Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
813/22.2SXLSB-A.L1-5
Relator: MANUEL ADVÍNCULO SEQUEIRA
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
DIRECTIVA 5/2019 DA PGR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: A possibilidade de tomada de declarações para memória futura sem que haja arguido constituído, é excepção às correspondentes regras, designadamente à que prevê o contraditório pleno.
Como assim, o requerimento da respectiva diligência terá de ser, sob pena de indeferimento, fundamentado caso a caso e com factos concretos que justifiquem a necessidade e proporcionalidade do procedimento.
Por isso é inadmissível que, seja por que forma for, se constitua em regra geral nos processos por crime de violência doméstica, ou em qualquer outro, tal como a obrigatoriedade de tomada de declarações para memória futura.
Nesta conformidade e quanto a esta matéria, a Directiva 5/2019 da PGR é ilegal.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.
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Neste inquérito, a que se procede por suspeita de crime de violência doméstica, foi indeferida tomada de declarações para memória futura.
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Interpôs o Ministério Público o presente recurso concluindo:
1- No presente inquérito investigam-se factos susceptíveis de integrarem a prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas b) e c) e n.º 2, alínea a) do Código Penal, em que é vítima A, e denunciado/suspeito B.
2 - Em cumprimento do disposto no artigo 28.º da Lei de Protecção de Testemunhas, que prevê que as declarações de vítima especialmente vulnerável deverá ser efectuada no mais curto espaço de tempo após a ocorrência dos factos ilícitos e sempre que possível deverá ser evitada a repetição da sua audição ­obstando dessa forma à revitimização - em conjugação com o disposto nos artigos 33.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, 24.º da Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro e 271.º do Código de Processo Penal, in casu, foi requerida a tomada de declarações para memória futura da vítima A.
3 - De igual forma, pelos motivos expostos no ponto 2, o Ministério Público como titular da acção penal e a quem cabe a direcção do inquérito, por razões de discricionariedade táctica na investigação, requereu à Mma. Juiz de Instrução, a tomada de declarações para memória futura da vítima A, em momento anterior ao da constituição como arguido do denunciado/suspeito B.
4 - Pelo motivo do denunciado/suspeito B ainda não ter sido constituído arguido, mais requereu o Ministério Público que fosse nomeado defensor àquele, e notificado para estar presente na diligência de tomada de declarações para memória futura, para cabal exercício do contraditório, nos termos do disposto no artigo 64.º, n.º 1, alínea f) do Código de Processo Penal.
5 - A Mma. Juiz de Instrução, por despacho datado de 9 de Janeiro de 2023, indeferiu a requerida nomeação de defensor ao denunciado/suspeito B, por entender, em síntese, que não sendo constituído arguido não há lugar a participação de defensor na referida diligência e, em consequência, indeferiu a tomada de declarações para memória futura de A.
6 - Entendendo a Mma. Juiz de Instrução indeferir a tomada de declarações para memória futura, em sequência do indeferimento da nomeação de defensor ao suspeito/denunciado B, em momento prévio à sua constituição como arguido, fê-lo desde logo, desconsiderando que, nos termos dos artigos 53.º, n.º 2, alínea b) e 263.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, cabe ao Ministério  Público a direcção da acção penal sendo este quem decide a tempestividade e adequação das diligências probatórias a encetar na fase de inquérito, incluindo-se, o timing em que o denunciado/suspeito deverá ser constituído arguido.
7 - Na verdade, inexiste qualquer base legal para que, em primeiro lugar, se constitua alguém como arguido, para posteriormente, serem requeridas e tomadas as declarações para memória futura da vítima. De salientar que, nos termos do artigo 58.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal se exige que recaia sobre determinada pessoa uma fundada suspeita de crime, para que seja constituída arguida, o que, regra geral, com um auto de denúncia/notícia/participação, não se verifica.
8 - De facto, a tomada de declarações para memória futura, por si só, não protege a vítima, mas permite obter um depoimento mais "fresco" e recente da factualidade em investigação, evitando a revitimização e potenciando uma efectiva responsabilização penal do denunciado, caso se verifiquem indícios da prática de crime, de forma a melhor sustentar uma condenação, cumprindo e garantindo, escrupulosamente, o direito do contraditório.
9 - É evidente que, a ausência do arguido constituído dificultará o exercício da defesa. Mas isso não é diferente do que acontece naquelas situações em que o defensor é nomeado para representar um arguido ausente que não conhece e que nunca prestou declarações no processo, ou um arguido não presente no momento da produção da prova (nas situações dos artigos 325.º, nº 5, 332.º, nºs 5 e 6 e 334º, nº 4 do Código de Processo Penal).
