Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
28287/20.5T8LSB-A.L1-1
Relator: PAULA CARDOSO
Descritores: UNIÃO EUROPEIA
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
ESTABELECIMENTO EM TERRITÓRIO PORTUGUÊS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/05/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I Nos termos do Acordo celebrado entre o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte da União Europeia e a Comunidade Europeia da Energia Atómica, (2019/C 384 I/01), publicado no Jornal Oficial da União Europeia em 12/11/2019, ficou estipulado que o Reino Unido deixaria de ser membro da União Europeia, assegurando, contudo, tal Acordo um período de transição para a consolidação dessa saída, estipulando que até 31/12/2020 o direito da União Europeia seria aplicável no Reino Unido e no seu território (cfr. artigos 126.º e 127.º do Acordo de Saída).

II Nesse contexto, o artigo 3.º n.º 1 do Regulamento (UE) n.º 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20/05/2015, confere competência internacional aos órgãos jurisdicionais de um Estado-Membro para abrir o processo de insolvência ali previsto se naquele Estado se situar o centro dos interesses principais do devedor.

III Se apesar de ter o centro dos seus principais interesses noutro Estado-Membro, o devedor possuir um estabelecimento em território português, são competentes os tribunais portugueses para abrir um processo de insolvência territorial, por força daquele mesmo artigo 3.º, agora no seu n.º 2, processo que, na terminologia do CIRE, se assume como um processo particular de insolvência, limitado aos bens do devedor que se encontram no nosso território (artigo 294.º n.ºs 1 e 3 do CIRE).

IVDonde, tendo a requerida sede no Reino Unido, e estabelecimento em Portugal, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para a apreciação de um processo de insolvência, restringido aos bens que tem em Portugal, tal como foi declarado na sentença recorrida, que restringiu os efeitos da insolvência ao preceituado no artigo 294.º do CIRE, tendo consignado na mesma não haver lugar à abertura de incidente de qualificação da insolvência.

(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA



I.Relatório:


(….), melhor identificados nos autos, vieram, invocando para o efeito o disposto nos artigos 3.º, n.º 1, 20.º, n.º 1, 23.º, 25.º e 294.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (“CIRE”) e artigo 3.º do Regulamento (UE) n.º 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20/05/2015, relativo aos processos de insolvência, requerer a  declaração de insolvência da (…) LIMITED, sociedade comercial constituída ao abrigo das leis de Inglaterra e País de Gales, com o número de identificação de pessoa coletiva 08.....6, com sede em (…), Inglaterra, M3 3EB, Reino Unido, com representação permanente em Portugal, através da (…) SUCURSAL EM PORTUGAL, pessoa colectiva n.º 9........, com sede na Rua (…) , 1...-... - L____.

Para tanto, alegaram, em síntese, que são credores da requerida, pelo valor total de €2.294.329,00, vencido a 31/07/2020, correspondente ao remanescente do preço da venda das acções representativas do capital social da SOLARA4, S.A. e dos créditos que detinham sobre a mesma sociedade, acrescido de juros de mora. A SOLARA4, S.A. constituía o maior activo da requerida, que se encontrava a promover o desenvolvimento de um parque solar, sito em Alcoutim e Tavira, para a Central Fotovoltaica de Alcoutim, sendo titular da licença emitida pela Direcção Geral de Energia e Geologia (“DGEG”) para a Central Fotovoltaica de Alcoutim, com a potência total instalada de 219.085,3 kWp.

A requerida, entretanto, alienou as acções da SOLARA4 a uma outra sociedade do grupo e não detém bens ou rendimentos suficientes que lhe permitam solver os seus débitos, em especial os créditos dos requerentes.

