Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
12992/13.5T2SNT-G.L1-8
Relator: MARIA DO CÉU SILVA
Descritores: LEI N.º 1-A/2020
DE 19 DE MARÇO
EXECUÇÃO
ENTREGA JUDICIAL DE IMÓVEL
SUSPENSÃO
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/29/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1 - A L 1-A/2020, de 19 de março, não consta da lista dos diplomas que o DL 66-A/2022, de 30 de setembro, considerou revogados, pelo que dúvidas não há que se mantem em vigor.
2 - O campo de aplicação do nº 7 al. b) do art. 6º-E da L 1-A/2020 e o do nº 8 do mesmo artigo são diferentes, sendo certo que esta disposição se refere a venda e entrega judicial de imóvel e aquela se refere apenas a entrega judicial, não de qualquer imóvel, mas da casa de morada de família.
3 - A suspensão de atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família não tem, pois, de ser requerida pelo executado ou insolvente.
4 - A entrega efetiva da fração penhorada ao agente de execução é uma entrega judicial em sentido lato, porque, através dela, o agente de execução toma a posse efetiva da fração.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa

Na ação executiva instaurada por P… e que prossegue contra J… e A…, a exequente interpôs recurso do despacho proferido a 9 de maio de 2022 do seguinte teor:
Requerimento de 06/04/2022:
Atento o disposto no artigo 6.º-E, n.º 7, alínea b), da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, na redacção vigente, indefiro o requerido, no que tange à entrega coerciva.”
Na alegação de recurso, a recorrente formulou as seguintes conclusões:
«A. Em 06/04/2022, a Recorrente peticionou ao Tribunal a quo a entrada no imóvel, sobre o qual detém hipoteca, mediante o auxílio das forças policiais, nos termos e para os efeitos do artigo 757.º, n.º 2 a 4 do C.P.C.
B. O Tribunal indeferiu a pretensão da recorrente no que tange à entrega coerciva, invocando a violação do artigo 6.º-E, n.º 7, alínea b), da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março.
C. A Senhora Agente de Execução encontra-se a tentar realizar a diligência de verificação do estado do imóvel e constituição de fiel depositário desde 13/08/2020.
D. Os Executados, sempre pautaram a sua atuação com patente falta de colaboração, porquanto, apesar de notificados para o efeito, nunca terem prestado qualquer informação à Senhora Agente de Execução.
E. Nos termos do artigo 6.º-E da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, a suspensão da entrega do imóvel deverá ser requerida pelos Executados.
F. Ora, os Executados para além de nunca responderem à Senhora Agente de Execução, não alegaram prejuízos à sua subsistência a fim de obter a suspensão da entrega do imóvel.
G. Pelo contrário, os executados nada fizeram.
H. Não está em causa a entrega judicial do imóvel, mas tão-somente a sua tomada de posse com o intuito de obter fotografias do seu interior e constituir a Senhora Agente de Execução como fiel depositária.
I. Afigura-se essencial fazer referência ao entendimento que considera ferida de inconstitucionalidade material a aplicação da norma aqui em causa, ou seja, o artigo 6.º-E, n.º 7, alínea b), da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março.
J. Em suma, de acordo com essa posição jurisprudencial a aplicação desse dispositivo, conduz à violação dos artigos 18.º e 62.º da CRP, dado que com a evolução positiva da pandemia covid-19, se dissiparam as razões excecionais de saúde pública que justificaram a limitação ao direito de propriedade.
K. Destarte, é inequívoco que deve ser revogado o teor do despacho, sendo, pois, autorizada a tomada de posse do imóvel.»
Os executados não responderam à alegação da recorrente.
É a seguinte a questão a decidir:
- da aplicação do art. 6.º-E nº 7 a. b) da L 1-A/2020, de 19 de março.
*
Compulsados os autos principais, constata-se o seguinte:
1 - Do auto de penhora lavrado a 6 de junho de 2017 constam os executados como depositários da fração penhorada.
2 - A 7 de julho de 2021, a agente de execução expôs o seguinte:
«Para que a venda do imóvel seja aprovada pela Administração da plataforma “E-Leilões”, é estritamente necessário que seja estabelecido o regime de visitas, que seja facultado o contacto telefónico do fiel depositário e que seja autorizada a sua publicação na plataforma, assim como a deslocação da A.E. ao local, para a obtenção de fotografias do interior do imóvel, para aferir o estado de conservação do mesmo;
No caso em concreto, e não obstante, apesar das várias insistências efetuadas, tanto na pessoa da MI Mandatária, como da Executado, ainda não foi possível concretizar a constituição de fiel depositário e ou verificar o seu estado de conservação;
Não é admissível que o agente de execução avance com a venda de um determinado bem sem que tenha tomado as necessárias cautelas, designadamente as que possam contribuir para a concreta identificação do estado do bem a vender;
Quanto mais informação for disponibilizada, mais visualizações serão conseguidas, trazendo mais interessados, e a provável subida do valor do bem, podendo ocorrer casos em que ainda possa o executado ter direito a receber o excesso do produto da penhora;
Face ao acima exposto e uma vez que não tem a A.E. acesso ao interior do imóvel, o que, impossibilita a venda do mesmo na plataforma e - leilões, com prejuízo também para o executado, mais se requer a V.Exa. que se digne remover o executado, da qualidade de fiel depositário do imóvel, passando a signatária a assumir tal função, bem como autorizar que esta tome posse do mesmo, com recurso à Força Pública;
Caso V. Exa. assim não o entenda, requer ainda a ora signatária, MUI respeitosamente, que se digne designar dia e hora para abertura de propostas em carta fechada.»
3 - A 2 de fevereiro de 2022, a ilustre mandatária da executada A… informou que “apenas tem o contacto telefónico do pai dos executados, …, o qual informou que nenhum dos filhos reside no imóvel, mas que também ele não tem acesso ao mesmo.”
4 - A 6 de abril de 2022, a agente de execução informou que “chegou ao contacto telefónico do pai do executado, através de informação prestada pela MI Mandatária dos executados, no entanto e apesar de todas as insistências, até à presente data ainda não foi possível diligenciar pela constituição de fiel depositário e averiguação do estado de conservação do imóvel, a fim da Signatária proceder à venda do mesmo.”
5 - O requerimento apresentado pela exequente a 6 de abril de 2022 é do seguinte teor:
tendo conhecimento da falta de colaboração por parte do Executado no sentido de não facultar o seu contacto telefónico a fim de ser autorizada a publicação da venda do imóvel penhorado nos presentes autos, bem como não facilitar a realização da diligência de obtenção de fotografias do interior do imóvel para aferir do estado de conservação do mesmo, vem, muito respeitosamente, requerer a V/Exa. que se digne a ordenar a entrega do imóvel por parte do Executado, com a cominação de não sendo efetuada a entrega, ser autorizada a entrada na habitação mediante o auxílio das forças policiais, nos termos e para os efeitos do artigo 757.º, n.º 2 a 4 do C.P.C.
*
O art. 757º do C.P.C., sob a epígrafe “entrega efetiva”, dispõe o seguinte:
“1 - Sem prejuízo do disposto nos nºs 1 e 2 do artigo anterior, o depositário deve tomar posse efetiva do imóvel.
2 - Quando seja oposta alguma resistência, ou haja receio justificado de oposição de resistência, o agente de execução pode solicitar diretamente o auxílio das autoridades policiais.
3 - O agente de execução pode, ainda, solicitar diretamente o auxílio das autoridades policiais nos casos em que seja necessário o arrombamento da porta e a substituição da fechadura para efetivar a posse do imóvel, lavrando-se auto da ocorrência.
4 - Nos casos previstos nos nºs 2 e 3, quando se trate de domicílio, a solicitação de auxílio das autoridades policiais carece de prévio despacho judicial.”
Do auto de penhora constam os executados como depositários da fração penhorada.
A entrega efetiva da fração penhorada à agente de execução pressupõe a prévia remoção dos executados do cargo de depositários.
Conforme resulta do art. 761º nº 1 do C.P.C., “a requerimento de qualquer interessado, ou por iniciativa do agente de execução, é removido o depositário que, não sendo o agente de execução, deixe de cumprir os deveres do seu cargo”.
Nos termos do art. 6.º-E da L 1-A/2020, de 19 de março, aditado pela L 13-B/2021, de 5 de abril, “no decurso da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, as diligências a realizar no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal regem-se pelo regime excecional e transitório previsto no presente artigo”.
O DL 66-A/2022, de 30 de setembro, conforme consta do seu preambulo, veio proceder “à clarificação dos decretos-leis que ainda se encontram em vigor, bem como à eliminação das medidas que atualmente já não se revelam necessárias, através da determinação expressa de cessação de vigência de decretos-leis já caducos, anacrónicos ou ultrapassados pelo evoluir da pandemia”.
A L 1-A/2020 não consta da lista dos diplomas que o DL 66-A/2022 considerou revogados, pelo que dúvidas não há que se mantem em vigor.
Por força do art. 6.º-E nº 7 al. b) da L 1-A/2020, “ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório previsto no presente artigo: os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família”.
Nos termos do art. 8º da L 1-A/2020, “nos casos em que os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência referentes a vendas e entregas judiciais de imóveis sejam suscetíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente, este pode requerer a suspensão da sua prática, desde que essa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou dos credores do insolvente, ou um prejuízo irreparável, devendo o tribunal decidir o incidente no prazo de 10 dias, ouvida a parte contrária”.
A recorrente afirmou, na alegação recursiva, que, “da conjugação destes dois números, infere-se que a suspensão dos atos a realizar em sede de processo executivo e insolvência, terá que ser requerida pelos executados ou insolventes”.
O campo de aplicação do nº 7 al. b) e o do nº 8 são diferentes, sendo certo que esta disposição se refere a venda e entrega judicial de imóveis e aquela se refere apenas a entrega judicial, não de qualquer imóvel, mas da casa de morada de família.
A suspensão de atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família não tem, pois, de ser requerida pelo executado ou insolvente.
A recorrente afirmou, nas conclusões recursivas, que “não está em causa a entrega judicial do imóvel, mas tão-somente a sua tomada de posse com o intuito de obter fotografias do seu interior e constituir a Senhora Agente de Execução como fiel depositária”.
A entrega efetiva da fração penhorada ao agente de execução é uma entrega judicial em sentido lato, porque, através dela, o agente de execução toma a posse efetiva da fração.
O tribunal recorrido andou mal em aplicar o art. 6.º-E nº 7 a. b) da L 1-A/2020 por a fração penhorada não poder ser qualificada como casa de morada de família, uma vez que a ilustre mandatária da executada A…. comunicou que, segundo informação obtida junto do pai dos executados, nenhum destes reside na fração.
*
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, revogando o despacho recorrido e, em sua substituição, autorizando a solicitação de auxílio às autoridades policiais para o agente de execução tomar a posse efetiva da fração penhorada.
Sem custas.

Lisboa, 29 de novembro de 2022
Maria do Céu Silva
Teresa Sandiães
Octávio Diogo