10 - Em nosso entendimento, a Mma. Juiz de Instrução ao recusar a nomeação de defensor ao denunciado/suspeito e em consequência, indeferir a tomada de declarações para memória futura, nos termos e com os fundamentos em que o fez, violou o disposto nos artigos 53.º, n.º 2, alínea b), 58.º, n.º 1, alínea a), 64.º, n.º 1, alínea f), 67.º-A, n.º 1, alínea b), e 271.º, ambos do Código de Processo Penal, 33.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, 24.º da Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro, 20.º, n.ºs 1 e 2 e 32.º, n.ºs 1, 3 e 5 da Constituição da República Portuguesa, 6.º, n.º 3, alínea c) da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e 47.º e 48.º, n.º 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
11 - Razão pela qual o despacho ora em crise, deve ser substituído por outro, onde se determine a nomeação de defensor ao denunciado/suspeito B, e a designação de data para a tomada de declarações para memória futura de A.
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A Meritíssima Juíza titular sustentou a decisão recorrida, acrescentando, para além do mais que “no caso... o Ministério Público, apesar de instado a fazê-lo, não se dignou justificar/fundamentar a não constituição do denunciado como arguido.
Acresce que, como resulta das próprias alegações de recurso, verdadeiramente o Ministério Público vem entendendo que deve haver (sempre) lugar à tomada de declarações para memória futura, independentemente da existência ou não de fundada suspeita (pois só esta permite e reclama a constituição como arguido) transmutando‑as, amiúde, em mera diligência de inquérito/investigação.
Ora, salvo o devido respeito, tal entendimento, inequivocamente banalizador, para além do mais, defrauda a real natureza da tomada de declarações para memória futura (pois que, como é sabido, está em causa, tendencialmente, prova pré-constituída)”.
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Neste Tribunal da Relação, a Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no sentido da procedência do recurso.
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Corridos os vistos, foram os autos à conferência.
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Fundamentação.
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A decisão recorrida tem o seguinte teor:
“Tal como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 23 de Março de 2021, proferido no processo n.º 3/16.3AELSB-B.E1, in www.dgsi.pt. «No nosso sistema legal, a participação do juiz de instrução no inquérito não se cinge à prática dos atos referidos no n.º 1 do art.º 268.º do CPP e à ordenação ou autorização dos atos referidos no n.º 1 do art.º 269.º do CPP.
(...) Um exemplo de atos legalmente atribuídos ao juiz de instrução que extravasam o elenco de competências previsto nos artigos 268.º e 269.º do CPP é o das decisões de validação que ao juiz de instrução são confiadas em vários domínios: v.g., a validação da aplicação do segredo de  justiça decidido pelo Ministério Público (art.º 86.º, n.º 3, do CPP); ou a validação de buscas, não domiciliárias e domiciliárias, efetuadas por órgão de polícia criminal sem prévia autorização de autoridade judiciária nos caso de terrorismo e de criminalidade violenta ou altamente organizada, quando haja fundados indícios da prática iminente de crime que ponha em grave risco a vida ou a integridade de qualquer pessoa (artigos 174.º, n.º 6, e 177.º, n.º 4, do CPP).
A consagração legal destas intervenções judiciais a posteriori com a natureza de atos de validação, é demonstrativa de que o Código reserva ao juiz de instrução um papel que vai para além da esfera de competência delimitada pelos artigos 268.º e 269.º do CPP.
(...) Todos os dados normativos, constitucionais e legais, apontam enfim, de modo cabal, no sentido de que o juiz de instrução detém competência para, durante o inquérito, conhecer e decidir pedidos que lhe sejam dirigidos pelo arguido ou por outras pessoas com interesse em agir para sindicar atos, do Ministério Público ou de órgãos de polícia criminal, que possam contrariar normas consagradoras de proibições de prova. Poder decisório que não se encontra limitado ao elenco de atos previsto nos artigos 268.º e 269.º do CPP e no qual vai implicada a possibilidade de o juiz de instrução decretar a proibição de utilização ou valoração das provas maculadas em virtude de inobservância dessas normas.
Proibição que, quando devida, pode (e desejavelmente, deve) ser declarada mesmo antes de efetivamente ocorrer a ingerência estadual questionada.
