Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
30822/16.4T8LSB.L1-6
Relator: MANUEL RODRIGUES
Descritores: ACÇÃO POPULAR
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/26/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: A falta de apreciação de questões que o juiz deva conhecer integra nulidade da decisão, por omissão de pronúncia (art.º 615º, n.º 1, alínea d), do CPC).
O âmbito da acção popular delineado pelo artigo 1º da Lei n.º 83/15, de 31 de Agosto, engloba não só a tutela de “interesses difusos” (stricto sensu) como ainda dos “interesses individuais homogéneos”, também chamados “direitos subjectivos fraccionados”.

(Sumário elaborado pelo relator)
Decisão Texto Parcial:Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa.


IRELATÓRIO: 

   
P..., Advogado, intentou, em 16/12/2016, a presente acção popular civil, segundo as regras do processo comum de declaração, contra N... S.A,, pedindo seja:
a)-Declarado contra a Ré e invocando-se, com efeitos erga omne, a prescrição de todas as facturas emitidas nos seis meses posteriores à prestação do serviço pela Ré detidas pela mesma à data da entrada desta acção em juízo, ou da data da publicação dos Editais da mesma, e que estejam abrangidas pelo art.º 10º,nº1 da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, contra a Ré por parte de todos os consumidores - devedores da Ré;
b)-Declarada a caducidade contra a Ré com efeitos erga omnes, dos procedimentos caducados, nos termos do art.º 10º, nº 4 da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, referente às facturas de consumidores da Ré na titularidade da mesma;
c)-A Ré condenada a destinar €18.225.000,00, a um Fundo Destinado à Pesquisa em Encriptação, Transmissão e Computação Quântica, dirigido por si e com a sua autoridade;
d)-A Ré condenada a reter do valor referido em c) deste Pedido ao Advogado nestes autos 4,75% do valor do Fundo Destinado à Pesquisa em Encriptação, Transmissão e Computação Quântica;
e)-Declarada a penhora dos bens móveis da habitação do executado, para satisfação do crédito da Ré, um procedimento ilegítimo, por Abuso de Direito: art.º 334º do Código Civil.

Alegou, em resumo, como fundamento da sua pretensão:
O Autor é Advogado inscrito na Ordem dos Advogados;
A Ré é uma sociedade resulta da fusão das sociedades Z... S.A. e O... S.A., que se dedica ao fornecimento e implementação, operação, exploração e oferta de redes e prestação de serviços de comunicações electrónicas e serviços conexos, bem como ao fornecimento e comercialização de produtos e equipamentos de comunicações electrónicas, distribuição de serviços de programas televisivos e radiofónicos;
No âmbito da sua actividade, a Ré possui uma carteira de créditos, de valor elevado, não pagos, provenientes do fornecimento de serviços, tanto da O... como da Z...;
Tais créditos sobre clientes correspondem a facturas de prestações de serviços com mais de 12 (doze) meses, sendo que €56.325.000,00 se referem a telefonia celular e € 19.850.000,00 a serviços audiovisuais;
A Ré desenvolve uma estratégia judicialmente agressiva de cobrança de tais dívidas prescritas, muitas delas prescritas, designadamente notificando os devedores clientes com a cominação de “PENHORA E REMOÇÃO DE BENS”, bem como da “PENHORA DE TODOS OS BENS QUE SE VENHAM A APURAR”;
Tal estratégia muitas vezes ameaçadora é do conhecimento público, como se comprova das notícias e portais existentes na net., que recebem diariamente queixas da Ré, por cobranças ilícitas e abusivas;    
A penhora dos bens móveis do executado, na sua casa de morada, para satisfação do crédito da Ré é um procedimento ilegítimo (…), por violar a dignidade do executado quanto à sua casa de habitação;
A Ré serve-se, desde 2009, do PEPEX – Procedimento Extrajudicial Pré-Executivo para convolar os créditos em penhora de bens da habitação do executado, com manifesto propósito de ganhar várias vezes o valor da dívida inicial, o que poderia ser evitado se a ré pura e simplesmente interrompesse o serviço e o acumular de dívidas;
Estimando-se que mais de 50% das acções de cobrança e injunções interpostas pela Ré contra clientes e ex-clientes, devedores e consumidores estejam caducadas e os créditos prescritos;
A Ré viola, assim, o fim económico ou social do direito à cobrança, destruindo o frágil equilíbrio dos consumidores, agindo com Abuso de Direito, ilegitimidade e eventual ilicitude, dado que a actuação da Ré é, na maioria dos casos um procedimento judicialmente agressivo, que extravasa o temor reverencial, mas constitui uma ameaça ilícita proprio sensu;
Por outro lado, os direitos da Ré cobrar créditos prescritos, nos termos do artigo 10º, n.º 1, da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, caducam logo que sejam ultrapassados seis meses após “a prestação do serviço ou do pagamento inicial, consoante os casos”;
Caducidade que é do conhecimento oficioso, por respeitar a matéria subtraída da disponibilidade das partes, como se retira dos art.º 13º, n.º 1, da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho;
O Autor, como Advogado, está sujeito a um poder-dever de interposição da presente acção, de acordo com o artigo 31º do CPC e os artigos 2º e 12º, n.º 2, da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto;
O próprio artigo 90º, n.º 1, do Estatuto da Ordem dos Advogados obriga o Autor, Advogado, a “defender os direitos, liberdades e garantias, a pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas”;
Tem o Autor um interesse e legitimidade para invocar contra a Ré a prescrição das facturas ainda não declaradas prescritas e cuja prescrição não foi invocada pelos próprios consumidores, por descrença na justiça ou falta de meios para suportarem os honorários de um advogado e respectivas taxas de justiça;
Agindo o Advogado Autor em causa própria e alheia, defendendo interesse difusos, representando, assim, milhares de cidadãos e consumidores portugueses.