Alegam ainda que o centro principal de interesses da requerida é em Portugal, o que, não obstante a sua sede se situar no Reino Unido, torna Portugal competente para abrir o processo principal de insolvência, e, mesmo que se entendesse não ser possível tanto verificar, ainda assim aos tribunais portugueses está cometida a competência para a abertura do processo de insolvência da requerida, à luz do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento (UE) n.º 2015/848 de 20/05/2015, ficando os efeitos do processo limitados aos bens do devedor que se encontrem em Portugal, como referido no artigo 294.º n.º 1 do CIRE, tanto mais que o presente pedido de declaração de insolvência é requerido por credores cujo crédito decorre da exploração, ou está relacionado com a exploração, de um estabelecimento situado no território do Estado-Membro (Portugal) em que é requerida a abertura do processo territorial. Nessa medida, alega, o processo de insolvência da requerida pode ser aberto antes de aberto o processo principal, pelo que se verifica também o cumprimento do requisito no n.º 4 do artigo 3º do Regulamento (UE) nº 2015/848 de 20/05/2015.
Terminam pedindo a declaração de insolvência da requerida e que a mesma seja qualificada de culposa.

A requerida foi citada, não tendo apresentado oposição no prazo legal, tendo o Tribunal a quo, ao abrigo do disposto no artigo 30.º, n.º 5, do CIRE, julgado confessados os factos alegados na petição inicial.

Após, considerando que os autos revestiam manifesta simplicidade, nos termos do artigo 567.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (ex vi do artigo 17.º, do CIRE), o Tribunal proferiu sentença que culminou com o seguinte dispositivo:
«1.Declaro a insolvência da (…), pessoa coletiva n.º (…), com sede (…) em (…)  Inglaterra, M3 3EB, Reino Unido, nos termos e com os efeitos previstos no artigo 294º, n.º 1, do CIRE;
2.Fixo residência aos administradores da insolvente nos seguintes termos (art.º 36º, nº 1, al. c) do CIRE):
a)- (…), Manchester, Inglaterra, M3 3EB, Reino Unido;
b)- (…) Wood Avoca, Wicklow Irlanda;
3. Como Administrador da Insolvência nomeio o Sr. Dr. PM..., constante da lista oficial de Administradores Judiciais inscritos na Comarca de Lisboa, com domicílio na Rua ..... ....., n.º ..., 1º ......, 0000-000-P_____ (arts. 36º, n.º 1 al. d) e 56º n.º 2 do CIRE).
4.Não se nomeia Comissão de Credores face à previsível reduzida dimensão da massa insolvente e simplicidade da liquidação (art.º 66º, n.º 2 do CIRE).
5.Determino que a insolvente proceda à entrega imediata ao administrador da insolvência dos documentos referidos no artigo 24.º, n.º 1 do CIRE, que ainda não se encontrem nos autos (art.º 36º, al. f), do CIRE).
6.Determino a imediata apreensão, para imediata entrega ao administrador da insolvência, dos elementos da contabilidade da insolvente e de todos os seus bens, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos (art.º 36º al. g) do CIRE).
7.Não há lugar à abertura de incidente de qualificação da insolvência (art. 295º al. b) do CIRE).
8. Fixo em 30 dias o prazo para a reclamação de créditos (art.º 36º n.º 1 al. j) do CIRE).
9.Não se designa dia para realização da Assembleia de Apreciação do Relatório a que alude o art.º 156º do CIRE, dada a composição da massa insolvente e o facto de a devedora não colocar qualquer hipótese de recuperação, sendo que não está em causa nenhuma das situações previstas no n.º 2 do art.º 36º (art.º 36º, al. n) do CIRE)
(…..)».

