Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2212/09.2TBACB.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: SEGURO AUTOMÓVEL
VALOR REAL E CORRENTE DOS BENS
VALOR REAL
ÓNUS DA PROVA
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/18/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIAL PROCEDÊNCIA
Sumário: I. Ao tomador de seguro cabe a alegação e o ónus da prova da verificação do risco coberto. À seguradora cabe a alegação e o ónus da prova da verificação de uma cláusula de exclusão do risco (como facto impeditivo do direito daquele – art. 342/2 do CC).
II. Quando o valor do interesse seguro for um valor declarado, a questão do sobresseguro (valor real inferior ao valor declarado) será resolvida através da aplicação do princípio indemnizatório (pagando a seguradora, em caso de sinistro, apenas o valor real: arts. 435 do CCom e 132 e 128, ambos da LCS).
III. Quando o valor do interesse seguro tiver sido acordado, não se aplica o princípio indemnizatório (que aliás não será um princípio de ordem pública), excepto se o valor acordado for manifestamente infundado.
IV. Em qualquer dos casos, o princípio indemnizatório deve ser “entendido em termos materiais”, ou seja, o que interessa não é o valor venal ou de mercado do bem, mas sim o valor de substituição.
V. O ónus de alegação e prova do valor real (de substituição) do bem cabe às seguradoras.
VI. Embora para que haja um valor acordado não baste a aceitação da proposta do tomador pela seguradora, a situação normal, ao menos no seguro automóvel facultativo, será a de o valor seguro ser um valor acordado.
VII. As seguradoras não podem, sob pena de abuso de direito (art. 334 do CC) na modalidade do venire contra factum proprium, opor aos tomadores o valor real depois do sinistro ter ocorrido para evitarem sobreindemnizações, se antes de celebrarem o contrato nada fizeram para o apurar, como o que evitaria celebrar o contrato com sobresseguro (e com os inerentes sobreprémios), apesar de o poderem ter feito com facilidade, se tivessem actuado com um mínimo de diligência que a boa fé lhes impunha (art. 227 do CC).
(da responsabilidade do Relator)
Decisão Texto Parcial:Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

“A” intentou a presente acção contra a Companhia de Seguros “B”, SA, pedindo que a ré seja condenada a pagar-lhe 55.630,48€, acrescidos de juros à taxa legal desde a citação até efectivo pagamento.
Alegou para o efeito, em síntese, o seguinte: que tinha os danos próprios do seu veículo cobertos por um seguro celebrado com a ré, seguro que ainda cobria um complemento de 20% do valor venal do veículo à data do sinistro em caso de perda total; que o seu veículo sofreu, em consequência de um acidente, danos; que a seguradora concluiu pela perda total do veículo; o veículo tinha, à data da apólice, o valor de 47.320€ + 9400€ relativos a extras, o que dá o total de 56.720€; à data do sinistro o veículo tinha 51 meses; durante os 5 meses de vigência da apólice o veículo desvalorizou-se 2,40%, ou seja, 1361,28€; os salvados valem 10.800€; pelo que, no âmbito desta cobertura, a seguradora tem de pagar 56.720€ - 1361,28€ - 10.800€, o que dá 44.558,72€. A que deve acrescer o complemento de 20% sobre o valor do veículo com extras descontado da desvalorização (56.720€ - 1361,28€ = 55.358,80€), ou seja, 11.071,75€.
A ré, citada a 22/10/2009, contestou, excepcionando a incompetência territorial e, no mais impugnando e excepcionando, sem destrinçar (e para se ver que assim é e também para se ver em que medida é que foram ou não cumpridos os ónus de que se falará abaixo, passa-se a transcrever o essencial da contestação): trata-se de caso muito complexo, que tem de ser devidamente esclarecido, até por envolver suspeitas de ilícito; foi, exactamente, por não ser possível aceitar que se está face a um acidente casual, coberto por um seguro celebrado sem declarações inexactas que a contestante se viu na contingência de ter de declinar a responsabilidade; acresce que só por via de hipotética condenação judicial a contestante pagará a indemnização ao autor, depois de averiguadas no âmbito do processo, todos os contornos da situação, quer no tocante à celebração do contrato de seguro, quer no que respeita à ocorrência do acidente; na presente acção está apenas em causa a validade e exigibilidade da vertente facultativa do contrato, respeitante a danos próprios; assim, no mesmo e nessa vertente, são aplicáveis não só a exclusão genérica de falsas declarações geradoras de nulidade de seguro (ut. art. 429 do Código Comercial), mas também as exclusões específicas previstas nas condições gerais da apólice (ut. arts 6 e 36); o veículo em causa, Mercedes CLS 350, topo de gama de alta cilindrada, com a matrícula 00-00-ZJ, pertencia à “C” Comércio de Peças, Lda, da qual o autor é prestador habitual e permanente de serviços; à mesma “C”, da qual é sócio gerente “D”, pertencia, também, um outro veículo Mercedes SL 500 de matrícula 00-00-SZ, igualmente de alta cilindrada e topo de gama; ambos os veículos Mercedes estiveram seguros, separadamente, pela Apólice nº. ... da contestante, quanto a danos próprios, sendo tomador do seguro a “C”; em Dezembro de 2008 e Janeiro de 2009, foi comunicado que ambos os veículos teriam sido vendidos pela “C” ao prestador de serviços “A”, e ao sócio gerente “D”, que efectivaram novos e similares contratos de seguro individualizados, quanto a danos próprios; significativamente, em ambos os contratos foi proposta uma cláusula pouco usual de agravamento complementar de 20% em casos de perda total; esta similitude de procedimentos, já de si suspeita, tornou-se inaceitável face à circunstância de ambos os veículos terem sido objecto de acidentes em tudo idênticos, conduzidos pelos elementos ligados à “C”, tendo sucessivamente chocado, por invocados despistes, contra pinheiros marginais na mesma semana de 9 a 13 de Maio de 2009; tais choques são inexplicáveis em termos de experiência e senso comuns; não é fácil aceitar que um profissional experiente e encartado desfizesse um carro de luxo e alta segurança no dia 08/05/2009, numa estrada fácil, sem álcool e em dia de bom tempo; e muito menos fácil de explicar se torna ao constatar que o acidente paralelo, ocorrido com o outro Mercedes tivesse muito igual destino ao chocar, no dia 13/05/2009, contra um pinheiro, conduzido, de dia e numa estrada lenta, por um condutor experiente e sem álcool; todavia, as coincidências não ficam por aqui… com efeito, qualquer dos citados contratos de seguro foi feito pelos valores altíssimos, sendo o do veículo invocado pelo autor, por 56.720€ e o do seu patrão por 66.595€, muito superiores aos do mercado e empolados, com a similar invocação de pretensos extras, não sendo os mesmos compatíveis com a realidade do mercado; segundo a Eurotax, tabela referência do mercado de veículos usados, os valores reais não excediam, respectivamente, 48.500€ para o do autor e 60.000€ para o outro, tendo assim a contestante sido induzida em erro; acresce que sendo o autor, tal como seu patrão, profissionais do ramo e sócios ou colaboradores de stands na zona de ..., utilizando veículos de topo de gama, não desconhecem o desajustamento dos valores, obviamente tendente a conseguir um negócio altamente vantajoso e, porventura, útil na conjuntura do mercado; é esta situação que torna inevitável o recurso a uma decisão judicial, uma vez que só através do tribunal se conseguirá o indispensável exame à escrita da sociedade vendedora, que permitirá conhecer qual o valor de venda e de inventário dos veículos e estimar a dimensão do lucro que haveria em vista conseguir; acresce que a contestante se viu obrigada a comunicar ao Instituto de Seguros de Portugal o que se está a passar, em vista a prever a repetição destas situações; por outro lado, e quanto aos valores, é óbvio que o acidente pode ter afectado o veículo, mas não teve incidência sobre a maioria dos extras, amovíveis, pelo que jamais seria aceitável a quantificação do prejuízo feito pelo autor; espera a contestante, através das diligências probatórias, conseguir através dos presentes autos, completar a averiguação das circunstâncias determinantes da situação; de qualquer forma, deve ser julgada procedente a excepção de incompetência territorial e, sempre, uma vez que não comprovado o carácter fortuito e não intencional do acidente, julgada improcedente e não provada a acção.
Replicou o autor, impugnando alguns dos factos alegados pela ré, designadamente que o de que o autor tenha sido empregado ou sócio da “C” e afirmando que o veículo seguro foi avaliado pelos serviços da ré antes da celebração do contrato de seguro.
Depois do julgamento foi proferida sentença julgando totalmente improcedente a acção.
O autor recorreu desta sentença – para que a decisão recorrida seja substituída por outra que julgue a acção procedente por provada - terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
c. Não pode o recorrente concordar com a argumentação expendida na sentença que se mostra deveras tautológica, não se aceitando que se faça a distinção entre “embate” e o acto dinâmico e consequente que é “ficou embatido”.
d. O tribunal procedeu à aglutinação do quesitado na base instrutória sob os quesitos 1 a 3, de modo a eliminar o conceito de “acidente” e o subsequente “choque”.
e. Acresce que o quesito 4 foi de igual modo, simplificado.
f. Não se pode aceitar que o tribunal, a seu bel prazer, reescreva os quesitos, numa manifesta tentativa de poder assim suportar a tese surrealista da ré de que estaríamos perante um conluio entre o autor e um outro terceiro, tendo o acidente sido simulado.
g. O raciocínio expendido padece de um inegável vício, violador do preceituado no art. 653/2 do CPC, uma vez que, referindo-se “Para a resposta aos quesitos 1º a 3º o tribunal considerou acessória e instrumentalmente os documentos de fls. 188, 189, 208 a 219 e, em particular, de fls. 227 a 246v, conjugadamente com os depoimentos das testemunhas da ré” não são, todavia, especificados os factos narrados ou sequer as afirmações proferidas por tais testemunhas, decisivos para a concretização da resposta dada a tais quesitos.
h. Estranha-se tal entendimento, porquanto nenhuma das testemunhas da ré assistiu ao acidente, não se percebendo o que possam ter referido que contradiga a versão apresentada pelo recorrente.
i. Os depoimentos das testemunhas do recorrente que efectivamente acorreram ao local do sinistro foram bastante esclarecedores, não permitindo segundas interpretações do que aconteceu naquela madrugada.
j. O facto de ser de noite e de, portanto, não haver luz natural, empobrece os depoimentos.
k. Não se pode aceitar que se considere que a descrição do Sr. agente da GNR “F” foi “parca, vaga e inconcludente”.
l. Não se compreende o que possa ter levado o Tribunal a “desconsiderar os depoimentos das testemunhas do autor - que, assinale-se, não presenciaram o embate – nos segmentos em que empolaram as consequências do embate, quer para o próprio autor, quer para o veículo”.
m. Rejeitam-se peremptoriamente as conclusões retiradas dos depoimentos, porquanto as mesmas demonstram uma inaceitável desconfiança do julgador, que, não se esqueça, deve ser um terceiro imparcial.
n. Há que atender aos esclarecimentos prestados pelo Sr. agente da GNR “F” – CD1 12.01.2012, 10:10:23 // 10:24:05 - que refere inclusivamente a ocorrência de acidentes com vitimas mortais na estrada em questão.
o. O depoimento do Sr. “G” - CD1 12.01.2012, 10:46:23 // 11:02:58 -, franco e honesto, pouco preciso até em alguns pontos que denota a veracidade e espontaneidade do relatado, torna-se evidente o mau estado em que o veículo ficou, levando a testemunha a temer pela saúde do recorrente.
p. A testemunha “H” - CD1 12.01.2012, 11:02:58 // 11:15:55 - cabalmente relatou o que viu naquela noite, não restando quaisquer dúvidas quanto aos danos sofridos pelo veículo.
