Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
11855/19.5T8LSB.L1-9
Relator: CALHEIROS DA GAMA
Descritores: CÚMULO JURÍDICO
LIQUIDAÇÃO DA PENA ÚNICA
PRIVAÇÃO DE LIBERDADE DO ARGUIDO
LIBERDADE CONDICIONAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/21/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I– Na liquidação da pena de prisão a que um arguido se mostra condenado, os períodos de privação de liberdade deverão ser descontados no cumprimento da pena e não na pena concreta, ficcionando um dia como o da data de início de cumprimento de uma pena para proceder ao seu cômputo, por se mostrar tal operação concretamente mais favorável ao arguido, por permitir sempre uma apreciação da liberdade condicional mais próxima da data do início do cumprimento efetivo da pena, pois que o período de privação de liberdade a descontar conta como cumprimento efetivo da pena de prisão.

II– Assim toda a privação de liberdade sofrida por um arguido no âmbito dos processos integrantes de um cúmulo juridico, deverá ser descontada no cumprimento da pena resultante do cúmulo e não nas penas parcelares dele integrantes.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa:

I–Relatório


1.–No âmbito do processo comum n.º 11855/19.5T8LSB, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juízo Central Criminal de Lisboa - Juiz 6, o Ministério Público procedeu, em 7 de outubro de 2020, à liquidação da pena única de 6 anos e 10 meses de prisão aplicada ao arguido AA, filho de BB, nascido a ………… 1997, natural …………………………………………………………….., concelho do Barreiro, titular do C.C. n.° …………, solteiro, desempregado quando foi preso, residente, quando em liberdade, na Rua ……………………. - Barreiro, atualmente preso, no Estabelecimento Prisional do Linhó, no primeiro cúmulo jurídico efetuado pelo acórdão de 26 de maio de 2020 englobando as penas aplicadas nos processos n.°s 50/15.2PBBRR, 926/15.7PBBRR e 236/16.2SGLSB e 11855/19.5T8LSB (presentes autos).

Na sequência do que a Mmª Juíza proferiu, em 16 de outubro de 2020, o seguinte despacho:
“Por ser a legal, concordo com a liquidação de pena constante sob a ref.ª Citius 399330724 quanto ao termo da pena, pelo que, nessa parte, a homologo, não a homologando na parte restante pela razão exposta no despacho proferido sob a ref.ª Citius 399384991.
Notifique e comunique, como promovido sob aquela ref.ª Citius, e com cópia daquele despacho, do exposto sob a ref.ª Citius 399550809 e do ora decidido.” (fim de transcrição - cfr. referência Citius n.º 399581824).

2.–O Ministério Público, inconformado com a mencionada decisão, interpôs recurso extraindo da sua motivação (cfr. fls. 1659 a 1665) as seguintes conclusões:
a)-Não se verificou qualquer lapso a corrigir no cômputo da pena respeitante ao arguido AA efetuado em 07-10-2020, por entendemos que, como bem resulta da respetiva fórmula, a liquidação da pena deverá ser efetuada mediante a "ficção" que o condenado iniciou o cumprimento da pena antes de dar entrada no estabelecimento prisional, em período de tempo igual ao desconto, em benefício do condenado, não tendo que se efetuar o desconto na pena de prisão a cumprir, por referência à data em que o condenado deu entrada no estabelecimento prisional.
b)-Foi, em conformidade, a operação que efetuámos, ficcionando como data do início do cumprimento da pena o dia 14/10/2019, procedendo assim ao desconto nos termos e para os efeitos previstos no art.80° do C.P., para depois se apurarem as datas relevantes para a concessão da liberdade condicional.
c)-Na verdade, na liquidação da pena de prisão a que o arguido se mostra condenado, os períodos de privação de liberdade deverão ser descontados no cumprimento da pena e não na pena concreta, ficcionando um dia como o da data de início de cumprimento de uma pena para proceder ao seu cômputo, por se mostrar tal operação concretamente mais favorável ao arguido, por permitir sempre uma apreciação da liberdade condicional mais próxima da data do início do cumprimento efetivo da pena, pois que o período de privação de liberdade a descontar conta como cumprimento efetivo da pena de prisão.
d)-No caso o despacho recorrido não homologou a liquidação da pena efetuada pelo Ministério Público no que concerne aos marcos 1/2, 2/3 e 5/6 no cômputo da pena nos termos do ar.80° do C.P., a qual observou o princípio da aplicação normativa mais favorável ao arguido, postergado nos termos do despacho recorrido.
e)-Despacho recorrido que, desse modo, violou o disposto nos arts.61° e 80.° do C.P., 477.° e 479.°, do C.P.P..
Termos em que, decidindo em conformidade com as conclusões que antecedem, deve ser revogado o douto despacho recorrido na parte ora (de)limitada e substituído por outro que homologue a liquidação da pena efetuada pelo Ministério Público nos marcos 1/2, 2/3 e 5/6, não deixando assim V.Exas de, em alto critério, fazer a habitual JUSTIÇA!" (fim de transcrição).