Será do mesmo modo esta a conclusão, substancialmente pelas mesmas razões, a tirar relativamente aos atos processuais restritivos de direitos fundamentais dos visados aos quais sejam opostas arguições de invalidade: também em relação a eles deve ser reconhecida a competência do juiz de instrução para, na pendência da fase de inquérito, proceder ao controlo da sua legalidade.»
Acrescenta ainda Nuno Brandão, em recentíssima publicação jornalística, em comentário a aresto do Tribunal Constitucional que versou sobre esta mesma temática, que:
«(...) partindo-se deste reconhecimento de princípio, a favor da competência judicial em matéria de direitos fundamentais, tudo estará então em saber se o ato em apreço atinge ou não a esfera dos direitos fundamentais da pessoa visada: se sim, o juiz deve intervir; se não, não.»
Sendo este igualmente o posicionamento, aliás constante, do Tribunal Constitucional, como (por todos) se refere no recente acórdão n.º 121/21, de 9 de fevereiro: «a exigência de intervenção judicial no inquérito em relação a atos que afetem direitos fundamentais institui-se, pois, corno pilar da arquitetura sistémica que se foi construindo para o processo penal português.»
Tudo para concluir que a Constituição e a lei deferem ao JIC a competência para dirimir os conflitos entre os órgãos encarregados da perseguição criminal e os titulares desses direitos, emergentes da aflição de direitos, liberdades ou garantias fundamentais»
Por outro lado, na síntese clara e impressiva do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 18/10/2018, processo n.º 207/14.3PATVR.E2, in www.dgsi.pt, «Como se vem entendendo, as declarações para memória futura configuram-se como uma antecipação do julgamento, porquanto as mesmas podem vir a ser utilizadas pera formar a convicção do tribunal.
Daí que se tenham de garantir certas prorrogativas na sua tomada, nomeadamente a garantia do funcionamento do princípio do contraditório, enquanto princípio estruturante do processo e forma de garantia dos direitos de defesa, art.º 32.º, n.º 5, da CRP.
O que foi preocupação do legislador, bem traduzida na exposição de motivos da proposta de Lei n.º 109/X, que esteve na origem da Lei n.º 48/2007, de 29.08, que veio introduzir alterações na Lei Processual Penal, entre outras do art.º 271.º, que regula tal instituto. Dando-se, a respeito, nota de que em todos os casos de declarações para memória futura, passa a garantir-se o contraditório na sua plenitude, uma vez que este, em causa uma antecipação parcial da audiência de julgamento. (...) Daí o teor do AFJ, n.º 8/2017, de 11 de outubro de 2017, no DR, 1.ª Série, de 2017-11-21, ao firmar entendimento de que «As declarações para memória futura, prestadas nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal, não têm de ser obrigatoriamente lidas em audiência de julgamento para que possam ser tomadas em conta e constituir prova validamente utilizável para a formação da convicção do tribunal, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 355.º e 356.º, n.º 2, alínea a), do mesmo Código.»
Assim, na senda do já consignado no despacho de fls. 136/137 e atenta a posição assumida pelo Ministério Público a fls. 139/140, afigura-se que, no caso em concreto, inexistem fundamentos que justifiquem e/ou possam tornar aceitável, proporcional e razoável, à luz do princípio do contraditório, que se proceda à tomada de declarações para memória futura, sem arguido constituído nos autos, quando se mostram reunidos todos os pressupostos para que tal já tivesse ocorrido e sem que o Ministério Público justifique o retardar do interrogatório e constituição de arguido.”
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Anteriormente e sequente a promoção idêntica à que foi objecto da decisão sob recurso, havia sido proferido o seguinte despacho:
“O Ministério Público veio requerer a tomada de declarações para memória futura da vítima A, conforme resulta de fls. 129.
Decorre dos autos que, o denunciado B não foi ainda constituído arguido, sendo certo que se mostram reunidos todos os pressupostos para que tal já tivesse ocorrido.
Vejamos, então.
Como refere Cruz Bucho, Declarações para Memória Futura (elementos de estudo), 2012: «Correndo inquérito contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime é obrigatório interrogá-la corno arguido, salvo se não for possível notificá-la.
Se é certo que, o juízo sobre a decisão de constituição de arguido compete à autoridade que dirige o inquérito, verificadas as circunstâncias previstas no n.º 1 do artigo 272.º o interrogatório é obrigatório. A falta de interrogatório como arguido, no inquérito de pessoa determinada contra quem o mesmo corre, sendo possível a notificação, constitui a nulidade prevista no artigo 120.º, n.º 2, alínea d) do C.P.P.
Mas, conforme é entendimento dominante, a lei não consagra o dever de realização imediata do interrogatório de pessoa determinada contra quem corre inquérito.
