não coincida com o pedido, não podendo o julgador condenar, além do pedido, nem considerar a causa de pedir que não tenha sido invocada. Contudo, quando o tribunal, para decidir as questões suscitadas pelas partes, usar de razões ou fundamentos não invocados pelas mesmas, não está a conhecer de questão de que não deve conhecer ou a usar de excesso de pronúncia suscetível de integrar nulidade.
A discordância da parte relativamente à subsunção dos factos às normas jurídicas e/ou à decisão sobre a matéria de facto de modo algum configuram causa de nulidade da sentença.
Como se afere das considerações supra expostas, a doutrina e a jurisprudência têm entendido que a omissão ou excesso de pronúncia enquanto causas de nulidade da sentença têm por objeto questões a decidir na sentença, e não propriamente factosou argumentos jurídicos.
Neste sentido, sublinhou o ac. RL 23-04-2015 (Ondina Alves), p. 185/14.9TBRGR.L1-2, que «questão a decidir não é a argumentação utilizada pelas partes em defesa dos seus pontos de vista fáctico-jurídicos, mas sim as concretas controvérsias centrais a dirimir e não os factos que para elas concorrem.
Apreciar e rebater cada um dos argumentos de facto ou de direito que as partes invocam com vista a obter a procedência ou a improcedência da ação, bem como a circunstância de lhes fazer, ou não, referência, não determina a nulidade da sentença por excesso ou omissão de pronúncia. (…)
Situação diversa da nulidade da sentença é a de saber se houve erro de julgamento, pois como se refere no Ac. do STJ de 21.05.2009 (Pº 692-A/2001.S1), (…) se a questão é abordada, mas existe uma divergência entre o afirmado e a verdade jurídica ou fáctica, há erro de julgamento, não “error in procedendo”». 
Em sentido semelhante, decidiu, entre outros, e por mais recente, o ac. RC 23-02-2016 (Carvalho Martins), p. 2316/12.4TBPBL.L1, no qual se sublinhou que “só há omissão de pronúncia com vício de limite previsto na al. d) do nº 1 do art.º 668º do CPC (615º NCPC), quando o Tribunal incumpre quanto aos seus poderes e deveres de cognição o disposto no nº2 do art.º 660º do mesmo diploma (608º NCPC)”.
Também o ac. RG 16-11-2017 (José Flores), p. 833/15.3T8BGC.G1, apontou em sentido idêntico, referindo que “não constitui nulidade da sentença por omissão de pronúncia a circunstância de não se apreciar e fazer referência a cada um dos argumentos de facto e de direito que as partes invocam tendo em vista obter a (im)procedência da ação.“
Não obstante, mais recentemente, esta mesma questão foi apreciada de modo algo diverso no ac. RL 29-05-2018 (Luís Filipe Pires de Sousa), p. 19516/17.3YIPRT.L1-7. Neste aresto, apreciava-se uma situação em que na sentença se considerou provado determinado facto não alegado pelas partes, e que o Tribunal recorrido qualificou como complementar ou acessório (art.º 5º, nº 2, al. b) do CPC), sem que no decurso da audiência tenha informado as partes da possibilidade de considerar tal facto na sentença, e sem que tenha concedido aos litigantes a possibilidade de produzir prova.
Com efeito, no mencionado acórdão expôs–se o seguinte:
 “da ata da audiência de julgamento não resulta que o Mmo. Juiz a quo tenha anunciado às partes a pretensão de ampliar a matéria de facto e, muito menos, que lhes tenha facultado a produção de prova, sendo certo que este Tribunal da Relação não tem acesso à gravação da audiência porque não ocorreu.
Nesta medida, não tendo sido observado o formalismo garantístico da alínea b) do nº2 do artigo 5º, a subsequente decisão do tribunal a quo de considerar tais factos na sentença consubstancia uma nulidade por excesso de pronúncia porquanto o tribunal conheceu de questões de que não podia, nessas circunstâncias, tomar conhecimento (Artigo 615º, nº1, alínea d), do Código de Processo Civil)”. Em sentido semelhante se havia igualmente pronunciado o ac. RP 30-04-2015 (Aristides Rodrigues de Almeida), p. 5800/13.9TBMTS.P1.
Quanto a nós, cremos que a nulidade decorrente de omissão ou excesso de pronúncia não tem por objeto factos, mas apenas as questões de direito a dirimir à luz da causa de pedir da ação ou da reconvenção, bem como as questões de direito que integram a defesa por exceção.