3.–Foi proferido despacho judicial admitindo o recurso (cfr. referência Citius n.º 400046629).

4.– Não houve resposta ao recurso.

5.–Subidos os autos, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta nesta Relação teve neles “Vista” e emitiu parecer, pronunciando-se no sentido de acompanhar e nada mais se lhe oferecer acrescentar à posição assumida pelo Ministério Público na primeira instância (cfr. referência Citius n.º 16400210).

6.–Foi cumprido o preceituado no art. 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (doravante CPP), não tendo havido resposta

7.–Efetuado o exame preliminar foi considerado não haver razões para a rejeição do recurso.

8.Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.


II–Fundamentação

1.Conforme entendimento pacífico dos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respetiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objeto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (cfr., entre outros, os Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respetivamente, nos BMJ 451.° - pág. 279 e 453.° - pág. 338, e na Col (Acs. do STJ), Ano VII, Tomo 1, pág. 247, e cfr. ainda, arts. 403.° e 412.°, n.° 1, do CPP).
A questão suscitada pelo recorrente, que deverá ser apreciada por este Tribunal Superior, é, em síntese, a de que deverá prevalecer e ser homologada a liquidação da pena efetuada pelo Ministério Público quanto aos marcos de 1/2, 2/3 e 5/6 da pena em causa.

2.Passemos, pois, ao conhecimento da alegada questão.

A Mmª Juíza na decisão ora recorrida, proferida, em 16 de outubro de 2020, e acima transcrita alude à liquidação de pena” bem como à “razão exposta no despacho proferido sob a ref.ª Citius 399384991” e ao pelo Ministério Público “exposto sob a ref.ª Citius 399550809”, sendo, quanto a este tribunal ad quem, pertinentes peças processuais sobre cujo conteúdo importa, antes de mais, atentar.

Assim:

2.1.–Em sede de liquidação de pena o Ministério Público, em 7 de outubro de 2020, exarou o seguinte:

"Entendermos que neste momento apenas se impõe liquidar, e homologar, unicamente a pena única de 6 anos e 10 meses de prisão aplicada ao arguido, competindo ao TEP, em ulterior momento, a liquidação da pena única de 2 anos e 6 meses de prisão que o mesmo tem a cumprir, sucessivamente, já que nesta data não é certo o momento em que o arguido iniciará o cumprimento da restante em cumprimento sucessivo, nada permitindo supor, desde logo, que no caso não deva ou não vá ser aplicada a norma consagrada no n°1 do art.63° do código Penal, competindo ao TEP decidir sobre a concessão da liberdade condicional, em caso de execução sucessiva de penas.
E certo é que o condenado ainda não iniciou o cumprimento da restante pena de cumprimento sucessivo que também lhe foi aplicada, não fazendo sentido algum ficcionar nesta matéria.
Efetuar uma liquidação somando materialmente as penas a cumprir corresponde a esquecer que estamos na presença de mais de uma pena.
Entende-se pois que a liquidação da segunda pena deverá ser efetuada pelo TEP, competente em razão da matéria para o efeito, após o início do seu cumprimento (o que sucederia caso as penas de cumprimento sucessivo tivessem sido aplicadas em processos diversos) — neste sentido, cfr. Ac. TRPL, 2a Secção Criminal, Proc. n° 15411/15.9 T8PRT.P1).
Posto isto, segue liquidação da pena única de 6 anos e 10 meses de prisão aplicada ao arguido no primeiro cúmulo jurídico efetuado englobando as penas aplicadas nos Processos n°50/15.2PBBRR, 926/15.7PBBRR, 236/16.2SGLSB e nos presentes autos:
- Pena única: 6 anos e 10 meses de prisão.
- O arguido esteve ligado ao Processo n° 926/15.7PBBRR de 29/12/2016 até 24/11/2017, data em que foi ligado ao Processo n°386/16.5SYLSB.
-Ou seja, no Processo n° 926/15.7PBBRR englobado no primeiro cúmulo jurídico efetuado, nos termos apontados o arguido esteve no total privado da liberdade 10 meses e 26 dias entre 29/12/2016 e 24/11/2017.
- Em 16/03/2018 o arguido foi ligado ao Processo n° 623/16.6SGLSB.1.
- Com efeitos a partir de 15/09/2020, o arguido foi desligado do Processo n° 623/16.6SGLSB.1 e ligado aos presentes autos para cumprimento de pena.
- Esteve ainda privado da liberdade 5 dias à ordem dos processos englobados no primeiro cúmulo jurídico (1 dia no Processo n°926/15.7PBBRR, 2 dias no Processo n°50/15.2PBBRR e 2 dias no Processo n°236/16.2SGLSB).
- Tem a cumprir 5 anos, 10 meses e 29 dias de prisão.
- 1/2 da pena: 14/03/2023.
- 2/3 da pena: 4/05/2024.
- 5/6 da pena: 24/06/2025.
- Termo da pena: 14/08/2026.

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Nos termos do disposto no art.62° do C.P., a colocação em liberdade condicional pode ser antecipada, por um período máximo de um ano.

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Promovo a homologação da presente liquidação de pena e se proceda às comunicações a que alude o art.477°, n°1, do C.P.P., por transmissão eletrónica de dados.

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Promovo se remeta ao TEP a informação recolhida nos autos quanto aos períodos de privação da liberdade do arguido para efeitos de aplicação do art.80° do C.P. no âmbito do cômputo de pena a aí efetuar nos termos acima mencionados." (fim de transcrição).

2.2.–Por seu turno, sob a ref.ª Citius 399384991 a Mmª Juíza a quo expendeu, em 12 de outubro de 2020, o seguinte:
"Tendo em conta que, da pena única de 6 anos e 10 meses de prisão a que se refere a liquidação que antecede, sob a ref.ª Citius 399330724, o condenado tem a cumprir 5 anos, 10 meses e 29 dias, contados desde 15.09.2020, afigura-se-me que, estando tal liquidação correcta no que tange à data do fim da pena (14.08.2026), padece de lapso quanto aos respectivos:
1/2 - que ocorrerá em 29.08.2023;
2/3 - que ocorrerão em 24.08.2024;
5/6 - que ocorrerão em 19.08.2025.

Assim sendo, vão os autos ao Ministério Público, para, caso assim o entenda, rectificar o apontado lapso.

*

Proceda como promovido no último parágrafo constante sob a ref.ª Citius 399330724, de 07.10.2020." (fim de transcrição).