Sendo que a Ré, nos últimos três anos, ameaçou ou penhorou ilegitimamente cerca de 135.000 pessoas;
Do valor da compensação devida a esses consumidores lesados, deve afectar-se 90% a um Fundo destinado à pesquisa em encriptação, transmissão e computação quântica, que deve ser constituído e gerido pela Ré, sob sua autoridade e direcção;
E uma parte, não inferior a 4,75%, do valor final dos valores em que a Ré venha a ser condenada a constituir para o Fundo de Investigação Científica, deverá ser retida a favor do Autor, para lhe ser entregue, a título de justa renumeração do seu trabalho e investigação. 

O Digno Magistrado do Ministério Público junto do tribunal de 1ª Instância pugnou, no seu douto parecer constante de 23 verso a 26, pelo prosseguimento da acção, por entender que inexiste fundamento para que esta seja indeferida liminarmente e que antes da formulação de um juízo definitivo a tal respeito, deveria notificar-se a DECO (Associação de Defesa dos Consumidores), ao abrigo do disposto no art.º 17.º da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto, a fim de informar qual o número de queixas que a essa entidade foram apresentadas a essa entidade, nos últimos três anos, por clientes da Ré, relacionadas com a questão de cobranças indevidas e abusivas e, designadamente, com referência a créditos já prescritos.

O Sr. Juiz indeferiu liminarmente a petição inicial, por entender “ser manifesta a improcedência dos pedidos, face à ilegitimidade do autor para arguir a caducidade do direito da ré a cobrar créditos sobre os consumidores seus clientes e a prescrição do crédito da ré sobre as facturas emitidas há mais de seis meses e, à impropriedade da acção popular para obtenção da tutela dos clientes da ré sobre essa prescrição e caducidade” – cf. fls. 27 a 28 verso.

