Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1229/05.0TVLSB.L1-2
Relator: ONDINA CARMO ALVES
Descritores: DIREITO DE PERSONALIDADE
DIREITO DE PROPRIEDADE
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
RELAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/01/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: 1. A existência de uma relação tendencialmente conflituante entre direitos constitucionalmente garantidos - o direito ao descanso e sossego, enquanto direito de personalidade - e o direito de propriedade - leva à necessidade de dirimir o conflito de direitos daí decorrente, de acordo com o contexto jurídico e a respectiva situação fáctica.
2. Sendo embora de respeitar a real prevalência dos direitos de personalidade relativamente ao direito de propriedade, fruto da hierarquia decorrente, designadamente, das normas constitucionais, essa hierarquia não é absoluta, havendo que sopesar a realidade factual em concreto, tendo em consideração que o direito hierarquicamente inferior – neste caso, o direito de propriedade - deve ser respeitado até onde for possível e apenas deve ser limitado na exacta proporção em que isso é exigido pela tutela razoável do conjunto principal de interesses.
3. Há que averiguar se, no caso concreto, a prevalência de um direito relativo à personalidade não resulta em desproporção inaceitável, apelando-se aos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, por forma a aquilatar em que medida é que o sacrifício que se impõe ao titular de um direito se justifica face à lesão do outro, vedando-se o uso de um meio intolerável para quem é afectado pela medida restritiva.
4. A intensa e imperiosa convivência entre as pessoas leva a considerar que nas relações de vizinhança há que tolerar algum ruído e alguma incomodidade que todos causam uns aos outros.
5. A reduzida intensidade da incomodidade sofrida pelos autores e a ausência de consequências decorrentes dessa incomodidade, não deve levar à pretendida limitação dos direitos dos réus à propriedade privada, não sendo aceitável, atento o circunstancialismo fáctico apurado, que os réus não possam utilizar plenamente a respectiva moradia e nela deter os seus cães.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES DA 2ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA


I. RELATÓRIO

B... e C..., residentes na Rua ...., em Lisboa, intentaram contra D..., E... e F..., todos residentes na Rua ..., em Lisboa, a acção declarativa sob a forma de processo ordinário, através da qual pedem a condenação dos réus a adoptarem as medidas que, eficazmente e em definitivo, impeçam os seus animais de continuarem a incomodar os autores e, para o caso de o não conseguirem, a proceder à definitiva remoção dos referidos animais do prédio em que habitam, fixando-se uma sanção pecuniária compulsória de € 500.00, por cada dia de atraso no cumprimento das normas que vierem a ser decretadas.
Fundamentaram os autores, no essencial, esta sua pretensão na circunstância de possuírem os réus, seus vizinhos, no jardim da sua moradia, numa jaula, dois cães, que estão constantemente a ladrar, privando os autores, bem como a filha destes, de descanso e tranquilidade, o que se tem agravado substancialmente nos últimos tempos.
Mais alegaram que, perante a inércia dos réus e a falta de eficácia da acção da autoridade policial a que recorreram, intentaram contra aqueles um procedimento cautelar, vindo o mesmo a terminar por transacção, uma vez que os réus colocaram coleiras eléctricas nos cães, impedindo-os de ladrar com tanta intensidade.
Contudo, e porque os animais deixaram depois de usar as ditas coleiras, os autores intentaram contra os réus novo procedimento cautelar onde os mesmos foram intimados a adoptarem medidas necessárias a eficazmente impedir os seus animais de os continuarem a incomodar, ou, caso o não conseguissem de imediato, a entregar os cães a um fiel depositário.
Alegaram ainda os autores que, perante a reiteração da passividade dos réus, solicitaram a remoção dos animais para o canil municipal, já que o ruído provocado pelos mesmos lesa gravemente o respectivo direito ao repouso, descanso e tranquilidade, bem como o direito à saúde da sua filha menor, registando já os autotes um profundo mal estar, caracterizado por cansaço e por irritabilidade extremos, o que determinou alterações no rendimento profissional do autor, e no rendimento escolar da filha.
Computaram os autores os danos sofridos em consequência do comportamento dos réus, para efeito de compensação, em € 15.000,00.
Citados, os réus apresentaram contestação, na qual impugnaram os factos alegados pelos autores, nomeadamente salientando não ser verdade que tivessem os animais numa jaula, sendo que os mesmos apenas ladram quando alguém se aproxima do portão da sua casa ou estaciona o automóvel em frente.
Mais alegaram os réus que os cães em causa são de guarda, assim se compreendendo que a maioria das casas do bairro - dotadas de condições para o efeito - os possuam, tanto mais que os assaltos são cada vez mais frequentes, tendo eles próprios afeição e apego aos animais.
Alegaram ainda os réus o comportamento agressivo do autor e que os animais são atiçados intencionalmente pelos autores, nomeadamente com objectos e pedras, uma das quais fracturou um vidro do veículo automóvel de um deles, por forma a justificarem a sua infundada tese de falta de sossego, tendo apresentado queixas-crime por tais factos, bem como pelos insultos e pelas ameaças que lhes são dirigidas, incluindo à respectiva filha.
Invocaram também os réus que são os autores responsáveis pela produção de maiores ruídos e incómodos, quer mercê do cão que também possuem, quer mercê de obras que fizeram no quintal, quer mercê da celebração do seu casamento em casa.
Alegaram também os réus que, por virtude da transacção celebrada nos autos de Procedimento Cautelar n° ...., da ... Secção da ... Vara Cível de Lisboa, colocaram coleiras eléctricas nos animais, por forma a evitar mais queixas, o que manifestamente não impediu os autores de continuarem a suscitar conflitos de proximidade, à semelhança do que já fizeram com outros vizinhos, ao contrário deles próprios, que residem naquele bairro há trinta e cinco anos, de forma pacífica.
Invocaram, por fim, os réus, danos morais e psicológicos com toda esta situação, bem como a privação da companhia dos seus animais, por decisão cautelar, pedindo a improcedência da acção e a absolvição dos réus da totalidade do pedido e que lhes sejam restituídos os cães e ainda a condenação dos autores, como litigantes de má fé, em montante a arbitrar pelo Tribunal, a título de multa a favor do Estado.
Os autores replicaram, alegando terem feito tudo para evitar a remoção dos cães dos réus, celebrando com eles diversos acordos, que os mesmos nunca cumpriram, já que os cães ladravam constantemente, e ainda com mais intensidade do que o que era habitual, na semana posterior ao decretamento da decisão cautelar.
Mais alegaram que os cães em causa não são animais de companhia dos réus, estando fechados vinte e quatro horas por dia, só saindo uma vez por dia para a rua, e na companhia de um tratador especial, pelo que os réus não ficaram privados da companhia dos canídeos.
Por fim, os autores alegaram que o seu direito ao repouso, descanso e tranquilidade seria superior a eventual direito dos réus, de terem a companhia dos seus cães, bem como a utilizá-los como cães de guarda.
Proferida que foi a condensação com a fixação dos Factos Assentes e a organização da Base Instrutória, foi levada a efeito a audiência de discussão e julgamento, após o que o Tribunal a quo proferiu decisão, julgando a acção nos seguintes termos:
a) Absolver os réus, D..., E... e F..., dos pedidos aqui formulados contra si pelos Autores, B... e mulher, C...;
b) Absolver os Autores do pedido de condenação respectiva como litigantes de má fé, aqui formulado contra si pelos réus.

Inconformados com o assim decidido, os autores interpuseram recurso de apelação, relativamente à sentença prolatada.

São as seguintes as CONCLUSÕES dos recorrentes:
i) A douta sentença recorrida, ao julgar improcedente a acção intentada pelos autores, ora apelantes, considerando a “axiológica e normativa superioridade dos direitos de personalidade, sobre os direitos de propriedade, não se verifica no caso concreto, isto é, os contornos circunstanciais dos interesses dos autores, por um lado, e dos interesses dos réus, por outro, não justificam que se imponha a estes o sacrifício do seu direito, face à natureza da lesão do direito daqueles (princípio da proporcionalidade), sob pena de uso de um meio intolerável para os réus, afectados pelas medidas restritivas requeridas (princípio da razoabilidade)” enferma de manifesto erro de julgamento, bem como aplica de forma errada a disposição prevista no artigo 335º do Código Civil, e viola o artigo 70º do Código Civil e os artigos 26º e 66º da Constituição da República Portuguesa;
ii) Na douta sentença recorrida considerou-se, além do mais, provado que os cães em causa nos presentes autos “ladram” e “ladram, em determinadas ocasiões, do dia e da noite” e que “em algumas noites os autores tiveram dificuldade de dormir” (cfr. artigos 10, 11 e 12 dos factos considerados provados na douta sentença recorrida), pelo que é, assim, certo que o ruído provocado pelos animais dos réus afectou, pelo menos em algumas noites, o direito ao repouso, descanso e tranquilidade dos autores e da sua filha, integrando-se este no elenco dos direitos de personalidade, e, como tal, abrangido pela tutela geral da personalidade prevista no artigo 70º do Código Civil;
iii) Os autores pretendem com os presentes autos fazer cessar a título definitivo a situação atrás descrita provocada pelos animais em causa, por forma a proteger a sua saúde e a evitar a continuação da lesão do direito ao descanso seu e da sua filha, sendo certo que o direito ao repouso, descanso e tranquilidade dos autores só será assegurado se os réus forem proibidos de terem animais em causa na sua propriedade ou, em alternativa, se forem condenados a adoptarem as medidas necessárias para que os mesmos se mantenham em silêncio, designadamente mediante um sistema de coleiras electrificadas ou outro que cumpra o fim previsto;
iv) A douta sentença recorrida considerou igualmente provado que os animais em causa “são cães de guarda, bastante utilizados para protegerem habitações e darem alerta a prováveis tentativas de furto em habitações” e que “ladram como qualquer outro cão do seu porte, isto é, ladram de forma correspondente ao porte que têm” bem como que “ladram como qualquer animal da espécie, entre outras situações, quando alguém se aproxima do portão da casa dos réus ou quando algum automóvel estaciona em frente do portão”, pelo que a douta sentença recorrida reconhece não só que os cães ladram como aliás os réus têm os mesmos para esse fim, ou seja ladrarem e darem alerta;
v) A douta sentença recorrida considerou que o “direito de fruírem e usarem, quer a casa, quer o jardim, quer os cães da forma que melhor entendessem”, consubstancia igualmente um direito fundamental, designadamente o direito à propriedade e à segurança dos réus, considerando assim que estaremos perante um conflito de direitos, e que, neste caso concreto, “a normativa superioridade dos direitos de personalidade sobre os direitos de propriedade não se verifica”, sendo com base neste pressuposto errado que a douta sentença recorrida recorre ao nº 1 do artigo 335º do Código Civil, ou seja considerar que estamos perante direitos iguais ou da mesma espécie, ou sequer comparáveis;
vi) Não está em causa nos presentes autos o direito de propriedade do imóvel dos réus, nem tão pouco o direito dos réus possuírem animais nessa mesma propriedade. Os autores jamais quiseram impor quaisquer limites ao direito de propriedade dos réus nem que estes deixem de ter os animais que bem entendam. Os réus são livres de terem os animais que quiserem na sua propriedade desde que esses animais respeitem o direito ao repouso, descanso e tranquilidade dos autores;
vii) A pretensão dos autores não põe em causa o direito à segurança dos réus, pois para assegurar esse direito não serão exclusivamente necessários cães. Muito menos cães que ponham em causa o descanso dos vizinhos. Existem inúmeros outros sistemas de segurança aos quais os réus poderão recorrer sem causar qualquer prejuízo a terceiros;
viii) Mesmo na hipótese configurada na douta sentença recorrida, não há sequer, nesse caso, uma verdadeira colisão de direitos, visto a lei estabelecer uma relação de subordinação entre eles, pois ainda que o direito de propriedade seja um direito fundamental não podemos de modo algum considerar que o mesmo esteja no mesmo patamar do direito ao repouso, descanso e tranquilidade, são direitos desiguais pelo que ao contrário do que se entende na douta sentença, é manifesto que não pode o direito de propriedade e segurança dos réus sobrepor-se ao direito ao repouso, descanso e tranquilidade dos autores;
ix) Os direitos de personalidade, e o direito à qualidade de vida são direitos subjectivos absolutos, oponíveis erga omnes, impondo a todos um dever geral de abstenção da prática de actos que os ofendam pelo que perante comportamentos que lesem direitos dessa natureza deve um Tribunal decretar as medidas adequadas para que tal situação não se mantenha;
x) O direito de personalidade dos autores prevalece, nos termos do artigo 335º, nº 2 do Código Civil, e como são doutrina e jurisprudência pacíficas, aliás extensamente citadas na douta sentença recorrida, sobre o direito dos réus em possuírem animais na sua propriedade, não havendo, neste caso, uma verdadeira colisão de direitos, visto a lei estabelecer uma relação de subordinação entre eles, pelo que sendo desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior (cfr. artigo 335º, nº 2 do Código Civil).

Pedem, por isso, os apelantes, que a sentença recorrida seja revogada com as legais consequências.
Os apelados não apresentaram contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II. ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO
Importa ter em consideração que, de acordo com o disposto nos artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Código de Processo Civil, é pelas conclusões da alegação dos recorrentes que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.
Assim, e face ao teor das conclusões formuladas, a solução a alcançar pressupõe a análise das seguintes questões controvertidas

i) O DIREITO GERAL DE PERSONALIDADE E O SEU RECONHECIMENTO NA ORDEM JURÍDICA PORTUGUESA;


ii) O CONFLITO DE DIREITOS
Por forma a apurar se há uma efectiva lesão do direito de personalidade dos autores e se tal eventual lesão – atenta a sua intensidade e o seu desvalor - deverá acarretar a restrição ao direito dos réus.
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III . FUNDAMENTAÇÃO
A - OS FACTOS
Foram dados como provados na sentença recorrida os seguintes factos:
1. B... e C..., aqui Autores, são donos da moradia sita na Rua ..., em Lisboa, onde residem (A);
2. G... nasceu no dia 31 de Julho de 1987, sendo registada como filha de B... e de C... - conforme certidão de nascimento respectiva, que é fls. 133 dos autos, e que aqui se dá por integralmente reproduzida;
3. D..., E... e F..., aqui Réus, são vizinhos dos Autores e residem na moradia sita na Rua ..., em Lisboa, contígua à destes ( B );
4. Os Réus possuem no jardim da sua moradia, identificada no facto enunciado sob o número 3, dentro de um canil, dois cães de raça pastor alemão ();
5. A área residencial onde se situa a casa dos autos, devido às suas condições, permite aos donos das casas terem animais nos jardins e quintais, para companhia e guarda (43º);
6. A maioria das casas do bairro onde se situa a casa dos autos, possuem cães alojados nos jardins ou quintais (40º);
7. Os cães servem de guarda às casas, e os assaltos são cada vez mais frequentes (41º);
8. Há muitos anos que os Réus têm tido animais em casa, muito antes de os Autores irem viver para a moradia em causa nos autos (42º);
9. Os cães em causa nos autos (referidos no facto enunciado sob o número 4) são cães de guarda, bastante utilizados para protegerem habitações e darem o alerta a prováveis tentativas de furto em habitações (M);
10. Os cães referidos no facto anterior ladram ();
11. Os cães ladram, em determinadas ocasiões, do dia e da noite ();

12. Os cães ladram como qualquer outro cão do seu porte, isto é, ladram de forma correspondente ao porte que têm ( );
13. Os cães ladram como qualquer animal da espécie, entre outras situações, quando alguém se aproxima do portão da casa dos Réus, ou quando algum automóvel estaciona em frente do portão ( 24º );
14. Em algumas noites, os autores tiveram dificuldade em dormir ( e );
15. A filha dos autores tem de se levantar todos os dias pelas sete horas da manhã, para ir para a escola (C);
16. Os autores solicitaram, por diversas vezes, aos réus que adoptassem medidas, de modo a que os seus cães, pelo menos durante a noite, deixassem de ladrar (D);
17. Os autores viram-se forçados, por diversas vezes, a denunciarem os factos em causa nos autos, às autoridades policiais competentes, de modo a que as mesmas interviessem e intimassem os réus a não prejudicarem o seu descanso ( E );
18. Os autores chamaram a polícia por causa dos cães (21º);
19. O autor marido chama a polícia local (31º);
20. A polícia desloca-se ao local (32º);
21. Um dos réus tem uma filha, que anda a estudar no curso de farmácia e que acorda cedo, a qual não se sente incomodada com o barulho produzido pelos cães (29º);
22. A querela em causa nos autos tem sido presenciada pela filha do réu referida no artigo anterior (30º);
23. Os autores têm um cão, que por vezes também ladra (33º);
24. Os autores fizeram obras na sua moradia (35º);
25. Os autores celebraram o seu casamento em casa, na véspera de um exame de admissão à faculdade da filha do réu F..., e fizeram barulho ( 36º );
26. Os autores, em 31 de Março de 2004, intentaram uma Providência Cautelar não especificada, no sentido de que fossem adoptadas, pelos réus, as medidas que eficazmente impedissem os animais de os continuarem a incomodar, correndo a mesma termos sob o n° ..., na ... Secção da ... Vara Cível de Lisboa, sendo actualmente o Apenso A dos presentes autos ( F );
27. No âmbito dos autos de Procedimento Cautelar referidos na alínea anterior, os aqui réus comprometeram-se, mediante acordo celebrado com os aqui autores, em 2 de Junho de 2004, «a adoptar as medidas necessárias para que os seus animais não façam barulho e não punham em causa o direito ao repouso, descanso e tranquilidade dos Autores» (G);
28. Os autores concordaram com o acordo referido no facto anterior, pois, após a propositura da providência cautelar referida no facto enunciado sob o número 26 (Apenso A), os réus tinham adoptado medidas que impediam os animais de ladrar, nomeadamente colocando nos animais coleiras eléctricas, que os impediam de ladrar com tanta intensidade ( H );
29. O acordo referido no facto enunciado sob o número 27, foi homologado por sentença datada de 03 de Junho de 2004 ( I );
30. Em face das queixas dos autores, na sequência da providência cautelar referida nos factos anteriores (Apenso A), e por sugestão dos mesmos, os réus adoptaram as medidas necessárias aconselhadas, que consistiam na colocação de coleiras eléctricas nos animais - apesar do seu desagrado, acederam, para evitar mais queixas (38º);
31. Em determinada altura, os cães usaram coleiras eléctricas e depois passaram a usar coleiras a gás (14º);
32. Os autores, intentaram em 22 de Julho de 2004, uma nova Providência Cautelar, no sentido de que fossem adoptadas pelos Réus as medidas que eficazmente impedissem os animais de continuarem a incomodá-los, a qual correu termos sob o n° ..., na ... Secção da ... Vara Cível de Lisboa, sendo actualmente o Apenso B dos presentes autos (J);
33. Por despacho proferido a 28 de Janeiro de 2005, nos autos referidos no artigo anterior, foi a providência julgada totalmente procedente por provada, e os réus intimidados a «adoptarem as medidas necessárias que eficazmente impeça, os seus animais (dois cães de raça pastor alemão) de continuar a incomodar os Requerente, e, caso não o consigam de imediato, a procederem à entrega dos mesmos a um fiel depositário» (K);
34. Nos autos de Procedimento Cautelar referidos no facto enunciado sob o número 32 (Apenso B), os autores requereram, em 29 de Abril de 2004, a execução da decisão cautelar e, assim, solicitaram a remoção dos referidos cães para o Canil Municipal de Lisboa, sendo essa remoção concretizada em 14 de Março de 2005 (L);
35. Os cães, antes de serem removidos de casa, ladravam em determinadas ocasiões do dia e da noite (17º);
36. Os cães ladram de forma correspondente ao seu porte desde, pelo menos, dois anos antes de serem removidos de casa dos réus (18º);
37. Os factos em causa nos autos iniciaram-se por volta de 2002, dando azo a um Processo-Crime instaurado pelos réus contra os autores, que correu termos com o n° ..., no ... Juízo Criminal da Comarca de Lisboa, onde o autor marido foi acusado pelo crime de injúrias, previsto e punível pelo art. 181°, n° 1 do C.P., e demandado por uma indemnização cível de € 5.000.00. vindo a ser absolvido de ambos, por sentença de 08 de Junho de 2005, transitada em julgado - conforme certidão judicial que é fls. 147 a 155 dos autos, e que aqui se dá por integralmente reproduzida ( N);
38. Na casa dos réus, já foram encontradas pedras na cobertura da piscina (27º);
39. O carro de um dos réus foi encontrado com um vidro partido (28º);
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B - O DIREITO
i) O DIREITO GERAL DE PERSONALIDADE E O SEU RECONHECIMENTO NA ORDEM JURÍDICA PORTUGUESA
Como escreveu RODRIGUES BASTOS, Das Relações Jurídicas, tomo 1.º, 20/21, os direitos de personalidade têm por fim impor a todos os componentes da sociedade o dever negativo de se absterem de praticar actos que ofendam a personalidade alheia, sendo à doutrina e à jurisprudência que competirá definir os limites da sua defesa.
Estes direitos pertencem à categoria dos direitos absolutos, oponíveis a todos os terceiros, que os têm que respeitar e têm consagração constitucional.
Com efeito, ressalta da Constituição da República Portuguesa a ideia da protecção da pessoa humana, da sua personalidade e dignidade, falando-se no artigo 1º da dignidade da pessoa humana como fundamento da sociedade e do Estado; o artigo 24º, nº 1, declara que a vida humana é inviolável; o artigo 25º garante o direito à integridade moral e física da pessoa; o artigo 26º consagra também outros direitos pessoais e o artigo 64º e 66º protegem os direitos à saúde e a um ambiente salutar.
Enquadram-se na categoria de direitos de personalidade, entre outros, os direitos à vida, à integridade física, à honra, à saúde, à inviolabilidade do domicílio, ao repouso essencial à existência - v. P. LIMA - A. VARELA, Código Civil Anotado, vol. 1.°, 55; GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 101.
Os direitos de personalidade estão também regulados no Código Civil, embora nele se não contenha uma definição de direito de personalidade.
Apenas o artigo 70º consagra o direito geral de personalidade, abrangendo, na sua protecção, no âmbito do direito civil, como refere RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, A Constituição e os Direitos de Personalidade, Estudos sobre a Constituição, vol. 2º, Lisboa, 1878, 93, todos os "direitos subjectivos, privados, absolutos, gerais, extra-patrimoniais, inatos, perpétuos, intransmissíveis, relativamente indisponíveis, tendo por objecto os bens e as manifestações interiores da pessoa humana, visando tutelar a integridade e o desenvolvimento físico e moral dos indivíduos e obrigando todos os sujeitos de direito a absterem-se de praticar ou de deixar de praticar actos que ilicitamente ofendam ou ameacem ofender a personalidade alheia sem o que incorrerão em responsabilidade civil e/ou na sujeição às providências cíveis adequadas a evitar a ameaça ou a atenuar os efeitos da ofensa cometida”.
Prescreve o nº 1 do artigo 70º do Código Civil que “A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral”, o que significa a assunção e um reconhecimento da existência de um direito geral da personalidade – v. a propósito da evolução do direito de personalidade na civilística portuguesa, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Inocêncio Galvão Teles, Vol. I, 21-45.
E, o nº 2 do citado artigo 70º do C.C. permite ao ameaçado ou ofendido requerer, independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, as providências adequadas às circunstâncias do caso com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida.
Mas, a Constituição da República Portuguesa também reconhece e assegura, por outro lado, os direitos de natureza económica, tais como o da livre iniciativa económica (art.º 61º) e da propriedade privada (art.º 62º n.º 1).
Têm, pois, quer o direito à saúde e ao repouso, quer o direito da propriedade privada consagração na lei fundamental, sendo por vezes os mesmos conflituantes entre si, o que leva à necessidade de dirimir o conflito de direitos daí decorrente.
O recurso ao aludido instituto apenas se coloca existindo dois diferentes direitos pertencentes a titulares diversos, não se mostrando possível o exercício simultâneo e integral de ambos, o que pressupõe, evidentemente, a efectiva existência, validade e eficácia de tais direitos conflituantes.
Ora, ficou provado nos autos que autores e réus residem em moradias contíguas e que os réu, que sempre possuíram cães, têm no jardim da respectiva moradia um canil onde permanecem dois cães de raça pastor alemão, tal como sucede com a maioria das casas do bairro onde todos residem e que servem para guardar as respectivas casas, protegendo-as de assaltos – v. Nºs 1 a 9 da Fundamentação de Facto.
Tais cães ladram de forma correspondente ao porte que têm, em determinadas ocasiões do dia e da noite, quando alguém se aproxima do portão da casa dos réus, ou quando algum automóvel estaciona em frente do portão, o que sucedeu até serem removidos, por virtude de decisão cautelar – v. Nºs 10 a 13, 34, 35 e 36 da Fundamentação de Facto.
Igualmente se apurou que os autores, algumas noites, tiveram dificuldade em dormir - v. Nºs 14 da Fundamentação de Facto. Admite-se que essa circunstância haja sido em consequência do ladrar dos cães, tanto mais que as desinteligências entre as partes em torno dos cães remontam a alguns anos atrás - pelo menos a 2002 - como o demonstram os procedimentos cautelares intentados pelos autores contra os réus, a participação crime efectuada pelos réus contra os autores, bem como o recurso à autoridade policial efectuada pelos autores, deslocando-se tal autoridade policial ao local - v. Nºs 17 a 21, 26 a 29, 32 a 34 e 37 da Fundamentação de Facto.
Reconhece-se, por outro lado, o direito dos réus à propriedade privada, usando-a para os fins que entenderem, e nela poderem usufruir da convivência de animais de companhia, como sejam os cães, utilizando-os também por questões de segurança da respectiva habitação.
E, considerando que a tutela dos direitos de personalidade implica que se tenha como referência a pessoa em concreto, igualmente se admite que haja ocorrido, no caso em apreço, alguma perturbação no direito dos autores ao descanso e sossego.
Mas, importa ponderar se tal ocorrência implica automaticamente uma limitação do direito dos réus ou, ao invés, se a imposição dessa limitação dependerá da intensidade e do desvalor da invocada perturbação do direito dos autores, o que nos leva a apreciar a questão subsequente.
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ii) O CONFLITO DE DIREITOS
Frequentemente se colocam situações de colisão ou conflito de direitos fundamentais que urge solucionar.
Esclarece J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 1195 que existe uma colisão autêntica de direitos fundamentais, quando o exercício de um direito fundamental por parte do seu titular colide com o exercício do direito fundamental por parte de outro titular, ocorrendo uma colisão de direitos em sentido impróprio quando o exercício de um direito fundamental colide com outros bens constitucionalmente protegidos.
É que, com efeito, a existência de uma relação tendencialmente conflituante entre direitos constitucionalmente garantidos - o direito ao descanso e sossego, enquanto direito de personalidade - e o direito de propriedade - leva à necessidade de dirimir o conflito de direitos daí decorrente, de acordo com o contexto jurídico e a respectiva situação fáctica.
Como defende J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional, pág. 660 e Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, Coimbra, 3ª Ed., 1195, apesar de não existir um padrão ou critério de soluções de conflitos de direitos válidos em termos gerais e abstractos, isso não invalida a utilidade de critérios metódicos abstractos que orientem a necessária tarefa de ponderação e/ou harmonização no caso concreto, através do princípio da concordância prática” ou a “ideia do melhor equilíbrio possível entre os direitos colidentes”, por forma a atribuir a cada um desses direitos a máxima eficácia possível.
Não havendo possibilidade de harmonizar os direitos em conflito, a solução terá de passar pela prevalência de um deles em relação ao outro.
A Constituição da República Portuguesa concede uma maior protecção aos direitos, liberdades e garantias do que aos direitos económicos, sociais e culturais, havendo uma ordem decrescente de consistência, de protecção jurídica, de densidade subjectiva daqueles relativamente a estes.
Na lei infra-constitucional, a colisão de direitos está prevista no artigo 335 do Código Civil, que dispõe:
1. Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os direitos ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes.
2. Se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deve considerar-se superior.
Para resolução do aludido conflito de direitos, haverá, pois, que recorrer, ao nível da lei ordinária, ao aludido normativo que estipula que, caso sejam iguais os direitos em conflito ou da mesma espécie, deve cada um deles manter o seu núcleo principal, cedendo o estritamente necessário para que ambos produzam o seu efeito. Mas, se os direitos em questão forem desiguais ou de espécie diferente, deverá prevalecer aquele que for considerado superior.
Assim, e em abstracto, a hierarquização dos direitos eminentemente pessoais, como são os que afectam a personalidade, sempre levaria a sobrevalorizar este em detrimento do direito de propriedade.
Entende-se, todavia, que sendo embora de respeitar a real prevalência dos direitos de personalidade relativamente ao direito de propriedade, fruto da hierarquia decorrente, designadamente, das normas constitucionais, essa hierarquia não é absoluta, havendo que sopesar a realidade factual em concreto, tendo em consideração que o direito hierarquicamente inferior – neste caso, o direito de propriedade - deve ser respeitado até onde for possível e apenas deve ser limitado na exacta proporção em que isso é exigido pela tutela razoável do conjunto principal de interesses.
É que, como refere CAPELO DE SOUSA, ob. cit., 547, em caso de conflito entre um direito de personalidade e um direito de outro tipo, a respectiva avaliação «abrange não apenas a hierarquização entre si dos bens ou valores do ordenamento jurídico na sua totalidade e unidade, mas também a detecção e a ponderação de elementos preferenciais emergentes do circunstancialismo fáctico da subjectivação de tais direitos, maxime, a acumulação, a intensidade e a radicação de interesses concretos juridicamente protegidos. Tudo o que dará primazia, nuns casos, aos direitos de personalidade ou, noutros casos, aos com eles conflituantes direitos de outro tipo».
Urge, portanto, averiguar se, no caso concreto, a prevalência de um direito relativo à personalidade não resulta em desproporção inaceitável, visto que, como antes ficou dito, o sacrifício e limitação do direito considerado inferior – direito de propriedade - deverá apenas ocorrer na medida adequada e proporcionada à satisfação dos interesses tutelados pelo direito dominante.
Para o efeito, importa lançar mão dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, ou seja, há que sopesar a adequada proporção entre os valores em análise, aquilatando em que medida é que o sacrifício que se impõe ao titular de um direito se justifica face à lesão do outro, vedando-se o uso de um meio intolerável para quem é afectado pela medida restritiva.
No caso em apreço, não ficou demonstrado que os cães pertencentes aos réus estivessem constantemente a ladrar não parando de ladrar, de dia e de noite e que, por isso, os autores estivessem impossibilitados ou com enormes dificuldades em dormir e que a filha dos autores tivesse, por virtude desse facto, dificuldade de se levantar de manhã.
Em suma, não ficou provado, conforme fora alegado pelos autores, que em consequência do barulho provocado pelos cães dos réus, os autores se encontrem privados constantemente do descanso e tranquilidade e que tal se haja agravado nos últimos tempos – v. respostas negativas e restritivas dadas aos artigos 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, 8º, 9º, 13º, 17º, 18ºe 19º da Base Instrutória..
É verdade que ficou provado que os autores, algumas noites, tiveram dificuldade em dormir, admitindo-se que em consequência do ladrar dos cães, mas por provar ficou que, por essa circunstância, os autores não tenham conseguido dormir inúmeras noites – v. resposta negativa dadas aos artigos 20º da Base Instrutória.
Acresce que tão pouco se provou que as noites mal dormidas pelos autores, bem como pela filha destes, lhes hajam causado, nos dias imediatos, qualquer mau estar, caracterizado por um cansaço e irritabilidade, ou que tal facto lhes haja causado alterações no rendimento profissional ou escolar – v. respostas negativas dadas aos artigos 22º e 23º da Base Instrutória.
Da prova produzida não pode deixar de se concluir que é mínimo o atentado ao descanso e sossego dos autores.
A intensa e imperiosa convivência entre as pessoas leva a considerar que nas relações de vizinhança há que tolerar, obviamente até certo ponto, algum ruído e alguma incomodidade que todos causam uns aos outros como, de resto, ficou demonstrado nos autos.
Os próprios autores, pese embora sofram de alguma hipersensibilidade ao ruído provocado pelos cães dos réus, eles próprios são igualmente produtores de ruído – v. Nºs 23 a 25 dos Fundamentos e Facto – sendo certo que os autores também têm na sua habitação um cão que não pode deixar de ladrar, sendo susceptível de causar algum incómodo a outras pessoas igualmente hipersensíveis ao ruído.
Em face da prova produzida entende-se que a reduzida intensidade da incomodidade sofrida pelos autores e a ausência de consequências decorrentes dessa incomodidade, não deve levar à pretendida limitação dos direitos dos réus à propriedade privada.
Não é aceitável, atento o circunstancialismo fáctico apurado, que os réus/apelados não possam utilizar plenamente a respectiva moradia e nela deter os seus cães.
Concorda-se, pois, com a Exma. Juíza do Tribunal a quo quando conclui que a axiológica e normativa superioridade dos direitos de personalidade, sobre os direitos de propriedade, não se verifica no caso concreto, isto é, os contornos circunstanciais dos interesses dos Autores, por um lado, e dos interesses dos Réus, por outro, não justificam que se imponha a estes o sacrifício do seu direito, face à natureza da lesão do direito daqueles (princípio da proporcionalidade), sob pena de uso de um meio intolerável para os Réus, afectados pelas medidas restritivas requeridas (princípio da razoabilidade).
Improcede, portanto, o recurso de apelação, mantendo-se nos seus precisos termos a decisão recorrida.
Vencidos, são os apelantes responsáveis pelas custas respectivas - artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
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IV. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida e em condenar os apelantes no pagamento das custas respectivas.
Lisboa, 01 de Outubro de 2009
Ondina Carmo Alves – Relatora
Ana Paula Boularot
Lúcia Sousa