2.3.–Finalmente, sob a ref.ª Citius 399550809, e pronunciando-se sobre o decidido pela Mmª Juíza a quo sob a ref.ª Citius 399384991 quanto à liquidação de pena, o Ministério Público consignou, em 14 de outubro de 2020, o seguinte:
"Entendemos que a liquidação da pena deverá ser efetuada mediante a "ficção" que o condenado iniciou o cumprimento da pena antes de dar entrada no estabelecimento prisional, em período de tempo igual ao desconto, em benefício do condenado, não tendo que se efetuar o desconto na pena de prisão a cumprir, por referência à data em que o condenado deu entrada no estabelecimento prisional.
Foi a operação que efetuámos, ficcionando como data do início do cumprimento da pena o dia 14/10/2019, procedendo assim ao desconto nos termos e para os efeitos previstos no art.80° do C.P., paia depois se apurarem as datas relevantes para a concessão da liberdade condicional.
Neste sentido, cf. Ac. TRG de 5/06/2017, Processo n°311/15.0T9BCL-C.G1, Relator Desembargador Fernando Pina (LIQUIDAÇÃO DA PENA DE PRISÃO - COMPETÊNCIA DO TEP - REGIME MAIS FAVORÁVEL AOS CONDENADOS) in http://www.dgsi.pt/jtrg: "I) Compete ao tribunal de julgamento apenas determinar e enunciar a medida concreta da pena e informar os períodos de detenção a descontar em tal medida, nos termos dos art°s 80° e 82° do CP, competindo depois ao Tribunal de Execução das Penas a decisão última e única juridicamente relevante, sobre as datas concretas para a apreciação da eventual concessão da liberdade condicional.
II)Na liquidação da pena de prisão a que o arguido se mostra condenado, os períodos de privação de liberdade deverão ser descontados no cumprimento da pena e não na pena concreta, ou seja, é preferível ficcionar um dia, como o da data de início de cumprimento de uma pena para proceder ao seu cômputo, do que por mero despacho, e, sem qualquer fundamento legal expresso, efectuar uma alteração na medida concreta da pena, determinada por uma decisão já transitada em julgado.
III)Tal regime mostra-se sempre concretamente mais favorável aos condenados, por permitir sempre uma apreciação da liberdade condicional mais próxima da data do início do cumprimento efectivo da pena.".
E Ac. TRC de 29/02/2012, Processo n° 653/07.9GBAND-B.C1, Fonte: DGSI, Relator Desembargadora Olga Maurício, in https://blook.pt/caselaw/PITTRC/174459/: "1.- A detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão a cumprir pelo condenado.
2.-A parte da pena já cumprida pelo agente antes de a decisão condenatória ter transitado em julgado releva para todos os momentos decisivos da contabilização da execução da pena, isto é, releva não só para efeitos de determinação do termo da pena, mas também para os momentos intermédios relevantes para efeitos de concessão de liberdade condicional, quais sejam a determinação do meio da pena, dos dois terços da pena e dos cinco sextos da pena."." (fim de transcrição).

3.–Vejamos se assiste razão ao recorrente.