Inconformado, em 27/02/2017, o Autor interpôs recurso de apelação para este Tribunal da Relação de Lisboa, nas quais formulou as seguintes conclusões:
«1º Dirigiu o Autor contra a Ré o pedido de “prescrição de todas as facturas emitidas nos seis meses posteriores à prestação do serviço pela Ré, à data da entrada desta ação em juízo.
A prescrição é matéria estabelecida na “disponibilidade das partes”, de acordo com o art.º 303º, do Código Civil, e a oponibilidade da prescrição por terceiros com legítimo interesse na sua declaração é pertinente, ainda que o devedor a ela tenha renunciado: art.º 305º, n.º 1 do Código Civil.
A política de cobrança da Ré contra os consumidores – devedores é feita de “forma atentatória contra as necessidades básicas dos mesmos”(…), “uma vez que promove maciçamente contra os seus devedores a ameaça de retirar os seus bens de habitação”(…) “em violação dos limites legais, previstos no art.º 737º,nº3 do CPC”:
Na realidade a penhora de bens da casa do devedor – consumidor, constitui a manifestação de um direito ilegítimo, pois a lei não deveria permitir a agressão de qualquer domicílio de um devedor, salvo em casos muito excepcionais.
O pedido (aliás não considerado na douta sentença) de proibição de penhora de bens gerais da habitação dos clientes da Ré, são um bem jurídico geral e uno, que pretende tutelar um inaceitável venire contra factum proprium da Ré, em relação a consumidores desprotegidos, falidos, inadimplentes, para não lhes serem cobradas com violência cega dívidas na sua habitação.
O Autor tem um poder – dever, ao abrigo do art.º 90º, nº1 do Estatuto da Ordem dos Advogados, de invocar a sobredita prescrição.
À declaração da caducidade contra a Ré e a favor dos consumidores, com efeitos erga omnes, dos procedimentos caducados referentes às facturas detidas pela Ré há mais de seis meses, após a sua prestação – art.º 10º, nº 4, da Lei nº 23/96, de 26 de Julho, aplica-se mutatis mutandis conforme se referiu em relação à prescrição.
É censurável a conduta da R em ter práticas de cobrança ilegítimas, e por vezes ilícitas.
A penhora de “bens móveis de habitação” do executado, para satisfação dos créditos da Ré, é um procedimento ilegítimo, por Abuso de Direito: art.º 334º do Código Civil.
10º O Tribunal A Quo considerou os fundamentos para indeferir o pedido quanto á prescrição e a caducidade como fundamento também dos demais pedidos, que indeferiu, pedidos os quais têm conteúdo distinto, sendo aqui a douta sentença omissa – art.º 615º, d) do CPC.
11ºA douta sentença peca porque o Tribunal A Quo considerou os fundamentos para indeferir o pedido quanto à a prescrição e a caducidade como fundamento também dos demais pedidos, que indeferiu, pedidos os quais têm conteúdo distinto, sendo aqui a douta sentença omissa –  art.º 615º/ d) do CPC.
12º Não se concorda que o Autor não possa representar os demais interessados quanto à prescrição e caducidade das facturas, como supra se referiu, por falta de legitimidade.
13º A redacção do art.º 305º do CC preceitua: “A prescrição é invocável pelos credores e por terceiros com legítimo interesse na sua declaração, ainda que o devedor a ele tenha renunciado”.
14º A redacção do art.º 305º do CC preceitua: “ A prescrição é invocável pelos credores e por terceiros com legítimo interesse na sua declaração, ainda que o devedor a ele tenha renunciado”, sendo que várias são as faculdades que podem integrar o conteúdo de direito subjectivo “strictu sensu”. Por exemplo, o credor tem a faculdade de exigir (facultas exigendi) a prestação do devedor (cf. art.º 397º). No caso dos direitos reais, como o direito de propriedade existe, além de uma faculdade de domínio sobre a coisa (facultas dominandi), a faculdade de exigir da generalidade das pessoas que respeitem aquele domínio”.
15º Só no n.º 2 e n.º 3 do art.º 305º do CC se delimita o exercício de invocação da prescrição aos credores, quando o devedor a ele tiver renunciado, e quando o devedor for condenado, caso em que o caso julgado não afecta o direito reconhecido aos seus credores.
16º Característica de interesses difusos é a ocorrência de lesões disseminadas em massa.
17º Essa característica confere aos interesses difusos uma conotação pública. Interesses que são, em última análise, individuais, assumem a configuração de interesses difusos sempre que passíveis de lesões disseminadas, “propagando-se numa determinada colectividade e atingindo com os seus efeitos danosos em massa uma série aberta de criaturas.”
18º Os interesses difusos caracterizam-se pela indivisibilidade do objecto de tal forma que, neles, a solução do conflito levada a juízo é, por natureza, una para todo o grupo, ao passo que nos interesses individuais homogéneos seriam divisíveis.
19º Os direitos subjectivos relativos à prescrição e caducidade, podem assumir a forma de interesses difusos, pelo seu duplo carácter individual e supra-individual.
20º Quanto aos demais pedidos, os interesses são igualmente difusos, e a sua solução pode ser unitária, concorrente e não exclusiva.
21º Perante interesses difusos, a solução do conflito levada a cabo, é por natureza para todo o grupo, e não uma solução individualizada de interesses individuais homogéneos, divisíveis, e com soluções distintas.
22º Característica de interesses difusos é a ocorrência de lesões disseminadas em massa e essa característica confere aos interesses difusos uma conotação pública.
23º Interesses que são, em última análise, individuais, assumem a configuração de interesses difusos sempre que passíveis de lesões disseminadas, “propagando-se numa determinada colectividade e atingindo com os seus efeitos danosos em massa uma série aberta de criaturas.”
24º O Autor tem pois legitimidade para invocar seja a prescrição e caducidade dos procedimentos em relação às obrigações das facturas da Ré, seja quanto aos outros pedidos.
25º Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a “justiça em nome do povo”, e como tal travar excessos por abuso de direito e ilegalidades por parte das entidades com poder económico, que o oprimem ilegitimamente, como no caso da Ré.
26º Termos em que de acordo com o estatuído no art.º 90º, n.º 1, do Estatuto da Ordem dos Advogados, e estando o Autor obrigado a defender os direitos, liberdades e garantias, a pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura jurídica, o Autor tem os necessários requisitos, quanto a este normativo, bem como legitimidade necessária, no que respeita à invocação da prescrição dos direitos dos consumidores, não declaradas prescritas pelos mesmos, por impossibilidade de facto ou jurídica ou descrença na boa administração da justiça, já que o art.º 305º, nº1 do Código Civil, estatui claramente que (em sede de oponibilidade da prescrição por terceiros): “A prescrição é invocável pelos credores e por terceiros com legítimo interesse na sua declaração, ainda que o devedor a ela tenha renunciado”.
Termos em que pugna pela revogação da decisão de indeferimento liminar da petição inicial e pelo consequente prosseguimento dos autos até final.

Citada a Ré para os termos do recurso e da acção, veio a mesma, em 26/06/2017, apresentar a suas contra-alegações onde defende a improcedência do recurso, por entender que o Recorrente carece de legitimidade para demandar a Ré/Recorrida em acção popular e para invocar a caducidade e a prescrição, por não ser de considerar terceiro com legítimo interesse na declaração e porque a acção popular proposta não tem por fundamento quaisquer interesses difusos mas uma multiplicidade de direitos subjectivos intrinsecamente individuais a cada um dos hipotéticos cidadãos clientes da Recorrida, os quais apenas podem ser exercidos pelos seus titulares e interessados, sendo que o Recorrente não tem qualquer ligação com os interesses em que sustenta a acção popular.

II–QUESTÕES A APRECIAR
De acordo com o disposto nos artigos 635º, nº 4 e 639º, n.º 1, do Código de Processo Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal “ad quem” possa ou deva conhecer oficiosamente, estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso. Esta limitação objectiva da actuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, contanto que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. artigo 5º, n.º 3, do Código de Processo Civil).

Dentro destes, as questões submetidas à nossa apreciação são as seguintes:
1-Se decisão recorrida é nula, por omissão de pronúncia quanto aos pedidos formulados pelo Autor/recorrente sob as alíneas c), d) e e) do artigo 112º da petição inicial.
2-Se o Autor/recorrente tem legitimidade para propor a presente acção popular e se a mesma é manifestamente inviável.

III–FACTOS
Os factos a ter em conta são os acima referidos decorrentes da tramitação processual. 
 