Por outras palavras, "a injunção legal de interrogatório de pessoa determinada contra quem corre inquérito não compreende uma directriz sobre o tempo do interrogatório do suspeito, que deve ser decidido no quadro da estratégia definida em concreto. para o inquérito como actividade."
Mas, sem grave quebra do princípio da lealdade, nem o Ministério Público, nem o órgão de polícia criminal, podem cair na tentação de omitir a constituição de arguido, retardando-a com o único propósito ou objectivo de, por este meio ardiloso, o arguido e o seu defensor (que aquele tem o direito de escolher - art.º 32.º, n.º3 da Constituição da República) serem afastados da produção antecipada de prova (...)».
Aliás, como refere José Lobo Moutinho, Arguido e Imputado no Processo Penal Português, Lisboa, 2000, Universidade Católica Editora, pág. 184 «(...) o iter de constituição do arguido foi estruturado com o fim de assegurar de imediato a possibilidade efectiva do exercício dos direitos do arguido a começar pela prestação de declarações como acto de defesa e por isso a sua omissão ou irregularidade não pode, sem fraude à lei e perversão do seu sentido e função, ser utilizada como argumento ou 'explicação', para justificar qualquer diminuição dos direitos do imputado." Por isso, como conclui aquele autor, o imputado não pode ver-se privado de quaisquer direitos pela indevida omissão da constituição de arguido. "Pode deles estar facticamente, mas não juridicamente impedido. O mais remata aquele autor - seria um insuportável venire contra factum proprium." Embora a tese deste autor, segundo a qual seria obrigatório o interrogatório do arguido logo que contra ele corresse inquérito, se possa considerar ultrapassada, esta ideia do venire contra factum proprium próprio enquanto modalidade de quebra da boa-fé e da necessária lealdade aplicada ao caso parece-nos um dado importante a reter»
Ademais, e segundo se refere no Acórdão da Relação de Lisboa de 04-05-2022, «O artigo 59º, nº 2 do CPP confere à pessoa sobre quem recair suspeita de ter cometido um crime o direito de ser constituído arguido, sempre que estiverem a ser efetuadas diligências que pessoalmente o afetem.
Com constituição de arguido a lei reconhece o suspeito como sujeito processual, com toda a panóplia de direitos que esse estatuto implica, sendo-lhe assegurado o exercício de direitos e deveres processuais»
Volvendo, concretamente, à situação ora em apreço, isto é, a tomada de declarações para memória futura, na ausência de arguido constituído, na sequência do explanado, concorda-se com o entendimento sufragado no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23 de Novembro de 2016, proferido no processo n.º 382/15.0T9MTS.P1, in www.dgsi.pt, no qual se consignou: «Aderimos (...) a esta solução interpretativa de admitir a possibilidade de tornada de declarações para memória futura sem que tenha havido constituição de arguido, nas situações em que o inquérito corra contra pessoa não determinada - em que o suspeito, portanto, não está ainda identilicado - ou em que se conheça a identidade do suspeito mas não tenha sido possível constitui‑lo arguido, por desconhecimento ou dificuldade de localização para notificação em tempo útil.
Para além disso, ainda podemos conceber a realização daquela diligência antes da constituição de arguido, nas situações em que o inquérito já determinou a sua identidade e o mesmo é localizável, mas em que o Ministério Público, por razões de discricionariedade táctica na investigação, opta por retardar o interrogatório e constituição de arguido. Estas serão, porém, situações muito excepcionais, a ver casuisticamente, nas que se possa aceitar como proporcional e razoável sacrificar o respeito pelo princípio do contraditório pleno aos interesses da realização da justiça e descoberta da verdade material».
Vale tudo por dizer que, no caso, deverá, antes de mais, o Ministério Público justificar/fundamentar a (até à data) não constituição do denunciado corno arguido, a fim de se aquilatar da proporcionalidade/razoabilidade do requerido, à luz do (des)respeito pelo princípio do contraditório.”
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Cumpre apreciar.
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso.
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Atendendo às conclusões apresentadas é questão a apreciar se se impunha a tomada de declarações para memória futura à vítima, sem prévia constituição do suspeito como arguido.
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Tal tomada de declarações está prevista no art.º 33º da Lei 112/2009 de 16.9 (a qual estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica e à protecção e assistência das suas vítimas) e em consonância com o regime geral respeitante a declarações para memória futura (nº 3 do art.º 271º do Código de Processo Penal), salvaguarda o contraditório pleno, ao prever a notificação do arguido e do seu defensor, para que possam estar presentes.
E que o defensor é o do arguido e de mais nenhum sujeito processual, resulta bem claro do Título III (Do arguido e do seu defensor), do Livro I (Dos sujeitos do processo) da Parte I do Código de Processo Penal, sendo ainda bem marcada e vincada a relação entre um e outro daqueles, pelo que é preceituado nos art.ºs 62º a 64º daquele código (onde avulta o direito do arguido poder escolher o seu advogado).
Tudo para concluir que as regras gerais nesta matéria são, em primeiro lugar, a de observância do contraditório e em seguida a de que a existência de defensor pressupõe que haja arguido constituído.
Regras essas que valem em pleno para os processos que tenham por objecto crime de violência doméstica, como resulta claro daquele art.º 33º.
Mas, tal como em qualquer processo onde se verifique a necessidade de recolha de depoimento para memória futura, comporta excepções que são as apontadas por jurisprudência e doutrina, cuja evolução é citada quer pelo recurso, quer pela decisão recorrida.
Em apertada síntese, devem ser tomadas declarações para memória futura sem que haja arguido constituído (nomeando-se então defensor para tal efeito) quando o suspeito não está identificado, ou não tenha sido possível constituí-lo arguido, ou ainda quando o Ministério Público opte por retardar o interrogatório e constituição de arguido, por razões de táctica na investigação.
E se nos dois primeiros casos é intuitiva a razão de ser e a justeza da solução, já nesta última circunstância tratar-se-á de situação muito excepcional, a analisar casuisticamente, quando for aceitável “sacrificar o respeito pelo princípio do contraditório pleno aos interesses da realização da justiça e descoberta da verdade material” (Ac RP de 23.11.2016, procº 382/15.0T9MTS.P1, citado quer no recurso, quer na decisão recorrida).
E foi o que o primeiro despacho judicial proferido a este propósito tentou esclarecer.
Negando-se o Ministério Público a fazê-lo.
Salvo o devido respeito e pelo que se tem vindo a afirmar, tal postura autorizaria o imediato indeferimento do requerido, por si só e sem necessidade de mais considerandos.
A responsabilidade de ordenar e conduzir diligência, que pode ser determinante na decisão final, sem observância do contraditório pleno, cabe ao juiz de instrução, pelo que plenamente consciente tem de estar da necessidade, proporcionalidade,  justificação e utilidade de assim proceder. Ora, a resposta dada, com as generalidades utilizadas, é claramente insuficiente para o efeito.
Limitou-se a mesma a invocar jurisprudência que, em tais casos, autoriza a tomada de declarações para memória futura sem prévia constituição de arguido, apoiada ainda em doutrina oriunda de douta pena de magistrados do Ministério Público e que em síntese refere o indiscutível: a competência para a constituição de arguido na fase de inquérito cabe ao Ministério Público.
Sem dúvida, tal como a competência para, em tal fase e até ver, ser levada a cabo a pretendida diligência, cabe ao juiz de instrução criminal, sem que uma ou outra das conclusões nos conduza a bom porto.
Mas não deixa de ser curioso que, já em fase de recurso, se tenha visto o Ministério Público forçado a adiantar razões para o requerido. Como assim, nas suas alegações, acabou por aduzir que “no caso em apreço, atendendo desde logo, à especial vulnerabilidade da vítima, em razão da idade e das suas patologias físicas e carência económica, existindo um evidente periculum in mora, na "espera" da efectivação da constituição daquele como arguido.
Diga-se que percorridos os autos nada se vê acerca daquelas características da vítima.
E principalmente, fica sem se entender porque não o fez logo e ainda, como, depois, aquele perigo na demora não levou entretanto à constituição do suspeito como arguido, volvidos mais de 4 meses sobre a ocorrência dos factos.
O que é evidente é, assim, que o principal objectivo passa por compelir o tribunal a aceitar acriticamente o requerido. Adiante veremos o porquê.
O contraditório exercido apenas por defensor nomeado para o acto, sem qualquer contacto prévio com o arguido (que, para além do mais e desde logo, assim se vê impedido de o escolher) é, no mínimo, muito mitigado e por tal circunstância.
A comparação com regras processuais penais por citações invocadas no recurso, prevendo o julgamento, total ou parcialmente, na ausência do arguido, que é então representado pelo seu defensor, vem totalmente a despropósito, já que em todas elas, aquela ausência se fica a dever a atitude da escolha e responsabilidade do arguido, como tal constituído e já com o seu defensor nomeado ou escolhido (art.ºs 325º, nº 5, 332º nos 5 e 6 e 334º, nº 4, todos do Código de Processo Penal).
Com isto presente, é óbvio o cuidado a ter na opção proposta.
Mais ainda se tivermos uma visão global do caso, que não se cinja à fase inicial do inquérito, mas que se estenda até ao final de todo o processo, como é de exigir a uma magistratura.
Em tais circunstâncias e sendo injustificadamente tomadas as declarações para memória futura nas condições pretendidas, teremos com enorme probabilidade o pedido ou a decisão de inquirição da vítima em audiência, com tudo o que pretensamente afinal se pretenderia evitar.
Podendo-se, muito facilmente, causar a revitimização que se queria acautelar e ainda acabar com uma recusa de prestar declarações, que face às anteriormente feitas, praticamente sem contraditório, é apto a deixar seriamente abalado o peso probatório destas.
Mas mesmo na fase inicial de inquérito, tal forma de proceder, se transformada em regra e aliada à circunstância de facilmente nada mais haver no processo para além de participação, maior campo abre ainda a falsas denúncias, por razões óbvias. E estas, como é sobejamente sabido, estão longe de constituir raridade em casos de processos por violência doméstica.
A tomada de declarações para memória futura tem como finalidade a preservação de um meio de prova testemunhal que poderá não ser possível recolher no futuro, mas também resguardar uma testemunha especialmente frágil dos inconvenientes e incómodos que a sucessiva reinquirição provocaria no respectivo bem estar pela constante invocação de um momento traumático.
A realização deste acto num momento precoce de todo o procedimento pode facilmente frustrar todas estas finalidades, dependendo do caso concreto.
Por um lado, o sempre possível desconhecimento total da realidade que se pretende descortinar e preservar, é apto a deixar quem interroga desprovido de elementos que permitam uma inquirição completa e diferente da realizada na posse das circunstâncias que poderiam permitir um exame cruzado capaz de resistir a eventuais fragilidades que venham a surgir com o decurso da investigação. Facilmente poderá deixar de ser uma verdadeira inquirição, mas simplesmente a gravação de um discurso unidireccional.
Por outro lado, se conhecido o suspeito e desde que não se haja furtado à acção da justiça, constituirá grave violação dos direitos de defesa afastar deliberadamente, por simples estratégia ou opção do titular da acção penal, a intervenção daquele que poderá ter uma participação activa na contribuição para o exame cruzado do depoimento.
O titular da acção penal, se não respeitar o princípio da legalidade e a objectividade imposta pela realização de um procedimento equitativo, terá natural propensão a captar um depoimento incriminador insusceptível de exame cruzado e como vimos, por isso mesmo, potencialmente inútil, se não mesmo contraproducente.
Assim, entendeu o legislador dever confiar a tarefa de recolha das declarações para memória futura ao juiz de instrução, o qual, no exercício da sua especial função de garantia dos direitos liberdades e garantias deverá procurar criar, antecipando, as condições similares às do julgamento que, em última análise e no dizer do art.º 271º do Código de Processo Penal, é o momento em que as declarações antecipadamente recolhidas poderão ser tomadas em conta.
Essas condições serão, naturalmente, aquelas que em cada caso concreto, permitam recolher, em tempo útil, um determinado depoimento de tal forma que a antecipação evite para a vítima o reviver da situação traumática que a repetição necessariamente criará, mas também fazê‑lo de modo a proporcionar as condições de credibilidade do depoimento com pleno respeito pelos direitos de defesa e prossecução de um processo equitativo, proporcionando a igualdade de armas que se impõe num Estado de Direito e a eficiência futura da própria diligência.
Ou seja, o caminho processual a eleger em concreto nunca será fácil de estabelecer e carece de cuidada ponderação em face de toda a factualidade que for possível recolher e observar.
Ora, neste caso, como resulta das alegações de recurso, no minímo, não é fácil descortinar-se a razão de ser da opção tomada pelo Ministério Público. E a táctica processual, nesta matéria, não é condição que se revista de secretismo apenas susceptível de ser desvendado por sortilégio ou ciência oculta.
Assim, se, em geral, é intuitiva a conveniência da rápida tomada de declarações à vítima em curto espaço de tempo após a ocorrência dos factos, evitando-se ainda a duplicação da vitimização com a repetição da sua audição, fica sem se entender como é que o requerido surge mais de um mês após os factos, sendo certo também que a vítima já tinha sido formalmente inquirida por autoridade policial.