Ao proceder o Ministério Público, em 7 de outubro de 2020, à liquidação da pena única de 6 anos e 10 meses de prisão aplicada ao arguido AA no primeiro cúmulo jurídico efetuado englobando as penas aplicadas nos processos n° 50/15.2PBBRR, 926/15.7PBBRR, 236/16.2SGLSB e nos presentes autos, teve em consideração, e bem, que o arguido esteve ligado ao processo n.° 926/15.7PBBRR de 29/12/2016 até 24/11/2017, data em que foi ligado ao processo n.° 386/16.5 SYLSB, ou seja, de que esteve privado da liberdade num total 10 meses e 26 dias.
Mais atentou, que o arguido foi ligado ao processo n.° 623/16.6SGLSB.1 em 16/03/2018 sendo dele desligado, com efeitos a partir de 15/09/2020, e ligado aos presentes autos para cumprimento de pena.
Levou ainda, naquela ocasião de liquidação daquela pena única, o Ministério Público e ora recorrente em conta, e bem, que o arguido AA esteve igualmente privado da sua liberdade durante 5 dias à ordem dos processos englobados no primeiro cúmulo jurídico (1 dia no processo n.° 926/15.7PBBRR, 2 dias no processo n.° 50/15.2PBBRR e 2 dias no processo n.° 236/16.2SGLSB).
Por tudo isso, entendeu que o termo dessa pena única de 6 anos e 10 meses de prisão se atingirá a 14/08/2026, tendo o condenado a cumprir 5 anos, 10 meses e 29 dias de prisão, devendo fixar-se, segundo o Ministério Público, o 1/2 da pena a 14/03/2023, os 2/3 da pena a 4/05/2024 e os 5/6 da pena em 24/06/2025.
No entanto, a Mmª Juíza a quo, embora também considerando que o termo dessa pena única de 6 anos e 10 meses de prisão se atingirá a 14/08/2026 e que o condenado tem a cumprir 5 anos, 10 meses e 29 dias, entende que tal contagem se terá de fazer com início a 15/09/2020, pelo que, nessa conformidade, afigura-se-lhe que a liquidação de pena do Ministério Público não é correcta quanto aos marcos ½, 2/3 e 5/6 do cumprimento da pena, pelo que a não homologou nessa parte, sendo, em sua opinião, o ½, 2/3 e 5/6 da pena a serem atingidos, respetivamente, em 29/08/2023, 24/08/2024 e 19/08/2025.
Uma diferença que não é despicienda pois atira o meio da pena para mais de cinco meses mais tarde, o mesmo sucedendo com os dois terços da pena, a serem atingidos mais de três meses mais tarde, e com os cinco sextos da pena a serem alcançados quase dois meses mais tarde.
Sendo certo, que se a liberdade definitiva só é obtida com o cumprimento total da pena (salvo em situações excecionais como sucede por exemplo nos casos de amnistia e indulto), a liberdade condicional – e é com ela que cessa a privação da liberdade física do condenado e o seu regresso ao mundo exterior ao cárcere – pode ser concedida antes do fim da pena, sendo in casu obrigatória aos cinco sextos da pena já que a condenação do arguido AA o foi em pena de prisão superior a seis anos (cfr. art. 61.º, n.º 4, do Código Penal) e facultativa ao meio e aos dois terços da pena, preenchidos que estejam os critérios legais de ordem formal e de ordem substancial para o efeito (cfr. art. 61.º, n.ºs 1 a 3, do Código Penal).
Recorde-se aqui que na sua génese, a figura da liberdade condicional constituiu uma resposta de natureza política criminal, vazada em lei, delineada como forma de reagir ao aumento de reincidência que se verificava sobretudo aquando do cumprimento de penas longas ou de média duração. É tida, desde o seu surgimento, como uma fase de transição da reclusão para a liberdade definitiva servindo finalidade específica de prevenção especial positiva ou de socialização, visando minorar as dificuldades de adaptação à comunidade inevitavelmente associadas ao tempo de reclusão e alcançar uma gradual preparação ao reingresso na sociedade de alguém que há muito dela se encontra apartado.
Assim se descolando do entendimento anterior da prisão com mera finalidade repressiva e intimidatória, ou seja, como um castigo infligido ao agente (retribuição) e uma forma de intimidar os demais (prevenção do crime). Encurtando-se a pena com base na presunção da recuperação do condenado e na vigilância exercida sobre o seu comportamento que fica sujeito a restrições por forma a evitar a reincidência e a proteger a sociedade, podendo, em caso de má conduta e reincidência, revogar-se a medida.