q. As declarações das testemunhas infirmam o expendido na sentença quando se refere “temos por certo e inequívoco não ter o autor logrado fazer prova da ocorrência de facto fortuito causal dos danos apurados na viatura sua propriedade”.
r. Bem ao invés, as testemunhas “G” e “H” afirmaram que o recorrente não se recordava do que tinha sucedido, acrescentando a testemunha “F” que naquele local são frequentes acidentes.
s. Como acrescentou o Sr. “H” o facto de serem longas rectas sucedidas de curvas, leva a que a monotonia da condução se apodere do condutor que ao chegar à curva já não tem tempo de reagir.
t. Quanto aos danos do veículo terá que se aceitar, sem quaisquer reservas, que os mesmos decorreram do despiste, evidente na imagem utilizada pela testemunha “F” de que o carro estava “abraçado” à árvore.
u. Perante a expressividade de tal afirmação será de afastar, sem mais, a hipótese da simulação, aceitando, sem reservas, que se tratou de um qualquer evento que escapou à vontade do recorrente, levando-o a perder o controlo do veículo, como tantas vezes acontece na condução estradal.
v. Ou seja, um “acidente” tal como é definido pelo Dicionário de Língua Portuguesa da Porto Editora, um “acontecimento eventual ou acção de que, involuntariamente, resultam danos para as pessoas ou para as coisas”.
w. Não se compreende como se pode excluir este conceito da factualidade retratada nos autos.
x. A contestação da ré tem por supedâneo um eventual acto intencional do recorrente, todavia, tal matéria desde logo não foi sequer quesitada, não decorrendo dos autos elementos que tornem sequer plausível tal entendimento.
y. Entende o tribunal que as lesões apresentadas pelo recorrente eram parcas e pouco severas, contudo não se olvide que o veículo em causa era um Mercedes, sendo apanágio da marca a segurança e fiabilidade dos seus carros.
z. Das declarações das três testemunhas que estiveram no local e dos documentos, resulta ainda, ao contrário do que é referido na sentença, que o recorrente foi assistido e transportado para o hospital pelos Bombeiros Voluntários de Pataias.
aa. Não se compreende o desconhecimento fáctico dos pormenores do acidente alegado na sentença, muito menos se aceitando que sequer se equacione que os danos reportados não tenham sido resultantes do embate ocorrido precisamente naquele dia, havendo no local diversos vestígios a saber “plásticos e outras peças do veículo” conforme participação do acidente elaborada pelas autoridades.
ab. Neste sentido, o tribunal violou o disposto no art. 659/3 do CPC, não resultando da sentença quais os elementos fácticos considerados e muito menos o “exame crítico das provas que lhe cumpre conhecer”, não sendo assim possível apreender o iter cognoscitivo e valorativo percorrido pelo julgador tal é redundante e abrupta a forma como conclui pela inexistência de um acidente.
ac. Acresce que, considerando a matéria constante da base instrutória e a prova produzida, ainda que no espírito do tribunal restem quaisquer dúvidas sempre se terá que atender ao estatuído no art. 342/3 do Código Civil que prescreve que em tal caso “os factos devem ser considerados como constitutivos do direito”, ocorrendo in casu um manifesto erro na apreciação da matéria de facto.
ad. O tribunal a quo negando aos factos constantes dos autos a qualificação de acidente, abstém-se de conhecer da questão do quantum que cabia ao recorrente em virtude do acidente.
ae. Neste âmbito, atente-se no depoimento do Sr. “I” – CD1 12.01.2012, 11:16:41 // 11:36:41 -, perito de seguros, que explica como são elaboradas as apólices para os carros de alta cilindrada, bem como o procedimento adoptado aquando da elaboração do contrato de seguro em causa nos autos.
af. Daqui decorre que o valor é introduzido na plataforma informática fornecida pela recorrida, não estando na disponibilidade das partes negociar quaisquer quantias.
ag. Pelo que não se aceita que se evoque uma situação de sobresseguro, quando a recorrida tem conhecimento integral de todo o clausulado da apólice e do valor do veículo a segurar.
ah. Consequentemente, não se aceita que o tribunal ponha em causa o valor do carro aquando da elaboração da apólice, uma vez que dos autos não constam elementos que permitam infirmar a veracidade do valor atribuído.
ai. Aliás, se àquela data o carro considerando todos os extras não pudesse ter tal valor, não seria sequer possível a emissão da apólice, o que desde logo afasta a possibilidade de se verificar uma situação de sobresseguro.
aj. Da factualidade suportada pelos depoimentos das testemunhas e nos documentos decorre que o recorrente sofreu um acidente quando conduzia o veículo sinistrado e segurado pela recorrida, cabendo-lhe, por isso, de acordo com as condições da apólice ressarci-lo, não se podendo o tribunal abster de fixar tal valor.
A ré contra-alegou defendendo a improcedência do recurso.
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Alegações complementares
Para a eventualidade da revogação da decisão recorrida - que está baseada na consideração de que o autor “não […] logr[ou] fazer prova da ocorrência de facto fortuito causal dos danos apurados na viatura sua propriedade, objecto seguro na ré”, isto é, com base em que os factos provados não preenchiam a previsão do risco coberto -, as partes foram notificadas, nos termos do art. 715/3 do CPC, para se pronunciarem, em eventuais alegações complementares, sobre a questão dos montantes a pagar pela seguradora. Questão que o tribunal recorrido expressamente não decidiu por a ter considerado prejudicada pela improcedência da primeira, embora se tenha pronunciado sobre ela a título subsidiário (“nesta medida fica prejudicado o conhecimento da segunda temática […], a da quantificação e extensão da responsabilidade da ré […] Em todo o caso sempre diremos que […]”).
O autor veio dizer que a resposta dada aos quesitos 5 e 6 não especificava os factos narrados ou sequer as afirmações proferidas pelas testemunhas decisivas para a concretização da resposta, e depois repete o que tinha dito nas alegações iniciais quanto ao valor atribuído ao veículo no seguro e, por fim, repete, quanto ao valor em que deve ser condenada a seguradora, a construção feita na petição inicial.
A ré, por sua vez, diz que o tribunal recorrido já se tinha pronunciado quanto à questão da quantificação e extensão da sua responsabilidade [em termos que serão transcritos abaixo, na altura própria] e diz que cabia ao autor o ónus da prova relativamente ao valor atribuído ao veículo em causa, bem como aos seus extras, conforme o disposto no art. 342/1 do Código Civil, e que o autor não logrou fazer tal prova. Invoca prova testemunhal e documental no sentido de que o veículo estaria sobrevalorizado, que é a prova referida na fundamentação da decisão da matéria de facto, relativamente ao quesito 5, mas inclui um documento que não foi admitido nos autos (factura da venda do veículo de Fev2009). E conclui que o tribunal recorrido decidiu bem.
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Questões que cumpre solucionar: se a resposta aos quesitos deve ser alterada; se os factos provados são suficientes para considerar o embate de que tratam os autos coberto pelo seguro celebrado com a ré; e, no caso de o ser, o montante da prestação a pagar pela seguradora.
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Do recurso contra a decisão proferida sobre a matéria de facto
Antes de mais, e dado que o autor a ela se refere em várias passagens, passa-se a transcrever a fundamentação da decisão da matéria de facto no que respeito aos quesitos a 1 a 3 e 4, para se poder entender o alcance das conclusões do recurso do autor.
Diz tal decisão:
“Para a antecedente decisão sobre a matéria de facto o tribunal analisou crítica e conjugadamente os documentos juntos aos autos e os depoimentos prestados, nos segmentos em que se mostraram coerentes e lógicos atenta a razão de ciência de cada uma das testemunhas, sem perder de vista as regras da experiência, bem como os ónus de prova.
Na resposta à matéria dos arts 1 a 3 e 4, teve-se em especial atenção o teor integral do auto de participação do acidente, a fls. 6 ss., conjugadamente com o depoimento do guarda “F”s, que o elaborou; participação relativamente à qual se teve em consideração quer o croqui e respectiva legenda, que evidencia as características do local, quer a circunstância de que o guarda que a subscreveu não presenciou o sinistro, tendo a descrição que dela consta resultado exclusivamente de declarações do autor no local, descrição essa que é parca, vaga e inconcludente.
Relativamente às características do local, o croqui foi analisado conjugadamente com as fotos juntas em audiência, que se encontram a fls. 156 e 157.
Não pode deixar de se ter em consideração que nenhuma das testemunhas inquiridas assistiu ao embate, resultando mesmo das suas versões e da própria participação que ninguém terá presenciado.
Pese embora o autor tenha junto aos autos (a fls. 179) recibo do pagamento de taxa moderadora de urgência e de RX ao tórax e à coluna cervical, de 08/05/2009, nada nesse documento nos diz a que horas desse dia o autor se deslocou à urgência e qual o resultado desses exames, nem tão pouco as causas que levaram o autor a deslocar-se ao Hospital. Circunstâncias a que se atendeu para, no confronto com a participação, desconsiderar os depoimentos das testemunhas do autor - que, assinale-se, não presenciaram o embate - nos segmentos em que empolaram as consequências do embate, quer para o próprio autor, quer para o veículo.
Na verdade, não podemos deixar de atentar em que da participação consta claramente que foi o autor que descreveu o embate ao guarda “F” e que lhe foi realizado o teste de álcool, evidenciando que o autor estava fisicamente bem. Repare-se que da participação consta apenas que o autor tinha ferimentos, cuja natureza não está sequer descrita indiciando tratar-se de ferimentos de pouca importância, e cujas causas se desconhecem, nem da participação consta, como se imporia se tal tivesse ocorrido, que o autor tenha sido retirado do local em ambulância, como as 2ª e 3ª testemunhas do autor transmitiram.
Para a resposta aos arts 1 a 3 o tribunal considerou acessória e instrumentalmente os documentos de fls. 188, 189, 208 a 219 e, em particular, de fls. 227 a 246v, conjugadamente com os depoimentos das testemunhas da ré.
Na verdade, no que respeita à ocorrência de acidente, o autor não logrou demonstrar a sua verificação com a certeza de que as decisões judiciais carecem.
[…]”
*

(…).

Factos provados [já com as alterações decorrentes da parcial procedência do recurso contra a decisão da matéria de facto; os sob alíneas vêm dos factos assentes, os sob números vêm da resposta aos quesitos]:
A) O autor e a ré celebraram entre si o contrato de seguro titulado pela apólice n.º ..., pelas cláusulas, condições particulares e gerais que constam de fls. 36 a 71 dos autos, e designadamente as seguintes [acrescentam-se alguns dados dos docs. em causa, em itálico, por importarem à apreciação das questões que cumpre solucionar; “traduziram-se”, ainda, as iniciais usadas]:
Produto automóvel ligeiros - prestígio
Capital do veículo: 47.320€
Extras
Outros extras diversos 9400€
Condições particulares da apólice (…)
Coberturas, capitais e/ou limites de indemnização e franquias […]
Choque colisão capotamento e quebra isolada de vidros Capital: 56.720€; Franquia: 500€
Complemento valor venal - danos próprios - capital: conforme condições gerais: ou seja: uma indemnização correspondente a 20% do valor venal do veículo seguro à data do sinistro [da apólice apresentada pela ré – que não terá reparado que se tratava de um contrato “prestígio” – e junta aos autos não consta esta cláusula; pelo que a sua concretização é feita agora de acordo com o alegado pelo autor no artigo 17 da petição, não impugnado pela ré, que fez da existência da mesma um dos argumentos da sua contestação; assim este facto é acrescentado ao abrigo do disposto nos arts. 713/2 e 659/3, ambos do CPC].