IVOS FACTOS, O DIREITO E O RECURSO
Na decisão recorrida entendeu-se indeferir liminarmente a petição inicial porque se considerou que: i) o Autor/recorrente não tem legitimidade para invocar a caducidade das acções propostas pela Ré/recorrida contra os consumidores, seus clientes, transcorridos seis meses após a prestação do serviço em dívida; ii) o Autor/recorrente não tem legitimidade para invocar a prescrição dos créditos judicialmente reclamados pela Ré/recorrida relativos a serviços prestados aos consumidores, seus clientes, há mais de seis meses; iii) apenas o devedor e os terceiros garantes do crédito (prescrito) têm legitimidade para invocar a caducidade do direito de acção e a prescrição do crédito, por se tratar de um direito subjectivo autónomo; iv) o objecto da acção popular abrange interesses difusos, interesses colectivos e correspondentes interesses individuais homogéneos, mas não direitos subjectivos nem interesses individuais.

O Autor/Recorrente entende que a decisão recorrida é omissa - logo nula, cf. art.º 615º, alínea d), do CPC – por indeferir os demais pedidos com os fundamentos com que indeferiu os pedidos de declaração da prescrição e da caducidade, pedidos esses que têm conteúdos distintos, e que a presente acção deve prosseguir como acção popular, por ter legitimidade para invocar seja a prescrição dos créditos e caducidade dos procedimentos em relação às obrigações das facturas da Ré/recorrida, seja para formular os outros pedidos, por estarem em causa interesses difusos e ainda por ter o poder-dever de o fazer, na qualidade de Advogado, ao abrigo do artigo 90º, n,º 1, do Estatuto da Ordem dos Advogados (doravante “EOA”).
Da nulidade da decisão recorrida:
 A arguição de nulidade da decisão recorrida, por omissão de pronúncia, relativamente aos pedidos formulados pelo Autor sob as alíneas c) [afectação de €18.225.00,00 a um Fundo…], d) [retenção de 4,75% do valor desse Fundo a favor do Autor] e e) [Declaração da ilegitimidade, por abuso de direito, da penhora de bens móveis da habitação dos executados para satisfação do crédito da Ré] tem cabimento, no caso vertente, pois o Sr. Juiz “a quo” não conheceu desses concretos pedidos e limitou-se a porfiar razões ou argumentos susceptíveis, na sua óptica, de afastar o direito que o Autor se arroga de invocar a prescrição e a caducidade.

Na decisão recorrida não se ponderaram as referidas questões suscitadas pelo Autor que integravam o pedido e a causa de pedir, não obstante o dever que recai sobre o juiz de conhecer por forma completa do objecto do processo, definido pelo(s) pedido(s) deduzido(s) e respectiva(s) causa(s) de pedir (artigos 607º e 608º, n.º 2, do CPC). Sob pena de incorrer em vício de omissão de pronúncia, determinante da nulidade da decisão (cf. art.º 615º, n.º 1, alínea d) e n.º 4, do CPC), o juiz deve apreciar todas as pretensões processuais das partes - pedidos, excepções, reconvenção – e todos os factos em que assentam, bem como os pressupostos processuais desse conhecimento, sejam eles os gerais, sejam os específicos de qualquer acto processual, quando objecto de controvérsia das partes..No caso em apreciação, o Sr. Juiz “a quo” apenas conheceu dos pedidos de declaração da prescrição e da caducidade e, malgrado, sem qualquer ponderação dos restantes pedidos, concluiu pela manifesta improcedência de todos eles e indeferiu liminarmente a acção.

Colhe, assim, sem necessidade de outras considerações, a arguição de nulidade no que concerne aos pedidos formulados pelo Autor/recorrente sob as alíneas c), d) e e) do artigo 122º da petição inicial.

Da legitimidade do Autor/recorrente e da sua manifesta inviabilidade
O conhecimento desta questão encontra-se prejudicado, face à procedência da arguição de nulidade, mas continua a ter pertinência relativamente aos pedidos de declaração da prescrição e da caducidade (alíneas a) e b) do artigo 122º da p.i.).
E relativamente a esta questão, importa aquilatar se em função destes pedidos e dos seus fundamentos de facto e de direito se pode afirmar, desde já, que é “manifestamente improvável” a procedência de tais pedidos?
Salvo o devido respeito pelo entendimento expresso na decisão recorrida, estamos em crer que não.

Vejamos.

O artigo 52º da CRP, sob a epígrafe “Direito de petição e direito de acção popular”, dispõe no seu n.º 3:
É conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de acção popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para: a) Promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida, a preservação do ambiente e do património cultural; b) Assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais”.

Consagra-se, desta forma, a tutela de bens jurídicos como os da saúde pública, dos direitos dos consumidores, do ambiente, do urbanismo, do ordenamento do território, da qualidade de vida, do património cultural e dos bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais.

O direito de acção popular, consagrado constitucionalmente no n.º 3 do artigo 52.º da CRP, no capítulo referente aos direitos, liberdades e garantias de participação política, é um instrumento de participação e intervenção democrática dos cidadãos na vida pública, de fiscalização da legalidade, de defesa dos interesses das colectividades e de educação e formação cívica de todos. É, assim, consagrada uma forma peculiar de participação dos cidadãos, individual ou colectivamente organizados[1], na defesa e preservação de valores essenciais, por pertencerem a uma mesma colectividade[2].