Não se conformando, apelou a insolvente, formulando, a final, as seguintes conclusões, que se reproduzem:
«1.O objecto do presente recurso é a decisão, vertida na sentença de primeira instância, que determinou a competência internacional do Tribunal a quo para decretar a insolvência da Requerida/Recorrente;
2.O Tribunal a quo decidiu ser competente para decretar a insolvência da Requerida/Recorrente, porquanto, e sem mais, entendeu: “Atento o disposto no artigo 126º do acordo de saída do Reino Unido da União Europeia, em conjugação com o disposto no artigo 3º, n.º 2, do Regulamento (UE) 2015/848 e o artigo 294, n.º 3, do CIRE, uma vez que a requerida tem estabelecimento em território nacional, o Tribunal é internacionalmente competente.”
3.Ora, a Requerida/Recorrente não se conforma com a decisão proferida, que acaba por determinar a sua insolvência, porquanto, é uma pessoa colectiva de direito inglês, “(…) LIMITED”, pessoa colectiva n.º 08.....6, com sede em 3 Hardman Square, Spinningfields, Manchester, Inglaterra, M3 3EB, Reino Unido;
4.Tem, a Recorrente, por presunção legal, o seu centro de interesses no local da sua sede, sendo este o critério (primeiro!) para determinar que os órgãos jurisdicionais competentes para decidir sobre a sua insolvência são os órgãos jurisdicionais do Reino Unido;
5.Não obstante a saída do Reino Unido da União Europeia, foi estabelecido um Acordo de transição para a estabilização da saída, que terminou em 30-12-2020; no qual se prevê (conforme os artigos 126 e 127, e no artigo 67º n.º 3 al. c) do Acordo de Saída) a continuação da aplicabilidade do Regulamento (UE) n.º 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Maio de 2015, às acções (em matéria civil e comercial, nas quais se aprecie a insolvência de pessoas colectivas) intentadas ainda durante o referido período de transição (sendo a presente acção intentada em juízo em 31-12-2020);
6.Pelo que, o Regulamento UE n.º 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Maio de 2015, é aplicável aos presentes autos, designadamente, as regras de competência internacional, no seu artigo 3º e seguintes, impondo-se tais regras ao estado português e seus órgãos jurisdicionais;
7.O Tribunal a quo ao decidir a questão da competência internacional, como decidiu, violou as regras estabelecidas para a determinação dessa competência, designadamente, violou os artigos 3º e 6º do Regulamento (UE) n.º 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Maio de 2015;
8.Os referidos preceitos legais estabelecem que, quer para a abertura do processo de insolvência, quer para a decisão de insolvência, de pessoa colectiva, são competentes os órgãos jurisdicionados do local da sua sede: “Os órgãos jurisdicionais do Estado-Membro em cujo território está situado o centro dos interesses principais do devedor são competentes para abrir o processo de insolvência («processo principal de insolvência»). O centro dos interesses principais é o local em que o devedor exerce habitualmente a administração dos seus interesses de forma habitual e cognoscível por terceiros. No caso de sociedades e pessoas coletivas, presume-se, até prova em contrário, que o centro dos interesses principais é o local da respetiva sede estatutária. Esta presunção só é aplicável se a sede estatutária não tiver sido transferida para outro Estado-Membro nos três meses anteriores ao pedido de abertura do processo de insolvência.”
9.O Tribunal a quo ao decidir, sem mais, e apenas com a referência (veja-se o texto da sentença recorrida) que a Requerida tem estabelecimento em território Português, como critério para determinar a sua competência internacional, violou o disposto nos artigos 3º e 6º do Regulamento (UE) n.º 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Maio de 2015;
10.Não se encontra demonstrado e fundamentado, na decisão recorrida, que a Recorrente não tem o seu centro de interesses no local da sua sede, exercício que se impunha ao Tribunal para afastar (mediante prova em contrário) a presunção legal que determina, como critério primeiro, a competência internacional quer para ser aberto um processo de insolvência quer para decretar a insolvência de pessoa colectiva (no caso, com sede no Reino Unido);
11.Apenas referir, como resulta da sentença recorrida, que a Requerida/Recorrente tem em Portugal um estabelecimento não é o critério legalmente estabelecido para declarar, em termos de competência internacional, a competência do Tribunal a quo para vir a declarar a insolvência da Requerida/Recorrente;
12.Nesses termos a sentença recorrida foi proferida com violação das regras de atribuição de competência internacional, pois resultam violadas as normas aplicáveis para tanto, os supra enunciados artigos 3º e 6º do Regulamento (UE) n.º 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Maio de 2015, aplicável aos presentes autos (por força do estabelecido como disposições transitórias para a saída do reino Unido da União Europeia);
13.A violação das regras da competência internacional, determinam a incompetência absoluta do Tribunal, do Tribunal a quo, nos termos enunciados na Lei Geral Substantiva (artigo do Código de Processo Civil, aplicável ex vi, artigo 17º do CIRE), nos artigos 96º, 97º e 99º, do Código de Processo Civil, impõem, in caso, que a Requerida/Recorrente seja absolvida da instância;
14.Por tudo o supra enunciado, a sentença proferida viola as regras de competência internacional, estabelecidas no Regulamento (UE) n.º 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Maio de 2015, quando o Tribunal a quo se declara competente para conhecer da Acção judicial interposta, decretando a insolvência da Requerida/Recorrente, pois que, esta, é uma pessoa colectiva de direito inglês, tem o seu principal centro de interesses na sua sede (por presunção legal), no Reino Unido, sendo este o critério (primeiro) para determinar os órgãos jurisdicionais competentes apreciar a situação de (eventual) insolvência da Recorrente.
Termos em que, e nos mais que vossas Excelências, Venerandos Juízes Desembargadores, doutamente suprirão, o presente recurso deve ser admitido, conhecido, revogada a sentença de fls… dos autos; devendo a mesma ser substituída por outra que considere os Tribunais Portugueses Incompetentes para decretar a insolvência da Requerida/Recorrente, assim dando provimento ao presente recurso, com as legais consequências».