O objecto seguro encontra-se sujeito à tabela de desvalorização a seguir indicada: […] do mês 7 do 4 ano ao mês 2 do ano 8, a desvalorização mensal do veículo é de 0,60%.
B) Os salvados têm um valor não superior a 10.800€ e a reparação custaria mais de 50.000€.
C) A ré vistoriou o veículo no dia 13/05/2009 e concluiu que a sua reparação “era técnica e economicamente desaconselhável, concluindo pela perda total.”
D) Em 08/05/2009 o veículo tinha 51 meses após a data de fabrico.
1/2/3. No dia 08/05/2009, pelas 3h, na Estrada Atlântica, em Paredes da Vitória, concelho de Alcobaça, no sentido Pataias – Pedra do Ouro, o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula 00-00-ZJ, ficou embatido num pinheiro, no lado direito da via, no referido sentido Pataias – Pedra de Ouro.
4. Em consequência do embate, o veículo sofreu vários danos em toda a frente, em ambos os lados, no capot, nos airbags, no motor, e no chassis que ficou deformado e recuado.
*
Do recurso sobre matéria de direito
A principal questão que o recurso levanta é a de saber se os factos provados preenchem ou não a previsão das coberturas previstas. É a isto que, de uma forma ou de outra se dedicam as conclusões (c), (d), (f), (q), (t), (u), (v), (w), (x) e (aj).
A sentença recorrida entendeu que não, com a seguinte fundamentação:
“O objecto seguro […] t[inha…] coberturas facultativas resultantes das condições particulares da apólice, assim mais concretamente cobertura de danos próprios por choque, colisão, capotamento e quebra isolada de vidros e complemento do valor venal.
O art. 1 das condições especiais da referida apólice prescreve sob a epígrafe “definições” que: “Para efeito da presente condição especial considera-se: choque: danos no veículo seguro resultantes do embate contra qualquer corpo fixo ou sofrido por aquele quando imobilizado”.
Ora, vista a factualidade provada supra em 1/2/3 (até por contraponto com o que fora alegado e se encontrava quesitado de 1 a 4 da base instrutória), temos por certo e inequívoco não ter o autor logrado fazer prova da ocorrência de facto fortuito causal dos danos apurados na viatura sua propriedade, objecto seguro na ré, o que conduz inelutavelmente ao indeferimento da sua pretensão.
Com efeito, apurou-se apenas que em certo dia e hora o veículo seguro ficou embatido num pinheiro e que apresentava danos, desconhecendo-se, por um lado, se ficou embatido na sequência do risco próprio da condução estradal, independente de acto intencional do segurado (excluído do âmbito da cobertura – cfr. art. 36/1b, das condições gerais da referida apólice) e, por outro, se os danos que apresentava foram resultantes desse embate.”
*
Ou seja, a sentença recorrida diz que os danos apresentados pelo veículo não estavam cobertos porque considera implicitamente que tal só aconteceria se os danos fossem derivados de um facto fortuito, e diz que não se sabe se se está perante um facto fortuito porque não se sabe se o embate ocorreu na sequência do risco próprio da condução estradal independente de acto intencional do segurado (excluído do âmbito da cobertura – art. 36/1b das condições gerais da apólice) e se os danos foram resultantes desse embate.
Quanto a esta última objecção, ela fica afastada com a alteração da resposta dada ao quesito 4. Mas mesmo que a resposta não tivesse sido alterada, a objecção tinha que ser à mesma afastada visto que, o choque, na definição transcrita acima, válida para o seguro contratado, incluía também os danos sofridos pelo veículo quando imobilizado, não sendo necessário que fossem danos resultantes do embate.
Quanto ao risco coberto, ele não é apenas um facto fortuito que provoque danos no bem segurado, mas sim, tal como consta da definição transcrita na sentença, um choque, considerando-se como tal: “danos no veículo seguro resultantes do embate contra qualquer corpo fixo ou sofrido por aquele quando imobilizado”.
Ora, no caso dos autos existem danos resultantes do embate, pelo que o risco está verificado.
Quanto à objecção de que “não se sabe se o embate ocorreu na sequência do risco próprio da condução estradal independente de acto intencional do segurado (excluído do âmbito da cobertura – art. 36/1b das condições gerais da apólice)” se se reparar bem, corresponde a, por um lado, dizer que o risco coberto afinal não é um facto fortuito, mas sim um risco próprio da condução estradal, com o que a sentença se contradiz, e, por outro lado, corresponde a dizer que o risco coberto é a hipótese inversa da previsão de uma situação excluída. Ou seja, pega-se numa situação excluída da cobertura, inverte-se a respectiva previsão e diz-se que é este o risco coberto. O que se traduz, afinal, em impôr ao autor o ónus da prova da não verificação de uma situação excluída do risco coberto.
Não pode ser.
Ao autor cabe a alegação e o ónus da prova da verificação do risco coberto, o que no caso o autor fez com a prova da existência de danos no seu veículo em consequência de um embate, como quer que ele tenha sido provocado.
À ré seguradora cabe a alegação e o ónus da prova da verificação de uma situação excluída do risco (como facto impeditivo do direito do autor – art. 342/2 do CC) que no caso é a de os danos terem sido “causados intencionalmente pelo tomador do seguro, segurado, pessoas por quem estes sejam civilmente responsáveis ou às quais tenham confiado a guarda ou utilização do veículo seguro.” (art. 36/1b das condições gerais do contrato de seguro).
No sentido de que o ónus da prova da ocorrência de uma situação prevista numa cláusula de exclusão da cobertura cabe às rés seguradoras, vejam-se, apenas por exemplo, os acs. do TRC de 03/05/2011 (1922/07.3TBPMS.C1, que cita no mesmo sentido o ac. do STJ de 14/12/2004, CJSTJ.III, pág. 146), do TRL de 17/03/2011 (2360/08.6YXLSB.L1-2) e do STJ de 03/02/2009 (08A3947): “a cláusula 3ª das condições gerais do contrato de seguro, consagra um elenco de situações cuja cobertura o mesmo exclui, designadamente, o risco de morte resultante de doença pré-existente ou de doença ou lesão provocada por factos que sejam consequência da ingestão de estupefacientes não sujeita a prescrição médica. Porém, este e outros riscos excluídos da cobertura contratual do seguro de vida traduzem-se em factos ou causas impeditivas do efeito jurídico dos factos articulados pela embargante, susceptíveis de obstar a que o direito desta se tenha, validamente, constituído, mas que à chamada ou à embargada, como defesa por excepção, competiria demonstrar, e não aquela, como autora, fazer a prova da inexistência de qualquer uma dessas causas de exclusão, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 342/2, do Código Civil, e 493/3, do CPC.”
Assim, por exemplo, num seguro que cubra incêndios que sofram bens próprios segurados, não é ao segurado que cabe a prova de que o incêndio foi acidental, mas sim à seguradora que cabe provar que o incêndio foi provocado intencionalmente pelo segurado.
Neste sentido, veja-se o ac. do TRL de 02/04/2009 (4283/04.9TBVFX.L1-2):
[…] IV – A previsão, num contrato de seguro de incêndio, de cláusulas de exclusão da responsabilidade da seguradora, constitui implícita convenção de que cabe à seguradora, para se ver livre da responsabilidade emergente dos danos resultantes do incêndio, demonstrar que ocorreram as aludidas circunstâncias. V - Se não se apurarem as causas do incêndio, a seguradora deve ser responsabilizada pelas respectivas consequências.”
E não se diga que o exemplo é tirado de um caso de seguros contra incêndio, pois que o que importa, no caso, são as cláusulas contratuais (desde que estas não sejam proibidas por lei: art. 427 do CCom) e as cláusulas contratuais deste caso e do caso dos autos são equiparáveis.
E aliás tudo isto está na linha do disposto no art. 437 do CCom que dizia (ainda à data dos factos) que “o seguro fica sem efeito: […] 3.º Se o sinistro tiver sido causado pelo segurado ou por pessoa por quem ele seja civilmente responsável.” Ora, não é ao segurado que cabe a prova de que o sinistro não foi por ele causado, mas sim à seguradora que cabe a prova de que o sinistro foi causado pelo segurado, para conseguir a sua irresponsabilidade [como se lembra no ac. do TRL de 02/04/2009, já citado, a expressão “o seguro fica sem efeito” pretende significar que a seguradora não será responsável pelo sinistro que tenha ocorrido naquelas condições (invoca nesse sentido Cunha Gonçalves, Comentário ao Código Comercial Português, volume II, 1916, Lisboa, Empresa Editora José Bastos, pág. 565)].
Assim, se a ré tem o ónus de provar que os danos sofridos foram causados intencionalmente pelo tomador do seguro, para se livrar da responsabilidade, e se, por isso, se ela não provar que os danos foram causados intencionalmente pelo tomador do seguro, isto é, se se desconhecer se os danos foram causados intencionalmente pelo tomador do seguro, ela tem de responder pelos danos provados, não se pode dizer que “desconhecendo-se se o veículo ficou embatido na sequência do risco próprio da condução estradal, independente de acto intencional do segurado”, tal corre por conta do autor.
E aqui relembra-se que, como resulta da transcrição quase integral da contestação da ré, ela nunca alegou factos que preenchessem a previsão normativa da exclusão do art. 36 das condições gerais do contrato, apesar da sugestões nesse sentido que foi fazendo. E que o autor, embora sem conseguir provar a sua versão do embate, conseguiu provar factos suficientes para que se possa dizer preenchida a previsão da cobertura contratada. Note-se, por fim, que as apreciações que se fazem na fundamentação das decisões das matérias de facto não valem como factos. O que conta como factos são apenas os factos dados como provados a esse título.
Em suma, por não se provar que se esteja perante uma situação excluída do risco coberto, a ré tem de pagar a contraprestação a que se obrigou, procedente pois, nesta medida, as conclusões do recurso indicadas.
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O valor a pagar
São as conclusões (ab), (ad), (ag), para além de outras que também se reportam à impugnação da decisão da matéria de facto, como por exemplo, as (af), (ah), (ai) e (aj), que põem, a nível do Direito, a questão do valor a pagar.
A questão do valor a pagar pela seguradora não se chegou a colocar à sentença recorrida, porque ficou prejudicada pela decisão dada à anterior.
Cumpre agora conhecer dela, por força do art. 715/2 do CPC.
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O veículo (incluindo os extras) foi segurado pelo valor 56.720€.
A própria ré concluiu pela perda do total do veículo [facto C)].
O veículo à data do acidente tinha-se desvalorizado, desde a data da contratação do seguro, em 2,40%, ou seja, 1361,28€, pelo que valia 55.358,72€.
Os salvados têm, pelo menos, um valor de 10.800€, sendo que este valor se tem de descontar àquele, que assim fica reduzido a 44.558,72€.
É pois este valor aquilo que a seguradora tem de pagar por esta cobertura.
A questão levantada na contestação pela seguradora, relativamente aos extras – “é óbvio que o acidente pode ter afectado o veículo, mas não teve incidência sobre a maioria dos extras, amovíveis” - , não tem razão de ser. O valor dos salvados inclui os extras, estejam eles em condições ou não.
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A questão do sobresseguro
A seguradora, nas alegações complementares vem invocar aquilo que foi dito na sentença recorrida sobre a “quantificação e a extensão da responsabilidade da seguradora”. De facto, a sentença recorrida, apesar de não ter decidido a questão, por a considerar prejudicada, “em todo o caso sempre d[isse…]”:
“[…] que a factualidade provada em 5, demonstrando que no contrato de seguro vertente o capital seguro é superior ao valor da viatura segura, sempre levaria à improcedência em parte do peticionado.