Actualmente, a acção popular, tal como configurada no art.º 52º, n.º 3 da CRP, no capítulo referente aos direitos, liberdades e garantias de participação política, é assume tanto a vertente clássica ou correctiva, como a supletiva, para tutela de interesses transindividuais na variante de interesses difusos ou colectivos, e tendente à protecção de direitos ou interesses individuais homogéneos[3]. Da leitura do texto constitucional resulta que o legislador não concretizou, à partida, quais os interesses salvaguardados aquando do recurso ao instituto da acção popular, desenvolvimento que tem sido feito pela doutrina que tem vindo a socorrer-se de uma série de conceitos distintos para encontrar os interesses protegidos pelo art.º 52º, nº3 da CRP[4].
Ainda que não totalmente consensual a sua distinção doutrinária costuma-se entender que dentro da categoria dos interesses difusos (em sentido amplo) é possível englobar diferentes realidades, havendo que distinguir entre interesses difusos em sentido estrito, interesses colectivos e interesses individuais homogéneos.
Assim, os interesses difusos em sentido estrito caracterizam-se por pertencerem a uma pluralidade indiferenciada de sujeitos e recaírem sobre bens indivisíveis, sobre bens públicos. São, por isso, interesses da colectividade, em que a satisfação de um só dos titulares, implica, necessariamente, a satisfação de todos, assim como a lesão de um só constitui, correlativamente, lesão da inteira colectividade[5].
Inerente à tutela destes direitos está o caracter altruísta da sua protecção pelo autor popular. Este propõe-se defender o interesse de todos os titulares. Ainda que o art.º 52º, nº3 da CRP atribua ao autor popular o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, o que, de algum modo, parece desvirtuar a lógica puramente altruísta da acção popular configura-se, ainda assim, admissível na medida em que, lado a lado com a reparação dos danos, sejam também diligentemente acautelados os interesses difusos[6].
Os interesses colectivos, por sua vez, diferenciam-se pelo facto de a sua tutela se encontrar confiada a uma organização ou a um ente publico ou privado que age em juízo em “representação” desses interesses, podendo beneficiar, por isso, de uma “defesa colectiva”[7].
Por último, aparecem os interesses individuais homogéneos, também chamados “direitos subjectivos fraccionados”, que correspondem à lesão diferenciada que se verifica na esfera jurídica de uma pessoa ou de um conjunto determinado de pessoas e que advém de uma causa comum[8]. Ou seja, são interesses individuais que pela sua homogeneidade e origem comum, justificam o seu tratamento conjunto.
Nesta linha, devemos reter, em primeiro lugar, que o art.º 52º, n.º 3 da CRP contempla tanto a defesa de interesses difusos [alínea a)], como a defesa de bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais [alínea b)].
Em segundo lugar, que as referidas alíneas elencam apenas alguns casos em que se pode propor uma acção popular, mas que podem surgir igualmente, outros interesses relevantes. O art.º 52º, nº 3 não consagra, portanto, um elenco taxativo.
Para além disso, acrescente-se que a acção popular não constitui um meio jurisdicional a utilizar apenas quando todos os outros meios judiciais falharam nem, tão pouco, apresenta carácter subsidiário, constituindo muitas das vezes, a forma mais adequada para tutela dos interesses acima mencionados[9].
Ora, a remissão expressa feita no art.º 52, n.º 3 da Constituição para a lei ordinária, quanto à definição do direito de acção popular chama à colação a Lei 83/95, de 31 de Agosto, vulgarmente denominada Lei da Acção Popular (LAP). Com esta lei, apesar de alvo de algumas críticas na doutrina[10] visou regular-se, de forma unitária, o direito de participação procedimental e de acção popular.
No artigo 1º, n.º 1, da LAP postula-se que o direito de acção popular regulado nesta lei se refere à prevenção, cessação ou perseguição judicial das infracções previstas no n.º 3 do art.º 52º da CRP e, no n.º 2 deste artigo são enumerados os interesses protegidos pela presente lei, verificando-se uma quase total coincidência com os bens jurídicos protegidos ao nível constitucional.
Contudo, é no art.º 2º da LAP que se precede a uma identificação concreta dos bens tutelados pela acção popular, tutela esta que a doutrina costuma considerar como sendo a defesa de interesses difusos ou colectivos. Ainda neste preceito, estabelece-se no seu n.º 2 que as autarquias locais são igualmente titulares dos direitos elencados no art.º 2º, n.º 1, consagrando portanto, uma verdadeira forma de acção popular pública.
A acção popular prevista no supramencionado diploma, nomeadamente, nos artigos 12º e seguintes, compreende duas modalidades distintas: A acção popular civil, que pode revestir qualquer das formas previstas no Código de Processo Civil; e, a acção popular administrativa, que comporta a acção para defesa dos interesses referidos no art.º 1º e o recurso contencioso com fundamento em ilegalidade contra quaisquer actos administrativos lesivos dos mesmos interesses.

Não obstante a controvérsia doutrinária e jurisprudencial em torno do âmbito das transcritas normas, todos concordam que no seio das mesmas estão, necessariamente, os interesses difusos, já que incluídos no n.º 3 do artigo 52º da CRP.

A doutrina distingue os interesses difusos em sentido próprio dos interesses individuais homogéneos.

Um interesse difuso é uma “refração em cada indivíduo de interesses unitários da comunidade, global e complexivamente considerada”[11], o que significa que é um “interesse de todos e cada um ou, por outras palavras, é o interesse que cada indivíduo possui pelo facto de pertencer à pluralidade de sujeitos a que se refere a norma em questão (…)”[12].

