Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
20817/16.3YIPRT.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: CESSÃO DE CRÉDITO
CONTRATO
PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/28/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: O cessionário de um crédito tem de provar a existência do contrato de transmissão do crédito para poder ser considerado titular do mesmo. O que implica o conhecimento do contrato e a possibilidade de o apreciar quanto a fundamentos de nulidade da lei substantiva e de abuso de direito.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados.


Relatório:

I-Lda, requereu uma injunção contra M, pelo valor de 10.382,46€ de capital, para além de juros e outros valores.

Alegou para tanto, em síntese, que aquele valor decorria de um contrato celebrado entre o réu e um banco (mais tarde foi precisado, na sequência de despacho de aperfeiçoamento, que se tratava do incumprimento de contratos de utilização de cartão de crédito), tendo este cedido esse crédito à autora através de contrato comunicado ao réu (mais tarde junto, sem os anexos a que se faziam referências).

Face à oposição do réu, que contestava os valores apresentados e a informação de que a autora era a detentora do crédito cedido pelo banco, a injunção foi convertida numa AECOP.

O réu veio então contestar: reconhecendo embora ser parte em dois contratos de utilização de cartões de crédito que mantinha com o banco, excepcionou que, no relacionamento com este, o mesmo omitiu o dever de informação (extractos) que documentassem os saldos credores que contabilizava, que, por isso, impugna; impugna também, por desconhecimento, a cedência do crédito que a autora pretende exercitar.

Depois da audiência final foi proferida sentença com a seguinte decisão final: “pelo exposto, julgo improcedente, por não provada, a acção, de que absolvo o réu.”

A autora recorre desta sentença, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões (com alguma síntese feita por este acórdão do TRL):      

1.-A carta de notificação da cessão faz prova cabal da inclusão do aludido crédito em determinado contrato de cessão, uma vez que a aludida carta identifica a data de cessão, a operação cedida e é uma declaração que se mostra assinada quer pelo cedente quer pela cessionária.

2.-O tribunal a quo entendeu dar como provada a recepção por parte do réu desta carta, pelo que existe prova suficiente da inclusão do crédito titulado pelo réu no contrato de cessão de créditos celebrado entre a autora e o B-PLC em 30/08/2013.

3.-Caso tal não se entenda, no que diz respeito à prova da cessão de créditos, deveria o tribunal a quo ter entendido que a notificação da cessão, até ao cumprimento, poderá ser realizada, por qualquer via, ao devedor, nomeadamente através da citação no processo em que é reclamado o pagamento da dívida cedida.

4.-Deve, pois ordenar-se ao tribunal a quo que profira sentença conforme o disposto no art. 583 do CC.

5.-Ainda que assim não se entenda, concluindo o tribunal a quo pela falta de legitimidade da autora – que é uma excepção dilatória -, deveria o tribunal a quo ter proferido sentença a absolver o réu da instância.

O réu não contra-alegou.

*

Questões que importa decidir: se está provada a cessão de créditos do banco para a autora e se, em consequência, a acção devia ter sido julgada procedente; e, no caso contrário, se a sentença deve ser corrigida para uma de absolvição da instância e não do pedido.

*

Foram dados como provados os seguintes factos:

A)–Em 23/05/2007, o B-PLC, instituição financeira no exercício do seu comércio, e o réu celebraram – com o teor do doc. junto a fls. 104/105, contrato de cartão de crédito “b”, a que foi atribuído o nº 000 havendo aquela disponibilizado ao réu as facilidades de crédito a que se obrigara para com este.

B)–Em 05/06/2008, a C-PLC, instituição financeira no exercício do seu comércio, e o réu celebraram – com o teor do doc. junto a fls. 107/108 - o contrato de cartão de crédito “c”, a que foi atribuído o nº 111, havendo aquela disponibilizado ao réu as facilidades de crédito a que se obrigara para com este.

C)–Em data anterior a Dezembro de 2009, o B-PLC adquiriu a C-PLC, os créditos emergentes da relação provada em B.

D)–Em Outubro de 2009, o réu utilizou pela última vez o cartão de crédito do contrato A, e então a sua posição devedora era de 1623,48€.

E)–Em Dezembro de 2009, o réu utilizou pela última vez o cartão de crédito do contrato B/C, e então a sua posição devedora era de 4233,25€.

F)–Posteriormente a Outubro 2009 e a Dezembro de 2009, o réu fez pagamentos, para amortização da sua posição devedoras em ambos os contratos (A e B/C).

G)–Em 30/08/2013, B-PLC e a autora, acordaram, respectivamente como vendedor e comprador “[…] 2. Cessão de carteira de empréstimos 2.1. O vendedor cede por este meio ao comprador os activos enumerados no anexo 3 do presente contrato, com plena propriedade, garantia e livre de ónus, encargos e responsabilidade, incluindo: […]” (pública forma do contrato em língua inglesa de fls. 74 a 103 e certificado de tradução de fls. 43 a 73).

H)–O documento G não integra anexos, designadamente o anexo 3 que refere.

I)–Com data de 10/10/2013, B-PLC e a autora emitiram e remeteram ao réu, que a recebeu, a seguinte comunicação: pela presente, vimos notificar V. Exa. nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 583 do Código Civil, que a 30/08/2013 foi celebrado um Assignment Agreement (Contrato de Cessão de Créditos) ("Contrato") entre o B-PLC, actuando através da sua sucursal em Portugal ("cedente") e a [autora] ("cessionária"), pelo qual a cedente cedeu e a cessionária adquiriu, todos os créditos, incluindo capital, juros, indemnizações e quaisquer outras obrigações pecuniárias, emergentes das operações abaixo identificadas, sobre V. Exa. ("Créditos cedidos"), que são as relações provadas em A e B/C, e que por isso futuros pagamentos só deveriam ser feitos à segunda (fl. 109); dizia-se ainda qual o valor alegadamente em dívida à data da cessão (11.384,19) [fl. 109 – deu-se nova redacção à alínea para a pôr mais de acordo com o teor do documento que serviu para prova do facto]

*

Da impugnação da decisão da matéria de facto

As conclusões 1 e 2 do recurso traduzem-se numa impugnação da decisão do tribunal recorrido de dar como não provado que:

O B-PLC vendeu à autora, os créditos emergentes das relações ajuizadas entre o B-PLC e o réu.

A fundamentação para esta decisão foi a seguinte:

No concernente à documentação “cessão de créditos” o provado baseia-se nos documentos referidos em G e H, e é a deficiência desta documentação provada nesta última alínea, o fundamento da factualidade não provada.

A autora, como se vê, vem dizer que a comunicação provada em I faz prova cabal deste facto.

Mas tal comunicação, que realmente revela que o cedente (B) e o cessionário (autora) estão de acordo em considerarem que o contrato junto aos autos abrange a dívida do réu, é irrelevante, pois que não prova que assim seja. Essa seria uma conclusão a tirar através da apreciação do contrato com os seus anexos.

Aceita-se que o reconhecimento de direitos, como factos, num processo, pode resultar do acordo/admissão das partes, mas do acordo/admissão das partes no processo – no caso: autora e réu – não do acordo de uma das partes com um terceiro.

Em suma, o documento em que a autora e um terceiro dizem que houve cessão de créditos, não é prova suficiente, num processo contra o devedor, de que tenha de facto existido o contrato ou que o contrato invocado abranja a dívida do réu. Ele faz apenas prova de que a autora e o terceiro fizeram as declarações que o consubstanciam (art. 376/1 do CC), não que elas correspondam à realidade e que, para além disso, sejam certas.

*

No corpo das alegações a autora diz que (com alguma síntese feita por este ac.):

Sendo certo que a autora e cedente comunicaram ao réu, por carta, que o B havia cedido à autora os créditos que detinha sobre o réu, claramente se conclui, que “tal comunicação é suficiente para que a mencionada cessão produza os seus efeitos, em relação ao réu, uma vez que do disposto no art. 583/1 do CC não se retira que haja obrigatoriedade por parte do cedente e cessionário na remessa ao devedor de cópia do contrato de cessão”; neste sentido leia-se o acórdão do STJ de 01/06/2000, rev. n.º 407/00, sumários 42, no qual apenas se exige o conhecimento da cessão por parte do devedor; e o ac. do TRL de 24/04/2008, processo 2360/2008-6: “Seja como for, são de excluir do círculo dos meios de defesa oponíveis pelo devedor, as circunstâncias que digam respeito à causa da cessão, pois que estas interessam apenas às relações entre cedente e cessionário. Nesta medida serão irrelevantes para o devedor os vícios do contrato de cessão. Tolera-se apenas que o devedor, sob pena de poder vir a satisfazer o crédito a dobrar, se inteire da real existência da cessão”. Ora, a carta remetida para o réu a notificá-lo da cessão é uma declaração conjunta assinada por cedente e cessionária, dela constando a informação supra transcrita, pelo que existe prova suficiente da inclusão do crédito titulado pelo réu no contrato de cessão de créditos celebrado entre a autora e a cedente em 30/08/2013.

Mas estes são argumentos de direito que têm a ver com a alegada desnecessidade de dar a conhecer ao devedor o contrato que produziu a cessão de créditos, a ser considerados noutra parte.

Por fim, é também irrelevante tudo aquilo que a autora diz, no corpo das alegações, sobre o depoimento da mulher do réu e do que o réu teria dito em depoimento de parte, porque nenhum deles, nomeadamente este, que é o que importa por ser ele o réu, reconheceu a existência da cessão.

*

Do recurso sobre matéria de direito

A sentença recorrida teve a seguinte fundamentação:

“Pressuposto substantivo da procedência da acção, enquanto a autora não é assumidamente titular originária dos créditos cujo pagamento peticiona, é que a mesma seja beneficiária da cessão dos mesmos que invoca. E como essa cessão não se prova […] haverá que concluir pela improcedência da acção.”

Assim, desde logo, não se trata de dizer que a autora é parte ilegítima neste processo. Ou seja, não se trata da procedência de uma excepção dilatória, que deva levar à absolvição da instância, como a autora pretende subsidiariamente no recurso.

Por outro lado, a decisão corresponde à lógica das coisas: é titular do direito a pessoa em cuja esfera jurídica ele se constituiu ou a pessoa para cuja esfera jurídica ele foi transmitido depois de constituído. Neste caso, aquele que invoca a transmissão, tem que a provar (art. 342/1 do CC), sob pena de não se poder considerar como titular do mesmo.

Ora, invocando a autora um contrato escrito de venda de dívida como causa daquela transmissão (arts. 577/1 e 578/1, ambos do CC), tem logicamente de provar que a dívida em causa engloba a dívida do réu. Não se podendo retirar tal conclusão do contrato em causa, não se pode concluir que a autora é titular do crédito, porque não se prova que ele tenha sido transmitido.

A necessidade de prova da existência do contrato resulta pois do que antecede, e tem um paralelo claro no incidente de habilitação do adquirente, onde se lhe impõe que prove a existência do contrato, através da junção ao requerimento do título da cessão, se ela não tiver sido feita, no sentido de celebrada, por termo lavrado no processo (art. 356/1-a do CPC).

Assim sendo, não tem nada a ver com a oponibilidade, ou não, das excepções relativas à relação entre o cedente e o cessionário, pelo devedor. A questão da oponibilidade das excepções, é diferente e não tem implicações na da existência do contrato de cessão. Este tem sempre de ser demonstrado.

Daí que, o ac. do TRL, invocado pela autora, apesar de dizer o que foi acima transcrito pela autora, também diga: “No que tange à validade formal ou material do acto de cessão ou de transmissão […] a sentença recorrida dá resposta cabal. Com efeito, refere a sentença que ”da cópia certificada do documento particular de cessão de créditos celebrado em 30/09/2005, junta pela requerente aos autos de fls. 91 a 170, resulta cabalmente as condições e os termos em que a referida cessão foi realizada, a qual consubstancia uma cessão global de créditos, e não apenas do crédito dos aqui executados, o qual vem expressamente indicado no Anexo 3 e a fls. 133 e 170 dos presentes autos.” [o sublinhado foi colocado agora].

O que, como decorre da fundamentação da sentença recorrida e dos factos provados [alínea H], é o contrário do que acontece nos autos.

Quanto ao invocado ac. do STJ de 01/06/2000, de que se conhece apenas o sumário, este diz o seguinte:

“I–Nos termos do art. 583 do CC, tendo o réu recebido as facturas com indicação da entidade a quem as devia pagar, ficou notificado da cessão de créditos.

II–Sendo esta cessão, particularmente no caso do contrato de factoring, uma forma de serviço de cobrança, anunciada ao devedor em cada factura, não é de considerar procedente a invocação por este de não ter sido notificado para pagamento dessas facturas.

III–Esta notificação é o acto de levar a cessão ao conhecimento do obrigado, o que pode ser feito «por simples declaração negocial nos termos do art. 217 do CC», bastando até o simples «conhecimento da cessão» - art. 583/2 do CC.”

Isto é, sabe-se, pelo menos que, no caso desse acórdão, estava em discussão uma questão diferente, que era a alegação, pelo devedor, de não ter sido notificado para pagamento das facturas.

Em anotação à norma do art. 356/1 do CPC, dizem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre que “o correspondente artigo 381 do CPC de 1939 limitava-se, na falta de oposição, a impor ‘a validade da transmissão segundo o seu objecto e a qualidade das pessoas que nela intervieram’ […] em vez da verificação de que ‘o documento prova a aquisição ou a cessão’, o que levava Alberto dos Reis […] a fazer a interpretação extensiva do preceito, de modo a abranger também os casos de ‘nulidade extrínseca ou formal’ e de ‘inexistência da cessão ou transmissão’” (CPC anotado, 1.º vol., 3.ª edição, Coimbra Editora, 2013, pág. 692). E a seguir (pág. 693) lembram que “na contestação, pode ser impugnada a validade do acto, com qualquer fundamento de nulidade ou de anulabilidade da lei substantiva […] e o tribunal conhece oficiosamente dos fundamentos de nulidade que não hajam sido alegados, mesmo não havendo contestação […]”.

O mesmo diz Luís Menezes Leitão:“Efectivamente, está em causa uma transmissão de um direito e no nosso sistema, não apenas a invalidade do negócio afecta a transmissão, como também a nulidade pode ser invocada por qualquer interessado (art. 286 do CC), onde naturalmente se inclui o devedor […]” (Cessão de Créditos, Almedina, 2005, nota 19, nas págs. 291/292).

Em suma, invocando como fonte da titularidade do direito um dado contrato, a autora tem que o provar. Não se provando que o contrato invocado tenha abrangido o direito em causa, fica por provar a existência de um contrato que tenha transmitido o direito. E, assim sendo, não lhe pode ser reconhecida a titularidade do direito que pretende exercitar no processo.

Dito de outra perspectiva, o devedor e o tribunal têm que ter acesso ao contrato, como prova da sua existência e para poderem apreciar a sua validade formal ou qualquer outro fundamento de nulidade da lei substantiva (e, naturalmente, também, o eventual abuso de direito).

Tudo isto não se confunde com a questão da notificação da cessão de créditos, porque esta é uma questão posterior. Se nem sequer se prova a existência da cessão, não tem sentido estar a discutir a notificação de algo que não se sabe se existiu.

Não têm, pois, interesse, todos os restantes acórdãos invocados pela autora, em defesa da sua argumentação, podendo, pelo contrário, ser usados contra ela, tendo em conta o que se disse acima; assim, por exemplo, o ac. do TRL de 1712/2014, proc. n.º 938/7YXLSB.L1-8, nos termos invocados pela autora [mas o sublinhado foi colocado aqui]: “Demonstrados os factos constitutivos da existência do crédito e da cessão do mesmo, e nada impedindo que os efeitos dessa cessão em relação ao devedor sejam exercidos judicialmente, produz a mesma efeitos, independentemente de não ter sido feita prova da notificação prévia, com a sua alegação em sede de petição inicial e a citação efectuada nos autos.”

*

Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.

Lisboa, 28/09/2017

Pedro Martins

Arlindo Crua

António Moreira