Com efeito, sempre se verifica uma situação típica de sobresseguro [sobre o tema, vide na doutrina, entre outros, José Vasques, O contrato de seguro; Moitinho de Almeida, O contrato de seguro no direito português e comparado; e, na jurisprudência, acs. do STJ de 25/2/1949, BMJ 11º/247, de 2/11/1962, BMJ 121º/340, de 2/11/1976, BMJ 261º/126, de 9/12/1992, BMJ 422º/394, e de 24/2/2012, 32/10.0T2AVR.C1.S1, in www.dgsi.pt.], posto que, ab initio o objecto do seguro tinha um valor inferior ao declarado, ou seja, um valor inferior àquele pelo qual se encontra seguro.
Como se explicou no ac. do STJ de 24/2/2012 (referido acima), esta figura foi inserida na generalidade das ordens jurídicas europeias, seja nas codificações de direito comercial do século XIX, seja na legislação sobre seguros, devido à natureza e função exclusivamente indemnizatória dos seguros de risco (ou seguros contra danos), “assente no princípio de que o segurado deve ser ressarcido dos prejuízos efectivamente sofridos até ao limite da cobertura da apólice”, “consagrando em simultâneo e com base nos mesmos princípios e fundamentos, um princípio legal (princípio do indemnizatório) segundo o qual o seguro só é válido dentro do valor segurável entendido este como o valor real do objecto seguro”.
Na legislação nacional rege presentemente o art. 132 do DL 72/2008, de 16/04, o qual revogou o art. 435 do CCom, que dispunha sobre a regulamentação do regime do sobresseguro e consagrava o princípio do indemnizatório (art. 6/2a, do DL 72/2008), estatuindo que “se o capital seguro exceder o valor do interesse seguro é aplicável o disposto no artigo 128, podendo as partes pedir a redução do contrato”. Por sua vez este art. 128 consagra claramente aquele princípio do indemnizatório prescrevendo que “a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro”.
Assim da conjugação destes normativos temos que o princípio do indemnizatório determina num primeiro momento que o valor do capital seguro não deve ser superior ao valor do interesse seguro (proibição de sobresseguro) e, num segundo momento, que o valor da indemnização não seja superior ao valor do interesse lesado (valor dos danos).
Transpondo ora para o caso vertente, temos que o contrato em apreço deve considerar-se ferido de invalidade na parte excedente ao valor real do objecto seguro, como provado em 5.
Como se escreveu ainda naquele aresto do STJ: “Se procuramos uma justificação para esta realidade normativa não podemos deixar de ter presente o principio (estruturante da nossa ordem jurídica) segundo o qual o dever de indemnizar visa colocar o lesado na posição que teria se não fosse o dano, significando isto que o quantum indemnizatório deve corresponder ao prejuízo efectivamente sofrido – principio geral contido no art. 562 CC – não podendo nunca constituir um meio de proporcionar um injustificado enriquecimento do lesado, ter um carácter especulativo, ou muito menos constituir um modo fraudulento de enriquecimento patrimonial, sendo oportuno, apesar de constituir principio de valoração omnipresente, lembrar a este propósito que o direito nunca pode ser desagregado de sentido ético nem tão pouco da boa fé que constitui, aliás um principio estruturante da nossa ordem jurídica. São precisamente os argumentos acima invocados que conduzem a que as razões da regulamentação dada na nossa ordem jurídica à questão do sobresseguro (ou seguro excedente) devam ser, como são, consideradas verdadeiras razões de ordem pública destinadas à salvaguarda do princípio do indemnizatório daí resultando que se deva considerar ferida de nulidade absoluta toda a parte do valor contratualmente coberto que exceda o valor do objecto segurado.”
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Do regime aplicável ao caso dos autos
O contrato de seguro dos autos foi celebrado em 2008, com produção de efeitos a partir de 05/12/2008. Portanto, antes do início da vigência do regime jurídico do contrato de seguro (= LCS) aprovado pelo Dec.-Lei 72/2008, de 16/04, que entrou em vigor em 01/01/2009 (art. 7 deste Dec.-Lei). Como o contrato ainda não tinha sido renovado, aplica-se, às questões que os autos levantam, o antigo regime (arts. 2/1 e 3/1 do mesmo Dec.-Lei), constante dos arts. 425 a 462 do Código Comercial (= CCom).
Qualquer deles regimes tem de ser complementado pelo Dec.-Lei 214/97, de 16/08, que “institui regras destinadas a assegurar uma maior transparência em matéria de sobresseguro nos contratos de seguro automóvel facultativo.”, porque já estava em vigor no âmbito da vigência do CCom e não foi revogado pela LCS.
Apesar de se aplicar, no essencial, o antigo regime (CCom), ir-se-ão considerando, por esclarecedoras, as regras da LCS, porque, como se diz no preâmbulo do Dec.-Lei 72/2008, “[a] reforma do regime do contrato de seguro assenta primordialmente numa adaptação das regras em vigor, procedendo à actualização e concatenação de conceitos de diversos diplomas e preenchendo certas lacunas. Procede-se, deste modo, a uma consolidação do direito do contrato de seguro vigente […]”.
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Da forma de fixação do valor do interesse seguro
O valor pelo qual o interesse sobre um dado bem é segurado pode ser fixado num contrato de seguro só com base na declaração do tomador do seguro, isto é, sem que se possa dizer que o contrato celebrado engloba um acordo da seguradora sobre o valor indicado pelo tomador do seguro.
Mas o valor do interesse seguro também pode ser fixado com base num acordo entre tomador e seguradora.
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O Comentário de Cunha Gonçalves ao Código Comercial Português, Lisboa, vol. II, 1916, Empresa Editora José Bastos, Lisboa, pág. 525, dava conta desta diferença de situações, já em correlação com as questões do princípio indemnizatório e do sobresseguro:
[…] Este valor [da coisa segurada] é, em geral, fixado de comum acôrdo ou declarado sómente pelo segurado.
Efectuado o acôrdo entre as partes, ainda que o valor varie com o decurso do tempo, ou seja superior ou inferior ao verdadeiro, não poderá o segurado exigir uma reducção do prémio, nem o segurador uma reducção da indemnização após o sinistro, poisque ao maior valor atribuido corresponde maior prémio e assim fica a condição dos contraentes equilibrada.
É certo que o art. 435 dispõe que, «excedendo o seguro o valor do objecto segurado, só é válido até á concorrencia dêsse valor», porque o seguro, - nunca é demais repeti-lo, - não é para o segurado um contrato lucrativo. Mas, este preceito não impede que o valor da cousa segurada seja fixado por acôrdo, pois nêste caso não se pode dizer que «o seguro excede o valor do objecto», ainda que este valor diminua após o contrato por efeito das leis económicas ou doutras causas. O art. 435 refere-se ao valor decla­rado pelo segurado e que o segurador aceitou em boa fé, sem proceder a uma pessoal avaliação.
A avaliação por acôrdo poderá ser feita tambem por meio de peritos por ambas as partes nomeados e cujo laudo nenhuma destas poderá contestar, como é expresso do art. 439 § 1 n.º 1, embora este só se refira á contestação do segurador, por ser este quem fica sujeito á indemnização. O segurador só poderá impugnar a avaliação - em que haja colaborado quando fôr victima de dolo, fraude ou falsificação da parte do segurado ou dos peritos, devendo notar-se que o vício da avaliação não anula o con­trato e só autoriza a reducção do valor.
Mas, não tendo havido tal colaboração, o segurador poderá sempre verificar, antes ou depois do sinistro, o exacto valor da cousa segurada, por todos os meios admissíveis em direito (n.º 2, do cit. § 1 do art. 439), pondo de parte a declaração do segurado, que se considera sempre como provisoria ou sujeita á correcção, pois a disciplina jurídica do seguro das cousas funda-se toda nêste principio: “onde falta o fim económico-jurídico de indemnização, falta a legitimidade do contrato.”
E mais à frente (págs. 573/574):
“Já vimos atrás que este valor [o das coisas seguras no momento do sinistro] pode ser fixado na apólice com prévia avaliação feita pessoalmente e de comum acordo ou por meio de arbitradores nomeados pelas partes. […]
Mas, é preciso que a intenção comum de estabelecer definitivamente e de modo indiscutível o valor das cousas para o efeito da indemnização resulte da apólice com toda a clareza; poisque, na falta de declaração expressa, deve prevalecer a regra de que a avaliação foi unilateralmente feita somente para a fixação do máximo da indem­nização e para o cálculo do prémio. É de harmonia com este princípio que se deve interpretar e aplicar o n.º 1 do §1 do art. 439, segundo o qual, «se o valor foi fixado por arbitradores nomeados pelas partes, o segurador (e tambem o segurado) não o pode contestar».
Este preceito, que teve por fonte o art. 435 do cod. italiano, representa uma deturpada tradução dêste, que diz: «Se o seguro foi precedido duma avaliação aceita pelo segurador, este não poderá impugná-la senão em caso de fraude, simulação ou falsi­ficação,» etc. E assim se explica o n.º 2 daquêle § 1.., que é a outra alínea dêste art. 455: «se o não foi, o valor pode ser verificado por todos os meios de prova admitidos em direito». Ora, sendo o arbitramento um dêstes meios, é claro que o n.º 1. não se pode referir á avaliação posterior ao sinistro. As expressões «se foi fixado» e «se o não foi» referem-se ao passado. O segurador não pode contestar a avaliação, não por ter sido feita por arbitradores, mas porque foi convencionada na apólice. E egual­mente não a pode contestar o segurado, porque o contrato obriga ambas as partes; é no interesse de ambos e de comum acôrdo que o valor foi fixado na apólice.
Mesmo assim, porém, ha escritores que entendem servir tal avaliação sómente para libertar o segurado da obrigação que lhe incumbe de provar o valor das cousas no momento do sinistro; e que ela não impede a impugnação do segurador, tendente á verificação do valor verdadeiro. Mas, esta opinião é inaceitável, já porque é con­trária ao claro texto da lei, já porque o valor é verdadeiro desde que o segurador o verificou e não se limitou a aceitar a declaração unilateral do segurado. Não vale o argumento de que o segurado pode receber mais do que o seu prejuízo; pois isto pode suceder também nos seguros marítimos, como já disse; e, além disto, o valor conven­cionalmente fixado é, precisamente, o que as cousas perdidas terão no momento do sinistro, qualquer quê seja a época em que este ocorrer.”
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Valor declarado e valor acordado
Pode-se, assim, falar num valor declarado e num valor acordado e para que se possa falar num valor acordado pela seguradora não basta que esta aceite a declaração (corpo do art. 429 do CCom) ou a indicação do valor pelo tomador do seguro (art. 49/2 da LCS).
A existência do acordo da seguradora sobre o valor resultará demonstrado, normalmente, através de cláusulas contratuais especifícas inseridas no contrato de seguro (cláusulas de que se falará abaixo).
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Valor declarado e sobresseguro
Quando se estiver perante um valor declarado e esse valor for superior ao valor real do interesse, ou seja, quando houver sobresseguro, a solução da questão (da discrepância entre um e outro) é dada pela regra de que a seguradora pagará a indemnização pelo valor real do interesse (arts. 435 do CCom e 132/1 e 128, ambos da LCS).
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Do princípio indemnizatório
O que antecede é um dos corolários do denominado princípio indemnizatório, também conhecido por princípio da não especulação ou, na Alemanha, segundo informa Margarida Lima Rego, como “princípio da proibição do enriquecimento do segurado a custa do segurador”, sendo que todas estas designações, só por si, já dizem das razões que o justificam. (Contrato de seguro e terceiros. Estudo de direito civil, Dissertação para doutoramento na FDUNL, Agosto de 2008, pág.167, consultado no repositório desta universidade).