Assim, a tutela de interesses difusos verifica-se quando a acção
popular é proposta por sujeitos cujos direitos ou interesses individuais não foram afectados, que atuam para proteger bens da comunidade (ex: o autor popular atua em defesa da natureza, enquanto bem insusceptível de apropriação individual, devido a uma descarga poluente num rio, que se limitou a matar muitos peixes[13].[14] .

Diferentemente, os interesses individuais homogéneos reportam-se a bens susceptíveis de apropriação individual exclusiva.

No entanto, a tutela de interesses individuais homogéneos justifica-se quando os direitos ou interesses de uma pluralidade de sujeitos (consumidores) são violados e, por isso, a lesão afecta uma pluralidade de sujeitos (consumidores) de forma homogénea.

Com efeito, concordamos inteiramente com o entendimento expresso no Ac. do STJ, de 23-09-1997 (pro. 97B503 (relator Miranda Gusmão), já citado na nota 9, segundo o qual no âmbito do n.º 3 do artigo 52º da CRP caem não apenas os “interesses difusos”, mas também “os interesses individuais homogéneos” (que representa todos aqueles casos em que os membros da classe são titulares de direitos diversos, mas dependentes de uma única questão de facto ou de direito, pedindo-se para todos eles um provimento jurisdicional de conteúdo idêntico - cf. ADA PELLEGRINI GRINOVER, Revista Portuguesa de Direito de Consumo, n.º 5, Janeiro, 1996, p. 10.

Segundo o referido aresto, «Para se desvendar o verdadeiro sentido e alcance da lei, o artigo 9.º, n.º 1 do Código Civil acentua a distinção entre o “texto” ou “a letra da lei” e os elementos não textuais da interpretação, nomeadamente o enquadramento sistemático resultante da consideração da “unidade do sistema jurídico”, as “circunstâncias em que a lei elaborada e, ainda, “as condições específicas do tempo em que é aplicada” - DIAS MARQUES, Introdução ao Estado de Direito, página 275).

A reconstituição do pensamento legislativo em função da “unidade do sistema jurídico” leva a que se tome em conta diversos elementos, que a doutrina tradicional indica como sendo três: o racional, o sistemático e o histórico.

Para interpretar as normas transcritas parece-nos bastante socorremo-nos do elemento sistemático (que é constituído pelas disposições reguladoras do instituto em que se integra a norma a interpretar - o chamado contexto da lei - e pelas disposições reguladoras de institutos ou problemas afins - os chamados lugares paralelos - PIRES LIMA e A. VARELA, Noções Fundamentais de Direito Civil, volume I, 5. edição, página 157).

E no contexto da lei destaca-se, a norma ínsita no artigo 15º, n.º 1, da Lei n.º 83/95, que prescreve:
“Recebida petição da acção popular, serão citados os titulares dos interesses em causa na acção de que se trata, e não intervenientes nela, para o efeito de, no prazo fixado pelo Juiz, passarem a intervir no processo a título principal... ou se, pelo contrário, se excluem dessa representação, nomeadamente para o efeito de não lhes serem aplicáveis as decisões proferidas...”.

Tal norma confere a prerrogativa de os membros do grupo a que a acção popular se reporta dela se auto-excluírem, prerrogativa conferida com visto dos representados escaparem ao caso julgado da decisão.

Só no âmbito de bens divisíveis (e não no de bens indivisíveis, insusceptíveis de apropriação individual, objecto dos interesses difusos) é que o direito de auto-exclusão permite o afastamento do caso julgado da decisão proferida na acção popular e a consequente oportunidade de o auto excluído propor, futuramente, uma acção singular.

Os bens divisíveis são objecto dos chamados “interesses individuais homogéneos”, tendo presente o referenciado alcance conceitual.

Assim sendo, o alcance e sentido da norma ínsita no n.º 1 do artigo 15º da Lei n.º 83/95, implica que as normas do artigo 1º do mesmo diploma legal, sejam interpretados no sentido de abarcarem não só “os interesses difusos”, mas também “os interesses individuais homogéneos”.

Nos “interesses individuais homogéneos” abrangidos no artigo 1º da Lei n.º 83/95, destaca-se um dos direitos dos consumidores: “o caso do direito à reparação de danos”, tendo presente o seu alcance, conforme se sublinhou na esteira dos ensinamentos de G. CANOTILHO e V. MOREIRA, obra citada, páginas 281 a 283 e 323 e 324.».

Também GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA[15], numa análise interpretativa do artigo 52º da CRP, admitem o alargamento do âmbito da acção popular para além dos interesses difusos, tendo escrito, a propósito:
“A acção popular tem sobretudo incidência na tutela de interesses difusos, pois sendo interesses de toda a comunidade, deve reconhecer-se aos cidadãos uti cives e não uti singuli, o direito de promover, individual ou associadamente, a defesa de tais interesses”. b) “Quando o n.º 3 fala de “indemnização dos lesados” isso não significa que não haja outros danos, para além dos sofridos pelos particulares como consequência de infracções contra a saúde pública, o ambiente e o património cultural. Há que distinguir entre: (1) dano sofrido pelos particulares... (2) danos causados à colectividade - dano público ambiental... (3) dano difuso ambiental... (4) danos colectivos particulares...”.
“O texto da Constituição aponta para a possibilidade de os cidadãos ou as associações poderem tomar a iniciativa (legitimidade activa) ou intervir no processo através da acção popular, nos termos a definir pela lei, em qualquer das hipóteses acabadas de referir”.

