Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5278/14.0TDLSB.L1-9
Relator: MARIA DO CARMO FERREIRA
Descritores: DECISÃO INSTRUTÓRIA
NULIDADE
DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIMENTO
Sumário: A omissão consistente na falta da enumeração dos factos indiciados e dos não indiciados ainda que por referência ao requerimento instrutório constitui nulidade da decisão instrutória.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 9ª. Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.


I–RELATÓRIO:


No processo comum supra identificado, do Juízo de Instrução Criminal de Lisboa–J7 do Tribunal da Comarca de Lisboa, foi proferido despacho de arquivamento relativamente ao denunciado crime de falsidade de testemunho contra G….

A assistente A..., S.A. requereu a abertura da Instrução.

Realizada a mesma, foi proferida a Decisão Instrutória na qual se decidiu não pronunciar o arguido pela prática do crime que lhe era imputado na denúncia.

Discordando daquela decisão de não pronúncia, a assistente veio interpor recurso, com os fundamentos constantes da motivação de fls. 412 a 442 dos autos, onde escreveu as seguintes:

CONCLUSÕES
1)– A ora recorrente assenta as suas alegações em duas linhas de argumentação: a primeira reside na ausência de fundamentação de facto do despacho de pronúncia, em virtude de este não conter a indicação dos factos que se consideram indiciariamente provados e não provados face à prova recolhida nos autos. Tal falta afecta esse despacho de nulidade perante o disposto no art.º 308º nº 2, por referência ao art.º 283º nº 3 al. b), ambos preceitos do C.P.P.
2)– A exigência de fundamentação das decisões dos tribunais, ressalvadas as que sejam de mero expediente, consagrada com a revisão constitucional de 1982 e alargada com a revisão de 1989 (de que provém a norma contida, após a renumeração operada pela revisão de 1997, no actual nº 1 do art.º 205º da C.R.P.), foi erigida em princípio geral extensivo a todos os ramos do direito, e, no âmbito do processo penal, constitui uma das garantias constitucionais de defesa, aludidas no nº 1 do art.º 32º da nossa Lei Fundamental.
3)– O dever de fundamentação das decisões judiciais que não se limitem a regular, de harmonia com a lei, os termos e andamento do processo, prende-se intimamente com a necessidade de credibilização dos actos decisórios perante a colectividade, impedindo que assentem em critérios puramente discricionários. A fundamentação dos actos, que deve ser expressa, clara e coerente e suficiente, “permite a sindicância da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando por isso como meio de autodisciplina.” (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, pág. 294.)
4)– Ao estatuir que a fundamentação das decisões judiciais a que alude se faça na forma prevista na lei, o legislador constitucional remeteu para a lei ordinária a delimitação do âmbito e extensão que a fundamentação há-de assumir relativamente a cada tipo de decisão, tendo em conta o respectivo objecto, mas respeitado que seja sempre o conteúdo mínimo da imposição constitucional, traduzido na possibilidade de conhecer as razões que motivaram a decisão.
5)– A exigência constitucional foi transposta para a nossa lei processual penal, prescrevendo o n.º do art.º 97º que “os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”.
6)– São estes os requisitos mínimos a que deve obedecer a fundamentação das decisões judiciais, quer conheçam de alguma questão interlocutória, quer ponham termo ao processo, nos casos em que lei não impõe requisitos mais alargados, como sucede no que concerne à sentença (cfr. nº 3 do art.º 374º do C.P.P., diploma ao qual pertencem os preceitos adiante citados sem menção especial), ao despacho que aplicar qualquer medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do T.I.R., à acusação (cfr. nº 3 do art.º 283º), ao despacho de pronúncia ou de não pronúncia (cfr. nº 2 do art.º 308º).
7)– Quanto à inobservância do dever de fundamentação, há que atentar no regime estabelecido nos nºs 1 (“A violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei”) e 2 (“Nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular) do art.º 118º.
8)– Assim, e porque inexiste norma que, de forma genérica, comine a nulidade dos actos decisórios não fundamentados, eles só serão nulos nos casos em que a lei o determine expressamente; inexistindo tal cominação, a falta de fundamentação constitui mera irregularidade, sujeita à disciplina do art.º 123º do mesmo diploma.
9)– A decisão recorrida assume, inequivocamente, a natureza de acto decisório, pois como tal são definidos os despachos dos juízes, quando, não se tratando de sentenças, puserem termo ao processo (cfr. al. b) do nº 1 do art.º 97º do C.P.P.). Sendo-lhe aplicável, por força do disposto no nº 2 do art.º 308º, o estabelecido nos nºs 2, 3 e 4 do art.º 283º, o despacho de não pronúncia (à semelhança do que sucede com o de pronúncia) deve conter, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam o juízo de suficiência ou insuficiência da prova indiciária, imprescindível para decidir se existe ou não uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança. O dever de fundamentação a que está sujeito pode ser cumprido “por remissão para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação ou no requerimento de abertura da instrução” (cfr. arts. 308º nº 2 e 307º nº 1 do C.P.P.).