Os requerentes apresentaram contra-alegações nos autos, pugnando pela improcedência do recurso e manutenção da sentença recorrida.

O recurso foi admitido, e, remetidos os autos a este Tribunal da Relação, após prolacção de despacho da Relatora, foram colhidos os vistos legais.

Cumpre, pois, apreciar e decidir.
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II.Questões a decidir:
Estando o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente, conforme decorre dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, a questão que se coloca à apreciação deste Tribunal consiste, unicamente, em aferir se o tribunal português é internacionalmente competente para apreciar o pedido de insolvência formulado nos autos.

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III.Fundamentação de facto:
A matéria de facto relevante é a que consta do relatório que antecede.

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IV.Do mérito do recurso:

Da leitura das conclusões recursivas resulta que a apelante afirma que o tribunal português não é internacionalmente competente para dirimir o pedido de insolvência dos autos, pois que, alega, é uma pessoa colectiva de direito inglês, que tem o seu principal centro de interesses na sua sede (por presunção legal), no Reino Unido, sendo este o critério (primeiro) para determinar os órgãos jurisdicionais competentes para apreciar a situação de (eventual) insolvência da recorrente.
Por isso, invoca a violação, por parte da decisão recorrida, dos artigos 3.º e 6.º do Regulamento (UE) n.º 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20/05/2015, aplicável aos presentes autos (por força do estabelecido como disposições transitórias para a saída do Reino Unido da União Europeia).

A questão que importa assim aferir, sendo esse o único objecto do presente recurso, é averiguar se os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para decidir do pedido aqui formulado, para apreciar e declarar a situação de insolvência, alegada e pedida pelos requerentes.

Vejamos então, sem esquecer que a incompetência internacional é uma excepção dilatória, de conhecimento oficioso, que determina a absolvição da instância (artigos 96.º, 97.º, 99.º, 576.º n.ºs 1 e 2 e 577.º al. a), todos do Código do Processo Civil ex vi, artigo 17.º do CIRE).