Este princípio retirava-se do art. 435 do CCom e actualmente está consagrado em toda uma secção com esse título, da LCS (que abrange os arts. 128 a 136).
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Dizia o art. 435 do CCom que “[e]xcedendo o seguro o valor do objecto segurado, só é válido até à concorrência desse valor.”
Sobre esta norma dizia José Carlos Moitinho de Almeida (adjunto do procurador da república), O contrato de Seguro no Direito Português e Comparado, Edição patrocinada pelo Grémio dos Seguradores, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1971, págs. 177 a 179:
“[A] figura do sobresseguro, […] verifica[-se] sempre que ab initio ou no decurso do contrato a coisa apresenta um valor inferior à quantia por que ela se encontra segura. A maioria das legislações distingue conforme o sobresseguro seja utilizado pelo segurado para a obtenção de um lucro ilícito ou não o seja. […] O artigo 435.° do Código Comercial estabelece que, «excedendo o seguro o valor do objecto segurado, só é válido até à concorrência desse valor». Não se faz, assim, distinção entre sobresseguro doloso e não doloso, e quanto a nós não será possível ao segurador recusar a sua prestação quando o segurado tenha fraudulentamente exage­rado o valor da coisa segura para colher um benefício na hipótese de sinistro. Na vigência do Código Comercial italiano, também omisso, havia quem sustentasse o contrário, fundando-se na nulidade resul­tante da causa ilícita (artigo 1119.° do Código Civil italiano revo­gado) e nas exigências e necessidades do comércio de repressão da fraude, mas o fim ilícito do contrato só o torna nulo quando comum a ambas as partes (artigo 281.° do Código Civil) e a pres­tação do segurador, dentro do valor real da coisa segura, não é sus­ceptível de permitir o locupletamento do segurado.[…]”
Este autor era pois claro na opção que seguia na alternativa que depois colocava:
“No regime do Código Comercial o seguro só é válido dentro do valor segurável (artigo 435.°), devendo entender-se que o segurador tem direito à parte do prémio correspondente ao excesso; de duas uma: ou se interpreta a lei no sentido de que o segurador só deve realizar a sua prestação dentro do valor segurável, e neste caso não subsistem dúvidas, ou se entende que o preceito comina uma nuli­dade com base na presunção de dolo, tal corno nos seguros cumu­lativos, e então é de aplicar analógicamente o disposto no artigo 429.°, § único, do Código Comercial.”
Ou seja, o contrato é válido dentro do valor segurável e o segurador deve realizar a sua prestação dentro do valor segurável.
Tudo isto continua a ser assim, na LCS, como decorre do disposto nos seus arts. 128 e 132.
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Os três acórdãos intermédios citados na fundamentação subsidiária da decisão recorrida, não vão mais longe do que isto, isto é, limitam-se a falar do princípio indemnizatório na sua aplicação a questões diversas:
Assim, o ac. do STJ de 02/11/1962, BMJ 121º/340 a 343, trata da questão da validade de um seguro de coisa alheia por conta própria: “O seguro contra riscos destina-se a ressarcir o segurado dos prejuízos sofridos na coisa objecto do seguro. Não pode a indemnização a receber ser superior aos prejuízos sofridos, nem o segurado pode, sob pena de nulidade, segurar pela segunda vez pelo mesmo tempo e riscos, objecto já seguro pelo seu inteiro valor – art. 434 do Código Comercial. Resulta desta disposição e ainda dos arts 430.°, 435.°, 439.°, 444.° e 448.° do mesmo Código, que o contrato de seguro contra riscos não tem fins lucrativos, pois se destina unicamente a pagar ao segurado os prejuízos - perdas e danos - que sofreu em virtude do incêndio ocorrido na coisa objecto do seguro.”
O ac. do STJ de e de 2/11/1976, BMJ 261º/126, trata, na parte que aqui possa interessar, apenas da questão da validade de uma cláusula “segundo a qual ela [a apólice] não produz efeitos «quando, em caso de sinistro, o veículo sinistrado já se encontre seguro por qualquer outra apólice». O acórdão considera que a cláusula é válida, invocando para tal o artigo 434 do Código Comercial («O segurado não pode, sob pena de nulidade, fazer segurar segunda vez pelo mesmo tempo e riscos objecto já seguro pelo seu inteiro valor, excepto quando o segundo seguro houver sido subordinado à nulidade do primeiro ou de renúncia ao primitivo contrato»): “Vê-se, assim, que a lei fere de nulidade o segundo seguro, salvo casos ex­cepcionais que, no caso em debate, não se verificam. E compreende-se que assim seja: é que o seguro é um meio de ressarci­mento de um prejuízo e não uma forma de obter um lucro ou mais-valia. Assim, a nulidade do segundo seguro visa a evitar que o beneficiário, através de vários contratos de seguro sobre o mesmo objecto, possa obter lucros indevidos. Ora, se o segundo seguro é nulo, por lei, não pode deixar de ser válida a cláusula acordada no sentido do primeiro seguro ficar sem efeito no, caso de ser efectuado segundo seguro sobre o veículo coberto pela apólice até ao mesmo montante.
E o acórdão do STJ de 9/12/1992, BMJ 422º/394, diz respeito a um segundo seguro – pluralidade de seguros – e nele diz-se que se está perante uma anulabilidade, que não é de conhecimento oficioso, e não perante uma nulidade.
O ac. de 1949 do STJ refere-se ao ónus da prova e será referido mais abaixo.
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Do princípio indemnizatório “entendido em termos materiais” e do valor venal e do valor de substituição
Mas o princípio indemnizatório deve ser “entendido em termos materiais”, ou seja, também aqui tem aplicação aquilo que se diz a propósito da indemnização de danos de lesados na responsabilidade civil, ou seja, que não é o valor venal do interesse (do objecto quando o interesse for do proprietário) que importa indemnizar, mas sim o valor de substituição.
Ou seja, não é de ter em conta o valor venal (= de mercado) do objecto, no caso, do veículo sinistrado, mas sim o valor de substituição do veículo, ou seja, o valor necessário à compra de um veículo da mesma marca, tipo, idade e estado de conservação idêntico ao do sinistrado e, acrescente-se, com os mesmos extras não integrados de série, que normalmente será superior ao valor de mercado do veículo sinistrado (tudo isto tem em conta os ensinamentos que se tiram da anotação do Prof. Júlio Manuel Vieira Gomes, com ampla fundamentação e referências ao direito inglês, francês, italiano e alemão, ao ac. do STJ de 27/02/2003, Rev. 4016/02, publicada sob o título custo das reparações, valor venal ou valor de substituição? nos Cadernos de Direito Privado, nº. 3, Julho / Setembro 2003, e do próprio acórdão, publicado no ITIJ sob 02B4016); no mesmo sentido, de valor de substituição, vejam-se os acórdãos do STJ de 16/11/2000, CJ.STJ.2000, III, págs. 124/125, 07/07/1999, CJ.STJ.99, III, págs. 16/19, e de 21/02/2006, CJ.STJ.2006, págs. 83/85, e do TRL de 09/02/2006, CJ.2006.I, págs. 98/101 – todos citados pelo Prof. Paulo Mota Pinto, no seu Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo, Coimbra Editora, Dez2008, nota 1641, págs. 569 a 571, que segue a mesma posição e ainda cita no mesmo sentido uma anotação de Vaz Serra, a um ac. do STJ, publicada na RLJ. Sempre no mesmo sentido, veja-se também a posição de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, 2010, 9ª edição, Almedina, pág. 420 e respectiva nota, que por sua vez lembra, ainda no mesmo sentido, a anotação de Calvão da Silva, ao anotação do STJ de 04/10/2007, Concorrência entre risco do veículo e facto do lesado: o virar de página?, RLJ 137/3946 – Setembro-Outubro de 2007, especialmente a pág, 64).
Aliás, o entendimento contrário, que foi permitido durante uns tempos pelo art. 20-I/2 introduzido no Dec.-Lei 522/85, de 31/12, pelo Dec.-Lei 83/2006, de 03/05 (revogado pelo Dec.-Lei 291/2007, de 21/08, cujo art. 41 fala agora em valor de substituição), ou seja, o entendimento do valor do bem como o valor de venda no mercado, deve ser considerado inconstitucional (neste sentido, por exemplo, Paulo Mota Pinto, obra citada, notas 1639 a 1641, págs. 568/571: “Como não se vê que a alteração introduzida pelo Dec-Lei n.º 83/2006 seja adequada à renovação do parque auto­móvel […], e não pode assim deixar de con­cluir-se que estamos perante uma mal disfarçada (ou "contrabandeada" a pretexto da transposição de uma Direc­tiva) medida de claro favorecimento das seguradoras em prejuízo dos lesados. tem de concluir-se que as soluções em causa suscitam as mais sérias reservas, não só no plano da escandalosa injustiça material que comportam (pare­cendo necessário recordar a este propósito que o proprietário do veículo lesado, a ressarcir, não é o culpado pelo acidente), como, mesmo, eventualmente, no plano da constitucionalidade, pela violação da garantia consti­tucional contra uma privação forçada da propriedade (falando do direito do lesado a dispor do seu próprio património, v. L. Menezes Leitão, Direito das obrigações, I, cit. [5ª edição, 2006], p. 396) e pela manifesta desproporcionalidade e injus­tiça das soluções consagradas.
Daí que Menezes Cordeiro, Direito dos Seguros, Almedina, Janeiro de 2013, pág. 749, diga:
“O princípio do indemnizatório deve ser entendido em termos materiais: o que, em regra, não sucede. Há que ponderar e validar o dano concreto, no sentido de precisas desvantagens sofridas pelo lesado.
“Num exemplo infelizmente corrente: num sinistro, é destruído o automóvel do segurado: um modelo corrente que, novo, valerá € 20.000 e, usado com um ano, € 15.000; ao abrigo do artigo 128.°, o segurador irá pagar os € 15.000; mas com essa quantia, o segurado não vai comprar o modelo equivalente em condições (um automóvel com um ano de uso, em bom estado); provavelmente terá de optar ou por um modelo pior, ou por um automóvel novo, perdendo € 5.000. Outro: o lesado restaura um modelo de automóvel corrente mas antigo, com fins de coleção; é destruído num sinistro; o segurador, invocando o montante do dano, não considera o custo do restauro; vai pagar uma quantia mínima, invocando o valor do mercado.
Tudo isto passa impune, uma vez que o cidadão normal não vai intentar azardosas ações contra seguradores, para reaver, ao fim de anos e eventualmente, o valor em falta.”
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Conclusão parcial
Ora, se tudo isto for assim, então seria manifestamente insuficiente, para aplicação do princípio indemnizatório, com o seu corolário a nível do sobresseguro, a simples prova de que o veículo do autor, à data do contrato, tinha o valor venal ou de mercado inferior ao valor pelo qual foi segurado, porque esse não é o valor de substituição e é este que interessa. Ou seja, de nada serviria a prova do quesito 5 para se dar procedência à questão do sobresseguro agora levantada pela seguradora.
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O princípio indemnizatório é um princípio de ordem pública?
Ordem pública é “o conjunto dos princípios fundamentais, subjacentes ao sistema jurídico, que o Estado e a sociedade estão substancialmente interessados em que prevaleçam e que têm uma acuidade tão forte que devem prevalecer sobre as convenções privadas (Carlos Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra Editora, 2005, págs. 557/558).
Ou “representa um complexo valorativo que deve ser em qualquer caso mantido dentro da comunidade. É a resultante de princípios fundamentais, desde logo os da dignidade da pessoa humana, mas também outros que representam bases da vida social” (Oliveira Ascensão, Direito Civil. Teoria Geral, vol. II, Coimbra Editora, 1999, pág. 282).