3.2.1.4. Da não realização da audiência prévia e da omissão da prolação de despacho com a delimitação do objeto do litígio e a enunciação dos temas da prova
Insurgem-se os apelantes perante a circunstância de não ter sido realizada audiência prévia, nos termos previstos no art.º 591º do CPC, nem ter sido prolatado despacho identificando o objeto do litígio e enunciando os temas da prova, nos termos previstos no art.º 596º do CPC.
Da análise da tramitação da causa resulta que tendo a ré apresentado contestação, o Tribunal a quo convidou os autores a pronunciar-se sobre as exceções invocadas na contestação, após o que proferiu o despacho com a ref.ª 399488123, de 14-10-2020, que tem o seguinte teor:
“Valor da causa
Fixa-se o valor à causa em € 10.556,59 (cfr. art.ºs 297º, n.º 1, e 306.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil - CPC).
*
Atento o valor da causa, aplica-se o regime jurídico previsto no art.º 597º do CPC.
*
Saneamento
O tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria, da hierarquia, do valor, da forma de processo e do território.
O processo mostra-se isento de nulidades que o invalidem de todo.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciárias.
As partes têm legitimidade.
As partes estão devidamente patrocinadas.
Não há outras exceções dilatórias, nulidades processuais nem questões prévias de que importe conhecer.
*
Meios de Prova
Prova documental
Nos termos do art.º 423º do CPC, admite-se os documentos apresentados.
*
Declarações de parte a toda a matéria da petição inicial
Nos termos e para os efeitos do estatuído no art.º 452º, nº 2, ex vi art.º 466º, nº 2, do CPC, os autores deverão, em 10 dias, indicar de forma discriminada os factos objeto das suas declarações de parte, sob pena de indeferimento.
*
Prova testemunhal
Nos termos dos art.º 511º e 598º, nº 2, do CPC, admite-se os róis oferecidos pelas partes.
*
Inspeção Judicial
Dispõe o art.º 490º, n.º 1 do CPC que o tribunal, sempre que o julgue conveniente, pode, por sua iniciativa ou a requerimento das partes, e com ressalva da intimidade da vida privada e familiar e da dignidade humana, inspecionar coisas ou pessoas, a fim de se esclarecer sobre qualquer facto que interesse à decisão da causa (...)”.
Assim, em face a toda a prova requerida, o Tribunal apreciará da sua conveniência ou não em sede de audiência final.
*
Para realização da audiência final proponho o próximo dia 25 de novembro de 2020, pelas 14h30.
Notifique, inclusive, o (s) mandatário (s) para, em cinco dias, no caso de tal data não lhe (s) convir, em consequência de outro serviço judicial já marcado, indicar (em), de comum acordo, outra data para realização do julgamento, com a advertência de que caso nada diga (am), entende-se que aceita (am) a data proposta pelo tribunal e que o agendamento se converte em definitivo (cfr. art.º 151º, nº 1 e 2, do CPC).”
Portanto, findos os articulados, o Tribunal a quo optou por não levar a cabo a audiência prévia, proferiu despacho saneador “tabelar”, e, abstendo-se de identificar o objeto do litígio e enunciar os temas da prova, admitiu os meios de prova, e agendou a realização da audiência de julgamento.
No despacho supratranscrito, o Tribunal a quo invocou o disposto no art.º 597º do CPC, o qual, sob a epígrafe “Termos posteriores aos articulados nas ações de valor não superior a metade da alçada da Relação” dispõe como segue:
“Nas ações de valor não superior a metade da alçada da Relação, findos os articulados, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 590.º, o juiz, consoante a necessidade e a adequação do ato ao fim do processo:
a) Assegura o exercício do contraditório quanto a exceções não debatidas nos articulados;
b) Convoca audiência prévia;
c) Profere despacho saneador, nos termos do no n.º 1 do artigo 595.º;
d) Determina, após audição das partes, a adequação formal, a simplificação ou a agilização processual, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 6.º e no artigo 547.º;
e) Profere o despacho previsto no n.º 1 do artigo 596.º;
f) Profere despacho destinado a programar os atos a realizar na audiência final, a estabelecer o número de sessões e a sua provável duração e a designar as respetivas datas;
g) Designa logo dia para a audiência final, observando o disposto no artigo 151.º.”
Da leitura deste preceito decorre desde logo que o regime simplificado aqui previsto se aplica somente às ações de valor igual ou inferior a metade da alçada do Tribunal da Relação. Sendo esta alçada atualmente de €30.000,00[18], estão em causa ações cujo valor não exceda €15.000,00.
Trata-se por isso de um preceito plenamente aplicável ao caso dos autos, posto que o valor da causa foi fixado em €10.556,59.
Por outro lado, resulta também do citado preceito que o mesmo rege a tramitação da causa subsequente à fase dos articulados, nomeadamente no tocante ao saneamento da causa e à programação dos atos processuais que se destinam à instrução e discussão da causa.