Nos termos do Acordo celebrado entre o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte da União Europeia e a Comunidade Europeia da Energia Atómica, (2019/C 384 I/01), publicado no Jornal Oficial da União Europeia em 12/11/2019, ficou estipulado que o Reino Unido deixaria de ser membro da União Europeia, estabelecendo, contudo, esse Acordo um período de transição para a consolidação dessa saída, estipulando que até 31/12/2020 o direito da União Europeia seria aplicável no Reino Unido e no seu território (cfr.artigos 126.º e 127.ºdo Acordo de Saída).
Nesse contexto, estabeleceu ainda o artigo 67º, n.º 3, alínea c) do referido Acordo de Saída que o Regulamento (UE) n.º 2015/848, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20/05/2015, seria aplicável aos processos de insolvência e às acções a que se refere o artigo 6.º n.º 1 desse regulamento, desde que o processo principal tenha sido intentado antes do termo do período de transição.
Donde, e a ser assim, atendendo a que o presente pedido de insolvência foi apresentado antes do termo do período de transição, tem aplicação nos autos o Regulamento (UE) 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20/05/2015, relativo aos processos de insolvência, com as consequências que daí advêm.

Nesta conformidade, e com interesse para os autos, diz então o artigo 3.º do aludido Regulamento, que a recorrente alega ter sido violado pela decisão recorrida, que «1.- Os órgãos jurisdicionais do Estado-Membro em cujo território está situado o centro dos interesses principais do devedor são competentes para abrir o processo de insolvência («processo principal de insolvência»). O centro dos interesses principais é o local em que o devedor exerce habitualmente a administração dos seus interesses de forma habitual e cognoscível por terceiros.
No caso de sociedades e pessoas coletivas, presume-se, até prova em contrário, que o centro dos interesses principais é o local da respetiva sede estatutária. Esta presunção só é aplicável se a sede estatutária não tiver sido transferida para outro Estado-Membro nos três meses anteriores ao pedido de abertura do processo de insolvência.
(…)
2. No caso de o centro dos interesses principais do devedor se situar no território de um Estado-Membro, os órgãos jurisdicionais de outro Estado-Membro são competentes para abrir um processo de insolvência relativo ao referido devedor se este possuir um estabelecimento no território desse outro Estado-Membro. Os efeitos desse processo são limitados aos bens do devedor que se encontrem neste último território.
3. Se for aberto um processo de insolvência nos termos do n.º 1, qualquer processo aberto posteriormente nos termos do n.º 2 constitui um processo secundário de insolvência.
4. Um processo territorial de insolvência referido no n.º 2 só pode ser aberto antes da abertura de um processo principal de insolvência nos termos do n.º 1, caso:
a)-Não seja possível abrir um processo de insolvência ao abrigo do n.º 1 em virtude das condições estabelecidas na lei do Estado-Membro em cujo território se situa o centro dos interesses principais do devedor; ou
b)-A abertura do processo territorial de insolvência seja requerida por:
i)-um credor cujo crédito decorra da exploração, ou esteja relacionado com a exploração, de um estabelecimento situado no território do Estado-Membro em que é requerida a abertura do processo territorial,
ii)-uma autoridade pública que, nos termos da lei do Estado-Membro em cujo território o estabelecimento está situado, tenha o direito de requerer a abertura de um processo de insolvência.
Quando é aberto um processo principal de insolvência, o processo territorial de insolvência passa a ser um processo secundário de insolvência».

Já ao nível do direito interno português, diz-nos o artigo 294.º do CIRE (Processo particular de insolvência) que «1- Se o devedor não tiver em Portugal a sua sede ou domicílio, nem o centro dos principais interesses, o processo de insolvência abrange apenas os seus bens situados em território português. 2- Se o devedor não tiver estabelecimento em Portugal, a competência internacional dos tribunais portugueses depende da verificação dos requisitos impostos pela alínea c) do n.º 1 do artigo 62.º do Código de Processo Civil. 3- Sempre que seja aplicável o Regulamento (UE) n.º 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, o processo particular é designado por processo territorial de insolvência até que seja aberto um processo principal, caso em que passa a ser designado por processo secundário».