Logo no preâmbulo do Dec.-Lei 72/2008, diz-se que “o princípio indemnizatório assenta[...] basicamente na liberdade contratual, de modo supletivo […].”
Depois, apenas uma das normas da secção dedicada ao princípio indemnizatório tem natureza imperativa, e mesmo assim apenas relativamente imperativa, podendo ser estabelecido um regime mais favorável ao tomador do seguro (arts. 13/1 e 132 do LCS).
Por outro lado, os interesses protegidos com o funcionamento do princípio indemnizatório são apenas os das seguradoras.
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Dos fins protegidos pelo princípio indemnizatório
É que, de facto, podendo o princípio indemnizatório funcionar como desincentivo à fraude de seguros, acaba por funcionar apenas em defesa dos interesses das seguradoras, evitando-lhes as sobreindemnizações, mas já não os sobreprémios dos tomadores de seguro.
O que de há muito é admitido nos EUA, onde, nalguns Estados, segundo informa Margarida Lima Rego, existem:
“as chamadas valued policy laws – leis impositivas de seguros de valor aceite ou consentido”. […] “A ideia fundamental por detrás destes diplomas legais, relativos ao seguro de incêndio, era a de que o fenómeno do sobresseguro estaria na origem do recrudescimento de incêndios intencionais nos EUA durante a segunda metade do séc. XIX. Pensou-se, na altura, que quem estaria em melhor posição para evitar o fenómeno do sobresseguro seriam os próprios seguradores. Todavia, em lugar de o fazerem, os seguradores limitavam-se a recorrer ao principio indemnizatório, que não combate eficazmente o sobresseguro, apenas a sobreindemnização, representando, numa modalidade mais ténue, e a posteriori, um desincentivo ao fogo posto. Percebeu-se que o principio conduzia, no entanto, a resultados injustos para o consumidor de seguros que, em muitos casos, sobreavalia sem o saber a sua propriedade, e paga, por conseguinte, prémios superiores aos que deveria pagar em troca da protecção do seu interesse na propriedade segura.
Entendeu-se que o resultado final seria mais justo se o mercado dos seguros se dedicasse a combater, na origem, o próprio fenómeno do sobresseguro. Ocorreu assim a promulgação, em 1872, no Wisconsin, e pouco depois numa boa parte dos estados dos EUA, de uma série de valued policy laws, de acordo com as quais, desde que não se provasse uma conduta criminosa por parte do segurado, a indemnização deveria corresponder ao capital seguro: haveria uma “presunção inilidível” de que esse valor corresponderia ao do dano sofrido. Ou seja, por imposição legal, proibiu-se a aplicação do princípio indemnizatório, e o seguro de incêndio passou a funcionar na prática, obrigatoriamente, como um seguro de capitais. Com tal politica legislativa, os seguradores foram incentivados a assegurar-se da correcção das avaliações, assim combatendo eficazmente o sobresseguro, e não apenas a sobreindemnização. Os seguradores lutaram vigorosa e prolongadamente contra estas imposições legais, mas sem conseguirem eliminá-las. As estatísticas nunca suportaram as suas alegações de que a lei causaria o aumento dos casos de fogo posto. A oposição a estas leis acabaria por morrer por volta dos anos trinta do séc. XX.”
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… um princípio de ordem pública (continuação)?
Ainda, como explica Margarida Lima Rego, “a aplicabilidade do princípio indemnizatório é do foro da política legislativa. […] Em todos os ordenamentos jurídicos de que colhi alguma informação, existem mecanismos que permitem, até mesmo nos seguros de coisas, que o valor da prestação do segurador ultrapasse o valor do dano. E já se tomou devida nota de um exemplo em que é a própria lei a impor, nos seguros de coisas, o respeito pelo montante estipulado pelas partes para o capital seguro. [M]esmo no domínio mais restrito dos seguros de coisas, a eventual celebração de um contrato de seguro em desrespeito pelo princípio indemnizatório já não gera invalidade, tendo, pois, por única consequência a ineficácia do contrato. A lei limita-se a regular esta questão a propósito do cálculo da indemnização, não cominando quaisquer consequências negativas para esse desrespeito reportadas ao momento da celebração do seguro, para alem do direito do tomador à redução do contrato.” […] O que se passa é que, tal como no requisito da casualidade […] procura-se aqui lutar contra a tentativa de uso do seguro para obtenção de um lucro certo, rectius, contra a tentação da fraude. Todavia, tal como se nega a essencialidade da natureza fortuita do sinistro, tambem se nega agora a essencialidade da natureza indemnizatória da prestação do segurador. E tudo uma questão de politica legislativa: de eliminação dos incentivos a fraude e a destruição de bens como a vida, a integridade física ou a propriedade privada. Como bem o demonstra o exemplo das valued policy laws, o recurso a uns métodos ou as circunstâncias particulares de algumas classes de seguros podem dispensar ou enfraquecer o recurso a outros métodos, nenhum deles sendo necessário a noção de seguro.” (obra citada, pág. 215).
Por tudo isto, dir-se-ia, parafraseando Júlio Gomes, a outro propósito [O dever de informação do (candidato a) tomador do seguro na fase pré-contratual, à luz do Decreto-Lei n.° 72/2008, de 16 de Abril, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Carlos Ferreira de Almeida, Vol. II, Almedina, 2011, pág. 438, nota 93], que a referência à ordem pública suscita algumas dúvidas, considerando que o próprio art. 132 é, como inequivocamente resulta do art. 13, apenas relativamente imperativo (e não absolutamente imperativo) e os interesses tutelados são em primeira linha, pelo menos, interesses do segurador e da mutualidade e, por conseguinte, interesses privados.
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Do ónus da prova
Como o valor real do interesse seguro (entendido sempre em termos materiais) vai servir para limitar o montante da indemnização, a alegação e a prova dele cabe às seguradoras demandadas e não aos tomadores segurados (art. 342/2 do CC).
E é isto mesmo que diz o ac. do STJ de 25/2/1949, BMJ 11º/217 a 219, citado na fundamentação subsidiária da sentença recorrida: num caso de seguro de transporte de mercadorias, o que o STJ decide, no essencial e no que interessa ao caso, é que incumbe ao segurador fazer a prova de que o seguro excede o valor do objecto segurado. Diz-se no texto do acórdão: “Para obstar a que o seguro por parte do segurado tenha fim lucrativo, dispõe o art. 435 do Código Comercial que excedendo o seguro o valor do objecto segurado, só é válido até à concorrência desse valor. É portanto, ao segurador que incumbe provar esse facto, visto nele ser o único interessado. Ora a ré não provou, nem oportunamente alegou, que a mercadoria segurada tivesse valor inferior ao constante da apólice. Por isso, bem foi ela condenada a pagar ao autor a referida importância de 350.000$00 conforme o que mutuamente fora acordado.”
No mesmo sentido, veja-se o ac. do STJ de 23/01/1996, 087679:
“[…] o segurado tem direito, em principio, a indemnização correspondente ao valor dos objectos furtados, declarado na apólice para determinação do capital do seguro, não podendo porém essa indemnização exceder o valor dos bens na data do furto, o primeiro valor é um facto constitutivo desse direito e, o segundo, um facto limitativo ou modificativo do mesmo direito.
É isso o que resulta ainda do disposto no cit. art. 439 §1 e seus ns. 1 e 2: […] estabelece-se aí uma presunção legal de equivalência entre aqueles valores, a qual pode ser ilidida mediante prova em contrário, a cargo da seguradora, nos termos do art. 350 do CC.
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Do valor acordado…
… e das excepções ou derrogações do princípio indemnizatório
Mas tudo o que antecede tem apenas aplicação, como já em 1916 era explicado por Cunha Gonçalves, quando o valor segurado for fixado com base apenas na declaração do tomador de seguro.
Já não assim, quando o tomador e a seguradora cheguem a acordo específico sobre o valor do interesse seguro e nesse caso estabeleçam determinadas cláusulas contratuais para o efeito: é o caso, por exemplo, das cláusulas do valor em novo, ou do valor em substituição, ou das apólices estimadas ou de valor estimado.
Em relação a todas estas cláusulas, já não funciona o princípio indemnizatório, com uma única excepção, prevista agora na parte final do art. 131/1 da LCS, excepção que não existia no regime do CCom e que por isso não pode ser aplicada ao caso dos autos: “Sem prejuízo do disposto no artigo 128.º e no n.º 1 do artigo anterior, podem as partes acordar no valor do interesse seguro atendível para o cálculo da indemnização, não devendo esse valor ser manifestamente infundado.”
Ou seja, se não se ultrapassar este limite, o princípio indemnizatório não funciona no caso do valor ter sido acordado com a seguradora (sem prejuízo de a seguradora poder tentar obter a anulação do acordo com base no regime geral da falta e dos vícios da vontade - arts. 240 a 257 do CC).
Note-se que, excepto no que se refere a este limite, que, como se disse, não existia no regime do CCom, já era este o entendimento doutrinário vigente, como se vê no escrito longínquo de Cunha Gonçalves, citado acima.
Neste sentido, diz Margarida Lima Rego, obra citada: “[a] lei [CCom] dava, no entanto, alguma abertura para que, em certos casos, o valor da prestação do segurador fosse superior ao valor actual do dano. Cfr., designadamente, os arts. 432/4, 439/1 e 448 CCom. As exigências do mercado segurador impunham uma interpretação muitíssimo generosa desta abertura, conferindo legitimidade à pergunta sobre se a suposta vigência deste principio não seria entre nos um bom exemplo da distancia que por vezes existe entre o law in the books e o law in action […].”(pág. 217) E mais à frente citava Kollhosser em Prolss/Martin, VVG, § 55 pp. 531-532 mm. 7-9: “a admissibilidade do seguro de valor em novo decorre do princípio da liberdade contratual, sustentando que nenhum valor contraria a protecção da necessidade de aquisição de uma coisa nova em substituição da coisa sinistrada.” (pág. 219)
Assim, e para além de Cunha Gonçalves, também Moitinho de Almeida (obra citada, págs. 160 a 162), dizia, a propósito de uma das principais destas cláusulas, ou seja, sobre o seguro de valor como novo (assicurazione del valore a nuovo; Neuwertversicherung; assurance valeur à neuf; reinstatement value insurance)
“Em consequência de um sinistro o segurado, na medida em que da indemnização é deduzido o uso da coisa segura, muitas vezes será forçado a despesas que de outro modo não faria. Na hipótese de incêndio de uma casa, o segurado, para a reconstruir, terá de despender do seu bolso o equivalente ao uso do imóvel, que o segurador lhe não pagou. Ora, para fazer face a este inconveniente, em muitas apólices estipula-se que o valor do objecto seguro será o seu valor como novo.
[…]
O seguro «valor como novo» foi criticado por se prestar a fraudes e ofender o princípio indemnizatório. Na verdade, diz-se, tal seguro poderia favorecer sinistros dolosos. Mas a tal objecção responde-se que uma diferença de 20% a 25% na indemnização não seria suficiente para determinar o segurado a uma conduta criminalmente punida. E, por outro lado, as companhias podem, não só exigir um descoberto obrigatório, como impor ao segurado a reconstrução ou substituição, a que subordinariam o pagamento da diferença entre o valor de uso e o valor como novo. Isto seria o bastante para evitar quaisquer especulações. E também não ofende o princípio indemni­zatório. O uso da coisa segura constitui um prejuízo para o segurado, prejuízo cujo ressarcimento por parte do segurador é incerto na medida em que se encontra dependente da verificação de um sinistro. […]
[…]
Pelas razões acima expostas, nada vemos que obste, no direito actual e de jure constituendo, à prática de seguros com a cláusula «valor como novo».