Se é certo que cabe ao Ministério Público determinar o momento da constituição do suspeito como arguido, menos certo não é que a compressão dos respectivos direitos, por tal circunstância, tem de ser justificada, como referimos.
Tem pois razão de ser o despacho de sustentação da decisão recorrida, ao afirmar que “verdadeiramente o Ministério Público vem entendendo que deve haver (sempre) lugar à tomada de declarações para memória futura, independentemente da existência ou não de fundada suspeita (pois só esta permite e reclama a constituição como arguido) transmutando‑as, amiúde, em mera diligência de inquérito/investigação.
Ora, salvo o devido respeito, tal entendimento, inequivocamente banalizador, para além do mais, defrauda a real natureza da tomada de declarações para memória futura (pois que, como é sabido, está em causa, tendencialmente, prova pré-constituída).”
E contudo, é conhecida a fonte do problema.
Consta de conteúdo da directiva 5/2019 da Procuradoria-Geral da República que é obrigatória para a magistratura do Ministério Público.
Ali se preceitua para os MMP (magistrados do Ministério Público) que “a recente criação de Secções Especializadas Integradas de Violência Doméstica (SEIVD), compostas, cada uma delas, por Núcleos de Ação Penal (NAP) e Núcleos de Família e Crianças (NFC), justifica o estabelecimento de regras específicas no que concerne à tomada de declarações para memória futura, atenta a afetação exclusiva dos MMP das SEIVD‑NAP à investigação daquele fenómeno criminal.
Assim,
A. Nas Secções Especializadas Integradas de Violência Doméstica (SEIVD)
1. O MMP da SEIVD-NAP requer obrigatoriamente a tomada de declarações para memória futura nas situações de:
(i) avaliação de risco da vítima de nível elevado;
(ii) avaliação de risco da vítima de nível médio associada a circunstâncias que objetivamente sejam suscetíveis de agravar a vulnerabilidade daquela, designadamente qualquer uma das seguintes:
a) aumento do número de episódios violentos e/ou da gravidade dos mesmos, em particular no último mês, acompanhado da convicção da vítima de que o denunciado ou arguido pode matá-la;
b) existência de processo(s) contra o denunciado ou arguido pela prática de crime(s) contra a vida, integridade física ou de ameaça, bem como a repetida verbalização perante familiares ou pessoas próximas da vítima da intenção de a matar.
2. Sempre que haja notícia da existência de crianças presentes num contexto de violência doméstica e independentemente de serem aquelas ou não destinatárias de atos de violência, o MMP da SEI VD-NAP requer obrigatoriamente a tomada de declarações para memória futura das mesmas.
B. Inexistindo Secções Especializadas Integradas de Violência Doméstica (SEIVD)
O MMP, verificadas as situações elencadas nos n.ºs 1 e 2 , deve igualmente requerer a tomada de declarações para memória futura, salvo a concreta verificação de condições de serviço que a tal obste, dando disso imediato conhecimento ao respetivo superior hierárquico, com vista à adoção das adequadas medidas gestionárias.”
É desde logo visível a não conformidade integral com as regras gerais na matéria que nos ocupa.
Muito particularmente na pretensão de serem tomadas declarações para memória futura dependendo da quantificação do risco em abstracto, ou na existência de crianças presentes, independentemente da necessidade e conveniência dos casos concretos e que apenas pode ser devidamente avaliada por quem dirige o inquérito.
Mais, portanto, quando se retira, ou pretende retirar, aos agentes do Ministério Público aquela quantificação, desde logo, circunstância incompatível com a sua categorização constitucional como magistratura (nº 4 do art.º 219º da Constituição da República Portuguesa).
É o que resulta da forma de apuramento daquele risco - através de uma ficha de avaliação, levada a cabo por entidade policial – à qual, depois de junta, procederá o magistrado do Ministério Público “a uma análise rigorosa e crítica dos respetivos elementos”. Todavia, resulta bem claro e logo no trecho seguinte da directiva, que tal análise visa tão somente poder agravar aquele nível de risco, porque aquele magistrado irá cotejá-lo “com outros factores de risco que, não se mostrando contemplados naquele instrumento, justifiquem a elevação do nível de risco de revitimização, caso em que, obrigatoriamente, deverá agravá-lo”.
Semelhante procedimento é susceptível de retirar àquela magistratura, com facilidade e em grande medida, a capacidade de condução do inquérito conforme o mais adequado ao caso concreto e daí, depois, o inevitável surgimento do conflito de que aqui tratamos, já que os tribunais não estão sujeitos ao mesmo e tenderão, como é sua função, avaliar caso a caso o cabimento, justeza e lisura de procedimentos, começando por se verificar que, não por acaso, a tomada de declarações para memória futura constitui uma faculdade, não sendo por isso obrigatória.