E acrescentam:
-“A acção popular não tem de limitar-se aos casos individualizados no n.º 3 (defesa de saúde pública, defesa do ambiente, defesa do património cultural) ”.
-“A norma tem CARÁCTER EXEMPLIFICATIVO, como decorre do seu próprio enunciado textual (“nomeadamente”)”.
-“Ela permite dar cobertura desde logo aos casos de acção popular no âmbito do poder local...
“As mesmas razões podem reclamar a extensão da acção popular à defesa dos direitos dos consumidores (C.R.P., artigo 60.º) à defesa do domínio público (C.R.P. artigo 84º) …. e a outros casos”.

Em suma pode-se concluir que nos “interesses individuais homogéneos” abrangidos pelo artigo 1º da LAP (Lei n.º 83/95), por remissão para o n.º 3 do artigo 52º da CRP, se destacam os direitos dos consumidores.

Ainda de acordo com o que se escreveu no Ac. do S.T.J., de 08/09/2016, (proc. 7617/15.7T8PRT.S1), in www.dgsi., os interesses individuais homogéneos podem ser definidos como os interesses de cada um dos titulares de um interesse difuso “stricto sensu” ou de um interesse colectivo.

Não são apenas interesses singulares, isto é, de um indivíduo, mas também interesses supraindividuais, pois que pertencem a todos os titulares do interesse difuso “stricto sensu” ou do interesse colectivo.

No entanto, não se deixa de ter presente que “por interesse individual homogéneo entende-se, a exemplo do que acontece no Brasil, um direito subjectivo ou outra situação subjectiva cindível em parcelas formalmente idênticas e, por isso, só fará sentido conceder a não interessados legitimidade para propor a acção popular na medida em que nela não sejam discutidas situações individuais particularizadas, mas tão só situações jurídicas genericamente consideradas”[16].

Na presente acção popular, o Autor/recorrente imputa à Ré/recorrida NOS-COMUNICAÇÕES S.A. um conjunto de práticas lesivas de direitos de um universo de clientes, que se traduzem sobretudo, segundo alega, no facto de, nos últimos três anos, ter ameaçado ilegitimamente ou de ter penhorado ilegitimamente cerca de 135.000 clientes, consumidores dos seus serviços, com base na invocação de créditos já há muito prescritos e cujo direito de cobrança já se encontrava, há longo tempo caducado (arts. 84.º a 88.º da p.i.).

Afirma ainda o Autor/recorrente que a referida prescrição ocorreu por força do disposto no art.º 10.º, n.º 1, da Lei dos Serviços Públicos ( Lei n.º 23/96, de 26 de Julho) e qua a aludida caducidade se verificou por via do preceituado no art.º 10.º, n.º 4, do mesmo diploma legal.Acresce que, segundo afirma, a ré demanda devedores com “dívidas muito superiores a 3 anos, até aos 7 anos ou mais de antiguidade” (art.º 83.º da p.i.).

Assevera igualmente que a Ré/recorrida desenvolve uma actuação de cobrança de créditos contra os seus consumidores agressiva, e no mínimo ilegítima,  em violação da paz pessoal dos mesmos, em violação das disposições legais que determinam a impenhorabilidade relativa de bens da economia doméstica…,designadamente porque a Ré/recorrida ameaça os seus devedores, consumidores ou ex-consumidores, com a “remoção dos bens” afectos ao imóvel, sem restrições, em clara violação do art.º 737º, n.º 3, do Código de Processo Civil, dado serem impenhoráveis: “os bens imprescindíveis a qualquer economia doméstica que se encontrem na casa de habitação efectiva do executado” (art.º 76.º).

E que a actuação da Ré/recorrida é também ilegítima, pois ao não interromper o serviço, e aceitar acumular a dívida, que depois só judicialmente é passível de ser violentamente cobrada, constitui um absurdo jurídico, um venire contra factum proprium da mesma (art.º 77.º da p.i.).

Acrescenta que a estratégia de cobrança ilegítima da Ré/recorrida, de dívidas com baixo valor, eventualmente abaixo de € 200,00 Euros, no último ano, atingiu cerca de 90 mil pessoas (art.º 78.º da p.i.).

Alega, por fim, que a actuação da Ré/recorrida em demandar 90 mil pessoas foi feita, ao arrepio do espírito da lei, e mesmo em claro Abuso de Direito, então a Ré/recorrida deve ressarcir a paz social, física e psicológica desses demandados, com uma compensação monetária, por esse Abuso de Direito, tendo em conta a sua culpa ( art.º 79.º da p.i.).

Ora, a Ré/recorrida é uma sociedade que se dedica ao fornecimento de implementação, operação, exploração e oferta de redes e prestação de serviços de comunicações electrónicas e serviços conexos, bem como o fornecimento e comercialização de produtos e equipamentos de comunicações electrónicas; distribuição de serviços de programas televisivos e radiofónicos.

Tais serviços encontram-se legalmente qualificados como “serviços públicos essenciais”, atendendo ao carácter básico, fundamental e indispensável que assumem na vida quotidiana (cf. art.º 2.º, alínea d), da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho).

A relação contratual que se estabelece entre a Ré/recorrida e os respectivos clientes/consumidores também é regulada por normas de direito público (Lei n.º 23/96, de 26 de Julho).