10)– Lendo o despacho recorrido, verificamos que o mesmo se limita a tecer considerações gerais e, quanto à apreciação da prova recolhida nos autos, a salientar a inexistência indícios susceptíveis de integrar a tipicidade objectiva e subjectiva; no mais se atrelando ao despacho de arquivamento proferido pelo MP (que já de si continha uma apreciação muito incompleta e redutora da prova indiciária até então recolhida nos autos, como adiante se verá) para concluir não haver prova indiciária suficiente para submeter o arguido a julgamento pelo crime de abuso de confiança.
11)– Salvo o devido respeito, uma apreciação tão ligeira, mais do que constituir fundamentação deficiente, pode ser equiparada a falta de fundamentação. E que o despacho recorrido padece, efectivamente, da nulidade que ora lhe aponta a recorrente.
12)– O segundo fundamento do recurso reside na existência nos autos de indícios suficientes para submeter o arguido a julgamento.
13)– Antes de verificarmos se se verifica a invocada suficiência de indícios, vamos equacionar a questão no quadro legal atinente. As finalidades da instrução estão expressas no nº 1 do art.º 286º do C.P.P. (deste diploma serão os preceitos adiante citados sem menção especial): a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou o controlo judicial da decisão do MºPº de arquivar, sempre tendo em vista a submissão ou não da causa a julgamento.
14)– Nessa tarefa, e devido à estrutura acusatória do processo, “o juiz de instrução está vinculado (…) aos termos da própria acusação ou do requerimento instrutório do assistente”, quer uma, quer o outro, já deduzidos nos autos.
15)– A prolação de despacho de pronúncia depende - para além da existência dos necessários pressupostos processuais e demais condições de validade para que o tribunal possa conhecer em julgamento do mérito da acusação, - da recolha, até ao encerramento da instrução de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança.
16)– Para efeitos de pronúncia, o conceito de indícios suficientes é o que vem enunciado no nº 2 do art.º 283º, aplicável por determinação expressa do nº 2 do art.º 308º: são aqueles dos quais resulta uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada uma pena ou medida de segurança.
17)– O juízo comprovativo cometido ao juiz de instrução não se confunde com o julgamento da causa; a aferição dos indícios faz-se em função das probabilidades de o feito, uma vez levado a julgamento, vir a possibilitar uma decisão condenatória.
18)– Por isso, o grau de exigência quanto à consistência e verosimilhança dos indícios é menor do que aquele que é imposto ao juiz do julgamento, sem, no entanto, se prescindir de um juízo objectivo e apoiado no acervo probatório recolhido nos autos.
19)– Como resulta dos próprios autos de Inquérito, a assistente é uma sociedade comercial anónima que exerce a sua actividade nas áreas da consultadoria, tecnologias de informação, sistemas de informação geográfica e desenvolvimento de software à medida.
20)– O arguido foi trabalhador de uma empresa - B..., Lda. – desde 3 de Setembro de 2012 até ao dia 2 de Março de 2013.
21)– Durante aquele período de tempo, o arguido exerceu as funções de Director Técnico para a empresa B..., Lda.
22)– O objecto social da empresa mencionada no artigo anterior e da ora assistente complementam-se uma vez que, ambas as sociedades pertencem, entre outras, ao Engenheiro C..., Administrador da assistente e gerente da empresa na qual o denunciando exerceu funções de Director Técnico.
23)– Não obstante, em Janeiro de 2013, a assistente instaurou um processo disciplinar a uma trabalhadora sua, D....
24)– Esse processo disciplinar tinha como objectivo proceder ao despedimento da trabalhadora com justa causa.
25)– No entanto, a trabalhadora supra identificada, antecipou-se à conclusão do processo disciplinar instaurado pela ora assistente, e resolveu o contrato, alegando justa causa.
26)– Posto isto, não aceitando a ora assistente a resolução com justa causa da trabalhadora, nem as suas consequências,  veio a aludida ex-trabalhadora instaurar a competente acção judicial contra a ora assistente, que correu termos pela 1.ª secção do 3.º juízo do Tribunal do Trabalho de Lisboa, sob o processo n.º 1095/13.2TTLSB.
27)– Com efeito e no decurso da acção laboral, a trabalhadora arrolou como sua testemunha, o ora arguido, que prestou depoimento no supra referido processo no dia 17 de Fevereiro de 2014.
28)– Enquanto testemunha, foi o arguido advertido que teria de responder com verdade às perguntas que lhe fossem colocadas, sob pena de incorrer em responsabilidade criminal (sublinhado nosso).
29)– Após juramento, o ora arguido, referiu que não saiu “a mal” da empresa e que não tinha nada contra a ora assistente, mas que havia sido despedido pelo Engenheiro C..., gerente da B…, Lda., por causa do depoimento prestado no âmbito do processo disciplinar.
30)– Segundo o arguido, o objectivo do Engenheiro C... ao atribuir outras funções à trabalhadora D… era de a rebaixar (vide minuto 5’00 do seu depoimento).
31)– Referiu também, que o Engenheiro C... sempre quis pôr a D… na rua sem lhe pagar um tostão, confidenciando-lhe que queria aquela gaja fora dali (vide minuto 5’51 a 6’06 do seu depoimento).
32)– O Eng.º C... queria pôr a Engenheira D… na rua sem largar um único cêntimo nesse processo (minuto 45’00 a 45’08 do seu depoimento).