Da conjugação dos normativos assim convocados, todos eles em consonância, resulta então que instaurado um processo principal de insolvência, o mesmo tem alcance universal, visando abarcar todo o património do devedor, cabendo a respectiva competência ao Estado-Membro onde se situa o centro dos interesses principais do devedor (consideração 23 e artigo 3.º n.º 1 do Regulamento); podendo também ser instaurado um processo secundário noutro Estado-Membro, que não aquele onde corre o processo principal, desde que o devedor possua aí um estabelecimento, sendo que os efeitos desse processo são os de liquidação dos bens do devedor que se encontrem neste último território, pressupondo por isso a prévia instauração do processo principal (considerações 23 e 24 e artigos 3.º n.ºs 2 e 3 e 34º e sgs. do Regulamento); já o processo territorial de insolvência, previsto no n.º 4 do artigo 3.º do Regulamento, que na terminologia do CIRE, à luz do artigo 294.º do CIRE, se trata de um processo particular de insolvência, é um processo de efeitos limitados (não tendo o devedor em Portugal a sua sede nem o seu centro de principais interesses abrange apenas os bens situados em território português - consideração 37, n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento e nº. 1 do artigo 294.º do CIRE), e pode ser instaurado antes da abertura do processo principal, quando se verifica uma das duas situações previstas no n.º 4 do artigo 3.º do Regulamento, tendo, contudo, certas especificidades, consignadas no artigo 295.º do CIRE. São essas especialidades de regime, em processo particular de insolvência, as seguintes: a)-O plano de insolvência ou de pagamentos só pode ser homologado pelo juiz se for aprovado por todos os credores afectados, caso preveja uma dação em pagamento, uma moratória, um perdão ou outras modificações de créditos sobre a insolvência; b)-A insolvência não é objecto de qualificação como fortuita ou culposa; c) Não são aplicáveis as disposições sobre exoneração do passivo restante.

Catarina Serra (na obra Lições de Direito da Insolvência, Almedina, pág. 633) em apreciação das questões aqui equacionadas, diz-nos que «Se, como é usual, quando o processo é aberto neste Estado-membro, estiver já aberto um processo no Estado-membro onde está situado o CIP (processo principal) o processo é considerado um genuíno processo secundário (cfr. art. 3.º n.º 3 do Regulamento). No caso contrário, o processo preexistente denomina-se “territorial” e só depois da abertura do processo principal se converte num processo secundário (cf. art. 3 nº 4 do Regulamento). É requisito comum – insiste-se - a localização de um estabelecimento do devedor no Estado-membro mas a abertura de processos territoriais está sujeito a requisitos adicionais, restritivos da hipótese (cf. art. 3º nº 4 do Regulamento)».

A propósito desta questão, dizem também Carvalho Fernandes e João Labareda (CIRE, anotado, 3.ª Edição, Quid Juris, 2015, a págs. 963/4) que «A admissibilidade de um processo de insolvência com efeitos limitados, em termos substancialmente idênticos aos do art. 294º, está também consagrada no art. 37º nº 2 do Regulamento.
Há, porém, duas diferenças no regime dos dois preceitos que é mister considerar. Por um lado, o art. 37º exige, como pressuposto do processo territorial (particular) que o devedor possua estabelecimento no território do Estado-Membro onde se pretende proceder à abertura. Por outro lodo, a legalidade do processo territorial depende da conformidade com o disposto no nº 4 do art.° 3 º, o que implica, por regra, a acessoriedade e subsidiariedade do processo territorial (cfr. Insolvências Transfronteiriças, cit., pág. 40)».

Assentes estes princípios gerais, verificamos então que a apelante defende em recurso que o tribunal recorrido não tem competência para dirimir o presente processo, pois que os órgãos jurisdicionais competentes para o efeito são os do Estado-Membro em cujo território está situado o centro dos seus interesses principais, o que se presume ser no Reino Unido, sua sede estatutária, sendo insuficiente a fundamentação vertida na sentença para afirmar a sua competência internacional. Donde resulta que parece ser entendimento da recorrente que o facto de ser uma sociedade estrangeira impede que lhe seja aberto um processo particular de insolvência no caso de ter representação permanente em Portugal (por ter no estrangeiro a sua sede e o seu centro de principais interesses).

Defendem os recorridos, em contra-alegações, por um lado, que a sentença em crise considerou confessados os factos alegados na petição inicial, e, entre esses, o facto de Portugal ser centro de interesses principal da recorrente, motivo pelo qual, afastada foi a presunção referida no artigo 3.º do Regulamento; por outro lado, que o Tribunal a quo fundamentou igualmente a sua competência no facto de a recorrente manter no território português o seu estabelecimento, sendo que, como decorre da sentença recorrida, os efeitos do processo são limitados aos bens do devedor que se encontrem no território português, donde resulta ser totalmente infundado o recurso em resposta.

Ora, se bem que tal alegação não seja totalmente correcta, pois que, como vimos, uma coisa é um processo universal de insolvência, outra coisa é um processo particular e territorial de insolvência, que visa apenas o estabelecimento em Portugal, e a liquidação dos bens aqui existentes, certo é que a sentença recorrida declarou a insolvência da requerida, limitando, contudo, os efeitos dessa insolvência ao preceituado no artigo 294.º do CIRE.

Acresce ainda que, se bem que em sede inicial os autores alegassem que o centro principal dos interesses da requerida era em Portugal, o que permitiria que em Portugal fosse aberto processo principal de insolvência da requerida, na sentença recorrida o tribunal a quo, afirmando a competência internacional do tribunal português, limitou o processo de insolvência, tal como resulta do seu dispositivo, a um processo particular e territorial de insolvência, ao afirmar que a insolvência da requerida é declarada, «nos termos e com os efeitos previstos no artigo 294º, n.º 1, do CIRE»,  afirmando também que «Não há lugar à abertura de incidente de qualificação da insolvência (art. 295º al. b) do CIRE)».

E com tal decisão se conformaram os recorridos que, pese embora tivessem, como vimos, em sede inicial, pedido a insolvência universal da recorrente, e a sua qualificação culposa com afectação dos seus administradores, perante a sentença recorrida, cujo objecto de recurso não solicitaram qualquer ampliação, afirmam que «sendo que, como decorre da Sentença ora recorrida, os efeitos do processo são limitados aos bens do devedor que se encontrem no território português, donde resulta ser totalmente infundado o recurso em resposta».

Dependendo a aplicação do n.º 1 do artigo 294.º do facto de o devedor não ter em Portugal a sua sede ou domicílio, nem o centro dos principais interesses, concluímos, pois, que assim foi entendido na sentença em recurso.
E bem, a nosso ver. Com efeito, no que concerne à questão do «centro dos interesses principais» não podemos deixar de salientar que em consonância com a matéria alegada em petição inicial, e não impugnada pela requerida, apenas temos assente, por confessado, que «Detendo a Requerida, ou pelo menos, tendo já sido detentora de uma sociedade em Portugal que detém uma licença para o desenvolvimento de um parque fotovoltaico com uma enorme capacidade de produção (200MW), o qual se encontra numa fase final de implementação, avaliado em largas dezenas de milhões de euros». A restante matéria alegada, na forma como é descrita, em termos de “suposição”, pois que os requerentes alegam que será em Portugal o actual centro principal de interesses, desconhecendo-se outro centro de interesses tão principal da requerida que não seja em Portugal, não é quanto a nós clara nem permite afirmar que actividade a requerida, enquanto sociedade estrangeira, desenvolve, dado que a alegação versa apenas, como vemos, sobre a representação em Portugal.