E continuava, agora sobre outra daquelas cláusulas (págs. 162 a 165), a de valores aceites ou consentidos, que identifica com “polizze stimate” ou com “valeur agréé”:
“Para evitar discussões sobre o valor das coisas seguras ou sobre o montante dos prejuízos sofridos, em certos casos, quando a respectiva prova após o sinistro se torna difícil, segurador e segurado acordam por vezes num valor que será o valor do ressarcimento. Este acordo tanto pode ser realizado em seguida a peritagem como sem ela, mas é sempre de exigir um acordo especial, que do contrato resulte terem as partes atribuído ao interesse seguro determinado valor para efeitos de ressarcimento. Não basta a declaração do segurado, sendo neces­sária «uma cláusula expressa ou de qualquer modo não ambígua, em virtude da qual o segurador aceita e faz sua a avaliação indicada; se necessário, o relatório dos peritos é junto à apólice» […]
Qual o valor da cláusula em que, por acordo das partes, se fixa valor a atender, ocorrido o sinistro?
[…]
O Código Comercial estabelece, no artigo 439.°, § 1, nº 1, que «se o valor foi fixado por arbitradores nomeados pelas partes, o segurador não o poderá contestar», preceito em muito semelhante ao artigo 20 da lei belga, não prevendo, contudo, a impugnação da avaliação por fraude. Cunha Gonçalves entende, porém, que o segu­rador poderá impugnar a avaliação em que haja colaborado quando for vítima de dolo, fraude ou falsificação, o que parece certo na medida em que, tratando-se de um contrato, são de admitir aqui os vícios de consentimento. A cláusula de valor aceite ou consentido é susceptível de afectar grandemente o princípio indemnizatório, na medida em que pode levar a atribuir-se ao segurado uma indemni­zação superior aos danos na realidade sofridos. E quando o valor aceite for inferior ao valor real da coisa o segurador poderá ser prejudicado, visto, neste caso, não funcionar a regra proporcional.
Entre nós poderia admitir-se a doutrina já exposta de Ramella, no sentido de, quando se trate de seguro celebrado por tempo mais ou menos longo e relativo a coisas sujeitas a desvalorizações, ser de atribuir à cláusula o valor de simples presunção, por ser esse o cor­respondente à vontade presumida das partes. Isto, é claro, se não fosse outra a vontade claramente expressa. Mas parece de ir mais longe e, tal como a jurisprudência belga, converter as cláusulas de valor aceite em presunções ilidíveis sempre que estejamos em face de hipóteses semelhantes à mencionada pelo autor italiano e não obstante ser outra a vontade das partes. É de admitir que a incon­testabilidade do valor aceite estabelecida no Código Comercial resulta do facto de ele ter sido fixado por pessoas qualificadas, dificilmente subsistindo a possibilidade de afectação do princípio indemnizatório. Mas esta razão desaparece quando circunstâncias posteriores deter­minem a alteração do valor dos objectos seguros, caso em que o segurador poderá fazer a prova de que estes se encontram desva­lorizados.”
Ainda por exemplo, veja-se, referindo-se à cláusula do valor em novo, o ac. do STJ de 22/09/2011 (710/06.9TCGMR.G1.S1): 1. No contrato de seguro têm particular relevância os deveres do tomador do seguro, em especial o dever de prestar informações correctas relativas ao seu objecto, decorrentes do princípio da boa fé. Devendo esclarecer a seguradora de tudo o que respeita ao objecto segurado. Incluindo-se tais informações, em princípio, nas chamadas “Condições Particulares”. 2. O denominado seguro de valor em novo corresponde à derrogação do princípio segundo o qual a indemnização será medida pelo valor do bem à data do sinistro (art. 439, § 1, do CComercial), passando antes a mesma a fixar-se a partir do valor de substituição.
A continuidade disto tudo no novo regime, resulta, por exemplo, daquilo que Pedro Romano Martinez (o presidente da comissão revisora do regime de seguros, de 2006, que deu origem à LCS) diz no seu artigo sobre as Modificações na legislação sobre contrato de seguro, repercussões no regime de acidentes de trabalho (desenvolvimento do preâmbulo do Dec.-Lei 72/2008):
“[…] o princípio indemnizatório assenta[…] basicamente na liberdade contratual, de modo supletivo […] Não obstante valer o princípio da liberdade contratual, admitindo-se a inclusão de múltiplas cláusulas, como o seguro «valor em novo», para o cálculo da indemnização não se pode atender a um valor manifestamente infundado (art. 131.º da LCS).” (págs. 1056/1057, publicado em Centenário do nascimento do Prof. Doutor Paulo Cunha, Almedina, 2012)
E Margarida Lima Rego refere, em nota (639, págs. 212/213), a posição de um autor belga (Fontaine) que, com base no direito belga, sintetiza assim a questão:
“a regra segundo a qual os seguros de danos são necessariamente indemnizatórios se deve ao receio dos sinistros voluntariamente provocados. […] Mas […] a própria lei consagra alguns desvios a esta regra: (i) a admissibilidade das coberturas valeur à neuf (art. 53); (ii) a inoponibilidade do resultado de uma avaliação em caso de fixação do capital seguro pelo tomador com o acordo do mandatário do segurador (art. 54/1); (iii) a admissibilidade de indexação do capital seguro (art. 54/2); (iv) o estabelecimento do valor seguro por comum acordo – valeur agréée – este ultimo sujeito a restrições legais (art. 55).
Sara Geraldes, na dissertação de mestrado sobre O seguro de transporte de coisas, 2008, Univ. de Lisboa, Fac. de Direito, referindo-se às apólices estimadas ou de valor estimado, diz o seguinte, com base no art. 159 da LCS, mas que também a teria no art. 131/1 da LCS http://www.isp.pt/NR/rdonlyres/99D59596-560A-41CA-B4BC-FEA8408977D6/0/SaraGeraldes.pdf :
“Esta possibilidade [de estipulação contratual do valor] faz despertar o interesse quanto a uma questão, particularmente estudada na doutrina estrangeira, que é a das apólices estimadas ou de valor estimado [valued policy, polizza stimata, póliza estimada] […]. Sob esta designação são tratados aqueles contratos em que as partes, por acordo, avaliam o objecto, estimando o seu valor […]. Este valor representará o capital seguro, vinculando ambos os contraentes.
A validade destas apólices é inquestionável no direito anglo-saxónico.
No entanto, tendo em conta o princípio indemnizatório, pode causar alguma estranheza e hesitação. Efectivamente, perante uma sobreavaliação do bem pode haver um certo enriquecimento. A jurisprudência traça duas exigências […]: de um lado, o conhecimento e aceitação pelo segurado – sempre que haja fraude […], o segurador pode impugnar o valor, sendo depois este determinado nos termos gerais; do outro, a não sobreavaliação excessiva – considera haver má fé nestes casos, pelo que traça aí um limite ao funcionamento da autonomia privada de estabelecimento do valor.
De facto, a supletividade da nossa lei abre portas a esta prática. Não obstante, este carácter dispositivo não implica reconhecer às partes a faculdade de alterar princípios configuradores dos contratos de seguro […], nomeadamente o princípio indemnizatório que parece assim poder perigar.
Estas apólices são, efectivamente, úteis na medida em que permitem suprimir perdas de tempo e custos na elaboração do capital seguro. No entanto, quando o valor do interesse não coincide com o valor estimado podem surgir dificuldades.
Podemos configurar duas situações. Na primeira, o valor do interesse é superior ao valor convencionado, na segunda verifica-se o inverso.
No primeiro grupo de casos, o que se verifica é uma situação semelhante à de subseguro, uma vez que o valor constante da apólice é inferior ao valor do interesse. A diferença relativamente às situações típicas de subseguro é que o valor não é aqui unilateralmente declarado mas sim bilateralmente convencionado. A aplicação directa e imediata das normas do subseguro levaria à desconsideração total do acordo das partes e equivaleria a negar esta autonomia que o art. 159.º, n.º1 visa conferir às partes.
Em Espanha, onde esta liberdade se manifesta desde a promulgação da lei de 1980, os Tribunais têm entendido que o segurador pode solicitar um aumento do valor estimado, até à convergência com o valor real, aumentando, em consequência, o prémio. Caso este incremento não seja possível, o Tribunal Supremo entende que se deve reduzir proporcionalmente a indemnização. Houve, no entanto, autores que se manifestaram contra a aplicação da regra da proporcionalidade por ser contrária à lógica do valor estimado […]
Pode, de facto, considerar-se existente essa contrariedade. No entanto, ela é preferível à violação do princípio indemnizatório.
Já na hipótese inversa, i.e., valor estimado superior ao valor real do interesse, a solução encontrada pelo Tribunal Supremo é distinta consoante a sobreavaliação seja considerável – caso em que poderá ser impugnada – ou não – situação em que vinculará o segurador ao pagamento do montante acordado.
Julgamos que, atenta a possibilidade de convencionar valor, não devem ser aplicadas automaticamente as regras do sobresseguro e subseguro. No entanto, quando a situação concreta cause sérias dúvidas respeitantes à violação do princípio indemnizatório, deve o valor acordado ser posto em causa e ajustado de acordo com o referido princípio.”
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A cláusula do reforço de 20%
Antes de continuar, deixe-se dito que decorre desde já de tudo isto que a cláusula do reforço da indemnização em 20% sobre o valor do veículo que foi acordada expressamente pelas partes está a coberto desta derrogação ao princípio indemnizatório.
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O valor acordado é a situação normal
O que antecede demonstra que, no caso em que o valor do interesse seguro tiver sido fixado por acordo, o princípio indemnizatório tem apenas um alcance, que é o de não permitir que esse valor acordado seja manifestamente infundado (limite que, nos autos, não se poderia dizer, sem mais, ultrapassado, com a simples prova de uma discrepância de valores que não iria para além de 14,5%, mesmo sem se considerar que não era o valor venal que tinha de ser tomado em consideração, mas sim o de substituição).
Agora importa esclarecer que a situação normal é a do valor ser fixado por acordo e não a de ele se basear na simples indicação do tomador de seguro.
É o que é reconhecido por um dos membros da comissão de revisão do regime do contrato de seguro, Arnaldo da Costa Oliveira (anotações em Lei do Contrato de Seguro, anotada, 2ª edição, Julho de 2011, Almedina, pág. 444): “Normalmente a determinação exacta do concreto valor do interesse seguro ao tempo do sinistro envolverá acordo entre as partes […]”.
Diz o art. 49/2 da LCS que “[…], cabe ao tomador do seguro indicar ao segurador, […], o valor da coisa, direito ou património a que respeita o contrato, para efeito da determinação do capital seguro”. E isto pode ser completado, com aquilo que, em anotação a este artigo, outro dos membros daquela comissão (José Pereira Morgado, mesma LCS anotada, citado, pág. 259) diz, ou seja: “no âmbito dos seguros facultativos regidos por normas imperativas de lei especial, como é o caso dos seguros que confiram coberturas relativas a danos próprios de veículos automóveis, regulados pelo Dec.-Lei 214/97, de 16/08, cabe ao tomador do seguro fornecer ao segurador os dados que permitam a determinação do valor ou capital seguro, tendo em conta o regime estabelecido.”
Ora, se isto é assim, dificilmente se concebe, na prática, que um valor seguro que é fixado a partir de uma indicação do tomador que é tomada como base para determinação do valor seguro, tendo em conta um regime estabelecido, possa não ser resultado de um acordo, mesmo que tácito, sobre tal valor. Daí que, Arnaldo Oliveira acrescente, já em anotação ao art. 131/2 da LCS, referente ao valor acordado (regime convencional), que “naturalmente, o valor estimado da coisa começará por ser indicado pelo tomador do seguro (nº. 2 do art. 49, por analogia), mas sujeitando-se à aceitação do segurador.” (pág. 447)
Pelo que, normalmente, nestas situações, estar-se-á perante um valor acordado e não perante um valor declarado. E sendo esta a situação normal, caberia à seguradora alegar e provar a situação fora do normal ou extraordinária, de que o valor segurado foi fixado apenas com base na declaração ou indicação do segurado.