33)– Mais ainda, referiu o arguido que o Engenheiro C... lhe disse que Ela (Engenheira D…) vai aprender, custe o que custar (minuto 8’00 do seu depoimento) e que aquela foi a forma que ele (Engenheiro C...) arranjou para a pôr na rua (minuto 8’25 a 8’30 do seu depoimento). Ele disse-me!
34)– E que não raramente o Engenheiro C... tinha uma atitude negativa para com a D…e que a insultava.
35)– Também referiu o arguido ao Tribunal que o Engenheiro C... tinha ataques de fúria frequentemente (minuto 26’15 a 26’40 do seu depoimento) e que não sabe como é que a ex-trabalhadora aguentou; não se via na pele da Engenheira D…; eu próprio estava desgastado com a situação dela; ela não poderia continuar às mãos de uma pessoa completamente furiosa (minuto 39’42 a 40’33 do seu depoimento); tudo isso causou um grande desgaste à trabalhadora arguida (minuto 27’35 a 27’42 do seu depoimento).
36)– Ele (Engenheiro C...) falava com o intuito de me manipular  (minuto 1:13’15 a 1:14’20 do seu depoimento).
37)– Ele explodia! Nunca vi ninguém assim (Entenda-se, o Engenheiro C...)! (minuto 1:14’10 a 1:14’20 do seu depoimento).
38) Como se não bastasse, o Arguido, referiu que o Engenheiro C... não referiu à Engenheira D… quanto tempo iria estar a fazer trabalho de campo e que o trabalho se iria prolongar; não havia propriamente um dead line para o terminus desta função (minuto 18’20 a 18’31 do seu depoimento)
39)– Ora, em tudo o até aqui referido, o arguido faltou completamente à verdade!
40)– Antes de mais, se o Engenheiro C... fosse assim uma pessoa tão furiosa, como o descrito pelo arguido, certamente teria muitos trabalhadores a deixar os cargos que ocupam nas empresas supra referidas bem como, em possíveis acções que tivesse nos tribunais, teria trabalhadores das empresas arrolados como testemunhas, que poderiam confirmar o mesmo, o que na realidade não acontece nem aconteceu nos presentes autos, à excepção do arguido!
41)– Com efeito, a Engenheira E…, enquanto Directora de Operações quer da A… quer da B…, ora assistente, tinha acesso, controlava e geria todos os projectos em curso e era, por isso, o braço direito do Eng.º C....
42)– Pelo que, referiu em sede de depoimento (vide minutos 37’25 a 38’40 do seu depoimento), que a Engenheira D… apenas deveria ter estado a fazer trabalho de campo no máximo um mês, como ela própria sabia, tempo esse de conclusão do projecto.
43)– Ou seja, o projecto em causa não foi excepção.
44)– Como tal, é nossa opinião que as declarações prestadas pelo arguido, foram meramente especulativas, como muito bem sabia, e isso condicionou a apreciação dos factos em discussão.
45)– De modo a justificar ter conhecimento directo de tudo o que referiu, o arguido disse que o Engenheiro C... lhe confidenciava esses pormenores porque ele era o seu braço direito, o seu homem de confiança. 
46)– Mesmo sabendo que o seu depoimento não foi conforme à realidade, o denunciante decidiu prestá-lo nesses termos, na qualidade de testemunha num processo em tribunal e perante a entidade competente.
47)– Como tal, o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que essa conduta lhe era legalmente proibida e punida por lei, até porque a Meritíssima Juíza o advertiu para tal e o arguido prestou juramento nesse sentido.
48)– Com efeito, o arguido com o comportamento que adoptou, pretendeu obstaculizar a justiça, acusando a assistente de actos que não cometeu (bem sabendo disso), de modo a criar na convicção da Meritíssima Juiz que houve efectivamente justa causa para a D… ter resolvido o contrato, mercê do alegado comportamento do Engenheiro C....
49)– Se atentarmos na factualidade concreta, facilmente verificamos, que o arguido mentiu deliberadamente. Vejamos:
50)– Antes de mais, atendamos ao local de trabalho que do arguido quer da ex-trabalhadora.
51)– O arguido trabalhou como se referiu para a B…, Lda., cujas instalações são na Rua …Lisboa e a ex-trabalhadora D… trabalhou nos escritórios da A…, S.A., ora assistente, na Avenida …Lisboa.
52)– Ou seja,  trabalhando em locais geograficamente diferentes, o arguido não poderia saber se a Engenheira D… cumpria ou não as ordens do Engenheiro C....
53)– Se não estavam presentes no mesmo espaço físico, não os via, logo não poderia saber!
54) Pelo que tudo não passam de especulações ou suposições suas.
55)– Tal como não podia afirmar (como o fez), que o Engenheiro C..., a insultava e a queria colocar na rua a qualquer custo.
56)– Mais ainda e contrariamente ao afirmado pelo arguido, este nunca foi o homem de confiança ou o braço direito do Engenheiro C....
57)– A pessoa de confiança do Engenheiro C… quer na empresa A…, S.A., ora assistente, quer na empresa B…, Lda., sempre foi a Engenheira E…, que trabalhou para a participante desde Setembro de 2004 até 2015.
58)– Já o arguido, apenas trabalhou para o Engenheiro C... durante 6 (seis) meses, conforme contrato de trabalho que ora aqui se junta como DOC. 1 e cujo conteúdo se dá aqui por inteiramente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos.
59)– Dificilmente algum trabalhador em período experimental, se torna o braço direito da entidade empregadora.
60)– Mais, durante o tempo em que trabalhou para a B…, Lda., partilhou gabinete com o Engenheiro F… e (curiosamente, este) durante todo esse tempo só viu a Engenheira D… uma vez! (minuto 01’50 a 02’10, minuto 03’20 a 03’25 do depoimento do Engenheiro F…).
61)– Esta testemunha (Engenheiro F…) referiu que o Engenheiro G… não falava diariamente com a Engenheira D… e que no máximo falava com ela duas vezes por semana (minuto 04’55 a 05’20 do seu depoimento).
62)– Referiu ainda esta testemunha que o Engenheiro C... mostrava algum descontentamento em relação ao Engenheiro G…, porque o Engenheiro C... marcava reuniões com os clientes e o Engenheiro G… não aparecia a horas. Esse era um dos motivos dos conflitos. O Engenheiro C... não concordava porque o Engenheiro G…enquanto Director Técnico dava um mau exemplo aos restantes colaboradores (minuto 07’00 a 08’19 do depoimento do Eng.º F…).
63)– Ora, se o arguido não falava todos os dias com a sua ex-colega, se não estavam juntos frequentemente, e se contrariamente ao arguido referiu no seu depoimento, não só não era a pessoa de confiança do Engenheiro C... como também não era a pessoa essencial e o trabalhador exemplar que quis demonstrar ter sido, não podia saber o que se passava!
64)– Em suma: o Arguido mentiu deliberadamente em sede de discussão e julgamento.    Como se não bastasse, alegou o arguido que foi despedido por causa das declarações prestadas em sede de inquirições na pendência do processo disciplinar instaurado pela assistente à Engenheira D….
65)– Mais uma vez, não podemos deixar de repudiar tais afirmações.
66)– Na realidade, o que aconteceu, foi que o arguido não se tendo revelado apto para o cargo que deveria ocupar (enquanto Director Técnico), sendo o mesmo confirmado pelas testemunhas Engenheiro F… e pela Engenheira E…, findo o período experimental, decidiu a empresa cessar o contrato de trabalho que os unia, como se prova pelo DOC. 2 que ora se junta e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
67)– Também o mesmo foi confirmado pela Engenheira E… estava a chegar o final dos seis meses (entenda-se final do período experimental do contrato do arguido) e fizeram a avaliação. Era uma avaliação negativa. O Engenheiro G… faltava e chegava várias vezes atrasado às reuniões de coordenação às segundas feiras. O projecto da X estava muito atrasado e o Engenheiro G… não geria bem o projecto. O projecto da Y estava também muito atrasado. O seu desempenho não era positivo.
68)– Não satisfeito com a posição da empresa, face ao seu despedimento, claramente que o ora arguido não ficou satisfeito e obviamente saiu a mal.
69)– Tanto assim foi que prestou falsas declarações, mesmo sabendo que eram falsas e foram prestadas como intuito prejudicar a ora assistente no processo que correu termos pela 1.ª secção do 3.º juízo do Tribunal de Trabalho de Lisboa sob o n.º de processo 1095/13.2TTLSB e tanto assim foi que a mesma foi julgada improcedente,  confirmando o Tribunal da Relação de Lisboa, em sede de recurso, a mesma sentença.
70)– Assim, para se aferir se uma determinada declaração é falsa, para efeitos de aplicação do artigo 360.º do CP é necessário que haja um termo de comparação: uma declaração é falsa quando o conteúdo da declaração diverge daquilo sobre o qual se declara.
71)– Esta contrariedade não tem de existir apenas nos casos em que claramente existem depoimentos antagónicos, pois a ser assim, bastava que uma mentira fosse levada até ao fim, para deixar de ser considerada como tal e passasse a ser verdade!
72)– Estamos sim perante falsidade de testemunho quando a declaração não é conforme com o conhecimento real a que ela se reporta.
73)– O que efectivamente aconteceu, como se pôde depreender por comparação às declarações prestadas pelas testemunhas supra referidas e feito o enquadramento factual acima referido.
74)– O artigo 360.º, n.º 1 do CP prescreve que, “quem, como testemunha (…) perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova, depoimento, relatório, informação ou tradução, prestar depoimento (…) falsos, é punido…(...)”.
75)– Falso é, aqui, o contrário de verdadeiro, ou seja, para se dizer que um depoimento é falso é preciso confrontá-lo com os factos verdadeiros.
76)– Pelo que após a descrição da realidade dos factos,  que pôde ser comprovada por várias testemunhas, concluímos pela falsidade das declarações prestadas pelo arguido.
77)– Salvo melhor opinião, neste caso concreto encontra-se preenchido o tipo objectivo e subjectivo.
78)– Neste caso concreto, o agente (arguido) investido na qualidade processual de testemunha prestou depoimento falso perante o tribunal para que fosse recebido (esse depoimento) como meio de prova.
79)– Ao fazê-lo, agiu contrariamente ao que seria devido, ou seja mentiu de forma consciente, livre e deliberada, donde resulta evidente que agiu com dolo porque agiu com o propósito de prejudicar a assistente.
80)– O que efectivamente conseguiu, uma vez que a assistente foi parcialmente condenada (apenas em 35% do pedido inicial) na respectiva acção de reconhecimento da licitude do despedimento, sendo a mesma decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, pelo que a sua conduta se assume como especialmente gravosa e, como tal, deve ser especialmente agravada nos termos do disposto no artigo 361.º do CP.
81)– Em suma, não restam quaisquer dúvidas de que o arguido prestou falsas declarações, bem sabendo que esse comportamento era previsto e punido por lei, nos termos dos artigos 360.º e 361.º do CP e existem nos autos indícios suficientes da prática pelo arguido do crime referido e nessa medida, deveria o arguido ser pronunciado pela prática desse ilícito criminal.
82)– Deve, assim, o despacho de não pronúncia ser revogado e substituído pelo despacho de pronúncia, prosseguindo os autos os seus termos, assim se fazendo JUSTIÇA!
*