Como dá devida nota o Digno Magistrado do Ministério Público no seu Parecer, a Ré/recorrida enquanto prestadora de um serviço público essencial, está obrigada a proceder de boa-fé, em conformidade com os ditames que decorrem da natureza pública do serviço e a ter igualmente em conta a importância dos interesses que se pretende proteger (art.º 3.º da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho).

A Lei de defesa do Consumidor, designadamente no art.º 9.º, preceitua “o consumidor tem direito à protecção dos seus interesses económicos impondo-se nas relações jurídicas de consumo…a lealdade e a boa-fé, nos preliminares, na formação e ainda na vigência dos contratos”.

Segundo MARIANA PINHEIRO ALMEIDA[17], o legislador quis proteger o consumidor das expectativas que lhe são criadas face a uma decisão que afectará a sua esfera patrimonial, consagrando num só preceito as conclusões retiradas dos arts. 277.º e 762.º do Código Civil.

O princípio da boa-fé deve nortear a actuação das empresas prestadores de serviços de interesse público, como a Ré/recorrida.
Por outro lado, concordamos com o Digno Magistrado do Ministério Público quando sustenta que na base da fixação do prazo de prescrição previsto no art.º 10.º, n.º 1, da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho esteve a intenção do legislador em proteger o utente perante a acumulação de dívidas, evitando de igual modo a inércia do prestador do serviço, que poderia prolongar por tempo inadequado a situação afectando a segurança do utente.[18]

O mesmo raciocínio se aplica quanto ao estabelecimento de um prazo de caducidade (art.º 10º, n.º 4, da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho).

Tudo visto, entende-se ser prematuro concluir, como se conclui na decisão recorrida, pela manifesta inviabilidade da presente acção popular.

Acresce que o Autor/recorrente tem legitimidade para a presente acção popular (seja pela regra geral do artigo 31º do CPC, seja por força do seu estatuto profissional de Advogado (art.º 90º, n.º 1, do E.A.O.), tendo por objecto a defesa de direitos dos consumidores assinantes do serviço telefónico público (serviço público essencial), que se reconduzem a “interesses homogéneos individuais”. (art.º 1º da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto).

VDECISÃO:
Por tudo o exposto, acordam os Juízes desta Relação em conceder provimento ao recurso e, assim, revogar a decisão recorrida e ordenar que os autos voltem à 1ª Instância, devendo a acção prosseguir os seus ulteriores termos até final.
Custas pela Ré/recorrida – artigo 527º do Cód. Proc. Civil.

Notifique.



Lisboa, 26 de Outubro de 2017



Manuel Rodrigues
Ana Paula A. A. Carvalho
Maria Manuela Gomes



[1]Até à revisão constitucional de 1989 o direito de acção popular, consagrado no artigo 52.º da Constituição da República Portuguesa, só podia ser exercido a título individual, por qualquer cidadão; com a nova redacção deste artigo, este direito é concedido a todos, individual ou colectivamente considerados.
[2]RAFAEL BIELSA, A acção popular e o poder discricionário da administração – A acção popular é educativa e o seu exercício faz do cidadão uma espécie de “cavaleiro cruzado”, um colaborador da legalidade e moralidade administrativa; é uma forma peculiar de educar juridicamente o povo.
[3]LUIS SOUSA FÁBRICA, A acção popular no Projecto do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, p. 3 e ss.
[4]JOSÉ LUÍS SOUSA FÁBRICA, A acção popular já não é o que era, CJA, n.38, p.53 e 54. É ROBIN DE ANDRADE, A acção popular no direito administrativo português, p.35 e ss.
[5]MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, A legitimidade popular na tutela dos interesses difusos, p.46.
[6]OLIVEIRA ASCENÇÃO, A acção popular e a Protecção do Investidor, p.4.
[7]MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, op. cit., p.49 e ss.
[8]O Acórdão do STJ de 23-9.-997, proc. 978503, Relator: Miranda Gusmão, www.dgsi.pt, considerou como interesse homogéneo individual o direito de reparação de danos dos assinantes do serviço telefónico por incumprimento de contrato.
[9]J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 3ª ed., Coimbra Editora, 2007, p.700.
[10]Alguns autores debruçam-se sobre esta questão, criticando o facto de um mesmo diploma abordar tanto um direito procedimental como um direito de acção judicial, dos quais destacamos VASCO PEREIRA DA SILVA na sua obra Responsabilidade administrativa em matéria de ambiente, III Colóquio Hispano-Luso de Direito Administrativo, pág. 40.
[11]LUÍS FÁBRICA, ob. e loc. cit.
[12]LUÍS FILIPE COLAÇO ANTUNES, A tutela dos interesses difusos em Direito Administrativo, Almedina, Coimbra, 1989, pp. 22-23.
[13]Exemplo citado por MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Sobre a legitimidade popular no contencioso administrativo português in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 101, Setembro/Outubro 2013, p. 52.
[14]MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, ob. Citada, pp. 20-23.
[15]Obra citada, p. 281 a 283
[16]A acção popular do direito português, Sub Judice, n.º 24.
[17]Lei dos Serviços Públicos Essenciais”, em anotação ao art.º 3.º, pág. 71.
[18]cfr. FERNANDO DIAS SIMÕES, “Lei dos Serviços Públicos Essenciais”, em anotação ao art.º 10.º, p. 188.

Decisão Texto Integral: