Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1636/13.5TBOER.L1-7
Relator: GRAÇA AMARAL
Descritores: PROVA TESTEMUNHAL
SOCIEDADE
RESPONSABILIDADE CIVIL
EXTRACONTRATUAL
RESPONSABILIDADE DOS SÓCIOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/13/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I– A prova do acto de penhora de contas bancárias carece de ser demonstrada por documento, mostrando inidóneo, para tal efeito, o depoimento testemunhal se desacompanhado de documento próprio que o suporte.
II– A administração de uma sociedade pressupõe o exercício de um poder dever que compreende a tomada e execução de decisões empresariais que, a serem consideradas ilícitas, podem determinar a sujeição dos administradores em demandas do âmbito de várias jurisdições (penal, tributária, contra-ordenacional e civil).
III– O artigo 78.º, n.º1, do CSC, reportando-se à responsabilidade civil directa dos administradores da sociedade para com os credores sociais, delimita a ilicitude do comportamento através de uma cláusula geral - violação dos deveres prescritos em disposições legais ou contratuais destinadas à protecção dos credores -, que cumpre à doutrina e jurisprudência concretizar.
IV– A protecção dos credores a que alude o preceito tem a ver com normas que visem a protecção dos seus interesses. Embora os interesses dos credores sejam, em grande parte, dimensionados pela preservação do património do devedor, a responsabilidade directa para com os credores sociais prevista em tal normativo não pode ser confundida quer com a responsabilidade da própria sociedade, quer com o dever de cumprimento do administrador para com o credor de uma obrigação da sociedade.
V– Só ocorrerá responsabilização directa do administrador se a inobservância das normas de protecção determinar uma diminuição do património social (o dano directo na sociedade), diminuição que o torne insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos (dano indirecto dos credores sociais).
VI– A insuficiência a ter em conta para o efeito terá de se caracterizar por uma diminuição do património social em montante que comprometa a viabilidade da cabal satisfação dos direitos dos credores.
VII– A responsabilidade prevista no artigo 78.º, do CSC, não obstante pressupor a inobservância de normas de protecção, não permite a aplicação analógica da presunção de culpa do artigo 799.º, do Código Civil. Consequentemente, demonstrada a infracção da norma, cabe ainda ao lesado provar a culpa do administrador.
VIII– O incumprimento de obrigações decorrentes de contratos celebrados entre a sociedade e terceiros não envolve, em princípio, responsabilidade directa do administrador para com aqueles.
IX-- O artigo 64.º, do CSC, contempla normas de conduta incompletas que operam que, por si só, não são violáveis, em termos de responsabilidade civil.
X-- A conduta dos administradores será ilícita para com os credores sociais ao abrigo do artigo 79.º, do CSC, quando, no exercício das suas funções, violem: direitos absolutos dos credores; normas legais de protecção destes ou deveres jurídicos específicos.
XI– Os danos a ter em conta ao abrigo do referido preceito são apenas os que ocorrerem sem interferência da sociedade, ainda que na conduta ilícita o administrador tenha invocado a representação da sociedade.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


I - Relatório.


Partes:
L, SA (Autora/Recorrente)
F, M e C (Réus/Recorridos)

Pedido.
Pagamento de €2.704.648,69 (sendo €1.759.397,85, de capital e €945.250,84 de juros) referentes às quantias recebidas e não entregues à Autora nos termos contratualmente assumidos.

Fundamentos.
- Ter celebrado com a Ss, SA, em 12 de Junho de 2007, um contrato de domiciliação de serviços para cobrança de facturas, através do qual a S se comprometia a disponibilizar estabelecimentos para cobrança de facturas da Autora e elaboração de contratos, sendo atribuída à S uma comissão por cada domiciliação;
- terem os Réus, em 2008 e enquanto Administradores da S, decidido incorporar no seus património e desta sociedade as verbas relativas a pagamentos recebidos de clientes da Autora e que até à data não entregaram, no montante total de €1.759.397,85.
- constituir tal decisão dos Réus - incorporar no seu património e da S verbas que lhe pertenciam - a prática de um crime continuado de abuso de confiança, fazendo-os incorrer, enquanto administradores, em responsabilidade civil pelos prejuízos causados.

Contestação.
Os Réus excepcionaram a ilegitimidade da Autora, a incompetência material do tribunal, a prescrição do direito da Autora e abuso do direito por parte desta ao propor a presente acção. Concluem pela improcedência da acção impugnando a factualidade articulada na petição.

Em resposta a Autora defende a improcedência das excepções, mantendo o posicionamento assumido na petição.

A Autora apresentou articulado superveniente (fls. 1152 e segs) no qual alegou que no decurso do julgamento do processo criminal tomou conhecimento de que durante todo o período em que ocorreram os factos ilícitos os Réus F, M, e C, agiram sempre como administradores da S, primeiramente de facto e posteriormente de direito, sendo por isso responsáveis pela integralidade dos danos sofridos pela Autora; nessa medida, desistiu do pedido formulado contra os Réus A, P, J, P e R.

Homologada por sentença a desistência do pedido foi realizada audiência prévia (fls. 1015 a 1018), tendo sido proferido despacho saneador que julgou improcedentes as excepções de incompetência material, ilegitimidade activa.

Sentença.
Julgou a acção improcedente, absolvendo os Réus do pedido e a Autora do pedido de litigância de má fé.

Conclusões do recurso (transcrição).
a. Vem o presente recurso interposto da douta sentença que julgou a presente acção totalmente improcedente e, em consequência, absolveu os Réus F, M e C, (RR) do pedido formulado pela Autora (A).
b. O objeto do litígio da presente ação (no que ao presente recurso diz respeito) compreende “A gestão de facto e de direito da S em 2007 e 2008 e a responsabilidade pessoal dos RR pela não entrega à Autora de quantias recebidas pela S em seu nome”.
c. A douta sentença recorrida concluiu que versando a ação o apuramento da responsabilidade dos RR, enquanto administradores da S, no facto ilícito correspondente ao crime de abuso de confiança, e não se tendo provado factos que integram este crime nos termos da ação criminal que correu os seus termos pelo Tribunal Criminal de Oeiras, soçobra qualquer responsabilidade civil dos RR com base nesse facto ilícito.
d. Este entendimento não é sufragável face aos factos dados como provados pela própria sentença.
e. A recorrente imputou a responsabilidade civil dos RR na qualidade de administradores da S na sequência da não devolução dos valores pagos pelos clientes da recorrente à S ao abrigo do contrato de domiciliação de serviços para cobrança de faturas, outorgado em 12.06.2007, através do qual a S se comprometeu a disponibilizar os seus estabelecimentos para cobrança de facturas da recorrente e elaboração de contratos.
f. Os factos mencionados em 27, 28 e 29 da matéria de facto não podiam ter sido dados como provados.
g. De acordo com a douta sentença recorrida, tais factos foram provados com fundamento no depoimento da testemunha S, ex-funcionária da S.
h. Os factos em causa apenas poderiam ser provados através de documentos que comprovassem a efetivação de penhoras de contas bancárias da S nas quais se encontrassem depositados os valores pertencentes à recorrente.
i.Não foram juntas aos autos quaisquer documentos comprovativos de quaisquer penhoras, fossem elas quais fossem, e, consequentemente, não foi feita prova dos valores pertencentes à recorrente se encontrarem abrangidos por tais contas.
j. O depoimento da testemunha S apenas alude a “cartas do banco”, e não a quaisquer documentos judiciais comprovativos da realização de tais penhoras.
k. Os factos constantes dos pontos 27, 28 e 29 da matéria de facto provada devem ser dados como não provados.
l. De acordo com a douta sentença recorrida, todos os RR desempenharam em momentos diversos funções de administração na sociedade S, determinando a formação de vontade da mesma, sendo que o R F exerceu ainda as funções de Director Geral Financeiro da S entre Março de 2007 e Setembro de 2008, cabendo a todos os RR a gestão corrente da sociedade (n.º 3, 8, 23, 34, 39 e 40 dos factos dados como provados na douta sentença recorrida).
m. Entre Março de 2007 e Setembro de 2008 os RR exerceram assim a gestão corrente da S, assumindo a administração de facto da mesma, pese embora durante este período a sociedade não ter tido administradores de direito nomeados.
n. A partir de Abril de 2008, ou seja, durante a administração de facto dos RR, a S deixou de transferir os pagamentos recebidos dos clientes da A no âmbito do contrato de prestação de serviços de 12.06.2007, cujo montante total ascendeu no final do ano de 2008 a € 1.759.397,85 (n.º 21 e 22 dos factos provados).
o. Os RR na sua qualidade de administradores de facto não podiam desconhecer a existência/desvio dos valores referidos, os quais, tendo em conta o seu montante, tiveram impacto muito significativo nos fluxos mensais da S.
p.  Sem os fluxos financeiros provenientes dos valores pagos pelos clientes da recorrente, não seria possível à S sobreviver, tendo em conta as dificuldades por que ela passava, e que acabaram por conduzir à declaração da sua insolvência.
q. Os RR tinham assim conhecimento do recebimento pela S de valores que não lhe pertenciam, antes eram propriedade da recorrente.
r. Sem a autorização dos RR, não poderia ter acontecido o desvio dos valores dos montantes devidos à L.
s. Mesmo após a nomeação dos RR como administradores de direito da S em Setembro de 2008, esta sociedade continuou a não devolver à recorrente os valores recebidos até Dezembro de 2008, no montante total de €396.486,46 (n.º 30 da matéria de facto provada).
t. Ficou expressamente dado como não provado na douta sentença recorrida (al. b), p. 13), que o não recebimento dos valores em causa se tenha ficado a dever a qualquer facto imputável ou da responsabilidade da L.
u. Os RR na qualidade de administradores de facto da S provocaram danos à recorrente, traduzidos na não entrega dos montantes recebidos dos clientes da recorrente pela S.
v. No âmbito da responsabilidade civil aquiliana, o que está em causa é o procedimento dos RR traduzido na ausência de quaisquer procedimentos ou ordens no sentido de evitar que os valores recebidos pela S, pertencentes à L, não tivessem sido abusivamente retidos pela empresa que dirigiam.
w. O argumento dos RR segundo o qual nunca tiveram conhecimento de tais movimentos financeiros é de todo incongruente, sendo que o R F, para além das funções de gestão que desempenhava na sociedade, foi durante todo o ano de 2007 e 2008 Director Geral Financeiro da sociedade, pelo que não poderia deixar de ter conhecimento dos movimentos financeiros originados pelo contrato outorgado em 12.06.2007.
x. De acordo com a douta sentença recorrida, não ficou provado que os RR tenham ocultado ou tentado ludibriar a L relativamente às quantias recebidas ou emanado ordens ou instruções com vista à retenção das quantias e à sua afetação a dívidas da S.
y. Trata-se de entendimento que foi expresso pelos RR no pressuposto de eles nunca terem sido administradores de facto da sociedade entre Março de 2007 e Setembro de 2008, o que se veio se veio a demonstrar não corresponder à verdade, pois, conforme consta dos nºs 39 e 40 dos factos provados, os RR asseguraram durante tal período a administração de facto da S.
z. Feita esta prova, cabia aos RR demonstrar que o desvio devido à retenção ilícita dos montantes pertencentes à L não se devia à sua responsabilidade, mas sim a factos extraordinários sobre os quais eles não tivessem domínio ou controlo.
aa. A douta sentença recorrida assim não entendeu, não tendo sequer considerado e admitido esta circunstância de todo relevante e decisiva para a afirmação da responsabilidade dos RR.
bb. A douta sentença recorrida não retirou pois as devidas e necessárias consequências da prova realizada.
cc. Sem os fluxos financeiros provenientes dos valores pagos pelos consumidores/clientes da A, não seria possível sequer à S sobreviver, nomeadamente no que concerne à assunção de responsabilidade básicas, como sejam o pagamento de remunerações e demais encargos fiscais e com a segurança social, ou seja, os RR, decorrente de todo o circunstancialismo referido, tomaram inequívoco conhecimento de que estavam a ser recebidos pela S valores de importância muito significativa que não lhe pertenciam.
dd.O entendimento do tribunal recorrido acerca da responsabilidade decorrente dos artigos 78.º e 79.º do Código das Sociedades Comerciais, segundo o qual não tendo sido feito prova da prática do crime de abuso de confiança imputado aos RR no tribunal criminal, no âmbito do processo crime que aí correu os seus termos, não seria possível provar esses factos em sede de responsabilidade civil por via de factos ilícitos praticados pelos mesmos RR, não é adequado face à prova produzida e ao enquadramento jurídico desta questão, nomeadamente, no que concerne ao enquadramento da excepção de prescrição referida pela douta sentença recorrida.
ee. Conforme o decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 03.02.2011, proferido no âmbito do processo n.º 1228/07.8TBAGH.L1.S1, para que seja aplicável o prazo de prescrição mais longo, em sede de responsabilidade civil, basta que os factos geradores de responsabilidade civil alegados pelo autor sejam subsumíveis a um ilícito criminal, ainda que não tenha existido procedimento criminal ou tendo este existido, o seu desfecho tenha sido o arquivamento ou uma decisão absolutória.
ff. Os factos alegados pela recorrente na petição inicial e no articulado superveniente imputados aos RR, não deixaram de ser subsumíveis ao crime de abuso de confiança agravado cujo prazo de prescrição é de dez anos (artigos 205.º, n.º 1 e 4, b) e 118.º, n.º 1, b), do Código Penal).
gg. Acresce que nos termos do disposto no artigo 624º do N.C.P.C., a decisão penal absolutória constitui nas acções de natureza civil simples presunção legal da inexistência desses factos, ilidível mediante prova em contrário, prevalecendo contudo sobre quaisquer presunções de culpa estabelecidas na lei civil.
hh. A recorrente ficou lesada nos seus direitos devido ao facto de os RR na sua qualidade de administradores de facto e de direito da S não terem providenciado e assegurado a entrega à L dos valores cobrados pela S, propriedade da ora recorrente.
ii. Trata-se de responsabilidade de natureza delitual dos RR na invocada qualidade de administradores de facto e de direito da S.
jj. O que tudo difere da situação decorrente do incumprimento de um qualquer crédito da L sobre a S.
kk.  Os RR, na sua qualidade de administradores de facto e de direito da S, tinham a obrigação de, tendo em conta a periclitante situação económico-financeira da S, de providenciarem no sentido de as quantias cobradas/recebidas dos clientes da L serem afectas a contas bancárias que permitissem salvaguardar os direitos da L, ora recorrente. Não só isso não se passou como os próprios RR sustentaram que tal dever até deveria pertencer à L.
ll. Contrariamente ao referido na douta sentença recorrida (p. 27) verificou-se uma relação directa entre a actuação dos RR, na qualidade de administradores de facto e de direito da S, e o dano sofrido pela L ora recorrente, pelo que é de aplicar o artigo 79.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais, pois não se tratou de uma mera incúria na gestão da S, mais ou menos negligente, mas de algo que implica uma responsabilização pessoal e directa dos RR na qualidade de administradores de facto e de direito da S, pois os RR foram os responsáveis directos pela não entrega/devolução dos montantes pertencentes à L.
mm. Os RR conviveram e aceitaram a situação de tal utilização abusiva pela S pelos valores pertencentes à L enquanto a própria L não se apercebesse em toda a linha de tal situação.
nn. Os RR souberam exactamente da utilização que foi feita pela S de tais valores em proveito próprio para que quando confrontados que foram com a mesma, nomeadamente em Dezembro de 2008, afirmarem então que a desconheciam, pelo que se dispuseram então a assumir a mesma, ainda que invocando o seu desconhecimento pretérito e propondo-se outorgar um “acordo de pagamento em prestações”.
oo. A ingenuidade de que se quer prevalecer tal entendimento/estratégia não pode, nem deve, ser sufragada pelo direito, e muito menos que razões e critérios meramente operacionais poderão servir para desresponsabilizar quem de facto tinha o controlo da gestão, nomeadamente financeira da S para passar tal responsabilidade para um qualquer subordinado a quem competisse efectuar meras operações informáticas de transferências de capitais.
pp. Trata-se de um verdadeiro embuste, que em caso algum, também não pode ser aceite, nem tolerado, encontrando-se pois demonstrado que o dano sofrido pela L, traduzida na não entrega/devolução de €1.759.397,85, foi directamente causado pelos RR.
qq. Padece, pois, a douta sentença recorrida de erro de julgamento, por violação do disposto nos artigos 483.º, n.º 1 e 498.º, n.º 3, do Código Civil, nos artigos 78º e 79º do Código das Sociedades Comerciais, bem como nos artigos 205.º, n.º 1 e 4, b) e 118.º, n.º 1, b), do Código Penal.
rr. Dado os factos provados pela douta sentença demonstrativos da administração de facto dos RR entre Março de 2007 e Setembro de 2008, a douta sentença não poderia ter concluído pela falta de responsabilidade dos RR e, consequentemente, pela sua absolvição, o que tudo determina a nulidade da sentença nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, c), do CPC.

Não foram apresentadas contra alegações.

II - Apreciação do recurso.

Os factos:
O tribunal a quo deu como provado a seguinte factualidade :
1. A Autora é uma sociedade comercial que se dedica, entre outras actividades, ao fornecimento de gás natural canalizado (artigo 1.º da petição.).
2. Por força das alterações legislativas referentes ao mercado de gás natural introduzidas pelo DL n.º 140/2006, de 26/06, e legislação conexa, a Autora sucedeu à G, S.A. (adiante designada GDL) em todos os seus direitos e obrigações referentes à comercialização de gás natural (artigo 2.º da petição.).
3. Todos os RR desempenharam, em momentos diversos, funções de administração na sociedade S, S.A., com sede Carnaxide, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Cascais sob o número único de matrícula e de pessoa colectiva n.º  com o capital social de €5.000.126,00 (cinco milhões e cento e vinte e seis euros) sociedade que se dedicou, até à sua declaração de insolvência, à actividade de comercialização de produtos eléctricos, electrónicos, informáticos, telecomunicações, entretenimento, discografia, livros, artigos de papelaria, eventos culturais e recreativos e actividades complementares conexas (adiante designada S), pelo que determinaram a formação da vontade da mesma nos factos infra descritos através da sua participação nos respectivos órgãos sociais colegiais (artigo 3.º da petição.).
4. Aquando da constituição da sociedade, em 1985, foram designados como administradores da S os RR A (presidente), P, J, P e R (todos vogais) (artigo 4.º da petição.).
5. Através da apresentação 22/20070516, foi registada a renúncia dos administradores A, J e R, ocorridas, respectivamente, nas datas de 27, 12 e 7 de Março de 2007 (artigo 5.º da petição.).
6. A referida apresentação foi rectificada, passando a constar da mesma igualmente a renúncia do administrador P, ocorrida a 7 de Março de 2007 (artigo 6.º da petição).
7. Através da apresentação , foi registada a renúncia do administrador P, ocorrida a 23 de Junho de 2003 (artigo 7.º da petição.).
8. Após as renúncias a S ficou sem administradores de direito, até que em 22/10/2008 foi registada a designação dos RR F, M e C, para o desempenho de funções de administração, o primeiro como presidente do concelho de administração e os demais como vogais, em resultado de deliberação tomada em 26 de Setembro de 2008, funções exercidas até 24 de Julho de 2009, data em que todos renunciaram a esse cargo (artigos. 8.º e 10.º da petição. e 53.º da contestação).
9. No exercício da sua actividade comercial, em 12 de Junho de 2007, a GDL celebrou com a S, representada pelo seu director comercial E, um contrato de domiciliação de serviços para cobrança de facturas, recepção de reclamações e elaboração de contratos, junto à petição como doc. nº2, a fls. 35 e segs., e que se dá por inteiramente reproduzido (artigos. 14.º e 19.º da petição , e 1.º e 61.º da contestação).
10. No âmbito deste contrato, a S comprometia-se a disponibilizar estabelecimentos, a favor da A., aí lhe prestando serviços de cobrança de facturas, recepção de reclamações, elaboração de contratos e mostra de portfolios dos produtos e serviços da A. aos consumidores (artigo 15.º da petição).
11. Por cada domiciliação, era atribuída uma comissão à S, nos termos do Anexo do referido contrato (artigos. 16.º da petição e 62.º da contestação).
12. Em 02 de Janeiro de 2008, a GDL cedeu a sua posição contratual à GDP com o consentimento da S, mediante contrato junto à petição como doc. nº 3, a fls. 55 e 56, e que se dá por inteiramente reproduzido (artigos 20.º da petição., 2.º e 3.º da contestação).
13. A GDP passou a prestar à A. um serviço de gestão do aludido contrato e, nessa medida, passou a representar a A. na execução do mesmo (artigo 17.º da petição.).
14. Em 31 de Março de 2008 a GDL, pessoa colectiva n.º, cedeu a sua posição contratual nos contratos de fornecimento por si celebrados à A., L  S.A. mediante contrato de cessão de posição contratual e cessão de créditos junto à petição como doc. nº 3, a fls. 57 e segs., e que se dá por inteiramente reproduzido, nos termos do qual a GDL também cedeu à Autora os créditos emergentes dos contratos de fornecimento cuja posição contratual foi cedida (artigo 4.º da contestação).
15. Os pagamentos que a S recebia dos clientes da Autora continuaram a ser pagos à Autora ainda que por via da GDP (artigo 18.º da petição).
16. A forma prática como a operação de domiciliação das facturas se desenrolava era a seguinte: os valores eram recebidos nas lojas S, processados via informática e assim disponibilizados à L, através de um interface (artigo 64.º da contestação).
17. O sistema informático de suporte implementado para operar o serviço, bem como, o interface utilizado eram os oferecidos pela A. (artigo 65.º da contestação).
18. No final de cada semana, os valores cobrados aos clientes eram apurados através do sistema e enviados à L (artigo 66.º da contestação).
19. Até Março/Abril de 2008 tudo decorreu com normalidade, até que, a partir desta data, a Autora tomou conhecimento de que a S não tinha transferido pagamentos recebidos dos clientes da A. no âmbito do aludido contrato de prestação de serviços em valor acumulado superior a €600.000,00 (artigos 67.º da contestação, em parte, e 21º da petição em parte – resposta explicativa).
20. Apesar de a S continuar a receber os valores dos clientes da Autora que lhe pertenciam, tais valores não foram na íntegra devolvidos à Autora (artigo 22.º da petição em parte).
21. O valor dos pagamentos recebidos de clientes da A. pela S em 2008, não transferidos para a Autora, ascendeu ao montante total de €1.759.397,85 (um milhão setecentos e cinquenta e nove mil trezentos e noventa e sete euros e oitenta e cinco cêntimos), distribuídos em diferentes valores ao longo dos meses (artigo 24.º da petição em parte e 74.º da contestação).
22. Face ao exposto, foi solicitada uma reunião com a S, a qual teve lugar no dia 12 de Dezembro de 2008, dando origem a um processo negocial, que acabou por se revelar infrutífero (artigos 25.º da petição e 38.º da contestação).
23. Em Dezembro de 2008, a L interpelou a S para proceder ao pagamento de valores em atraso referentes aos meses de Abril, Maio, Junho, Setembro e Outubro de 2008, no valor, respectivamente, de €449.526,85, €568.984,05, €126.406,58, €285.129,20, e €329.351,17, perfazendo o valor global de €1.759.397,85 (artigos 59.º, 1º parte, e 68.º da contestação).
24. Mediante tal facto os RR prontificaram-se para colaborar e averiguar quais as causas de tais divergências, tendo dado instruções internas para que de imediato se procedesse à conferência de movimentos (artigo 69.º da contestação).
25. Tarefa que se afigurou de dificuldade acrescida, uma vez que o sistema operativo implementado não previa a existência de contas autónomas para estes recebimentos (artigo 72.º da contestação).
26. A S encontrava-se numa difícil situação económica e financeira e a laborar enquadrada num PEC (Plano Extra-Judicial de Conciliação de Credores) que havia sido aprovado em Julho de 2008 (artigo 71.º da contestação).
27. No decurso do PEC as entidades bancárias com quem a S trabalhava decidiram unilateralmente reduzir, em 50%, os plafonds da S, impedindo-a ter o controlo efectivo dos acervos das suas contas, para onde também eram alocados os recursos provenientes dos pagamentos efectuados no âmbito do contrato com a L (artigo 95.º da contestação).
28. Nessas reduções foram atingidos valores pertencentes à L e que a S deixou de poder dispor (artigo 97.º da contestação).
29. No ano de 2008 as contas bancárias da S onde também eram depositados os pagamentos feitos à Autora foram alvo de penhoras (artigo 98.º da contestação) .
30. A evolução dos valores entregues à L e respectivos saldos acumulados é a que consta do seguinte quadro:
Cobrança Valor entregue Saldo
Dez-2007 - €665,75
Jan-08 - €671.176,78 €510.050,66 €161.791,87
Fev-08 - €348.929,12 €315.589,70 €195.131,29
Mar-08 - €618.083,56 €226.905,63 €586.309,22
Abr-08 - €1.059.177,33 €945.914,83 €699.571,72
Mai-08 - €592.667,30 €273.062,91 €1.019.176,11
Jun-08 - €537.799,38 €39.602,86 €1.317.372,63
Jul-08 - €4.901.354,65 €4.847.388,14 €1.371.339,14
Ago-08 - €400.586,38 €379.429,26 €1.392.496,26
Set-08 - €350.980,32 €207.629,52 €1.535.847,06
Out-08 - €347.972,68 €125.314,11 €1.758.505,63
Nov-08 - €256.795,53 €226.318,44 €1.788.982,72
€10.085.523,03 €8.297.206,06
Saldo Reclamado €1.759.397,85
Diferença Comissões (artigo 73.º e 74.º da contestação).
31. Com maior ou menor espaçamento no tempo, durante o ano de 2008, a S foi sempre entregando valores, mensalmente, à L (artigo 75.º da contestação – resposta explicativa).
32. O volume de negócios desta operação ultrapassou os 10 milhões de euros em menos de um ano e as partes nunca funcionaram desde o início do serviço com caixas ou contas bancárias autónomas para os movimentos financeiros em causa (artigo 79.º da contestação em parte).
33. A partir de Novembro de 2008 a S passou a transferir diariamente e de acordo com as informações recebidas da L, os valores recebidos dos clientes da L (artigo 86.º da contestação).
34. Os RR F, M e C, não entregaram à Autora os valores mencionados no ponto 23 (artigo 27.º da petição).
35. A Autora apresentou uma denúncia criminal contra os RR F, M e C, por estes factos, que deu origem ao processo comum colectivo nº  que correu termos no 1º juízo de competência criminal do Tribunal Judicial de Oeiras, no qual os RR foram pronunciados e posteriormente absolvidos do crime de abuso de confiança agravado, por acórdão de 04 de Fevereiro de 2014, junto em cópia a fls. 1075 e segs., decisão confirmada pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17/06/2014, cuja cópia consta de fls 1122 e segs., que negou provimento ao recurso interposto pela Autora, ali assistente (artigo 32º da petição, e acórdãos de fls. 1075 e segs. e 1122 e segs).
36. A Autora reclamou os seus créditos, no montante de €2.011.860,21 (dois milhões onze mil oitocentos e sessenta euros e vinte e um cêntimos), no Processo de Insolvência da S, que corre termos no 4.º Juízo de Tribunal do Comércio de Lisboa, Proc. nº, os quais lhe foram reconhecidos em Agosto de 2011, sendo o montante de €1.775.414,13 a título de capital (artigo 50º da contestação e certidão judicial extraída do processo de insolvência de fls. 1193 e segs.).
37. Nas negociações entre a Autora e a S para resolução das divergências entre os valores recebidos e entregues o Réu C, não teve qualquer participação directa (artigo 82º da contestação).
38. Este R., enquanto administrador, exerceu as funções de responsável do serviço de assistências técnicas e pós vendas, pelo que, o seu contacto com os aspectos financeiros da gestão foi muito reduzido (artigo 83.º da contestação).
39. O Réu F antes de se tornar administrador da S exerceu funções de director financeiro até 2007 e posteriormente de director geral financeiro da S, continuando ligado à parte financeira da sociedade no período em que a S não teve administradores de direito designados (artigo 43.º da articulado superveniente).
40. Entre Março de 2007 e Setembro de 2008, o Réu F exerceu funções de director geral financeiro da S, M de director geral da S, e C de director de compras/operações, cabendo-lhes, conjuntamente com outros, a gestão corrente da S (artigos. 35.º e 36.º do articulado superveniente da Autora – resposta explicativa/restritiva).

Factos não provados.
a) a matéria alegada pela Autora nos artigos. 22.º (na parte em que tenham sido os RR a determinar a não entrega à Autora dos valores recebidos pela S), 23.º (que os RR tenham integrado no seu património pessoal as quantias recebidas pela S no âmbito do contrato de domiciliação), 24.º (na parte em que aqueles valores tenham sido os únicos valores recebidos pela S em nome da Autora, e que em cada mês os valores não transferidos tenham sido os ali discriminados), 26.º e 46.º (que os RR tenham decidido incorporar no património da S tais verbas), e da petição; e 41.º e 42.º (que os RR tivessem pleno domínio sobre os activos e património da sociedade e conhecimento dos concretos fluxos monetários que entravam e saiam da esfera da S no período em causa), 36.º (na parte em que os RR fossem perspectivados pela generalidade dos trabalhadores como os administradores da S, não obstante as funções de chefia de pelo menos dois deles), 44.º e 45.º do articulado superveniente;
b) a matéria alegada pelos Réus nos artigos 58.º (no sentido de que só a partir da data em que tomaram posse como administradores os RR tenham tomado conhecimento de vários aspectos da vida da sociedade), 59.º in fine (que só em Dezembro de 2008 tomaram os RR conhecimento das divergências), 63.º (que a quantificação dos valores recebidos fosse difícil dadas as falhas nos sistemas informáticos quer da S, quer da Autora), 76.º e 77.º (que a Autora tenha efectuado correcções no sistema informático da S que agravaram o problema), 93.º (que o contrato de domiciliação tenha sido assinado numa fase em que a insolvência tinha sido requerida com o PEC aprovado) e 98.º  (No ano de 2008 as contas bancárias da S onde também eram depositados os pagamentos feitos à Autora foram alvo de penhoras)da contestação.

O direito.
Questões submetidas pela Apelante ao conhecimento deste tribunal: (delimitadas pelo teor das conclusões do recurso e na ausência de aspectos de conhecimento oficioso – artigos 608.º, n.º2, 635.º, n.4 e 639.º, todos do Código de Processo Civil)
-   Alteração da matéria de facto contida sob os n.ºs 27, 28 e 29 do factualismo provado
- Responsabilidade dos Réus pela não entrega à Autora de quantias pagas por clientes desta no âmbito do contrato de domiciliação de serviços para cobrança de facturas

1.  Da alteração da matéria de facto contida sob os n.ºs 27, 28 e 29 do factualismo provado
Sustentada na inadequação do meio de prova produzido nos autos e no qual se alicerçou a convicção do tribunal a quo, a Autora considera que os factos constantes da sentença sob os n.ºs 27, 28 e 29 não poderiam ter sido dados como provados.
A questão reporta-se à problemática da (in)admissibilidade da prova testemunhal enquanto meio de demonstração dos referidos factos.

Está em causa a seguinte matéria:
No decurso do PEC as entidades bancárias com quem a S trabalhava decidiram unilateralmente reduzir, em 50%, os plafonds da S, impedindo-a ter o controlo efectivo dos acervos das suas contas, para onde também eram alocados os recursos provenientes dos pagamentos efectuados no âmbito do contrato com a L (27); Nessas reduções foram atingidos valores pertencentes à L e que a S deixou de poder dispor (28); No ano de 2008 as contas bancárias da S onde também eram depositados os pagamentos feitos à Autora foram alvo de penhoras (29).

O tribunal recorrido fundamentou a sua convicção relativamente a esta matéria da seguinte forma:
“(…)Todos confirmaram que não havia contas autónomas para o recebimento dos pagamentos feitos à L, tendo a testemunha S, contabilista e responsável da área administrativa da S referido que os pagamentos eram depositados em contas da S para onde iam também os pagamentos dos seus produtos. Acrescentou esta testemunha que ocorreram penhoras de contas bancárias da S, tendo chegado a ver as cartas dos Bancos nesse sentido, assim como as instituições bancárias reduziram os plafond’s das contas bancárias,
Este relato é inteiramente coerente com a situação financeira da S que já se encontrava afundada em dívidas, de que também é prova a extensa relação dos credores reconhecidos da S junta aos autos, onde para além de fornecedores e trabalhadores, encontramos diverso Bancos com créditos de valores muito elevado (vg. BCP, BES, Banco Santander, Banif - fls. 1308 e 1309).”
Conforme decorre deste excerto da sentença, o tribunal a quo alicerçou a sua convicção com base na prova testemunhal produzida em conjugação com os documentos que constam dos autos referentes ao processo de insolvência da S, designadamente a sentença e a relação de créditos prevista no artigo 129.º, do CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE). Nessa medida e contrariamente ao referido pela Autora, a factualidade aludida não fluiu exclusivamente da produção de prova testemunhal. Todavia, importando averiguar da suficiência dos referidos elementos na demonstração dos factos, cabe realçar o que decorre dos documentos indicados na sentença:
- à data da declaração da insolvência (07-10-2009) a S tinha pendentes contra si várias acções e execuções (cfr. n.º 79 da factualidade provada na sentença de insolvência);
- a S tinha como credores várias entidades bancárias: Banco Comercial Português, SA, Banco Espírito Santo, SA, Banco Santander Comsumer, Portugal, SA, Banif – Banco Internacional do Funchal, SA, Caixa Económica Montepio Geral, Caixa Geral de Depósitos (cfr. relação de credores – artigo 129.º do CIRE, designadamente fls. 1222 a 1224);
- em 22-10-2007, a S solicitou a abertura de um PEC, Plano Extra-Judicial de Conciliação de Credores (PEC), nessa data formalmente aceite (cfr. n.º 4 da factualidade provada na sentença de insolvência e n.º 26 da matéria de facto provada na sentença recorrida);
Tendo presente a factualidade objecto de impugnação, apenas a penhora das contas bancárias, (atenta a natureza do respectivo acto - cfr. artigos 861.º-A, do anterior CPC, no actual o artigo 780.º), carece de ser demonstrada por documento mostrando-se, por isso, inidóneo meio de prova o depoimento testemunhal se desacompanhado de documento que a suporte.
Inexistindo nos autos qualquer documento relativo à efectivação de penhoras nas contas bancárias da S, o depoimento de S (não obstante as funções por ela desempenhadas na empresa e embora o teor das respectivas declarações não tenha sido infirmado por qualquer outro meio de prova e o respectivo depoimento se tenha revelado isento e credível) não é por si só suficiente para demonstrar tal factualidade; como tal e por falta de demonstração do facto, terá o mesmo de se considerar não provado, mantendo-se a demais factualidade provada.

2. Da responsabilidade dos Réus pela não entrega à Autora de quantias pagas por clientes desta no âmbito do contrato de domiciliação de serviços para cobrança de facturas
O tribunal a quo julgou a acção improcedente considerando que a factualidade demonstrada não integrava qualquer situação que pudesse fazer incorrer os Réus, enquanto administradores da S – Produtos Eléctricos, SA, em responsabilidade pessoal pela não entrega, durante o ano de 2008, da totalidade dos pagamentos feitos pelos clientes da Autora, recebidos pela S (num total de €1.759.397,85), no âmbito da execução de um contrato de domiciliação de serviços celebrado com a então GDL (entidade a quem a Autora sucedeu).

Esta decisão mostra-se sustentada no seguinte raciocínio:
- não resultou provada a prática pelos Réus do crime de abuso de confiança, consubstanciado numa apropriação pessoal das quantias em causa;
ü- a conduta dos Réus não encontra cabimento nas situações contempladas nos artigos 78.º e 79.º, do Código das Sociedades Comerciais[1], porque:
a) não foram demonstrados factos que permitam concluir que o património da S – Produtos Eléctricos, SA. se tornou insuficiente para a satisfação do crédito da Autora, por virtude da violação, pelos Réus, de normas reguladoras do cumprimento da obrigação de entrada, ou regras informadoras do capital social ou de quaisquer outras regras destinadas a proteger os credores sociais ainda que indirectamente[2];
b) não foi demonstrada qualquer relação directa entre a actuação dos Réus e o dano da Autora, designadamente pelo Réu Fernando Bernardino em função da sua qualidade de responsável pela direcção financeira da S, por não ter sido provado que a ele cabia, em cada semana, transferir os valores recebidos nas lojas.
ü- a ocorrer responsabilidade delitual nos termos dos artigos 78.º e 79.º, do CSC, encontrar-se-ia prescrito o direito da Autora pelo decurso do prazo de 3 anos previsto no 498.º, nº1, do Código Civil (a acção foi instaurada em 04/03/2013 e os factos praticados em 2008), não podendo ser considerada causa interruptiva da prescrição a pendência da acção penal por a Autora não ter deduzido pedido de indemnização civil contra os Réus naquele processo crime (artigo 323.º, do Código Civil).

Em defesa da obrigação de indemnizar por parte dos Réus pela não entrega das quantias que lhe eram devidas por efeito do contrato de domiciliação celebrado, a Autora alicerça o recurso defendendo:
1.º encontrar-se demonstrado nos autos o comportamento ilícito e culposo dos Réus;
2.º não se verificar a prescrição do seu direito (por inaplicabilidade do prazo prescricional de três anos previsto no artigo 498.º, do Código Civil) por ser de dez anos o prazo de prescrição a ter em conta (uma vez que os factos alegados geradores da responsabilidade civil eram subsumíveis ao crime de abuso de confiança agravado), independentemente da instauração ou da decisão proferida no âmbito do procedimento criminal.

Relativamente à caracterização da conduta (ilícita e culposa) dos Réus a Autora considera que comportamento dos mesmos assume integração na previsão dos artigos 78.º e 79.º, do CSC, por se traduzir numa actuação directa (consubstanciada na ausência de procedimentos ou ordens que o dever de diligência impunha, por forma a evitar a retenção abusiva por parte da S relativamente a montantes que lhe não pertenciam), enquanto administradores (de facto e de direito), provocando danos na Autora. Para o efeito, faz apelo à seguinte ordem de argumentos:
- perante a difícil situação económico-financeira que a S atravessava, os fluxos financeiros provenientes dos valores pagos pelos clientes da Autora mostravam-se essenciais para a sobrevivência empresarial da mesma;
- as funções de gestão corrente desempenhadas pelos Réus na S (primeiramente, como administradores de facto, sendo o Réu Fernando Bernardino, durante todo o ano de 2007 e 2008 Director Geral Financeiro; posteriormente e após nomeação, como administradores de direito), não permitiam que os mesmos desconhecessem que a empresa retinha significativas importâncias que lhe não pertenciam e que resultavam da falta de devolução à Autora dos pagamentos recebidos dos clientes desta no âmbito do contrato de domiciliação;
- pelo exercício das respectivas funções os Réus encontravam-se adstritos à obrigação de providenciarem por forma a que as quantias recebidas dos clientes da Autora fossem afectas a contas bancárias que permitissem salvaguardar os direitos desta;
- cabia-lhes, por isso, terem demonstrado nos autos que a não entrega dos montantes pertencentes à Autora decorria de factos sobre os quais não tinham domínio ou controlo.

Não podemos concordar com a Apelante, conforme passaremos a justificar.

O caso sob apreciação reporta-se à não devolução, por um período de 7 meses (entre Abril de 2008 e Novembro desse ano) de parte das quantias recebidas pela S de clientes da Apelante, em execução de um contrato de domiciliação celebrado em 12-06-2007, por efeito do qual cabia àquela disponibilizar estabelecimentos a favor desta, aí prestando serviços de cobrança de facturas, recepção de reclamações, elaboração de contratos e mostra de portfolios dos produtos e serviços da Autora aos consumidores.

No caso da operação de domiciliação das facturas, os valores recebidos nas lojas S, processados via informática, eram disponibilizados, semanalmente, à Autora (através de um interface oferecido por esta, que igualmente ofereceu o sistema informático implantado para operar o serviço, sendo que o sistema operativo implantado não previa a existência de contas autónomas para os recebimentos específicos da cobrança de facturas) e para ela enviados.

Resulta do processo que o valor dos pagamentos recebidos de clientes da Autora pela S não transferidos para aquela, entre Abril de 2008 e Outubro do mesmo ano, ascendeu ao montante total de €1.759.397,85, passando a S, a partir de Novembro de 2008, a transferir os valores recebidos pelos clientes da Autora de acordo com as informações por esta indicadas.

Mostra-se pacífico nos autos a circunstância de não ter sido demonstrado neste processo qualquer comportamento dos Réus subsumível à prática de crime de abuso de confiança[3], crime pelo qual foram acusados, mas absolvidos por sentença transitada em julgado no processo penal então desencadeado.

A questão que a Apelante pretende ver conhecida neste recurso é a de saber se, para além de uma situação de incumprimento contratual por parte da S – Produtos Eléctricos, SA[4], a factualidade apurada integra ainda comportamento dos Réus passível de, perante a Autora, responderem com o seu património pelos danos provocados enquanto administradores da S – Produtos Eléctricos, SA.

A sentença recorrida considerou não se verificar conduta que assumisse integração na previsão dos artigos 78.º e 79.º, do CSC.
Há que concordar com tal entendimento conforme passaremos a justificar.

ü- Da responsabilidade dos Réus à luz do artigo 78.º do CSC[5].

A administração de uma sociedade pressupõe o exercício de um poder dever que compreende a tomada e execução de decisões empresariais que, a serem consideradas ilícitas, podem determinar a sujeição dos administradores em demandas do âmbito de várias jurisdições (penal, tributária, contra-ordenacional e civil)[6].

O artigo 78.º, n.º1, do CSC, ao dispor que Os gerentes ou administradores respondem para com os credores da sociedade quando, por inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinadas à protecção destes, o património social se torne insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos reporta-se à responsabilidade civil[7] directa dos administradores da sociedade para com os credores sociais.

De acordo com esta disposição, a ilicitude do comportamento por parte do administrador não abarca a violação de um qualquer dever a que se encontre adstrito, cingindo-se à violação dos deveres prescritos em disposições legais ou contratuais[8] de protecção dos credores sociais, embora não identifique (ainda que exemplificativamente) quais as disposições que sejam de qualificar de protecção dos credores sociais. Está-se perante uma cláusula geral delimitadora da ilicitude que cumpre à doutrina e jurisprudência concretizar[9].

Na concretização a efectuar importa ter presente que as normas legais de protecção aos credores sociais são aquelas que contemplam em si a defesa dos seus interesses.

No âmbito do CSC têm sido consideradas[10] normas de protecção aos credores sociais as seguintes:
- conservação do capital social (artigos 31.º, 34.º, 51.º, 236.º, 346.º, n.º1, 513.º, 220.º, n.º2, 317.º, n.º4);
- constituição e utilização da reserva legal (artigos 218.º, 295.º, 265.º);
- proibição de acções próprias (artigo 316.º, n.º1) e certas aquisições e detenções de acções próprias (artigos 317.º, n.º2 e 323.º, entre outros);
- capacidade jurídica das sociedades (artigo 6.º).

Fora do referido Código, consideram-se os artigos 18.º e 19.º, do CIRE, que prescrevem o dever do administrador em requerer a insolvência da sociedade.

Relativamente à densificação da ilicitude a ter em conta neste âmbito, a falta de clarificação conceitual da norma em causa permite desenvolver posicionamentos que redundam numa intensificação da responsabilização dos administradores[11] através de um conceito amplo de norma de protecção dos interesses dos credores sociais[12], acabando, em grande parte dos casos, por fazer reconduzir o conceito de protecção do credor à satisfação dos respectivos créditos. Nessa sentido, norma legal ou contratual de protecção do credor social seria aquela cuja inobservância culposa determinasse a insuficiência do património da empresa, prejudicando a satisfação dos créditos dos credores[13].

Não parece que o preceito em causa possa assumir tal amplitude.

Não há dúvida de que a protecção dos credores a que alude o preceito tem a ver com normas que visem a protecção dos seus interesses. E se é certo que os interesses dos credores são, em grande parte, dimensionados pela preservação do património do devedor, a responsabilidade directa para com os credores sociais prevista no normativo em apreciação não pode ser confundida quer com a responsabilidade da própria sociedade, quer com o dever de cumprimento do administrador para com o credor de uma obrigação da sociedade.

O direito próprio dos credores perante o administrador de uma sociedade consagrado no artigo 78.º em apreciação reporta-se ao dever do administrador de não afectar o património da sociedade por violação de leis destinadas a proteger aqueles credores. Só assim se justifica que, nos termos da referida disposição legal, a inobservância das normas de protecção determine a responsabilização do administrador se causar uma diminuição do património social (o dano directo na sociedade), diminuição que o torne insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos (dano indirecto dos credores sociais). A insuficiência a ter em conta terá de se caracterizar por uma diminuição do património social em montante que comprometa a viabilidade da cabal satisfação dos direitos dos credores.

Perspectivado o preceito nestes parâmetros, dificilmente o incumprimento de obrigações decorrentes de contratos celebrados entre a sociedade e terceiros poderá, ao seu abrigo, envolver responsabilidade directa do administrador para com eles[14].

A factualidade apurada, sublinhe-se, evidencia uma inequívoca inexecução culposa,[15] por parte da S, do contrato de domiciliação celebrado, pois que a entrega dos valores recebidos pelos clientes da Autora constituía uma obrigação a observar por parte daquela em cumprimento do contrato.

A circunstância dos Réus terem desempenhado, durante o período de incumprimento contratual (Março a Outubro de 2008) funções enquanto administradores[16] da S, ainda que adstritos aos deveres ínsitos no artigo 64.º, do CSC[17], não permite concluir, sem mais, como parece pretender a Apelante, no sentido de terem incorrido no incumprimento desses deveres ao não terem agido por forma a garantir que os valores recebidos pela S e pertencentes à Autora não tivessem sido retidos pela empresa que dirigiam.

O posicionamento da Autora assenta em dois pressupostos que, a nosso ver, não assumem consistência na disposição legal em que se sustenta:
- numa presunção de culpa dos administradores[18] (estando em causa a violação de um dever legal de protecção dos credores, por não terem sido tomadas as medidas de precaução e diligência necessárias a fim de evitar o dano);
- radicar a ilicitude da conduta na própria obrigação de protecção do credor em que, concomitantemente, se alicerça a presunção de culpa dos administradores (considera a Apelante que a ilicitude se consubstancia na omissão dos procedimentos tendentes a assegurar a entrega dos montantes recebidos dos seus clientes).
Relativamente à ilicitude, embora a Autora não indique qual a disposição legal em que faz assentar o dever de actuação adstrito aos Réus, a consistência da sua tese pressuporia invocar o artigo 64.º, do CSC, como norma destinada a proteger os credores sociais.

Quanto a este aspecto, não obstante a discussão doutrinal que vem sendo desenhada sobre a possibilidade do artigo 64.º, do CSC, constituir fonte de responsabilidade civil perante os credores sociais[19], secundamos os que consideram que o preceito compreende apenas normas de conduta incompletas que operam como deveres incompletos que, por si só, não são violáveis, em termos de responsabilidade civil.[20].

Como se encontra salientado no supra citado Acórdão do STJ de 28-01-2016 (Processo n.º 196/03.8TVPRT.P2.S1), considerar-se o artigo 64.º, do CSC como norma destinada a proteger os credores sociais, levaria à conclusão de que, no fundo, todas as normas legais que gizassem os deveres dos gerentes, administradores e directores tutelariam directa ou reflexamente os interesses dos credores sociais (…) se o legislador tivesse pretendido responsabilizar os administradores com uma tão ampla abrangência teria aludido apenas à infracção de disposições legais ou contratuais por parte daqueles, ao invés de ter dito expressamente que as disposições infringidas que relevam para este efeito são apenas aquelas que se destinem a proteger os credores sociais, isto é, as que tenham em vista a protecção destes, não bastando, portanto, que apenas lhes aproveitem ou que, eventualmente, os beneficiem reflexamente. Conforme observa Miguel Pupo Correia (“Sobre a Responsabilidade por Dívidas Sociais dos Membros dos Órgãos da Sociedade” in ROA, ano 61, Abril de 2001, p. 667), a não ser assim, poderia chegar a incluir-se na abrangência deste requisito do n.º 1 do artigo 78.º praticamente todas as normas aplicáveis ao exercício das funções dos titulares dos órgãos sociais e, portanto, ao cumprimento dos seus deveres funcionais, eliminando, de todo em todo, o alcance restritivo do requisito em questão e criando um estado de total insegurança jurídica no tocante à responsabilidade dos titulares dos órgãos em questão. Aliás, em boa medida, aquele entendimento teria como consequência criar uma assimilação do alcance deste n.º 1 do art.º 78 ao n.º do art.º 72, restaurando, assim, na prática, a presunção de culpa que, como vimos já, o legislador quis manifestamente afastar (cf., também neste sentido, Ilídio Duarte Rodrigues, A Administração das Sociedades por Quotas e Anónimas – Organização e Estatuto dos Administradores, Lisboa, 1990, p. 222 e 223).

Nesta ordem de ideias, a matéria que se mostra apurada no processo revela-se manifestamente insuficiente para que através dela se descortine uma actuação dos Réus violadora de norma legal ou contratual destinada a proteger os credores sociais.

Todavia, ainda que fosse de considerar que a conduta dos Réus era desconforme com uma gestão diligente da sociedade a que se encontravam legalmente adstritos (artigo 64.º, da LSC), tendo, por isso, violado norma destinada a proteger a Autora, na qualidade de credora da sociedade que administravam, sempre se imporia afastar a integração da sua conduta no citado artigo 78.º, da LSC, dado que carecia de demonstração um dos pressupostos para lhes poder ser assacada a responsabilidade: o nexo de causalidade entre a conduta ilícita por inobservância da norma e a insuficiência do património da sociedade.  

Com efeito, embora a referida sociedade tenha sido declarada insolvente (note-se que já desde 2007 se encontrava sujeita a um PEC permitindo inferir das dificuldades económico-financeiras que apresentava), inexiste qualquer prova de que a conduta omissiva dos Réus tenha sido causa da insuficiência do património da sociedade declarada insolvente para satisfação dos respectivos créditos.

Consequentemente, não podem os Réus ser responsabilizados perante a Autora ao abrigo do artigo 78.º, n.º1, do CSC.

ü- Da responsabilidade dos Réus à luz do artigo 79.º do CSC
Dispõe o n.º 1 deste preceito que Os gerentes ou administradores respondem também, nos termos gerais, para com os sócios e terceiros pelos danos que directamente lhes causarem no exercício das suas funções, reportando-se à responsabilidade (directa) dos administradores para com os sócios e terceiros e resulta de factos praticados por aqueles no exercício das suas funções, ou seja, durante e por causa da actividade de gestão e/ou representação social[21](responsabilidade orgânica por se reportar ao titular do órgão no desempenho das suas funções).

A expressão nos termos gerais utilizada no preceito tem vindo a ser entendida como visando a remissão para os artigos 483.º e seguintes, do Código Civil, assentando a responsabilidade nos pressupostos “gerais”; como tal, tendo por subjacente facto ilícito, culposo e danoso.

Têm sido considerados “terceiros” todos os sujeitos que não sejam: a sociedade, os seus administradores ou os sócios[22].

A conduta dos administradores será ilícita para com terceiros (para o que neste processo assume cabimento: os credores sociais) quando no exercício das suas funções violem:
a) direitos absolutos dos credores;
b) normas legais de protecção dos credores;
c) deveres jurídicos específicos. 
 
Face aos contornos fácticos do caso sub judice, a apreciação da ilicitude da conduta dos Réus assume apenas cabimento quanto às alíneas b) e c): violação de norma legal de protecção do credor e/ou violação de dever jurídico específico.

Na sequência do abordado quanto à responsabilização dos Réus ao abrigo do disposto no artigo 78.º, do CSC, designadamente ao não se considerar o artigo 64.º, do mesmo Código, como norma de protecção do credor, mostra-se inviabilizada a avaliação do comportamento dos Réus nesse enquadramento. Resta por isso indagar da existência de violação de dever jurídico perspectivado em omissão, ou seja, por incumprimento de um dever de agir, conforme parece pugnar a Apelante.

A respeito do domínio da responsabilidade por omissões e ofensas mediatas a direitos de terceiros mostra acuidade transcrever o seguinte excerto, que revela posicionamento com o qual se assume total adesão: Parece que os administradores devem ser responsabilizados somente quando violem deveres no tráfico a que pessoalmente estão obrigados – quando desrespeitem o dever jurídico de actuar sobre aspectos da organização ou funcionamento empresarial-societário que constituam fontes especiais de risco para terceiros. Não serão responsáveis perante terceiros, portanto, por toda e qualquer deficiência organizativo-funcional da sociedade geradora de danos, como se tivessem geral “posição de garantes” dos terceiros. Em regra, os deveres de cuidado organizativo-funcionais dos administradores são para com a sociedade, não para com terceiros; consequentemente, quem responde perante estes pelos danos provocados por deficiente organização ou funcionamento societário é a sociedade e/ou os trabalhadores que causam imediatamente os prejuízos. (…) Responsabilizar os administradores com fundamento numa geral “posição de garante” significaria uma extensão ilimitada da responsabilidade dos administradores perante terceiros. O que previsivelmente implicaria o êxodo de pessoas qualificadas, a obrigação de contratar um seguro a preços mais elevados e, no limite, o prejuízo para o bom desempenho das empresas[23]
 
Transpondo estas considerações na abordagem do caso e tendo presente a noção de danos visados pelo preceito[24], igualmente se encontra fora do âmbito da sua aplicação o comportamento dos Réus em face da (inexistência) prova apurada nos autos[25], pois que:
- não foi feita prova no sentido de que os Réus tenham decidido incorporar as verbas não restituídas à Autora no património da S ;
- não resultou provado que os Réus tivessem pleno domínio sobre os activos e património da sociedade e conhecimento dos concretos fluxos monetários que entravam e dela saíam, matéria que impunha demonstração directa na caracterização da ilicitude do comportamento e da culpa do agente, que não se presume.

Realce-se que para a verificação de qualquer destes pressupostos nada se permite inferir da prova feita nos autos quanto às funções especificamente exercidas pelos Réus F, M e C, de Março de 2007 a Setembro de 2008 (respectivamente, de director geral financeiro, director geral da S e director de compras/operações), quer do facto de terem em conjunto a gestão corrente da S – cfr. n.ºs 39 e 40 da matéria provada na sentença.

Consequentemente, considerando ainda que na situação sob apreciação os danos sofridos pela Autora pela não entrega dos montantes que lhe pertenciam, não podem ser tidos como prejuízos causados directamente pelos Réus, sem interferência da S (os administradores não respondem pelo incumprimento das obrigações da sociedade com os seus credores pois só a ela poderá ser assacada responsabilidade contratual), inexiste fundamento para a pretendida responsabilização dos Réus ao abrigo do artigo 79.º, do CSC, carecendo de total fundamento a pretensão da Recorrente ao defender que se verificou uma relação directa entre a actuação dos RR, na qualidade de administradores de facto e de direito da S, e o dano sofrido pela Lisboagás ora recorrente, pelo que é de aplicar o artigo 79.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais, pois não se tratou de uma mera incúria na gestão da S, mais ou menos negligente, mas de algo que implica uma responsabilização pessoal e directa dos RR na qualidade de administradores de facto e de direito da S, pois os RR foram os responsáveis directos pela não entrega/devolução dos montantes pertencentes à Lisboagás.

ü- Da prescrição.
Rebela-se a Apelante contra a decisão do tribunal a quo que concluiu no sentido da prescrição do direito da Autora por decurso do prazo de 3 anos previsto no artigo 498.º, n.º1, do Código Civil, defendendo que, no caso, o prazo de prescrição a considerar terá de ser mais longo (dez anos) por os factos geradores da responsabilidade civil dos Réus por si alegados serem subsumíveis ao tipo legal de crime de abuso de confiança agravado. Estriba o seu posicionamento no Acórdão do STJ de 03-03-2011, (Processo 1228/07.8TBAGH.L1.S1).

Carece totalmente de razão, sendo que só uma leitura pouco atenta do douto aresto citado permite imputar o posicionamento que a Apelante dele reivindica.

Entende a Autora que a mera alegação de factualidade (geradora da responsabilidade civil) subsumível à existência de um tipo legal de crime para o qual a lei confere um prazo mais alargado de prescrição permitirá ao lesado beneficiar de um prazo superior ao de três anos previsto no n.º1 do artigo 498.º do Código Civil.

Mostra-se totalmente equivocada como resulta, com singular clareza, do teor do Acórdão por si indicado para ilustrar o seu posicionamento.

Como se encontra expressamente referido (desde logo, no respectivo sumário) no mencionado Acórdão do STJ, Para aplicação do prazo mais longo que possa decorrer da relevância penal dos factos imputados ao R., não interessa ponderar o efectivo desfecho do processo crime (…) ou o preenchimento de todas as condições de punibilidade do arguido – apenas sendo necessário que os factos alegados e provados pelo lesado (…) sejam subsumíveis a algum ou algum dos tipos penais legalmente previstos.

E, ao realizar tal subsunção, - embora esta se destine exclusivamente a determinar se ocorre ou não ampliação do prazo prescricional comum da obrigação de indemnizar – tem o tribunal cível de obedecer inteiramente ao princípio da legalidade ou da tipicidade, não lhe sendo lícito realizar subsunções «aproximativas» ou menos rigorosas da matéria de facto apurada, que sejam susceptíveis de representar uma inadmissível extensão dos elementos do tipo penal, proscrita pela vigência daquele princípio fundamental.

Assim sendo, não resultando da matéria provada a prática pelos Réus de qualquer tipo legal de crime (questão que, aliás, se mostra pacífica nos autos), designadamente o de abuso de confiança invocado, não pode deixar de se concluir no sentido de que se encontra prescrito, pelo decurso do prazo de três anos, o direito que a Autora pretendeu fazer valer ao propor a presente acção.

Improcedem, por isso e à excepção da alteração da matéria de facto acima decidida, as conclusões das alegações.  

III - Decisão.
Nestes termos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a apelação improcedente, confirmando a sentença recorrida nos respectivos termos.
Custas pela Autora.



Lisboa, 13 de Setembro de 2016



Graça Amaral
Orlando Nascimento
Alziro Antunes Cardoso



[1]Doravante sob a designação CSC.
[2]Refere a sentença que não foi feita prova de que os Réus tenham ocultado ou tentado ludibriar a Autora relativamente às quantias recebidas, desviado documentos, emanado ordens ou instruções com vista à retenção das quantias e à sua afectação a dívidas da S.
[3]Designadamente dos Réus terem feito suas as quantias não entregues à Autora.
[4]Resulta nos autos que a Autora, pelo incumprimento do contrato de domiciliação pela não entrega das quantias recebidas dos seus clientes, reclamou no Processo de Insolvência da S (que corre termos no 4.º Juízo de Tribunal do Comércio de Lisboa, Proc. nº 1061/07.7TYLSB) créditos no montante de €2.011.860,21, (sendo o montante de €1.775.414,13 a título de capital), que foram reconhecidos, em Agosto de 2011, nesse processo.
[5]Os fundamentos em que a presente acção assenta apenas justifica a referência à situação prevista no n.º1 do preceito, porquanto o seu n.º2 diz respeito à acção de sub-rogação de credores da sociedade. 
[6]Em matéria de responsabilidade civil dos administradores tem vindo a ser equacionada a necessidade de tornar as regras legais mais claras e menos indutoras da aversão ao risco, por forma a não ser coarctado o espaço de discricionariedade necessário à incentivação do talento dos gestores – cfr. Maria Elisabete Ramos, Riscos de responsabilização dos administradores – entre a previsão legislativa e a decisão jurisprudencial, Direito das Sociedades em Revista, Almedina, Março de 2015, Ano 7, volume 13, p. 69 -106.
[7]Tal entendimento não se mostra pacífico na doutrina. Para Jorge A. Nunes Lopes, o referido preceito não deverá inserir-se, em primeira linha, no domínio da responsabilidade aquiliana por estar sediado na tutela da eficácia externa do crédito - “Responsabilidade civil dos administradores de instituições financeiras em crise ou insolventes”, Direito das Sociedades em Revista, Almedina, Ano 6, n.º 11 (Março 2014), p. 191-225.
[8]Reportadas às normas estatutárias.
[9]Cfr. Maria Elisabete Ramos, artigo citado, p. 90.
[10]Cfr. J.M. Coutinho de Abreu e outros, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Almedina, Volume I, p. 894-895.
[11]Maria Elisabete Ramos chama a atenção para esta questão indicando como exemplo de manifestações doutrinais no sentido dessa intensificação o entendimento de que a responsabilidade dos administradores perante os credores sociais (artigo 78.º, do CSC) é uma “responsabilidade por culpa presumida”, transpondo para o domínio jurídico-societário o resultado interpretativo jurídico-civil segundo o qual o lesado pela violação de normas de protecção beneficia de uma presunção de culpa. O outro exemplo com relevância para a situação dos autos é o posicionamento que olha o artigo 79.º, do CSC, de modo a abranger «todos os casos de responsabilidade civil (extracontratual) pela violação dos deveres gerais e genéricos», incluindo no âmbito deste preceito «relações obrigacionais (em sentido amplo) sem deveres primários de prestação», como sejam «as relações pré-contratuais, as relações pós-contratuais, as “relações de negócios” ou “relações correntes de negócios” e as relações obrigacionais com eficácia de protecção de terceiros» - obra citada, p. 105.
[12]Abrangendo todas aquelas atinentes à organização da contabilidade da empresa, designadamente à regulamentação da escrita e apresentação e registo de contas da sociedade.
[13]Cfr. Maria Elisabete Ramos, obra citada, p. 93.
[14]Conforme se encontra realçado no Acórdão do STJ de 28-01-2016, estando em causa obrigações contratuais, os credores sociais sabem, necessariamente, ao contratar com a sociedade, que a lei apenas lhes dá como garantia o património desta, sendo que, se houver culpa dos administradores na referida falta de cumprimento, estes serão responsáveis para com a sociedade e os credores sociais poderão, quando muito, fazê-la valer a seu favor através da competente acção sub-rogatória – a qual, porém, como se disse, se distingue da acção directa a que alude o artigo 78.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais. Trata-se, pois, de solução que está em inteira consonância com a ideia de que os riscos da actividade social correm por conta da sociedade (o mesmo é dizer por conta dos sócios), posto que, beneficiando a sociedade da actividade do administrador, deve a mesma suportar igualmente as desvantagens decorrentes dessa actividade. (processo n.º 1916/03.8TVPRT.P2.S1, acessível através das Base Documentais do IGFEJ).
[15]A mesma não ilidiu na presunção de culpa que sobre si impendia – artigo 799.º, do Código Civil.
[16]Primeiramente como administradores de facto e só posteriormente foram nomeados como tal. Sendo que, nos termos apurados, o Réu F exerceu funções de director financeiro (até 2007) e director geral financeiro da S, continuando ligado à parte financeira da sociedade no período em que a S não teve administradores de direito designados.
[17]Actuando de acordo com os deveres que lhe são impostos pelo artigo 64.º, do CSC, onde se dispõe: Os gerentes ou administradores da sociedade devem observar:
a)Deveres de cuidado, revelando a disponibilidade, a competência técnica e o conhecimento da actividade da sociedade adequados às suas funções e empregando nesse âmbito a diligência de um gestor criterioso e ordenado; e
b)Deveres de lealdade, no interesse da sociedade, atendendo aos interesses de longo prazo dos sócios e ponderando os interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, tais como os seus trabalhadores, clientes e credores.
2 - Os titulares de órgãos sociais com funções de fiscalização devem observar deveres de cuidado, empregando para o efeito elevados padrões de diligência profissional e deveres de lealdade, no interesse da sociedade.
Do referido preceito, conforme salienta Menezes Cordeiro, emergem deveres de cuidado que englobam deveres de disponibilidade, competência técnica e conhecimento da actividade da empresa, deveres que caberá calibrar, de acordo com as respectivas funções, sob a bitola de esforço aferida em função da diligência do bom pai de família – Direito das Sociedades – I, Parte Geral, 3ª edição, Almedina, 2011, p. 987.
[18]Não nos revemos no entendimento que sustenta que na responsabilidade extraobrigacional ou extracontratual prevista no artigo 78.º, do CSC, pressupondo a inobservância de normas de protecção, justifica a aplicação, por analogia, da presunção de culpa do artigo 799.º, do Código Civil. Assim, provada a infracção da norma, caberia presumir a existência de culpa – entre outros, cfr. Adelaide Menezes Leitão, Normas de protecção e danos patrimoniais primários (dissertação de doutoramento), Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2007, citada por Manuel Pinto de Oliveira, Ónus de prova da culpa no art. 78.º, n.º1, do Código das Sociedades Comerciais, Direito das Sociedades em Revista, Almedina, Ano 6, n.º 11 (Março 2014), p. 93-106.
No sentido de que foi intenção do legislador não estabelecer nenhuma presunção de culpa no caso previsto no n.º1 do artigo 78.º (a remissão do artigo 78.º, n.º5 para o artigo 72.º não abrange o n.º1), entre outros, Acórdão do STJ de 12 -01-2012 (Processo n.º 916/03.2TBCSC.L1.S1, acessível através das Bases Documentais do IGFEJ). Na doutrina, entre outros, Tânia Meireles da Cunha, Da Responsabilidade dos Gestores das Sociedades perante os Credores Sociais (A Culpa nas Responsabilidades Civil e Tributária), 2ª edição, Almedina. p.68, citada no referido Acórdão. 
[19]Adelaide Menezes Leitão, Responsabilidade dos administradores para com a sociedade e os credores sociais pela violação de normas de protecção, Revista de Direito das Sociedades A 1 n.º 3 (2009), p. 647-679
[20]Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades – I, Parte Geral, 3ª edição, Almedina, 2011, p. 988.
[21]J.M. Coutinho de Abreu e outros, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Almedina, Volume I, p. 906.
[22]Trabalhadores, fornecedores, clientes, credores sociais fora do âmbito do artigo 78.º e Estado - J.M. Coutinho de Abreu  e outros, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Almedina, Volume I, p. 906.
[23]Cfr. J.M. Coutinho de Abreu e outros, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Almedina, Volume I, p. 909.
[24]Refere o Acórdão do STJ de 29/01/2014 (Processo n.º 548/06.3TBARC.P1.S1, acessível através das Bases Documentais do IGFEJ), Para os efeitos previstos no art. 79º, nº1 do CSCom., danos causados directamente pelo gerente aos sócios ou a terceiros são aqueles que, assentes em responsabilidade delitual comum, ocorrem em termos que não são interferidos pela presença da sociedade – designadamente, a recusa ilícita de informações ou o fornecimento de informações falsas que causem prejuízos –, sendo irrelevante para a produção de tais danos, ainda que invocada, a representação da sociedade. No mesmo sentido, Menezes Cordeiro, Código das Sociedades Comerciais Anotado, Coimbra, 2009, p. 279) – indicado no supra citado Acórdão do STJ de 28-01-2016.
[25]Nem a factualidade apurada permite inferir nesse sentido, em termos de presunção de facto a ter em conta na presente decisão em face, particularmente, da matéria provada sob o n.ºs 23 a 28 da sentença, que revela:
- após a Autora ter interpelado a S (em Dezembro de 2008) para proceder ao pagamento de valores não entregues referentes aos meses de Abril, Maio, Junho, Setembro e Outubro de 2008, os Réus prontificaram-se para colaborar e averiguar quais as causas de tais divergências, tendo dado instruções internas para que de imediato se procedesse à conferência de movimentos;
- a tarefa de averiguação teve dificuldade acrescida pelo facto do sistema operativo implementado (sublinhe-se, implementado pela Autora – n.º 17 dos factos provados) não prever a existência de contas autónomas para tais recebimentos;
- A sociedade encontrava-se numa difícil situação económica e financeira e a laborar enquadrada num PEC (Plano Extra-Judicial de Conciliação de Credores), que havia sido aprovado em Julho de 2008;
- A S não detinha o controlo efectivo dos acervos das suas contas (onde eram colocados os recursos provenientes dos pagamentos efectuados no âmbito do contrato com a Autora) porquanto, no decurso do PEC as entidades bancárias com quem a sociedade trabalhava decidiram unilateralmente reduzir, em 50%, os respectivos plafonds e nessas reduções foram atingidos os valores pertencentes a Autora e que a S deixou de poder dispor.