Não obstante, é igualmente inequívoco que tal disposição legal não regula a sentença.
A esta luz, analisada a motivação do recurso[19], temos dificuldade em descortinar por que razão entendem os apelantes que a inobservância do disposto neste preceito, tal como os apelantes o interpretam, é suscetível de configurar uma nulidade da sentença.
Não obstante, e porque a dado passo os apelantes sustentam que “o Meritíssimo Juiz do tribunal a quo, ao proferir o douto despacho não fez qualquer menção às alíneas contidas no citado artigo 597.º do C.P.C., carecendo de fundamentação jurídica, o que conduz à NULIDADE DA SENTENÇA proferida”, supomos que se reporta à nulidade decorrente da falta de fundamentação, prevista no art.º 615º, nº 1, al. b) do CPC.
Contudo, como já tivemos ocasião de enfatizar, só a absoluta falta de fundamentação da sentença conduz a tal vício, sendo certo que esta se apresenta inequivocamente fundamentada de facto e de Direito.
Por outro lado, não pode estar em causa um vício do despacho do Tribunal a quo em 14-10-2020, porquanto em passo algum da motivação do recurso ou das conclusões os apelantes declaram recorrer de tal despacho, nem tão pouco pedem que o tribunal o anule, revogue ou altere.
Assim sendo, resta apenas concluir que o vício invocado não configura uma nulidade da sentença nos termos previstos na al. c) do nº 1 art.º 615º do CPC, tal como não configura qualquer nulidade nos termos das als. b) e d) do mesmo preceito.
Poder-se-ia, contudo, aventar a possibilidade de apreciar as invocadas irregularidades processuais à luz do regime das nulidades processuais consagrado no art.º 195, nº 1 do CPC, na medida em que as apontadas omissões da realização da audiência prévia e da identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas de prova poderiam revestir-se de relevância para o exame ou decisão da causa.
Porém, não sendo tal nulidade de conhecimento oficioso (vd. art.º 196º do CPC), teria a mesma que ser arguida de 10 dias, contados da data em que os apelantes tiveram conhecimento das mencionadas omissões (vd. art.º 199º, nº 1 do CPC, com referência ao art.º 149º do mesmo código).
As partes tomaram conhecimento de tais omissões com a sua notificação do despacho proferido em 14-10-2020, a qual se concretizou por comunicação eletrónica expedida em 19-10-2020 (ref.ª 399711028).
Regra geral, as nulidades processuais são sanáveis (vd. art.ºs 196º, 198º, nº 2, 200º, nº 1, parte final). E uma das causas de sanação das nulidades é o decurso do prazo de que depende a sua arguição.
Assim, não tendo os apelantes invocado as referidas nulidades no apontado prazo, as mesmas sanaram-se.
Donde se conclui que as irregularidades invocadas não constituem uma nulidade da sentença e que se fossem configuradas como nulidades processuais secundárias, as mesmas sempre deveriam considerar-se sanadas.
3.2.1.5. Da falta de discriminação dos factos provados
Sustentaram igualmente os apelantes que a sentença é nula por não discriminar os factos não provados, argumentando que «foram alvo de uma “DECISÃO SURPRESA”, já que apenas tiveram conhecimento dos factos não provados e seus fundamentos (ainda que de forma imprecisa, vaga e genérica) com a notificação da douta sentença proferida.»[20]
E mais adiante sustentam os apelantes que não discriminando os factos não provados a sentença apelada é nula, por falta de fundamentação[21], invocando posteriormente as als. c) e d) do nº 1 do art.º 615º do CPC.
Como já tivemos oportunidade de referir, no que respeita a factos não provados, o Tribunal a quo limitou-se a mencionar que:
“Todos os demais factos articulados pelas partes consideraram-se não provados, por serem contrários aos factos provados, irrelevantes para a decisão do caso sub judice ou meras conclusões que encerram juízos de valor e/ou matéria de direito e não factos concretos.”
Contudo, como igualmente já mencionámos, só a absoluta falta de fundamentação e facto e /ou de Direito é suscetível de configurar nulidade da sentença por falta de fundamentação.
Ora no caso vertente, a sentença apelada contém um elenco de factos provados e não provados, seguida da motivação da decisão sobre matéria de facto e da subsunção jurídica dos factos ao Direito tido por aplicável, pelo que não enferma da nulidade prevista na al. b) do nº 1 do art.º 615º do CPC.