E assim compreende-se que, por exemplo, o ac. do TRL de 25/06/2009, 1515/05.0TBMTJ.L1-2, diga: “[…] nem se invoque a “boa-fé” da ré no tocante à aceitação do valor supostamente “excessivo” indicado pelo autor. Aquela era sabedora da marca e modelo da viatura, bem como da matrícula respectiva – para além de ser normal que solicitasse a exibição dos documentos respectivos – o que tudo, dando também acesso ao conhecimento da idade da viatura, que se sabe ser do ano de 1997, logo lhe permitia balizar o valor da mesma dentro de limites razoáveis. E, se ainda assim tivesse dúvidas, caber-lhe-ia, de acordo com as regras de normal diligência, através dos (seus) proverbialmente zelosos serviços de peritagem, proceder à avaliação da viatura. O que, concede-se, não fez, preferindo guardar-se para a eventualidade de lhe vir a ser exigida alguma responsabilidade contratual.”
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Outra conclusão parcial
Ora, se se aceitar que no caso se está perante um valor acordado, a questão do sobresseguro não se poria, excepto se se alegassem e provassem factos que permitissem considerar que o valor seguro era manifestamente infundado, o que não foi o caso.
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Da boa fé e do abuso de direito
Para além do que antecede, ainda haveria a considerar a influência da questão do abuso de direito (art. 334 do CC) no caso.
A ré aceitou celebrar um contrato por um certo valor seguro. Agora, com base numa simples avaliação eurotax, vem dizer (na contestação) que o valor real do interesse era inferior ao valor seguro.
Ora, se a ré, com base numa simples avaliação num espaço de tempo que se estima inferior a 1 minuto, pode calcular o valor real seguro, é inconcebível que se abstenha de o fazer no momento da contratação do seguro, aceitando celebrá-lo, dando origem assim, segundo ela, a um sobresseguro, com os inerentes sobreprémios, para só quando ocorre o sinistro se lembrar de fazer tal avaliação, para então a opor ao tomador do seguro, visando com isso evitar aquilo que ela chamará de uma sobreindemnização.
O que aliás pode ser visto como uma consequência da exigência da actuação de boa fé na celebração dos contratos (art. 227 do CC 1. Quem negoceia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé […]), a impôr às seguradoras, ao menos quando o possam fazer sem quaisquer dificuldades, que acautelem a celebração dos contratos pelo valor real dos interesses a segurar. E que se não o fizerem, com violação de tal dever, não possam depois opôr, sem mais, aos tomadores dos seguros, por abuso de direito na modalidade do venire contra factum proprio, os valores que resolvam apurar depois do sinistro: se a seguradora não achou relevante, face aos dados que lhe foram fornecidos, fazer um mínimo de diligências para evitar a celebração do contrato pelo valor declarado [aceitando-se, agora, em benefício da discussão, que se está perante um valor declarado] em troca do qual recebeu um sobreprémio, não pode, depois do sinistro, com contradição juridicamente inaceitável (art. 334 do CC), fazer essas diligências e prevalecer-se de uma eventual diferença encontrada.
O art. 429 do CCom equiparava e responsabi­lizava ambas as partes pelas informações inexactas ou pelas reticências na declaração inicial do risco (ac. do TRL de 5/2/82, CJ.82.1.171 = 0014886 do ITIJ, só sumário). Pode-se pois dizer, com o ac. do STJ de 03/10/1995 (revista 87.346, relator Cardona Ferreira, não publicado) que “o dever de boa fé, com os seus corolários de lealdade, informação, etc., [é] recíproco[…]. Se o segurado tem o dever de bem esclarecer, o segurador tem o dever de suscitar e concorrer para um correcto esclarecimento, mormente quando ele pode advir, simplesmente, do carácter público dos serviços registrais.”
Já em 1916 Cunha Gonçalves, obra citada, pág. 543, lembrava que:
“a jurisprudencia francêsa, na grande maioria dos casos, tem decidido que o segurador não pode invocar a sua ignorancia sobre a extensão do risco quando o seu agente visitou o local, apreciou os materiaes das construções e outras circunstancias, verificou as reticencias, mas sem as fazer aclarar, e até foi quem redigiu a minuta ou preencheu o questionario. Parece equitativa e assás jurídica esta solução.
Sem dúvida, em princípio, o segurado deve dizer exactamente tudo quanto diz e tudo quanto sabe. As verificações e informações directas do segurador não exoneram aquêle do seu dever, não o isentam da culpa de não ter dito a verdade. Mas, o segura­dor é que não pode negar o facto de ter conhecimento exacto do risco, quando pelos seus agentes e representantes o apreciou e verificou. Se estes não foram nisso assás diligentes, o segurador deve suportar as inerentes consequencias, salvo se não era fácil essa verificação.[o sublinhado foi colocado agora].
Hoje, o art. 24/3 da LCS diz que: “O segurador que tenha aceitado o contrato, salvo havendo dolo do tomador do seguro ou do segurado com o propósito de obter uma vantagem, não pode prevalecer-se: […] d) De facto que o seu representante, aquando da celebração do contrato, saiba ser inexacto ou, tendo sido omitido, conheça; e) De circunstâncias conhecidas do segurador, em especial quando são públicas e notórias.”
Júlio Gomes, depois de referir, embora a outro propósito, “[o] próprio segurador está sujeito a uma obrigação de colaboração, a um dever geral de cooperação, imposto pela boa fé […]” (artigo citado, pág. 411, nota 48), diz que “uma boa parte das soluções consagradas no art. 24/3 resultaria, sem grande esforço, da aplicação do princípio da boa fé e das regras sobre o abuso de direito […] sendo que a jurisprudência poderia chegar a elas sem grande dificuldade.” (último estudo citado, pág. 414).
Quanto à previsão do art. 24/3e), diz este autor que “a doutrina exclui, normalmente, a relevância de declarações inexactas relativamente a circunstâncias notórias e a circunstâncias conhecidas do segurador […] ou que este como profissional não deve ignorar. (o sublinhado foi agora colocado).
Joana Galvão Teles, por sua vez, diz que com as alíneas d) e e) do nº. 3 do art. 24 “visa-se, igualmente, impedir atitudes abusivas por parte da seguradora que, conhecendo ou devendo conhecer os factos e circunstâncias em questão no momento de celebração do contrato, pretenda vir, mais tarde, invocar a sua omissão para, assim, se ver livre da execução do contrato. O resultado pretendido com a previsão das alíneas referidas poderia ser obtido pela aplicação de princípios e normas gerais – como do art. 334.º e 227.º do CC […].” (Deveres de informação das partes, pág. 261, Temas de direito dos seguros, Almedina, Fev2012 – o sublinhado foi agora colocado)
Arnaldo da Costa Oliveira diz que “uma interpretação teleológica do nº. 3 do art. 24 é de molde a parecer como dele resultando um dever do segurador, não de verificação do declarado pelo tomador do seguro ou pelo segurado, mas de verificação do declarado cujo teor e circunstâncias sejam de molde a razoavelmente levantar suspeitas de inexactidão ou falsidade a um profissional medianamente diligente […]” (anotações citadas, pág. 138)
E mais à frente este autor diz: “já mencionámos alguns acórdãos que precludem o direito do segurador à invocação de inexactidão em relação a facto que, embora não conhecesse, devia conhecer. Mas não vemos como não reconhecer que do sistema dos arts. 24 a 26, em especial do peso do nº. 3 do art. 24 do mesmo, conjugado com o intuito genérico de incremento da protecção dos tomadores do seguro e dos segurados, resulta uma mais fácil invocação de um dever de especial exigência para com o segurador na sua actividade de recepcionação e análise da declaração de risco.” (págs. 139 e 140)
Ora, se a seguradora pode, segundo ela, obter, com uma avaliação eurotax quase instantânea o valor real de um veículo, este valor não pode deixar de ser considerado um facto conhecido ou pelo menos perfeitamente conhecível pela seguradora e que como tal hoje não poderia opor ao tomador do seguro.
Para uma situação com algum paralelo, Margarida Lima Rego lembra (obra citada, pág. 145, nota 445) que “o principio indemnizatório funciona a posteriori, impedindo o pagamento de indemnizações superiores ao dano sofrido, mas não tendo um peso significativo como desincentivo a celebração de contratos sem interesse” e que por isso os autores da Law Commission, Insurable Interest, “perguntam-se se não será de impor aos seguradores o dever de se assegurarem, em todos os casos, da existência de uma expectativa de dano, no momento da celebração de contratos com os consumidores de seguros, por forma a tentarem evitar que, por falta de informação, estes contratem seguros de que na realidade não precisem e de que não poderão sequer vir a beneficiar.” E lembra ainda, “em sentido próximo”, uma “decisão de um tribunal do Alabama em Liberty National Life Insurance Co. v Weldon (1957). Cfr. Wrongful Death (anon.), pp. 1087-1092. Neste caso, a tomadora celebrara por sua própria conta três seguros sobre a vida da filha pequena da sua cunhada e do seu segundo marido, que em seguida matara por envenenamento. O tribunal condenou os seguradores a indemnizar os pais da criança, por não se ter assegurado da existência de um interesse de seguro nem ter solicitado o consentimento dos pais da criança. O tribunal considerou que os contratos eram, para alem de inválidos, tambem ilegais, e fundou a sua decisão na regra geral de direito dos delitos civis correspondente, grosso modo, no nosso ordenamento jurídico, ao art. 483/1 CC. […] Note-se que, de uma regra de validade, nem sempre pode retirar-se uma regra proibitiva. Todavia, num caso como este, em que o escopo da norma de validade e de desincentivo de certos comportamentos, talvez se justifique esta conclusão.”
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A cláusula dos 20% sobre o valor venal em caso de perda total
Para além da cobertura dos danos, foi ainda contratada uma indemnização correspondente a 20% do valor venal do veículo seguro à data do sinistro.
Já acima se viu que esta cláusula está a coberto da liberdade contratual, sendo admitida quer ao abrigo do regime do CCom quer ao abrigo, agora expresso, do art. 131, nº.s 1 e 2, da LCS.
O veículo, à data do sinistro, valia, como já foi visto, 55.358,80€.
20% corresponde a 11.071,75€.
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Juros
Diz Menezes Cordeiro: “A indemnização devia ser paga logo que os danos sejam conhecidos. Se o não for, vencem-se juros de mora: apenas e à taxa legal […] (obra citada, pág. 701). É uma interpretação do actual regime, previsto nos arts. 102 a 104 da LCS.
Antes, dir-se-ia que a seguradora devia ser obrigada a pagar juros a partir da data que fosse interpelada para o efeito (arts. 804/1, 805/1, 806/1 e 559, todos do CC). Seja, como for, o autor só pede juros a partir da citação, tendo esta ocorrido a 22/10/2009.
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Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente, alterando-se a resposta dada aos quesitos 4 e 5 (nos termos supra referidos) e revoga-se a sentença recorrida que se substitui por este acórdão que condena a ré a pagar ao autor 44.558,72€ + 11.071,75€, com juros de mora à taxa legal, para já de 4% ao ano, vencidos desde 23/10/2009 e vincendos até integral pagamento.
Custas do recurso pela ré em 97,5% e pelo autor em 2,5%.
Custas da acção pela ré.

Lisboa, 18 de Abril de 2013

Pedro Martins
Eduardo José Oliveira Azevedo
Lúcia Sousa
Decisão Texto Integral: