Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1809/17.1T8BRR.L1-7
Relator: HIGINA CASTELO
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO
RENDIMENTO
SUSTENTO DO INSOLVENTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/27/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I.– No âmbito do instituto da exoneração do passivo restante, a determinação do rendimento razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar faz-se casuisticamente, em função das necessidades do devedor em causa.

II.– Na ausência de prova sobre despesas concretas, o devedor insolvente deve manter na sua disponibilidade, para seu sustento, resguardada da cessão ao fiduciário, pelo menos, quantia equivalente à retribuição mínima garantida, que corresponde, anualmente,à retribuição mínima mensal garantida multiplicada por catorze.

III.– Tendo o insolvente filhos menores, apesar de não estarem à sua guarda e de para eles não contribuir com pensões de alimentos (por estar desempregado e ter apenas como rendimento o social de inserção), sempre despenderá com eles algum valor, se vier a ter essa possibilidade durante o período de cessão, pelo que a existência daqueles filhos deve ter alguma ponderação no rendimento a resguardar da cessão para permitir ao insolvente o normal convívio com os seus filhos, em benefício de todos (insolvente e respetivos filhos).

(Sumário da responsabilidade e autoria da relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa.


I.Relatório:


Paulo…, insolvente no processo de insolvência de pessoa singular indicado à margem, notificado do despacho inicial de exoneração do passivo restante e nomeação de fiduciário proferido em 20 de setembro de 2017 e não se conformando com o mesmo, dele interpôs o presente recurso.

A discordância do recorrente face ao despacho recorrido radica na fixação do rendimento de cessão no montante que exceda um salário mínimo, entendendo que se deve fixar em, pelo menos, salário mínimo e meio.

O recorrente termina as suas alegações de recurso, concluindo:

«1.º– O presente recurso visa tão a parte da decisão respeitante ao pedido de exoneração do passivo restante, não abrangendo, portanto, o despacho que determinou o encerramento do processo, nos termos do disposto no artigo 230.º, alínea d), do CIRE.
2.º– A douta decisão recorrida determinou que, do rendimento disponível destinado a ser entregue aos credores, fosse excluído o valor correspondente a um salário mínimo nacional.
3.º– Com o devido respeito, o apelante não pode concordar com tal entendimento, porquanto a fixação do rendimento disponível, a aplicar nos cinco anos em que dura o período de cessão de rendimentos, no montante de um salário mínimo nacional (atualmente de € 557,00), não acautela o sustento minimamente condigno do devedor.
4.º– O apelante é divorciado, sendo o seu agregado familiar composto apenas pelo próprio e tem três filhos menores de idade.
5.º– O apelante encontra-se desempregado e tem como único rendimento o montante de € 183,00, a título de RSI.
6.º– Tal não significa, porém, que amanhã, como se espera, aquele não venha arranjar um emprego em que aufira um vencimento certo em montante superior.
7.º In casu, de acordo com o preceituado no artigo 239.º, n.º 3, b) i), do CIRE, o apelante ao dispor de apenas um salário mínimo nacional não consegue assegurar o seu sustento minimamente condigno (artigo 18º da Constituição da República Portuguesa), já que precisa de se alimentar, vestir e calcar e pagar as suas despesas mensais.
8.º– Deste modo, para encontrar o rendimento com que o insolvente se há de governar cumpre partir do salário mínimo, que é o mínimo previsto por lei para uma única pessoa viver com dignidade, e acrescentar-lhe o que for necessário para que tal dignidade não seja quebrada.
9.º– Ora, como é sabido, nem mesmo com a atualização do salário mínimo nacional para € 557,00, se pode dizer que, neste momento, será, na realidade, o mínimo indispensável para uma pessoa sobreviver, atento o elevado custo de vida.
10.º– Entendemos, assim, ser adequado a fixação do montante disponível a atribuir ao apelante para o seu sustento, e desta forma assegurar uma vivência compatível com a dignidade humana, um salário mínimo nacional, acrescido de metade.
11.º– A decisão recorrida violou, ou não fez a melhor interpretação do disposto no artigo 1.º; da alínea a) do n.º 2 do artigo 59.º e n.º s 1 e 3 do artigo 63.º todas da Constituição da República Portuguesa, bem como do ponto i), alínea b), do n.º 3, do artigo 239.º do CIRE.

Nestes termos e nos melhores de Direito, e sempre com o Mui Douto Suprimento de Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores, deve ser dado provimento ao recurso ora apresentado e, em consequência, deve a decisão recorrida, na parte respeitante ao pedido de exoneração do passivo restante, ser substituída por outra que determine que o rendimento disponível e o sustento minimamente condigno do insolvente/apelante seja fixado em uma vez e meia o salário mínimo nacional.»

Não houve contra-alegações.

Foram colhidos os vistos e nada obsta ao conhecimento do mérito.

Objeto do recurso.
Sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o âmbito da apelação (arts. 635, 637, n.º 2, e 639, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Tendo em conta o teor daquelas, a questão que se coloca é a de saber se estão indiciados factos que permitam fixar limite mais elevado ao rendimento disponível.

II.Fundamentação de facto.
A decisão da 1.ª instância considerou os seguintes factos que o recorrente não discute:
1.- O insolvente está desempregado, tendo como único rendimento o montante de € 183 a título de RSI;
2.- Tem três filhos que vivem com as respetivas mães e aos quais não paga pensão de alimentos.

III.Apreciação do mérito do recurso.

Considerações introdutórias gerais.
A exoneração do passivo restante é uma inovação do CIRE (DL 53/2004, de 18 de março) que corporiza o expresso objetivo de conjugação do princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, permitindo-lhes a sua reabilitação económica.
Como se lê no n.º 45 do preâmbulo, «O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa-fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da ‘exoneração do passivo restante’».

O instituto está previsto e regulado nos arts. 235 a 248 do CIRE, para devedores singulares em relação a dívidas que não sejam integralmente pagas no processo de insolvência nem nos cinco anos subsequentes ao seu encerramento (art. 235 do CIRE).

Nos termos do disposto no art. 238 do CIRE, o pedido de exoneração será liminarmente indeferido se se verificar alguma das circunstâncias elencadas nas alíneas do seu n.º 1. Como é jurisprudência pacífica [exemplificativamente, Ac. STJ de 21/01/2014, proc. 497/13.9TBSTR-E.E1.S1, Ac. TRL de 12/12/2013, proc. 1367/13.6TJLSB-C.L1-6, Ac. TRL de 03/10/2013, proc. 147/13.3TBLNH-A.L1-2, Ac. TRC de 16/04/2013, proc. 2488/11.5TBFIG-J.C1, Ac. TRL de 24/04/2012, proc. 14725/11.1T2SNT-C.L1-7, todos em www.dgsi.pt], e ao encontro da melhor leitura da norma, não tem o insolvente de demonstrar a não verificação dos requisitos negativos ali listados. A ocorrência de alguma das circunstâncias descritas nessas alíneas constitui facto impeditivo ou extintivo do direito do insolvente, pelo que o respetivo ónus de prova impenderá sobre os credores ou o administrador (art. 342, n.º 2, do CC).

No caso sub judice,o tribunal a quo deu por verificados esses requisitos, que não são, portanto, objeto deste recurso, pelo que sobre eles nada mais diremos.

Não havendo motivo para indeferimento liminar, foi proferido o despacho inicial, o qual determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (o designado período da cessão), o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a uma entidade, designada fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência – art. 239, n.ºs 1 e 2, do CIRE.

Nos termos do n.º 3 do art. 239 do CIRE, integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:
a)- Dos créditos a que se refere o artigo 115.º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;

b)- Do que seja razoavelmente necessário para:
i)- O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;
ii)- O exercício pelo devedor da sua atividade profissional;
iii)- Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.

O dispositivo objeto de recurso.
No caso dos autos, em aplicação da norma acima sublinhada (art. 239, n.º 3, al. b), i) do CIRE), o tribunal a quo concluiu a sua fundamentação da seguinte forma: «entendemos ser necessário ao seu sustento minimamente digno, o valor correspondente a um Salário Mínimo Nacional, devendo o remanescente ser cedido ao fiduciário».

O dispositivo, no que ao mesmo tema respeita, tem a seguinte redação:
«Não havendo motivo para indeferimento liminar, nos termos do art. 239.º do CIRE, determina-se que:
- O rendimento disponível que os devedores venham a auferir durante os 5 anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência é cedido ao fiduciário, cargo que será desempenhado pelo Sr. Administrador de Insolvência;
- Estão excluídos do rendimento disponível os seguintes montantes:
(…)
b)- O montante correspondente a um Salário Mínimo Nacional, determinado nos termos supra explanados.».
Sucede que os «termos supra explanados» não existem; ou seja, em nenhuma passagem do despacho se explana como se determina o «Salário Mínimo Nacional».

Problemas prévios suscitados pela decisão recorrida.
O facto de o dispositivo do despacho dizer apenas que está excluído do rendimento disponível o montante correspondente a um «salário mínimo nacional», suscita dúvidas, uma vez que o seu texto é suscetível de várias interpretações.
O dispositivo deve ser interpretado no sentido de o insolvente reter a retribuição mínima mensal garantida (RMMG) 14 vezes ao ano, ou seja, reter o mensal a dobrar em junho e novembro (aquando dos pagamentos dos subsídios de férias e de Natal)? Ou deve ser interpretado no sentido de poder reter apenas a retribuição mínima mensal garantida (RMMG) 12 vezes ao ano? Ou, ainda, deve ser interpretado no sentido de reter a retribuição mínima anual garantida (RMMG) (igual à mensal multiplicada por 14) dividida por 12, 12 vezes ao ano? Esta última interpretação, em termos de valores anuais corresponderia à primeira, divergindo apenas nos valores parcelares.

Nos termos do disposto no artigo 615, n.º 1, al. c), do CPC, a sentença é nula quando ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.

Cremos que não chega a ser o caso. Mas ainda que considerássemos estar perante uma nulidade subsumível à referida norma, isso de pouco nos ajudaria na solução do problema, por duas ordens de razões. Por um lado, tal vício será em rigor uma anulabilidade que carece de ser arguida em sede de recurso e não o foi [sobre o tema, Antunes Varela et al., Manual de Processo Civil, Coimbra Ed., 1984, 673-5, Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, II, Almedina, 2015, p. 369]. Por outro lado, ainda que declarássemos o vício, teríamos de conhecer do objeto da apelação, como faremos, uma vez que os autos reúnem os elementos necessários para o efeito (art. 665, n.º 1, do CPC).

Do rendimento excluído da cessão à entidade fiduciária.
No instituto da exoneração do passivo restante, o legislador procurou conciliar os incontornáveis direitos dos credores a verem satisfeitos os seus créditos, com direitos de personalidade do devedor (recuperação da sua liberdade económica, produtividade, bem-estar), desde que não haja dolo ou culpa grave da sua parte na situação em que se encontra e desde que não seja reincidente. No regime instituído foram nitidamente ponderadas, ainda, questões de política social geral. Estão presentes as ideias de socialização do risco do mercado de crédito, repartindo-o entre credores e devedores, e de prevenção da exclusão social do devedor [ANA FILIPA CONCEIÇÃO, «Disposições específicas da insolvência de pessoas singulares no Código da Insolvência e Recuperação de Empresas», in I Congresso de Direito da Insolvência, Almedina, 2013, pp. 29-62 (48 e passim)].

A exoneração do passivo restante não é necessária e absolutamente incompatível com o interesse dos credores. Como bem nota Paulo Mota Pinto, enquanto o devedor não estiver exonerado, o seu acesso ao crédito está limitado, pelo que os credores terão «interesse em que o devedor peça uma exoneração do passivo restante, caso não lhe seja possível pagar, até para voltar a ter incentivo para o exercício de uma atividade profissional, e para poder voltar a recorrer ao crédito» [PAULO MOTA PINTO, «Exoneração do passivo restante: Fundamento e constitucionalidade», in III Congresso de Direito da Insolvência, Almedina, 2015, pp. 175-195 (179)]. Deste modo, incentiva-se a inclusão socioeconómica do devedor e propicia-se a sua contribuição futura no desenvolvimento da economia.

A recuperação da liberdade económica do devedor é conseguida pelo decurso de dado período (cinco anos). Durante este, porém, o devedor terá de se empenhar ativamente na obtenção de rendimento e terá de contribuir para a satisfação dos seus credores. Essa contribuição não é feita à custa de todo o seu rendimento. O CIRE permite-lhe reter parte dele, nomeadamente o necessário à sua existência com um mínimo de dignidade. A razão da exclusão de certos rendimentos, di-lo Carvalho Fernandes, «radica na chamada função interna do património – base ou suporte da vida do seu titular – e na sua prevalência sobre a função externa – garantia geral dos credores» [LUÍS A. CARVALHO FERNANDES, «A exoneração do passivo restante na insolvência das pessoas singulares no Direito português», in Colectânea de Estudos sobre Insolvência, Quid Juris, 2009, pp. 275-309 (295)]. Essa prevalência apenas existe dentro de apertados limites, devemos acrescentar, balizada pelos critérios das alíneas do n.º 3 do art. 239 do CIRE. De resto, e à semelhança do que dissemos para a exoneração do passivo restante, também o facto de ser garantido ao devedor um reduto de rendimento que não será disponibilizado ao fiduciário (durante o período de cessão) não deverá ser entendido como antagónico ao direito do credor. Esse reduto permite ao devedor manter o ânimo necessário ao desenvolvimento de uma atividade produtiva.

O n.º 3 do art. 239 do CIRE diz-nos como encontrar o valor do rendimento do insolvente que não será cedido à entidade fiduciária.

Fá-lo indicando duas ordens de considerações:

a)- não são cedidos ao fiduciário os valores previamente cedidos a terceiros ou dados em penhor, antes da declaração de insolvência, nos termos do art. 115 do CIRE;
b)- igualmente fora da cessão do fiduciário estão os valores razoavelmente necessários para: i) o «sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar»; ii) o exercício pelo devedor da sua atividade profissional; e iii) outras despesas que o juiz ressalve.
Em causa no presente recurso está a aferição do que seja razoavelmente necessário ao sustento minimamente digno do devedor, conceitos jurídicos indeterminados, que o julgador terá de preencher casuisticamente, considerando as necessidades da concreta pessoa em questão. Os critérios jurisprudenciais usados na densificação dos conceitos em causa têm sido variados [Para uma visão panorâmica do problema, ANA FILIPA CONCEIÇÃO, «A jurisprudência portuguesa dos tribunais superiores sobre exoneração do passivo restante – breves notas sobre a admissão da exoneração e a cessão de rendimentos em particular», Julgar Online, junho 2016]. O legislador, porém, não deixou de conferir um padrão objetivo para a completude da norma ao acrescentar que o que é razoavelmente necessário ao sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar não deve exceder, «salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional».

Mesmo que o valor fixado fique aquém de três vezes o salário mínimo, a decisão carece de ser fundamentada, quer porque tanto é imposto por outras normas do sistema – especialmente considerando que nesta matéria há interesses dos credores que conflituam com os do devedor –, quer porque não há maneira de descobrir o que seja razoavelmente necessário ao sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar sem fundamentar, nomeadamente, de facto. Simplesmente, para fixar um valor superior a três salários mínimos, a decisão terá de ser especialmente fundamentada.

A existência digna das pessoas é incindível do acesso autónomo a bens e serviços de primeira necessidade, acesso que implica necessariamente disponibilidade de dinheiro. Tal disponibilidade resulta normalmente da atividade laboral, cuja retribuição a Constituição impõe que se faça «de forma a garantir uma existência condigna» (art. 59, n.º 1, al. a), da CRP).

Várias normas do ordenamento concretizam a ideia de que a existência digna depende da disponibilidade de valores mínimos inultrapassáveis e que devem ser assegurados mesmo em situações de conflito com interesses de terceiros, também dignos e merecedores de ponderação. Encontramos disto exemplos, justamente, no art. 239, nº 3, al. b), i) do CIRE, ora em análise, e no art. 738, nºs 1 e 3, do CPC, relativo à impenhorabilidade de 2/3 dos vencimentos, salários, prestações de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia, ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado. A referida impenhorabilidade tem como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais e como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento, o montante equivalente a um salário mínimo nacional.

No âmbito do art. 239 do CIRE foi estabelecido o mesmo limite máximo (aqui para a exclusão do rendimento disponível), embora ultrapassável mediante (especial) fundamentação, mas não foi estabelecido um limite mínimo objetivo, um valor mínimo assegurado ao insolvente. A materialização desse valor passa pelo preenchimento pelo juiz do que entenda razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor concreto e do seu agregado familiar.

No caso dos autos não se provaram despesas concretas, nomeadamente com alimentos a familiares ou outras.

Sabe-se que o recorrente não trabalha e vive, presentemente, do rendimento social de inserção. Nestas circunstâncias devemos presumir: a) por um lado, que tem as despesas gerais que, salvo circunstâncias excecionais, todos os seres humanos suportam, como alimentação, saúde, vestuário, transporte, eletricidade, água, gás e comunicações; b) por outro lado, que essas despesas serão do valor médio suportado por pessoas da sua condição económica. Claro que não consegue suportá-las com o RSI, pelo que, ou estará a acumular dívida, ou estará a viver às custas de terceiros. Assiste-lhe, no entanto, o direito de, caso lhe seja possível vir a ter rendimentos do trabalho durante o período de cessão, reservar para si o necessário ao sustento minimamente digno.

Considerando a alusão do CIRE ao salário mínimo nacional – anterior designação da retribuição mínima garantida – importante referencial do mercado de emprego «na perspetiva do trabalho digno e da coesão social» (preâmbulo do DL 254-A/2015, de 31 de dezembro), partilhamos o entendimento de que, em geral e na falta de prova de despesas extraordinárias concretas, ao devedor insolvente deve ser garantido o equivalente àquele salário.

Sendo a remuneração mínima mensal garantida recebida 14 vezes no ano, e constituindo o salário mínimo anual 14 vezes aquele montante mensal (arts. 263 e 264, n.º 2, do Código do Trabalho), o mínimo necessário ao sustento minimamente digno não deverá ser inferior à remuneração mínima anual.

Ou seja, se o tribunal, ao fixar o valor do rendimento necessário ao sustento minimamente digno, disser que será esse valor retido 14 vezes ao ano, então cada uma das parcelas não deverá ser inferior à remuneração mínima mensal garantida (atualmente € 580); se, o juiz, ao fixar o valor do rendimento indisponível disser que esse valor será retido 12 vezes ao ano, então esse valor não deverá ser inferior à retribuição mínima nacional anual (ou seja, € 580x14) a dividir por doze.

Esta perspetiva vai ao encontro do conceito de «Retribuição mínima nacional anual (RMNA)» definido no art. 3.º do DL 158/2006, de 8 de agosto, como «o valor da retribuição mínima mensal garantida (RMMG), a que se refere o n.º 1 do artigo 266.º do Código do Trabalho, multiplicado por 14 meses».

Os subsídios de férias e de Natal são parcelas de retribuição do trabalho e não extras para umas férias ou um Natal melhorados. A retribuição mínima nacional anual é constituída pela retribuição mínima mensal garantida multiplicada por 14, pelo que o salário mínimo nacional garantido mensalizado corresponde à retribuição mínima mensal garantida multiplicada por 14 e dividida por doze. É, no mínimo, deste valor médio mensal que o trabalhador dispõe para o seu sustento; e é este valor médio mensal que o Estado fixa como o mínimo necessário ao sustento minimamente digno.

No sentido de que o salário mínimo nacional deve ser referência mínima para a fixação do rendimento disponível no âmbito do instituto da exoneração do passivo restante, encontramos decisões jurisprudenciais [exemplificativamente, e por ordem cronológica decrescente, Ac. STJ de 02/02/2016, proc. 3562/14.1T8GMR.G1.S1, Ac. TRC de 10/03/2015, proc. 1110/14.2TBFIG-B.C1, Ac. do TRL de 19/12/2013, proc. 726/13.9TJLSB-C.L1-7, Ac. TRG de 14/02/2013, proc. 3267/12.8TBGMR-C.G1, Ac. TRP de 15/09/2011, proc. 692/11.5TBVCD-C.P1]. No entanto, a consideração dos subsídios de férias e de Natal como integrando o estrito conceito de retribuição e, nomeadamente, da retribuição mínima garantida, ou é omitida, ou é negada.

Lembramos, ainda a propósito, a recorrente jurisprudência do Tribunal Constitucional no tempo em que a impenhorabilidade não tinha, na letra da regra do CPC, de assegurar o valor do salário mínimo nacional ao executado. Exemplificativamente, o Acórdão 177/2002, de 2 de julho (I Série A), que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do CPC na parte em que permitia a penhora até um terço das prestações periódicas pagas ao executado a título de regalia social ou de pensão, cujo valor global não fosse superior ao salário mínimo nacional. E o Acórdão 96/2004, de 11/02/2004 (DR II, 1 de abril), que decidiu julgar inconstitucional, por violação do princípio da dignidade humana, decorrente do princípio do Estado de direito a norma que permitia a penhora de uma parcela do salário do executado que não fosse titular de outros bens penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida exequenda, e na medida em que privasse o executado da disponibilidade de rendimento mensal correspondente ao salário mínimo nacional.

Esta jurisprudência conduziu à introdução expressa no art. 824 do velho CPC, por via da reforma introduzida pelo DL 38/2003, de 8 de março, do valor do salário mínimo nacional como impenhorável.

A retribuição mínima mensal garantida cifra-se atualmente em € 580, a anual em € 8.120, e a mensalizada em € 676,66. Pediu o recorrente que se fixasse o rendimento indisponível em vez e meia o salário mínimo nacional (mensal), que atualmente resulta em € 870. Considerando que o recorrente não apresentou despesas extraordinárias mas que, ainda assim, tem três filhos com quem estará pelo menos ocasionalmente o que implica necessária e desejavelmente despesa, entendemos fixar o valor a coberto da cessão um pouco acima da retribuição mínima anual garantida mensalizada, em 1 vez e ¼ a retribuição mínima mensal garantida (que atualmente corresponde a € 725), devendo ser entregues ao fiduciário, mensalmente, os proventos que ultrapassem esse valor.

IV.Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, revogando o despacho recorrido na parte objeto de recurso – que determinou excluído do rendimento disponível o montante correspondente a um salário mínimo –, substituindo-o nessa parte pelo valor de uma vez e ¼ (um quarto) a remuneração mínima mensal garantida (o que a valores de 2018 perfaz € 725), 12 vezes ao ano.

Sem custas.



Lisboa, 27/02/2018



Higina Castelo
José Capacete
Carlos Oliveira