Releva sobremaneira, o segundo daqueles marcos da pena, pois o legislador, cumpridos que estão 2/3 da pena, abranda as exigências de defesa da ordem e paz social e prescinde do requisito de prevenção geral, considerando que o/a condenado/a já cumpriu uma parte significativa de prisão e que, por conseguinte, tais exigências já estarão minimamente garantidas (cfr. art. 61.º, n.º 3, do Código Penal).
Donde, aos dois terços da pena, apesar da liberdade condicional continuar a não ser de aplicação automática, temos apenas como requisito a expectativa de que o condenado/a em liberdade, conduzirá a sua vida responsavelmente sem cometer crimes, ou seja prevenção especial, na perspetiva de ressocialização (positiva) e prevenção da reincidência (negativa). Pelo que, no respeitante aos fins das penas, subsiste apenas a finalidade de ajuda ao recluso na mudança e regeneração (ressocialização) e na prevenção de cometimento de novos crimes (art.s 40.º e 42.º do Código Penal).
Dito isto, avancemos.
Para a liquidação daquela pena única ficciona o Ministério Público que o condenado iniciou o cumprimento da pena antes de dar entrada no estabelecimento prisional, em período de tempo igual ao desconto, em benefício do condenado, não tendo que se efetuar o desconto na pena de prisão a cumprir, por referência à data em que o condenado deu entrada no estabelecimento prisional.
Foi a operação que o Ministério Público efetuou – bem diversa do cômputo aritmético formulado a Mmª Juíza a quoficcionando o ora recorrente como data do início do cumprimento da pena o dia 14/10/2019, procedendo assim ao desconto nos termos e para os efeitos previstos no art. 80.° do Código Penal, para depois se apurarem as datas relevantes para a concessão da liberdade condicional.
Apreciando dir-se-á que, também para este tribunal ad quem, o entendimento correcto é de que toda a privação da liberdade sofrida pelo arguido no âmbito dos processos alvo do cúmulo deverá ser descontada no cumprimento da pena e não na pena.
É certo que, como doutamente expendeu o Ministério Público no seu a recurso, “para efeitos de aplicação do disposto no art.80°, do C.P., na determinação do cômputo do 1/2, 2/3 e 5/6 do cumprimento da pena, e respetivas antecipações, o cômputo destas datas de apreciação da liberdade condicional ou sua antecipação é da única responsabilidade e competência do TEP, não sendo para este mesmo efeito vinculativa a liquidação efetuada pelo tribunal de julgamento, competindo depois ao TEP a decisão última e única juridicamente relevante sobre as datas concretas para a apreciação da eventual concessão da liberdade condicional, tudo nos termos do disposto nos arts.477° do C.P.P. e 61° do Código Penal, por respeitar à apreciação da eventual concessão de liberdade condicional, matéria esta da competência do TEP nos termos do disposto no art.138°, alínea c), do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade (Lei n°115/2009, de 12 de Outubro).” (fim de transcrição).
Aliás, o critério por nós apontado e seguido pelo ora recorrente é que em concreto respeita ao princípio da aplicação normativa mais favorável ao arguido e que também na liquidação de pena deve ser observado.
Assim, tal como o Ministério Público reiteramos que os períodos de privação de liberdade deverão ser descontados no cumprimento da pena e não na pena concreta, sendo de ficcionar um dia como o do da data de início de cumprimento de uma pena para proceder ao seu cômputo, por se mostrar tal operação concretamente mais favorável ao arguido, por permitir sempre uma apreciação da liberdade condicional mais próxima da data do início do cumprimento efetivo da pena, pois que o período de privação de liberdade a descontar conta como cumprimento efetivo da pena de prisão.
Em abono do entendimento por nós perfilhado podem ver-se não só os acórdãos dos Tribunais da Relação de Coimbra e Guimarães citados pelo Ministério Público na sua posição expressa a 14 de outubro de 2020 (supra transcrita em 2.3.) como também os que indicou nas suas motivações de recurso e que aqui se impõe serem trazidos à colação.

