Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1843/18.4T8CSC-A.L1-7
Relator: ANA RODRIGUES DA SILVA
Descritores: PROCESSO PARA CESSAÇÃO DOS ALIMENTOS
TRIBUNAL COMPETENTE
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
REGULAMENTO (CE) 4/2009
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/04/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - O art. 936º do CPC apenas determinará a competência de um determinado tribunal quando exista uma acção judicial que tenha corrido termos nos tribunais portugueses.
II - Nas situações em que a decisão que fixou os alimentos tenha sido fixada por uma outra entidade no âmbito de processo que corra termos nas conservatórias do registo civil ou no estrangeiro, não terá aplicação o art. 936º do CPC, havendo que recorrer às regras gerais de fixação da competência para se encontrar o tribunal competente em razão da matéria e da nacionalidade e também do território.
III - A competência internacional dos tribunais portugueses resulta de um conjunto de critérios atributivos de competência estabelecidos no CPC e em convenções internacionais e que se encontram individualizados nos arts. 59º, 62º e 63º do CPC.
IV - O Regulamento (CE) 4/2009 do Conselho de 18 de Dezembro de 2008 relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e à execução das decisões e à cooperação em matéria de obrigações alimentares é directamente aplicável em todos Estados Membros da União Europeia e prevalece perante as normas internas reguladoras da competência internacional.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
1. No âmbito de acção de cessação de pensão de alimentos que A intentou contra B foi proferido despacho julgando improcedente a excepção de incompetência absoluta invocada pela R. na sua contestação.
2. Inconformada, recorre esta desta decisão, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:
“1º - A presente ação é intentada, como processo especial, nos termos do artigo 936º do Código de Processo Civil.
2ª – Sendo uma ação especial, de harmonia com o disposto no artigo 546º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, esta regula-se, em primeira linha, pelas disposições que lhe são próprias e só são aplicáveis as disposições gerais e comuns (bem como as do processo comum) quando a questão não seja regulada por aquelas disposições específicas do processo especial respetivo, nos termos do artigo 549º, nº 1, do Código de Processo civil.
3º - O artigo 936º do Código de Processo Civil, maxime nos seus nºs 1 e 4, estabelece uma competência por conexão e o estabelecimento de um foro conexional, e afasta, neste ponto, os artigos 59º, 62º, alínea a) e 80º, nº 1, do mesmo Código, aduzido na decisão recorrida.
4º - Não sendo possível proceder à remessa dos autos para o Tribunal de Família de Peterborough, mas não sendo igualmente possível aos Tribunais Portugueses, designadamente ao Tribunal de Família de Cascais, apreciar e decidir esta ação, deve-se considerar procedente a exceção dilatória de incompetência absoluta, absolvendo-se a R., ora apelante, da instância.
5º - Ao considerar o Tribunal a quo competente, o Senhor Juiz de primeira instância violou, diretamente, na decisão apelada, o disposto nos artigos 59º, 62º, 80º, 546º, nºs 1 e 2, 549º, nº 1, e 936º, todos do Código de Processo Civil, impondo-se, por isso, a revogação da decisão apelada e a sua substituição por acórdão que, concedendo provimento a esta apelação, e considerando verificada a exceção de incompetência absoluta deduzida, considere o tribunal de Cascais, e, mais genericamente, os tribunais portugueses, incompetentes para apreciarem e decidirem o pedido de cessação (ou de alteração) da pensão de alimentos fixada, em benefício da R. apelante, pelo Tribunal de Família de Peterborough”.
3. Em sede de contra-alegações, o A. defendeu a manutenção da decisão recorrida.
II. QUESTÕES A DECIDIR
Considerando o disposto nos arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do CPC, nos termos dos quais as questões submetidas a recurso são delimitadas pelas conclusões de recurso, impõe-se concluir que a única questão submetida a recurso, delimitada pelas aludidas conclusões, é determinar se o tribunal recorrido é competente para a tramitação dos autos principais.
III. APRECIAÇÃO DO RECURSO
Entende a apelante que o tribunal recorrido deveria ter dado prevalência ao art. 936º do CPC sobre as normas dos arts. 59º, 62º e 80º, por a isso determinar o art. 549º, nº 1, do mesmo Código, o que faz com que os tribunais portugueses não sejam competentes para a presente acção.
Verifica-se, pois, que a discordância da apelante com a decisão recorrida se centra na aplicação aos autos do disposto no art. 80º do CPC em detrimento do disposto no art. 936º do CPC.
Com efeito, suscitada a incompetência absoluta do tribunal, decidiu o tribunal recorrido pela improcedência de tal excepção nos seguintes termos:
“Conforme decorre dos autos, A. e R. são cidadãos portugueses, residindo no concelho de Cascais.
Ora, estabelece o artº 59º do CPC que “Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º (…)”.
Por seu turno, prescreve o artº 62, do mesmo normativo que “Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes: a) Quando a ação possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa;”.
No que tange às regras de competência interna, importa fazer apelo ao disposto no artº 80º, nº 1 do CPC.
Por conseguinte, é manifesto que a presente acção foi proposta na comarca competente, quer internacionalmente, quer territorialmente”.
Na tese da apelante, sendo a presente acção uma acção especial, com consagração no art. 936º do CPC, o qual estabelece uma competência por conexão, encontra-se afastada a previsão do art. 62º, al. a) do CPC, pelo que não é aplicável aos autos o disposto no art. 80º do CPC, nos termos efectuados pelo tribunal recorrido.
Mais alega que o tribunal competente seria o Tribunal de Família de Peterborough, Reino Unido.
Vejamos.
A competência assume-se como um “pressuposto processual, isto é, uma condição necessária para que o tribunal se possa pronunciar sobre o mérito da causa (…). Como qualquer outro pressuposto processual, a competência é aferida em relação ao objecto apresentado pelo autor” (Miguel Teixeira de Sousa, in “A Competência e a Incompetência dos Tribunais Comuns”, 2ª Edição, pág. 13).
No que aos autos diz respeito, e considerando o seu objecto, dispõe o art. 936º do CPC que:
“1- Havendo execução, o pedido de cessação ou de alteração da prestação alimentícia deve ser deduzido por apenso àquele processo.
2 - Tratando-se de alimentos provisórios, observam-se termos iguais aos dos artigos 384.º e seguintes.
3 - Tratando-se de alimentos definitivos, são os interessados convocados para uma conferência, que se realiza dentro de 10 dias; se chegarem a acordo, é este logo homologado por sentença; no caso contrário, deve o pedido ser contestado no prazo de 10 dias, seguindo-se à contestação os termos do processo comum declarativo.
4 - O processo estabelecido no número anterior é aplicável à cessação ou alteração dos alimentos definitivos judicialmente fixados, quando não haja execução; neste caso, o pedido é deduzido por dependência da ação condenatória”.
A questão que ora se coloca é aferir se este preceito prevalece sobre qualquer outra norma, em concreto, sobre o art. 80º do CPC, preceito este que se refere à regra geral relativa à competência territorial interna.
Para tanto, haverá que dizer que o art. 80º do CPC se insere no âmbito das regras relativas à definição da competência territorial, estabelecendo uma competência residual em todas as situações em que não esteja prevista uma regra especial nos termos dos arts. 70º e ss. do CPC.
Por seu turno, o art. 936º do CPC estabelece regras de competência resultantes da conexão com determinados processos, mas, como é natural, não se refere nem à competência em razão da matéria, nem à competência em razão da nacionalidade que precedem aquela.
Ou seja, a acção especial prevista no art. 936º do CPC apenas correrá por apenso nos termos ali referidos quando o tribunal seja material e internacionalmente competente para o efeito.
Quer isto dizer que o art. 936º do CPC apenas determinará a competência de um determinado tribunal quando exista uma acção judicial que tenha corrido termos nos tribunais portugueses.
Nas situações em que a decisão que fixou os alimentos tenha sido fixada por uma outra entidade no âmbito de processo que corra termos nas conservatórias do registo civil ou no estrangeiro, não terá aplicação o citado art. 936º do CPC, havendo que recorrer às regras gerais de fixação da competência para se encontrar o tribunal competente em razão da matéria e da nacionalidade e também do território.
Do que se vem de expor decorre que a aplicação aos autos do art. 936º do CPC, enquanto norma atributiva de competência, se mostra afastada, funcionando o preceito em causa apenas como definidor das regras processuais aplicáveis.
Esta conclusão não é afastada pelo disposto no art. 549º, nº 1 do CPC, invocado pela apelante e nos termos do qual os processos especiais, como é o caso do dos autos, se regulam pelas disposições que lhes são próprias e pelas disposições gerais e comuns, na medida em que esta norma se refere à forma processual aplicável e à tramitação a seguir, não se referindo a qualquer atribuição de competências, nem a mesma resultando do seu teor.
Aqui chegados, importa determinar se assiste razão à apelante quando refere que o tribunal competente para apreciar a presente acção é o Tribunal de Família de Peterborough, Reino Unido.
A competência internacional dos tribunais portugueses resulta de um conjunto de critérios atributivos de competência estabelecidos no CPC e em convenções internacionais e que se encontram individualizados nos arts. 59º, 62º e 63º do CPC.
Com efeito, nos termos do art. 59º do CPC, “Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º”.
Por seu turno, refere o art. 62º do CPC que:
“Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes:
a) Quando a ação possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa;
b) Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram;
c) Quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real”.
Verifica-se, assim, que para que se possa concluir pela competência internacional dos tribunais portugueses terá de se verificar a existência de um factor de conexão com o ordenamento jurídico português, podendo essa mesma competência ser atribuída por convenções internacionais.
Apresenta os presentes autos a particularidade de se tratar de acção com vista à cessação de pensão de alimentos fixada em tribunal estrangeiro, em concreto pelo Tribunal de Família de Peterborough, Reino Unido, sendo que requerente e requerido residem ambos em Portugal.
A apreciação desta questão, e tal como resulta dos arts. 59º e 62º do CPC, decorre do Regulamento (CE) 4/2009 do Conselho de 18 de Dezembro de 2008 relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e à execução das decisões e à cooperação em matéria de obrigações alimentares.
De referir que, tal como resulta do art. 288º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e do art. 8º da Constituição da República Portuguesa, este Regulamento é directamente aplicável em todos Estados Membros da União Europeia e prevalece perante as normas internas reguladoras da competência internacional, o que vem expressamente previsto no art. 59º do CPC.
Nos termos do seu art. 1º, este regulamento é aplicável às obrigações alimentares decorrentes das relações de família, de parentesco, de casamento ou de afinidade, aplicando-se a todos e entre todos os Estados-Membros da União Europeia, incluindo o Reino Unido.
Com efeito, e pese embora o Reino Unido não tenha participado na aprovação do regulamento, manifestou a intenção em aceitar o Regulamento através da Decisão da Comissão nº 2009/4517CE, de 8 de Junho de 2009, passando a ser aplicável ao Reino Unido, tendo aí entrado em vigor em 1 de Julho de 2009.
Por outro lado, há que referir que a Dinamarca e o Reino Unido não estão vinculados pelo Protocolo da Haia de 23 de Novembro de 2007 sobre a Lei Aplicável às Obrigações Alimentares.
Este aspecto tem particular importância na medida em que este Protocolo deve ser tomado em consideração no momento da interpretação do Regulamento, nomeadamente no que concerne à lei aplicável nos termos do art. 15 do Regulamento.
No caso dos autos, não estando o Reino Unido vinculado pelo Protocolo da Haia de 2007, o aludido art. 15º não é aplicável no Reino Unido, sendo certo que tal questão é irrelevante para aferição do tribunal competente.
Abrange o Regulamento (CE) 4/2009, os pedidos de fixação de prestações alimentares e também os de alteração, como é o caso dos autos.
Daqui resulta que o tribunal competente para apreciar o pedido de alteração/cessação de alimentos em vigor entre as partes será aquele que for competente de acordo com as regras estabelecidas no Regulamento em causa.
Nos termos do art. 3º do Regulamento, e considerando o objecto da presente acção, são competentes para deliberar em matéria de obrigações alimentares nos Estados-Membros:
a) O tribunal do local em que o requerido tem a sua residência habitual; ou
b) O tribunal do local em que o credor tem a sua residência habitual;
ou
c) O tribunal que, de acordo com a lei do foro, tem competência para apreciar uma ação relativa ao estado das pessoas, quando o pedido relativo a uma obrigação alimentar é acessório dessa ação, salvo se esta competência se basear unicamente na nacionalidade de uma das partes; ou
d) O tribunal que, de acordo com a lei do foro, tem competência para apreciar uma ação relativa à responsabilidade parental, quando o pedido relativo a uma obrigação alimentar é acessório dessa ação, salvo se esta competência se basear unicamente na nacionalidade de uma das partes.
No caso vertente, não sendo o pedido de alteração de alimentos deduzido pelo requerente acessório de qualquer outro, não são aplicáveis ao caso as normas estabelecidas nas als. c) e d), mas tão somente as constantes das als. a) e b), sendo importante salientar que requerente e requerido residem ambos em Portugal, mais concretamente no concelho de Cascais.
Logo, é competente para apreciar o pedido formulado pelo Requerente, o tribunal do Estado-Membro em que o Requerido ou o credor tem a sua residência habitual, ou seja, no caso o tribunal de Cascais, sendo certo que não foi alegado qualquer pacto de jurisdição (v. art. 4º do Regulamento).
Saliente-se que, caso se suscitassem dúvidas quanto à aplicabilidade do presente Regulamento ao caso dos autos, ainda assim seria o tribunal recorrido competente para o seu prosseguimento.
Com efeito, tal como resulta do art. 62º, al. a) do CPC, a competência internacional aí estabelecida decorre da possibilidade de a acção puder ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa.
Relembrando que estamos perante uma acção de cessação de alimentos, e na impossibilidade de aplicação da competência por conexão prevista no art. 936º do CPC, tal como se expôs, e na ausência de uma norma especial de atribuição de competência, o tribunal territorialmente competente seria o do domicilio da requerida, nos termos do art. 80º do CPC.
Consequentemente, o tribunal competente para a apreciação do pedido deduzido pelo requerente, ora apelado, é o tribunal da residência da Requerida, como bem decidiu o tribunal recorrido.
Pelo exposto, entende-se que a decisão recorrida não merece qualquer censura, assim se julgando improcedente a apelação.
IV. DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízes desta 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela apelante.

Lisboa, 4 de Fevereiro de 2020
Ana Rodrigues da Silva
Micaela Sousa
Cristina Silva Maximiano