Em resposta, o Mº.Pº. produziu as alegações que constam de fls. 452 a 457 dos autos, concluindo que o recurso não merece provimento.

Neste Tribunal a Ex.m.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seu parecer nas folhas 466 a 468, no sentido da improcedência do recurso.

Cumpridos os vistos, procedeu-se a conferência.

Cumpre conhecer e decidir.

II–MOTIVAÇÃO.

É jurisprudência constante e pacífica (acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, em www.dgsi.pt) que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Ac. do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série-A, de 28.12.95).

No caso as questões colocadas sob recurso prendem-se com a nulidade da decisão por falta de fundamentação factual e pela verificação da existência dos indícios suficientes da prática do crime denunciado de  falsidade de testemunho.

Antes de avançarmos para o conhecimento do recurso, vejamos o teor da decisão instrutória em causa, transcrevendo-se a mesma no que mais releva para a apreciação do recurso:
Não existem nulidades, exceções ou questões prévias de que cumpra conhecer e que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
*

Conforme resulta do artº 286º do CPP a instrução tem como fim a comprovação judicial de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito com vista a submeter ou não os factos a julgamento.

No caso dos autos a instrução visa a comprovação judicial de não acusar o arguido, ou seja pretende-se que se afira da existência ou não de indícios dos quais resulte a possibilidade razoável de em julgamento vir a ser aplicada ao arguido uma pena, pela prática dos factos e crime que lhe é imputado no requerimento de abertura da instrução.

Dispõe o artº 308º nº 1 do CPP que se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o Juiz, por despacho pronuncia o arguido pelos respetivos factos, caso contrário, profere despacho de não-pronúncia.

Resulta por outro lado do artº 283º nº 2 do CPP, para onde remete o artº 308º nº 2 do mesmo diploma legal, que são de considerar suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de aos arguidos vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento uma pena ou uma medida de segurança.

O despacho de não pronúncia deverá ser proferido sempre que, perante o material probatório constante dos autos, não se indicie que o arguido, se vier a ser julgado, venha provavelmente a ser condenado, sendo tal probabilidade um pressuposto indispensável da submissão do feito a julgamento – v. G. Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 1994, 205-.

Para ser proferido despacho de pronúncia embora não seja preciso uma certeza da infração é necessário que os factos indiciários sejam suficientes e bastantes, para que logicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo da culpa do arguido.

A Assistente pretende a pronúncia do arguido pela prática de um crime de falsidade de testemunho p. e p. pelo artº 360º nº1 e 3 e 361º do Cod. Penal.

Pratica tal crime quem, como testemunha, perante Tribunal, prestar depoimento falso.

O bem jurídico protegido pelo crime de falso testemunho é essencialmente o da realização ou administração da justiça, como função do Estado, ou seja, o interesse do Estado na boa administração da justiça - cfr. Comentário Conimbricense, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, P 460, e, neste sentido, Ac. do STJ CJ do STJ, ano X, tomo III, 2002, pág. 227.

Para tanto, o Estado socorre-se de meios de prova para apuramento dos factos entre eles o depoimento de testemunhas. Só com base em depoimentos verídicos o Estado poderá assegurar devidamente a sua função de administração da Justiça-

Independentemente da relevância do depoimento para apreciação de determinados factos, o ilícito em questão é um crime de mera atividade, bastando-se a sua consumação com a declaração falsa.

A conduta típica descrita no aludido artigo reside na falsidade da declaração, sendo que tal falsidade só releva se o declarante se encontrar sujeito a um dever processual de verdade.

Uma declaração é falsa quando o que se declara diverge da verdade.

Para consumação deste tipo de ilícito é necessário no que respeita ao elemento subjetivo a existência de dolo, não sendo os factos punidos se cometidos por negligencia.

Ou seja a testemunha tem de relatar um facto inverídico, consciente da sua falsidade.

Vejamos então se no caso dos autos se indicia a prática de factos suscetíveis de integrar o referido tipo de ilícito.
Nos autos resulta indicado que o arguido trabalhou para a B…, Ldª., a qual tal como a assistente A…, Ldaª pertencem a  C....
D..., trabalhou para a Assistente, tendo instaurado contra esta ação laboral, que deu origem ao processo nº 1095/13.2TTLSB, no âmbito do qual o arguido G…, foi ouvido como testemunha em 13/1/2014 e 17/2/2014, conforme consta dos CD’s juntos aos autos, a cuja audição se procedeu e cujo conteúdo nessa parte aqui se dá por reproduzido.
No âmbito desses depoimentos o arguido referiu entre o mais que foi despedido pela B… e que o Engº.  C... pretendia despedir a Engª. D…, que trabalhava para a Assistente.
Referiu que embora não trabalhassem na mesma empresa ele a referida D…, trabalhavam em empresas do mesmo grupo e que por essa razão falava e colaborava com aquela.
Referiu que o Engº C..., referindo-se à Engª. D… dizia “esta gaja vai para a rua”, e que não lhe dava um tostão.
Referiu ainda a testemunha que escreveu a pedido do C... um email, na qual era solicitado a realização à Engª. D… de um trabalho de campo, que não era o que habitualmente a mesma fazia, por trabalhar na parte comercial. Tal trabalho de campo entre o mais consistia no levantamento e medição de tampas de caixas de esgoto, tratando-se de um trabalho pesado e sujo. Resulta ainda do referido depoimento que tal trabalho terá sido pedido com o propósito da Engª. D…, se aborrecer e ir embora.

Conforme trespassa dos referidos depoimentos o referido pelo arguido no âmbito do mencionado processo não foi agradável para a Assistente nem para o seu legal representante, contudo dos elementos de prova reunidos nos presentes autos, mormente dos depoimentos prestados pelas testemunhas ouvidas no decurso do inquérito, não resulta que o referido pelo arguido fosse inverídico. Ou seja o que que foi referido pelas testemunha ouvidas nos autos, F... - fls. 110 e 111-, H… - fls. 112 e 113-, E… fls. 114 e 115 não infirma o afirmado pelo arguido como testemunha no mencionado processo, dado que pese embora tais testemunhas digam nada ter ouvido ou presenciado sobre o referido pelo arguido, no seu depoimento, de tal não se pode extrair que é inverídico o que o mesmo afirmou.