Neste sentido, podem ver-se:
- o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora TRL, proferido a 2 de junho de 2012 no processo n.º 11/06.2GBCUB-A.E1 e consultável em www.dgsi.pt/jtre, onde se decidiu que "Os períodos de privação de liberdade sofridos pelo condenado deverão ser descontados no cumprimento da pena e não na pena concreta.” (fim de transcrição).
- o Acórdão da 5ª Secção deste Tribunal da Relação de Lisboa TRL, proferido a 23 de janeiro de 2018 no processo n.º 79/15 .OPTOER-A.L1 e consultável em www.pgdlisboa.pt, em cujo sumário se consignou:
"Artigo 80°, n.° 1, do Código Penal. Cômputo da pena. Desconto.
I— O desconto a realizar na pena deve ser efectuado sobre a pena que seria aplicada ao arguido sem descontos só depois se procedendo ao cômputo da pena daí resultante, a partir da data de início efectivo da execução.
II— Assim, os dias de privação da liberdade, por razões diversas do cumprimento da pena, são descontados por inteiro no cumprimento da pena de prisão, pelo que no momento do cumprimento da pena, tais dias deverão ser computados na duração global da pena, contando como cumprimentos parciais da mesma.
III— A circunstância do artigo 80°, n.° 1, do Código Penal, se referir ao "cumprimento da pena" visa unicamente esclarecer que os dias de privação de liberdade que aí se referem deverão considerar-se como dias de cumprimento da pena." (fim de transcrição).
- o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido a 2 de novembro de 2011 no processo n.º 70/09.6JAPRT-B .P1  e consultável em www.dgsi.pt/jtrp ond se expendeu que:
"No cumprimento da pena de prisão, havendo que proceder ao desconto da detenção e/ou da prisão preventiva e/ou da obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido, o cômputo do meio da pena, dos 2/3 e dos 5/6 é feito por referência à pena total a que foi condenado e não por referência à pena residual resultante do prévio desconto dos sobreditos períodos." (fim de transcrição).
De resto, atente-se que nesse mesmo acórdão cumulatório de 26 de maio de 2020 igualmente se procedeu a um segundo cúmulo jurídico englobando as penas aplicadas nos processos n.°s 386/16.5SYLSB, 622/16.6SGLSB e 662/16.7PBMTA, em consequência do que foi o arguido AA condenado na pena única de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão efectiva, logo se acrescentando no dispositivo: “nessas penas únicas se descontando os períodos de privação de liberdade pelo condenado sofridos à ordem dos processos nos quais lhe foram aplicadas as penas parcelares que integram os referidos cúmulos - art. 80.° do Código Penal (cfr., quanto aos procs. n.°s 926/15.7PBBRR, 386/16.5SYLSB, 236/16.2SGLSB, 623/16.6SGLSB e 662/16.7PBMTA, fls. 1562-A e 1562-B, 1465 e 1466, 1492 v.° a 1493 v.° e 1535 e 1536).”
Destarte, tudo visto e ponderado e sem necessidade de outros considerandos, aderindo no mais à boa argumentação do recorrente, pela sua clareza e acerto jurídico, o recurso merece proceder.

III–Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa, em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, revogando-se a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que homologue in totum a liquidação da pena única de 6 anos e 10 meses de prisão aplicada ao arguido AA no primeiro cúmulo jurídico efetuado pelo acórdão de 26 de maio de 2020 englobando as penas aplicadas nos processos n.°s 50/15.2PBBRR, 926/15.7PBBRR, 236/16.2SGLSB e nos presentes autos, avançada pelo recorrente nas suas promoções de 7 e 14 de outubro de 2020.
Sem tributação.
Notifique nos termos legais.


(o presente acórdão foi processado em computador pelo relator, seu primeiro signatário, e integralmente revisto por si e pelo Exmº Juiz Desembargador Adjunto – art. 94.º, n.º 2, do CPP)


Lisboa, 21 de janeiro de 2021



(Calheiros da Gama)
(Abrunhosa de Carvalho)