Pelo que, nada mais sendo trazido aos autos, sempre se presumiria, à luz do n.º 1 do artigo 3.º do Regulamento, que o centro dos interesses principais da requerida seria o local da sua sede estatutária, presunção que, em bom rigor, não foi afastada. E veja-se que tal circunstância foi também equacionada no pedido de insolvência da requerida, onde é alegado em petição inicial «Nessa medida, o processo de insolvência da Requerida pode ser aberto antes de aberto o processo principal, pelo que se verifica o cumprimento do requisito no n.º 4 do artigo 3º do Regulamento (UE) nº 2015/848 de 20 de Maio de 2015. Sendo certo que, os efeitos deste processo, estão claro limitados aos bens do devedor que se encontrem em Portugal, como referido no artigo 294º nº 1 do CIRE».

Ora, foi neste enquadramento que o tribunal recorrido decidiu, afirmando a sua competência, nos seguintes moldes «Atento o disposto no artigo 126º do acordo de saída do Reino Unido da União Europeia, em conjugação com o disposto no artigo 3º, n.º 2, do Regulamento (UE) 2015/848 e o artigo 294º, n.º 3, do CIRE, uma vez que a requerida tem um estabelecimento em território nacional, o Tribunal é internacionalmente competente».

E, a ser assim, não olvidando que a questão recorrida é apenas a de aferir da competência internacional dos tribunais portugueses para apreciar o pedido de insolvência, dúvidas não há, pois, em face do exposto, em afirmar tal competência. A substância recursiva da recorrente jamais poderia colher, pois que, em face da representação permanente em Portugal, sempre os tribunais portugueses seriam internacionalmente competentes para o processo de insolvência nos termos em que foi declarada, na medida em que resulta dos autos que a requerida tem um estabelecimento comercial domiciliado em território português, entendido este como uma organização de capital e de trabalho destinado ao exercício de uma actividade económica, como o exige o artigo 5.º do CIRE, decorrendo os créditos alegados pelos apelados da exploração desse mesmo estabelecimento situado em Portugal, o que permite assim, à luz do n.º 4 al. b), i), do artigo 3.º do Regulamento, a abertura de um processo territorial, e particular, de insolvência em Portugal (ver, sobre esta questão, o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, relatado por Acácio Neves, de 31/03/2009, disponível na dgsi assim sumariado «a) Os tribunais portugueses apenas são competentes para abrir um processo de insolvência universal a uma devedora sociedade estrangeira, com estabelecimento em Portugal e com sede noutro Estado-Membro, desde que o centro de interesses principais dessa sociedade se situe em Portugal; b) Caso a sociedade estrangeira, com sede no estrangeiro e com estabelecimento em Portugal, tenha o seu centro de interesses fora de Portugal, os tribunais portugueses apenas tem competência para instaurar processo particular de insolvência; c) Neste último caso, a insolvência apenas abrange bens situados em território português (isto, para além das especialidades referidas no art. 295º do ClRE); d) Existe a presunção de que o centro dos interesses principais corresponde ao local da sede estatutária»).

Acresce que, no nosso caso, sendo aberto indevidamente como processo principal, nada obstava a que o processo pudesse seguir como territorial e particular, verificados que estão os pressupostos aplicáveis, o que, ainda que a sentença não o afirme de forma expressa, acaba por fazer, ao restringir a declaração ao processo particular previsto no artigo 294.º do CIRE, com as especificidades previstas no artigo 295.º do mesmo código.
E nessa perspectiva, impõe-se a confirmação da sentença recorrida.

*

V.Decisão:
Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedente o presente recurso mantendo e confirmando a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
Registe e notifique.



Lisboa, 05/04/2022



Paula Cardoso
Renata Linhares de castro
Nuno Teixeira