A testemunha D…, ouvida no âmbito destes autos - fls. 138 e 139 dos autos-, confirmou ser verdade o que o arguido referiu enquanto testemunha no processo referido de que é autora e o arguido ouvido no âmbito destes autos igualmente confirmou ser verdade o que afirmou como testemunha- v. fls. 227e 227 verso dos autos-.

Face ao exposto considero que não se indicia a prática pelo arguido de factos suscetíveis de integrar a tipicidade objetiva e subjetiva do crime pelo qual a Assistente pretende a sua pronúncia.

Assim sendo e fazendo um juízo de prognose e após a análise crítica de todos os elementos de prova juntos autos, e, sendo de antever que as testemunhas ouvidas em julgamento manteriam a sua versão dos factos, considero que se afigura face ao referido como muito mais provável a absolvição do arguido em julgamento do que a sua condenação pela prática dos factos e ilícito que a Assistente lhe imputa até em nome do princípio in dúbio pro reo que em julgamento sempre o beneficiaria.

Pelo exposto, tendo em conta os elementos constantes dos autos e pelas razões referidas pelo Ministério Público, no despacho de arquivamento que aqui dou por reproduzidas, considero que não existem indícios suficientes e bastantes para pronunciar o arguido pelos factos e ilícitos referidos no requerimento de abertura da instrução, pelo que não será o mesmo pronunciado – cf. Artº 283º nº2 ex vi artº 308º nº2 do Cód. Proc. Penal-.
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DECISÃO
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Face ao exposto tendo em conta as considerações expendidas e disposições legais citadas não pronuncio o arguido G…, pela prática dos factos referidos no requerimento de abertura da instrução ou seja pela prática de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelos artºs 360º nº1 e nº3 e 361º do Cod. Penal, pelo que e consequentemente determino o arquivamento dos autos.
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Fixo em 2 UC’s  a Taxa de justiça devida pelo Assistente.
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Umas breves notas gerais sobre a questão em causa.
Desde já, necessário se torna, ter em mente que não compete ao Tribunal da Relação apreciar os factos apurados e substituir-se ao tribunal de 1ª Instância na prolação de despacho de pronúncia ou não pronúncia mas apenas, por força do recurso, com a base indiciária recolhida, corroborada ou não por outros elementos de prova, decidir se, no seu conjunto, são suficientes ou insuficientes para a prolação de um despacho de pronúncia ou não pronúncia a levar a efeito sempre em primeira instância. É isso que resulta do art. 286º do C.P.P.: a instrução tem como fim a comprovação judicial de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito com vista a submeter ou não os factos a julgamento.
A estrutura processual assente na separação funcional do Mº.Pº. e Juíz de Instrução tem os seus reflexos no que respeita ao direito probatório. Assim, na preparação investigatória da fase do inquérito, o Juíz tem uma acção tipificada, intervindo em regra quando estão em causa actos que interfiram com os direitos fundamentais.
Também na fase da Instrução, devido à estrutura acusatória do processo, “o juiz de instrução está vinculado (…) aos termos da própria acusação ou do requerimento instrutório do assistente”. A prolação de despacho de pronúncia depende - para além da “existência dos necessários pressupostos processuais e demais condições de validade para que o tribunal possa conhecer em julgamento do mérito da acusação”, - da recolha, até ao encerramento da instrução de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança.
Para efeitos de pronúncia, o conceito de indícios suficientes é o que vem enunciado no nº 2 do art. 283º do C.P.P., aplicável por determinação expressa do nº 2 do art. 308º do mesmo diploma legal: são aqueles dos quais resulta uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada uma pena ou medida de segurança.( )
Sendo que, o grau de exigência quanto à consistência e verosimilhança dos indícios é menor do que aquele que é imposto ao juiz do julgamento, sem, no entanto, se prescindir de um juízo objectivo e apoiado no acervo probatório recolhido nos autos, mas, é aqui onde se declara a verificação dos pressupostos indispensáveis para a submissão a julgamento dos factos descritos na acusação ou no requerimento de abertura da instrução. Dito de outra forma, na pronúncia não se profere decisão sobre a prática ou não dos crimes ou dos seus autores, mas apenas se declara que os autos fornecem indícios materiais da existência dos factos e da sua autoria na forma descrita na acusação ou no requerimento de abertura da instrução, isto é, não se exige que só valham, também como para efeitos de acusação, os indícios que conduzam à certeza da futura condenação, bastando os trazidos ao processo que persuadam de que, a manterem-se em julgamento, terão sérias probabilidades de conduzir a uma condenação do agente.

Dito de outra forma, como refere Germano Marques da Silva em Curso de Processo Penal, III, 196: “…em todos os casos de não pronúncia, o tribunal não conhece do mérito da causa, mas simplesmente da não verificação dos pressupostos necessários para que o processo prossiga com a acusação deduzida e submetida à comprovação na fase de instrução; trata-se sempre, pois, de uma decisão de conteúdo estritamente processual.”

No caso vertente, a Instrução não produziu outras provas pelo que as existentes foram-no na fase do inquérito. A prova produzida consistiu em tipo documental- fls. 19-91 e testemunhal.

E, o que se pode concluir desde logo, dos indícios recolhidos no inquérito é que se verifica que o arguido G… prestou depoimento como testemunha no processo laboral nº. 1095/13.2TTLSB.

O Mº.Pº. considerou inexistirem indícios de que prestou depoimento falso e arquivou o inquérito.

A Assistente requereu a abertura da instrução imputando diversos factos ao arguido, os quais preenchem na sua perspectiva o ilícito com previsão no artigo 360 do C.Penal.
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Considera a Assistente que a decisão se apresenta nula por falta de fundamentos factuais, ou seja, não descreve os factos que considerou indiciados e os que o não foram, por forma a poder entender-se porque não deve a causa ser submetida para a fase do julgamento.

Vejamos.

Como refere Germano Marques da Silva “o despacho de não pronúncia  é sempre uma decisão de não recebimento da acusação, quer se trate de acusação formal quer de acusação implícita no requerimento instrutório do assistente.”

Com efeito, o tribunal não conhece do mérito da causa, mas apenas da verificação dos pressupostos necessários para que o processo prossiga com a submissão do arguido a julgamento, por ser provável que venha a ser condenado.

Nesta medida, sendo uma decisão de ordem formal, o caso julgado formado é-o também formal, não impedindo que possa surgir um novo processo quando factos novos surjam (artº. 277 e 279 do C.P.P.), ou mesmo a revisão em recurso, regulada no artigo 449-2 do C.P.P.

E, é o requerimento de abertura de instrução, quando o Ministério Público arquiva o inquérito, que fixa o objecto do processo, que norteia a actividade investigatória do juiz de instrução; razão esta pela qual, no artigo 309.º, n.º 1, do C.P.P., se estabelece uma proibição de pronúncia do arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos no requerimento do assistente para a abertura da instrução.

Ora, pelas duas apontadas razões, entendemos que é fundamental que a decisão instrutória de não pronúncia, tal como a de pronúncia, descreva os factos que em concreto foram determinantes da não pronúncia, para que desse modo o conjunto de factos que se consideraram indiciados e os não indiciados, possam garantir os direitos de defesa do arguido, mormente para que o tribunal de recurso possa avaliar se efectivamente existem ou não os necessários pressupostos para submeter o agente a julgamento.

No caso em análise, conforme se lê no despacho recorrido, foi praticamente omitida a componente fáctica, não se descrevendo nem especificando quais os factos do requerimento instrutório que se consideram suficientemente indiciados, nem os que como tal se não consideram. A referência concreta a parte desses factos existe, mas  de forma abrangente, isto é, por referência às declarações do arguido e testemunhas, inserindo-se tão só na sua apreciação crítica, sem que descreva esses mesmos factos.

Ora, salvo o devido respeito, entendemos que só depois de fixada a matéria factual se poderia, de acordo com a lógica, concluir pela suficiência ou insuficiência da matéria para submeter ou não o arguido à fase do julgamento. A apreciação crítica (que consta da decisão recorrida) será já uma fundamentação da convicção formada pelo Sr. Juíz para a não submissão da causa à fase do julgamento, nos termos a que se reporta o nº. 5 do artigo 97 do C.P.P., fase posterior à selecção dos factos apurados e não apurados.

Vejamos agora as consequências da omissão factual (reportada ao requerimento da Instrução).

A questão de nulidade ou irregularidade desta verificação da omissão dos factos não é nova e a jurisprudência que conhecemos divide-se quanto a ela:

– A omissão dos factos que possibilitem chegar à conclusão da suficiência ou insuficiência da prova indiciária, inculcam a nulidade da decisão instrutória [art.ºs 308.º, n.º 2, 283.º, n.º 3, al. b); Ac. da Relação de Évora, datado de 1 de Março de 2005 e da Relação de Coimbra, de 13/Novembro de 2013; Acs. da Relação de Évora de 22-11-2005 (proc. n.º 1324/05-1); da Relação de Lisboa de 10-07-2007 (proc. n.º 1075/07-5); e da Relação do Porto de 17-02-2010 (proc. n.º 58/07.1 TAVNH.P1), os dois últimos publicados no sítio www.dgsi.pt.”
– A omissão da descrição e especificação dos factos do requerimento instrutório que se devam considerar suficientemente indiciados ou não, constitui uma irregularidade [art.º 123.º, n.º 2; Acs. do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 12 de Fevereiro de 2007, in recurso n.º 2335/06-1; de 4 de Julho de 2005, in Colectânea de Jurisprudência, Tomo IV, pág. 300]; Acs. da Relação de Guimarães de 05-01-2004 (proc. n.º 293/04-1) e de 12-02-2007 (proc. n.º 2335/06-1); e Ac. da Relação do Porto de 16-12-2009 (proc. n.º 568/0 GFVNG.P1), da Relação de Coimbra, de 18/5/2011, todos publicados inwww.dgsi.pt.

Conhecendo que é controversa a questão, plasmamos o nosso entendimento no entendimento do então Desembargador Orlando Afonso expresso no Ac. Rel. Évora de 1-3-2005 e também no Ac. da Relação de Guimarães, de 15/12/2012.
“… Para que este Tribunal da Relação possa fazer uma valoração lógica da gravidade, precisão e concordância dos indícios por forma a tê-los como suficientes ou insuficientes à aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança e desta forma optar pela necessidade da pronúncia ou não pronúncia, necessita saber quais os indícios tidos por assentes pela 1ª instância, para, em operação posterior, confrontando a prova carreada à instrução, se pronunciar num ou noutro sentido. Por isso, o despacho de pronúncia ou de não pronúncia há-de conter, ainda que resumidamente, os factos que possibilitaram chegar à conclusão da suficiência ou insuficiência da prova indiciária. No caso em apreço, nenhum facto indiciário, em termos objectivos, foi carreado ao despacho de pronúncia (nem foi afirmado que nenhum facto se provou) tendo, apenas, sido retiradas conclusões pela Mmª JIC, da prova que analisou sem dar por assente qualquer facto.
…Não compete ao Tribunal da Relação concatenar os factos apurados e substituir-se à Mmª Juiz de Instrução na prolação de despacho de pronúncia ou não pronúncia mas tão somente, por força do recurso, em vista de factos indiciários descritos, corroborados ou não por outros elementos dos autos, decidir se todos eles são suficientes ou insuficientes para o proferimento de um despacho de pronúncia ou não pronúncia a levar a efeito sempre em primeira instância. A ausência de factos descritos impede a análise pelo Tribunal “ad quem” da bondade da solução encontrada em sede de instrução). (…) A não descrição dos factos acarreta a nulidade do despacho (art.308.º, nº2, com referência ao art. 283.º, nº3, b) do CPP). E constitui esta falta, nulidade cognoscível por este Tribunal da Relação. Não fazendo, embora, parte do elenco de nulidades descritas nas alíneas a) a f) do art.119º do CPP, não pode deixar de ter-se como insanável a nulidade consistente na falta de narração, ainda que sintética, dos factos que constituem fundamento da decisão de pronúncia ou não pronúncia, tendo em atenção que as disposições do art.119º do CPP não são taxativas: constituem nulidades insanáveis, para além das que estão descritas nas alíneas daquele dispositivo, todas as que como tal forem cominadas noutras disposições legais, dentro ou fora daquele diploma legal. Se é certo que o art. 283.º, nº.3, do CPP, a que se refere o art. 308.º, do mesmo código, não diz que se trata de uma nulidade insanável (o que, primo conspectu, poderia numa interpretação declarativa restrita conduzir à sua classificação como nulidade sanável, e nessa medida, dependente de arguição), a lógica do sistema, em matéria de tão fundamental importância, porque pressuposto da subsunção, necessariamente nos tem de conduzir a interpretação diferente. Se a falta de narração dos factos na acusação conduz, nos termos do art.311.º, n.º2, a), do CPP à rejeição desta, não faz sentido que o Tribunal de recurso deva apreciar um despacho de pronúncia ou não pronúncia se o mesmo for omisso quanto à narração dos factos indiciários. E, se nenhum facto resulta provado o Juiz deve dizê-lo expressamente. Dispõe o art.308.º, nº2, do CPP que é correspondentemente aplicável ao despacho de pronúncia (ou de não pronúncia) o disposto no art.283.º,n.os 2, 3 e 4 do mesmo código, ou seja, para o que ao caso interessa, a necessidade de narração ainda que sintética dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena. Poder-se-ia argumentar que tal imposição apenas respeitaria ao despacho de pronúncia e não ao de não pronúncia já que, colocados os artigos em similitude, não existe para o despacho de arquivamento a exigência semelhante ao de acusação. Duas ordens de razões levam-nos a concluir o contrário. Em primeiro lugar, o art.308.º, n.º 2, do CPP não distingue. Diz, apenas, que “é correspondentemente aplicável ao despacho referido no número anterior”, sendo certo que o despacho referido no número anterior é tanto o de pronúncia como o de não pronúncia. E, “ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus”. Em segundo lugar há uma razão de orgânica judiciária. Do despacho de arquivamento (proferido pelo MºPº), se não tiver sido requerida a instrução, pode-se reclamar, nos termos do art.278º do CPP, para o superior hierárquico competente o qual se pode substituir ao magistrado de grau hierárquico inferior, nomeadamente avocando o processo (art.79ºnº4 do Estatuto do Ministério Público), o que não implica a necessidade estrita de descrição de factos que podem e devem ser superiormente compulsados. O mesmo não se passa com o despacho de não pronúncia. Deste despacho pode-se recorrer e o Tribunal superior ao apreciar o recurso não se substitui ao Tribunal “a quo”, ou seja, não pode aquele proferir um despacho de pronúncia ou de não pronúncia. Apenas pode, em face dos elementos constantes da decisão instrutória, (o recurso não é do conjunto processual é de uma decisão específica) decidir se o Tribunal recorrido deve ou não modificar o seu despacho.
Para tanto tem a decisão recorrida de fornecer ao Tribunal “ad quem” todos os elementos fácticos que lhe permitam apreciar o recurso. Daí que o art. 308.º, nº2, não tenha e bem feito distinção entre um ou outro dos despachos impondo a ambos as mesmas exigências de narração factual…”.

Assim se entendendo, pela verificação de nulidade (artºs. 308-2 e 283-3, do C.P.P.) do despacho de não pronúncia, nos termos acabados de expôr, damos provimento ao recurso.

O conhecimento desta nulidade obsta ao das restantes questões colocadas.

III–DECISÃO.
Termos em que acordam os Juízes que compõem a 9ª.Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa, em:
– dar provimento ao recurso interposto pela assistente, e, consequentemente  revogamos o despacho de não pronúncia, o qual deverá ser substituído por outro que supra a omissão consistente na falta da enumeração dos factos indiciados e dos não indiciados ainda que por referência ao requerimento instrutório;



Lisboa, 8/fevereiro/2018



(Maria do Carmo Ferreira) (Acórdão elaborado e integralmente revisto pela relatora – artº 94º, nº 2 do C.P.Penal)

(Cristina Branco)