A inusitada quantidade de recursos a este propósito é bem o sinal da situação criada por aquele trecho da directiva.
Trata-se este, aliás, de um bom exemplo, na devida proporção, da razão de ser da proibição de tribunais especiais patente no nº 4 do art.º 209º da Constituição da República Portuguesa.
“Característica normal do conceito de Estado de direito democrático é a proibição de tribunais criminais especiais, ou seja, de tribunais com competência específica para o julgamento de determinados crimes. Trata-se de uma garantia tradicionalmente associada à proibição de entregar a jurisdição penal em certas categorias de crimes (crimes políticos, crimes contra a segurança do Estado, crimes de imprensa, etc.) a tribunais especiais, caracterizados por menores garantias de independência e menos seguras garantias de defesa processual, como sucedia com os famigerados «tribunais plenários» do Estado Novo” (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 3ª edição, Coimbra 1993, em anotação ao nº 4 do então art.º 211º daquela).
Aquele trecho da directiva aliado a outros, relevam, salvo o devido respeito, de visível e patente afastamento da realidade, quer quanto à visada no terreno com tais instruções, quer ainda da realidade dos processos que correm termos nos tribunais, bem como de regras e princípios elementares de processo penal, o que, diga-se, constitui claramente excepção às intervenções do Ministério Público nos processos criminais, cujo acerto e proficiência são tradicionalmente notáveis. Paradoxalmente, não duvidamos, são apenas estas características gerais que permitem a continuação daquelas orientações ainda hoje.
Alheia-se aquela da necessidade e cabimento legal da tomada de declarações para memória futura, de passagem, também da fundada suspeita que terá de haver, sem cuidar sequer de perspectivar correctamente as seguintes fases processuais.
A obrigatoriedade de promoção de declarações para memória futura de crianças em contexto de violência doméstica e independentemente de serem aquelas ou não destinatárias de atos de violência, abstrai totalmente da vida real no terreno e constitui mais um exemplo do dano que se pode estar a causar com actuação cega às circunstâncias e pormenores dos casos concretos.
Facilmente se pode resvalar para a produção de trauma e vitimização secundária de criança ou de conflito familiar em casos onde não havia até então percepção de qualquer tipo de violência, ou de que a criança não se tenha até então apercebido.
É apta a recordar acontecimentos dolorosos, pois não se pode deixar de se ter presente que em boa parte dos casos as crianças serão filhos de vítima e agressor (ademais, algo que a directiva também ignora, pois podem recusar-se a testemunhar).
Ou seja, a excepcionalidade que a lei e o mais elementar senso comum impõem neste ponto particular, são totalmente obliterados por tal orientação, sendo aqui particularmente visível o desacerto daquela, ainda mais quando se pensar no que sucede no dia a dia dos tribunais: para quê proceder a semelhante diligência em casos de confissão do agressor, ou de suspensão provisória do processo a solicitação da vítima?
Pura e gratuita inutilidade.
A que acresce a contribuição para um pior funcionamento dos tribunais, com as perdas de tempo geradas com os inevitáveis indeferimentos, recursos, etc...
E para além do que ficou assinalado, que dizer da clara pretensão de imposição de procedimento aos tribunais, na fase de julgamento? (“No despacho de acusação, o MMP obrigatoriamente promove a reavaliação nas subsequentes fases do processo) e para além do momento do despacho que designa dia para julgamento.
Ou até muito depois? (“Não obstante o arquivamento do inquérito, por insuficiência indiciária, a prolação de despacho de não pronúncia, ou o trânsito em julgado de decisão que ponha termo ao processo, o MMP decide ou promove, consoante os casos, que o procedimento de reavaliação do risco se mantenha, sempre que as necessidades de proteção da vítima o imponham e esta expressamente requeira a manutenção do estatuto de vítima”).
É evidente neste caso que se pretende alterar regras processuais penais elementares, de passagem atropelando princípios constitucionais básicos, o que naturalmente tem de ser rejeitado.
Muito bem andou, portanto, a decisão recorrida.
E consequentemente, improcede o recurso.
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Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando na íntegra a decisão recorrida.
Sem custas.
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Lisboa, 11 de Abril de 2023
Manuel Advínculo Sequeira
Alda Tomé Casimiro
Anabela Simões Cardoso