As debilidades apontadas à decisão probatória, no tocante aos factos não provados não configuram por isso a nulidade da sentença por falta de fundamentação. Não obstante, sempre diremos que as mesmas são relevantes enquanto deficiências da decisão sobre matéria de facto e da respetiva fundamentação, que podem relevar no contexto da impugnação da decisão sobre matéria de facto e nos termos do disposto no art.º 662º, nº 2, als. c) e d) do CPC. Com efeito, alguma jurisprudência vem considerando que a enunciação genérica dos factos provados, em termos semelhantes aos expostos na sentença apelada configura uma forma de fundamentação deficiente, justificadora da anulação da decisão probatória relativa aos factos não provados, por insuficiência e obscuridade – Neste sentido cfr. acs. STJ 26-02-2019 (Fonseca Ramos), p. 1316/14.4TBVNG-A.P1.S1; RP 19-05-2020 (Rodrigues Pires), p. 2148/15.8T8GDM-D.P1; e RL  02-02-2021 (Diogo Ravara), p. 222/13.4TBAQ.L1, proferido por este mesmo coletivo (inédito).
Trata-se, porém, de um outro nível de análise, a ponderar na sua sede própria, a saber, a apreciação da impugnação da decisão sobre matéria de facto.
Finalmente, como já referimos, a contradição entre os fundamentos e a decisão que gera a nulidade a que se refere a al. c) do mesmo preceito é a que se verifica entre a fundamentação de facto e de Direito da Sentença e o dispositivo, não revelando para este efeito uma qualquer contradição interna da fundamentação da sentença.
Termos em que se conclui que a falta de discriminação dos factos provados não configura nulidade da sentença.
3.2.1.6. Da não apreciação do requerimento dos autores no sentido de ser efetuada uma inspeção ao local
A análise do processado revela que petição inicial os autores consignaram o que segue:
“Mais requer a V. Exa. a inspecção ao local, caso assim o entenda necessário, para o apuramento da verdade material dos factos, nos termos do disposto no artigo 490.º do C.P.C.”
Resulta igualmente da análise do processado que por despacho proferido em 14-10-2020 (refª 399488123), o Tribunal a quo se pronunciou sobre tal meio de prova nos seguintes termos:
“Inspeção Judicial
Dispõe o art.º 490º, n.º 1 do CPC que o tribunal, sempre que o julgue conveniente, pode, por sua iniciativa ou a requerimento das partes, e com ressalva da intimidade da vida privada e familiar e da dignidade humana, inspecionar coisas ou pessoas, a fim de se esclarecer sobre qualquer facto que interesse à decisão da causa (...)”.
Assim, em face a toda a prova requerida, o Tribunal apreciará da sua conveniência ou não em sede de audiência final.”
Finalmente, emerge também da análise do processado que o Tribunal a quo não chegou a proferir qualquer decisão relativamente à realização ou dispensa de tal meio de prova.
Estabelece o art.º 411º do CPC que “incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer”.
Disposição decorre que o Tribunal tem a obrigação de se pronunciar sobre os meios de prova oferecidos ou requeridos pelas partes, seja no sentido da sua admissão, seja no da sua rejeição.
Não obstante, pelas mesmas razões expostas no ponto que antecede, a falta de decisão no tocante à requerida realização de inspeção ao local é insuscetível de configurar uma nulidade da sentença, razão pela qual apenas poderia configurar uma nulidade processual secundária, nos termos previstos nos art.ºs 195º e segs. do CPC.
Contudo, tal omissão tornou-se evidente, para os apelantes, no exato momento em que, no decurso da última sessão da audiência de julgamento, a qual teve lugar em 06-05-2022[22] a Mmª Juíza a quo deu por finda a produção de prova, e concedeu a palavra aos ilustres mandatários das partes para alegações.
Estando o ilustre mandatário dos apelantes presente nessa diligência, dispunha de 10 dias para invocar tal nulidade.
Não o tendo feito nesse prazo, uma tal nulidade convalidou-se.
Termos em que se conclui que a irregularidade apontada não gera qualquer nulidade da sentença apelada, e que uma eventual nulidade secundária daí emergente se acha sanada.
3.2.1.7. Da utilização oficiosa de uma ferramenta informática de medição que não foi sujeita ao contraditório
Como apontam os apelantes, na motivação da decisão sobre matéria de facto, o Tribunal a quo reporta-se à utilização da ferramenta informática Google Maps, salientando que nenhuma das partes requereu a realização de tal diligência probatória, e que as partes não tiveram qualquer oportunidade de verificar tribunal a quo a utilizou, ou contraditar o resultado de tal diligência.
Analisada toda a tramitação da causa, confirmamos que o recurso a tal ferramenta informática não foi requerido por nenhuma das partes., e que na sentença apelada, sob o título “Motivação da Decisão sobre a Matéria de facto”, o Tribunal a quo consignou o que segue[23]:
“O tribunal baseou a sua convicção, no que concerne aos factos provados sob os números 1 a 7, 10, 13, 16, 17, 18, 20, 21, 27 e 31 a 33 relativos à identificação dos intervenientes, às circunstâncias  temporais, locais e de sentido em que os veículos circulavam e aos danos sofridos pelo  veículo BD, na sua aceitação expressa pela ré e na sua falta de impugnação, em conjugação com a análise do teor do certificado de matrícula referente ao veículo BD, da participação do acidente de viação, do relatório de peritagem e dos orçamentos todos juntos com a petição inicial, bem como na observação da autoestrada e nas medições feitas com recurso à ferramenta de medição disponível no Google Maps.”
Muito embora o Tribunal a quo nada mais esclareça quanto às circunstâncias em que recorreu a esta ferramenta informática e aos resultados que colheu da sua utilização, do inciso citado parece resultar que tal ferramenta foi usada para observar o local e proceder a medições (sem que o Tribunal a quo esclareça que medições em concreto fez).
Ora, o recurso a tais ferramentas, visando observar locais e efetuar medições é suscetível de ser qualificado como uma modalidade de prova por inspeção judicial, sujeita por isso à disciplina dos art.ºs 4390º e segs. do CPC, bem como às regras gerais do Direito probatório formal, previstas nos art.ºs 411º e segs. do CPC, máxime o i, consagrado no art.º 415º do mesmo código.
Sobre esta matéria se pronunciou o ac. RL 14-02-2023 (Luís Pires de Sousa), p. 400/19.2T8CSC.L1-7, Tribunal e secção, nos seguintes termos:
“Conforme foi expressamente assumido pelo tribunal a quo, para a formação da convicção da Mma Juíza quanto ao facto 9 relevou a consulta do site www.idealista.pt, onde a mesma pesquisou o valor de arrendamento para uma casa com o mínimo de dois quartos na zona de residência da apelada.
Ao atuar de tal modo, a Mma Juíza recorreu ao meio de prova inspeção na modalidade de cibernavegação. Nesta modalidade de inspeção, «a parte faculta ao juiz um computador, ou este utlizada um próprio, com acesso à internet, a fim de o juiz se inteirar, diretamente e na presença das partes, do conteúdo de sites ou de correio eletrónico trocado entre as partes» - Luís Filipe Sousa, Direito Probatório Material, 2ª Ed., p. 206.
No caso em apreço, o recurso à cibernavegação tendo em vista apurar o valor (de mercado) de arrendamento de uma casa numa certa localidade constitui um meio de prova admissível e que pode ser idóneo para o efeito, sabendo-se que os sites imobiliários dão expressão à lei da oferta e da procura quanto à venda e arrendamento de casas.
Todavia, o meio de prova constituenda cibernavegação não prescinde da observância dos princípios processuais que presidem à produção de prova, a começar pelo princípio da audiência contraditória, consagrado no Artigo 415º do Código de Processo Civil. Assim, não são admitidas nem produzidas provas sem audiência contraditória da parte a quem hajam de ser opostas (nº1 do Artigo 415º) e, tratando-se de prova constituenda (como é o caso), a parte é notificada para todos os atos de preparação e produção da prova, sendo também admitida a intervir nesses atos nos termos da lei (nº 2 do Artigo 415º).
No caso em apreço, sendo a cibernavegação resultado da atuação oficiosa da Mma Juíza (art.º 411º), deve na mesma ser garantida a intervenção de ambas as partes na produção da prova e a apreciação dos elementos recolhidos deve ser precedida do contraditório (cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil Anotado, I Vol., 2022, 3ª ed., Almedina, p. 528).
A observância do princípio do contraditório na produção da prova «destina-se a permitir que à produção de prova por uma das partes a outra possa responder com uma contraprova (art.º 346º CC) ou com prova do contrário (art.º 347º CC)» (Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Vol. I, AAFDL, 2022, p. 515). A circunstância de a iniciativa da cibernavegação ser oficiosa não tolhe a necessidade de observância do princípio do contraditório, o qual persiste incólume.
Isto mesmo decorre do regime do Artigo 491º quando prevê que as partes sejam notificadas do dia e hora da inspeção, podendo prestar ao tribunal os esclarecimentos de que ele carecer, assim como chamar a sua atenção para os factos que reputem de interesse para a resolução da causa. Acresce que a inspeção, mesmo na modalidade de cibernavegação, dever ser plasmado num auto que pode, em última instância e no caso em apreço, radicar essencialmente em fotografias ou prints que sejam juntos ao processo (cf. Artigo 493º do Código de Processo Civil).
Ao recorrer ao meio de prova cibernavegação, sem observância do regime explicitado, o tribunal a quo incorreu numa nulidade processual porquanto foram omitidos atos e formalidades prescritos por lei, sendo que tais irregularidades podem influir na decisão da causa na precisa medida em que o facto em causa (e fundamentado em cibernavegação que não respeitou os direitos das partes) é um facto nuclear para a decisão de mérito (cf. Artigo 195º, nº1, do Código de Processo Civil).
Ora, quando o «tribunal profere uma decisão depois da omissão de um ato obrigatório; a decisão é nula por excesso de pronúncia (art.º 615º, nº1, al. d)), dado que conhece de matéria de que, nas circunstâncias em que o faz, não podia conhecer» (João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Vol. I, AAFDL, 2022, p. 44; cf. ainda Teixeira de Sousa, “Nulidades do processo e nulidades da sentença: Em busca da clareza necessária”, 22.9.2020, https://blogippc.blogspot.com/2020/09/nulidades-do-processo-e-nulidades-da.html).
Assim, há que anular a sentença proferida, cabendo ao tribunal a quo reabrir a audiência e realizar a cibernavegação com observância dos normativos citados.
Não colhe aplicação o disposto no Artigo 665º do Código de Processo Civil porquanto o quadro factual mostra-se incompleto, não dispondo este Tribunal da Relação dos elementos fácticos suficientes para decidir.”
A mesma questão foi mais recentemente abordada no ac. STJ 2023 (João Cura Mariano), p. 4017/20.0T8GMR.G1.S1, nos seguintes termos:
“Tem sido cada vez mais frequente a utilização pelos Tribunais, na instrução do processo civil, do serviço de visualização de imagens de satélite da Terra (Google Maps), da Google, assim como da sua ferramenta, o Google Street View, agora também autonomamente acessível numa aplicação, a qual disponibiliza vistas panorâmicas das vias de circulação rodoviária, ao nível do solo.
Sendo imagens que retratam uma realidade no momento em que foram captadas, estamos perante documentos (artigos 362.º do Código Civil), que fazem prova plena da realidade que mostram, se a parte contra quem são apresentadas não impugnar a sua exatidão (artigo 368.º do Código Civil) [2].
Estas imagens devem ser apresentadas e juntas ao processo (artigo 423.º do Código de Processo Civil) ou, no caso em que se pretenda uma exibição dinâmica das mesmas, através da utilização dos múltiplos recursos que aquele serviço permite, deve proceder-se à sua exibição, nos termos previstos no artigo 428.º do Código de Processo Civil.
Os Tribunais da Relação na apreciação de uma impugnação da decisão sobre a matéria de facto também poderão utilizar oficiosamente estas imagens, nos termos do artigo 662.º, n.º 2, b), do Código de Processo Civil, devendo, no entanto, juntar as mesmas ao processo ou proceder à sua exibição, facultando às partes o seu conhecimento e a possibilidade da impugnação da sua exatidão, previamente à sua utilização como meio de prova, em obediência ao princípio do contraditório em sede instrutória, espelhado no artigo 415.º do Código de Processo Civil.
(…)
Da leitura destes excertos constata-se que a consulta do Google Maps através da ferramenta Street View, pelos juízes que integraram o coletivo subscritor do acórdão recorrido, não funcionou como um elemento de prova dos factos em discussão, mas apenas como uma ferramenta de trabalho na compreensão e interpretação do conteúdo do termo da inspeção judicial realizada e dos depoimentos prestados sobre o local onde ocorreu o atropelamento do Autor.  Não estamos perante o recurso a um meio de prova que substituiu ou completou os meios de prova produzidos na primeira instância, mas sim perante a utilização de um instrumento que facilitou a leitura e a compreensão desses meios de prova. Daí que não seja aqui acertada a conhecida expressão que uma imagem vale mais do que mil palavras, sendo mais correto afirmar-se que, no caso, uma imagem poderá auxiliar na compreensão de mil palavras.
Este tipo de utilização é semelhante à que ocorre com a assessoria de um técnico nos termos do artigo 601.º do Código de Processo Civil, que também poderá ser utilizada pelo Tribunal da Relação na decisão sobre impugnação de matéria de facto, sem que a mesma constitua um meio de prova [3].
Não tendo a ferramenta do Street View, do Google Maps, neste caso, sido utilizada como meio de prova, não estava o seu conteúdo sujeito ao contraditório, pelo que a ausência de notificação prévia das partes não constitui qualquer vício que invalide a sua utilização.”
Apreciando, diremos que a situação analisada no citado acórdão deste Tribunal e secção tem maiores semelhanças com o caso dos autos, porquanto as ferramentas informáticas do Google Maps foram efetivamente utilizadas pelo Tribunal a quo para efetuar medições, e não apenas como instrumento complementar de outro meio de prova.
Subscrevemos inteiramente as conclusões vertidas em tal aresto, no tocante à qualificação de tal meio de prova como prova por inspeção e à necessidade de observar o princípio da audição contraditória, consagrado no art.º 415º do CPC.
Resta extrair as necessárias consequências da inobservância deste preceito.
E fazendo-o, diremos que até ao momento, este coletivo vinha manifestando o entendimento maioritário de que a omissão de formalidade essencial seguida da prolação de sentença configura uma nulidade processual, nos termos do disposto nos art.ºs 195º e segs. do CPC e não uma nulidade da sentença, por excesso de pronúncia, nos termos do disposto no art.º 615º, nº 1, al. d) do CPC – Vd. entre outros, os acs. RL 12-03-2019, p. 21183/16.2T8LSB.L1[24]; RL 04-06-2019, p. 214/16.1T8MFR.L1; e RL 08-10-2019, p. 10371/18.7T8LSB.L1;
Ancorava-se esse entendimento na consideração de que a génese da nulidade se situava a montante da prolação da sentença e bem assim na circunstância de o regime da nulidade da sentença não prever a possibilidade de o processo retroceder a fase anterior à da prolação da decisão final (v.g. à audiência de julgamento, à audiência prévia, ou mesmo aos articulados).
Contudo, alguma jurisprudência vem salientando que a preterição do direito ao contraditório seguida da prolação de sentença pode configurar simultaneamente uma nulidade processual, e uma nulidade da sentença, por excesso de pronúncia – vd., entre outros os acs. RP 15-12-2021 (Isoleta Almeida Costa), p. 2577/20.5T8AGD-A.P1; bem como e STJ 23-06-2016 (Abrantes Geraldes), p. 1937/15.8T8BCL.S1.
Cremos, porém, que a ponderação de tais situações como situações de concurso das duas nulidades, com eventual conjugação de regimes permite alcançar respostas satisfatórias àquelas interrogações, respeitando a letra e espírito dos preceitos que regulam as duas figuras.
Assim sendo, revendo parcialmente tal entendimento, cremos ser de considerar que se poderá falar em concurso dos dois vícios nas situações em que a primeira nulidade por omissão de uma formalidade legal anterior à prolação da sentença não deva considerar-se sanada por falta de invocação atempada.
Tal sucederá em todas as situações em que tal nulidade apenas se revela com a prolação da sentença, como se verifica no caso em análise.
Nesta conformidade, conclui-se que a sentença apelada é nula, por excesso de pronúncia, devendo ser anulada e que, na impossibilidade de este Tribunal se substituir ao Tribunal a quo, nos termos previstos no art.º 665º do CPC, devem os autos ser remetidos ao Tribunal a quo, a fim de reabrir a audiência para a realização de cibernavegação, com observância das normas aplicáveis, nomeadamente o disposto nos art.ºs 415º, 491º e 493º do CPC
3.2.2. Da impugnação da decisão sobre matéria de facto e do mérito da causa
Face ao exposto no ponto que antecede, fica prejudicada a apreciação da impugnação da decisão sobre matéria de facto, e do mérito da causa – art.º 608º, nº 2 do CPC, aplicável ex vi do art.º 663º, nº 2 do mesmo código.
3.2.3. Das custas
Nos termos do disposto no art.º 527º, nº 1 do CPC, “A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.”
A interpretação desta disposição legal, no contexto dos recursos, deve atender ao elemento sistemático.
Com efeito, o conceito de custas comporta um sentido amplo e um sentido restrito.
No sentido amplo, as custas tal conceito inclui a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte (cf. art.ºs 529º, nº1, do CPC e 3º, nº1, do RCP).
Já em sentido restrito, as custas são sinónimo de taxa de justiça, sendo esta devida pelo impulso do processo, seja em que instância for (art.ºs 529º, nº 2 e 642º, do CPC e 1º, nº 1, e 6º, nºs 2, 5 e 6 do RCP).
O pagamento da taxa de justiça não se correlaciona com o decaimento da parte, mas sim com o impulso do processo (vd. art.ºs 529º, nº 2, e 530º, nº 1, do CPC). Por isso é devido quer na 1ª instância, quer na Relação, quer no STJ.
Assim sendo, a condenação em custas a que se reportam os art.ºs 527º, 607º, nº 6, e 663º, nº 2, do CPC, só respeita aos encargos, quando devidos (art.ºs 532º do CPC e 16º, 20º e 24º, nº 2, do RCP), e às custas de parte (art.ºs 533º do CPC e 25º e 26º do RCP).
Tecidas estas considerações, resta aplicar o preceito supracitado.
No caso em apreço, face à procedência da presente apelação, no que toca à invocada nulidade decorrente da utilização oficiosa da prova por inspeção com recurso à cibernavegação, sem observância do direito ao contraditório, as custas deverão ser suportadas pela apelada.
4. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes nesta 7ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a presente apelação procedente e, em consequência, anular a sentença proferida, devendo o tribunal a quo reabrir a audiência para a realização de cibernavegação, com observância das normas aplicáveis, nomeadamente o disposto nos art.ºs 415º, 491º e 493º do CPC.
Custas pela apelada.

Lisboa, 30 de maio de 2023
Diogo Ravara
Ana Rodrigues da Silva
Micaela Sousa

_______________________________________________________
[1] Excluímos da transcrição que segue os trechos que constituem:
- mera reprodução de trechos da decisão apelada e /ou de outras decisões judiciais,
- transcrição de preceitos legais;
- reprodução de meios de prova;
- a completa enumeração da decisão de facto que, no entender dos apelantes, deve ser proferida em substituição da decisão impugnada
… posto que, como expôs o relator, no despacho em que determinou o aperfeiçoamento das conclusões, o lugar adequado para tais menções é a motivação do recurso, e não as conclusões.
[2] Neste sentido cfr. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Ed., Almedina, 2018, pp. 114-117
[3] Vd. Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 119
[4] Entendemos que as conclusões 1ª a 4ª têm natureza meramente introdutória.
[5] “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, Almedina, 2018, pp. 736-737.
[6] Basta referir que os primeiros volumes da 1ª edição do “Código de Processo Civil Anotado” de ALBERTO DOS REIS foram publicados nos anos 40 do século passado.
[7] Cremos que a expressão “com as necessárias adaptações”, constante do art.º 295º do CPC permite concluir que face à natureza urgente e tramitação simplificada dos procedimentos cautelares, se justifica que a sua fundamentação seja igualmente aligeirada.
[8] “Código de Processo Civil Anotado”, V Volume, 3ª Ed., Coimbra Editora, p. 140.
[9] “Da sentença cível”, in “O novo processo civil”, caderno V, e-book publicado pelo Centro de Estudos Judiciários, jan. 2014, p. 39, disponível em
http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/CadernoV_NCPC_Textos_Jurisprudencia.pdf
[10] Tanto quanto apurámos, este aresto não se acha publicado nas bases de dados de jurisprudência de acesso livre e gratuito.
[11] Todos os arestos invocados no presente acórdão sem indicação e proveniência se acham publicados nas bases de dados de jurisprudência dos Tribunais judiciais, de acesso universal e gratuito, disponíveis em https://jurisprudencia.csm.org.pt e http://www.dgsi.pt. A versão digital do presente acórdão contém hiperligações para os acórdãos nele citados.
[12] “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, pág. 151.
[13] “Da sentença cível”, in “O novo processo civil”, caderno V, e-book publicado pelo Centro de Estudos Judiciários, jan. 2014, p. 39, disponível em
 http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/CadernoV_NCPC_Textos_Jurisprudencia.pdf
[14] “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, 2018, 737-738.
[15] “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. V, Coimbra 3ª Ed., p. 143.
[16] “Da Sentença Cível”, in “O novo processo civil”, caderno V, e-book publicado pelo Centro de Estudos Judiciários, jan. 2014, p. 370, disponível em
http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/CadernoV_NCPC_Textos_Jurisprudencia.pdf
[17] Todos os arestos invocados no presente acórdão se encontram publicados em http://www.dgsi.pt e/ou e https://jurisprudencia.csm.org.pt/. A versão digital do presente acórdão contém hiperligações para todos os arestos nele citados que se mostrem publicados em páginas internet de livre acesso.
[18] Cfr. art.º 44º, nº 1 a Lei de Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei nº 62/2013, de 26-08, retificada pela Decl. Retif. 42/2013, de 24-10; alterada pela Lei 40-A/2016, de 22-12; pela Lei 94/2017, de 23-08; pela Lei Orgânica nº 4/2017, de 25-08; pela Lei 23/2018, de 05-06; pelo DL 110/2018, de 10-12; pela Lei 19/2019, de 19-02; pela Lei 27/2019, de 28-03; pela Lei 55-2019, de 05-08, pela Lei 107/2019, de 09-09, e pela Lei 77/2021, de 23-11.
[19] Em especial os art.ºs 1º a 51º.
[20] Vd. art.º 31º da motivação do recurso.
[21] Art.º 52º da motivação do recurso.
[22] Vd. Refª 417426954, de 08-07-2022.
[23] P. 7 da sentença. O acentuado é da nossa responsabilidade.
[24] Inédito.