Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2704/05.2TBVFX-D.L1-1
Relator: JOÃO RAMOS DE SOUSA
Descritores: PRESTAÇÃO DE ALIMENTOS
FIXAÇÃO DA PENSÃO
FUNDO DE GARANTIA DE ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/09/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. O montante da prestação de alimentos assegurada pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, nos termos da Lei  75/98, de 19 de novembro, e  DL 164/99, de 13 de maio, é determinado tendo em conta todos os fatores expressos no art. 2º.2 daquela Lei, e não apenas atendendo à pensão de alimentos já fixada pelo Tribunal.
2. Assim, é legal fixar um montante superior àquela pensão, desde que atendendo àqueles fatores e dentro do limite de 1 IAS, conforme estabelecido no art. 2º.1 da mesma Lei.
3. Esta pensão é paga provisoriamente pelo Fundo ainda que estejam a decorrer diligências no estrangeiro para sua cobrança ao legalmente obrigado, nos termos da Convenção sobre a Cobrança de Alimentos no Estrangeiro, Nova Iorque 20 de junho de 1956.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Lisboa:

Relatório

Por decisão singular de 2014.02.28, o Relator revogou o despacho do 1º Juízo de Família e Menores da Comarca de Vila Franca de Xira que havia mandado arquivar o incidente de incumprimento de responsabilidades parentais requerido por AR, mãe do menor HR, contra GA, pai do mesmo menor: o Relator ordenou que os autos continuem pendentes até solução definitiva, e fixou a favor do menor HR uma pensão mensal de €180,00, a cargo do FGADM, Fundo de Garantia dos Alimentos devidos a Menores (segurança Social), até que se consiga cobrá-la ao requerido GA.

Os autos baixaram à 1ª Instância. E aí, o IGFSS, Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P., reclamou para esta Conferência, pedindo que decrete a nulidade da decisão singular do Relator e de todo o processado anterior, devendo os autos baixar depois à 1ª Instância a fim de o FGADM ser aí notificado nos termos legais do despacho recorrido.

A recorrente pronunciou-se no sentido de que a reclamação é improcedente, devendo confirmar-se aquela decisão singular.

Foram dispensados os vistos. Cumpre decidir se é ou não de manter a decisão sumária.

A decisão reclamada foi a seguinte:

Fundamentos

Factos

Apuraram-se os seguintes factos:

A requerente propôs na Comarca de …. incidente de incumprimento da regulação de responsabilidades parentais contra o requerido, para cobrança dos alimentos devidos ao menor HR.

O requerido é natural de S. …, tendo autorização de residência em Portugal nº … – fls. 23.

Tem advogado constituído em Portugal – fls.83.

Não foi encontrado em Portugal, constando que se ausentou para o …, mas mantendo endereço eletrónico e indicando estar a viver em África – fls. 83.

Por sentença de regulação do exercício das responsabilidades parentais a que os presentes autos estão apensos, o requerido foi condenado no pagamento da pensão alimentar, a favor do menor HR, de € 130,00 mensais, depois reduzida para € 50,00 mensais.

Por decisão de 2012.10…., o Tribunal julgou procedente o incidente de incumprimento, tendo em vista a cobrança de alimentos no estrangeiro – fls. 60-61.

Procedeu-se ao cálculo dos alimentos em dívida, atualizado de acordo com a taxa de inflação, e o total foi liquidado em € 10.513,19.

A requerente está inscrita no serviço de emprego de … desde 2011.10.25, encontrando-se desde 2013.03.14, “na situação de desempregado/a à procura de novo emprego” – fls. 101.

Após inquérito social, o Instituto da Segurança Social concluiu que a requerente reúne as condições de recurso à pensão social de alimentos legalmente prevista – fls. 49.

Análise jurídica

O Relator fundamentou-se nas considerações seguintes:
O Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores
Este Fundo foi instituído pelo DL 164/99, de 13 de maio, e a respetiva regulamentação atualizada pelo DL 70/2010, de 16 de junho e L64/2012, de 20 de dezembro.
O Fundo assegura o pagamento das prestações de alimentos, até ao início do efectivo cumprimento pela pessoa que tem o dever de pagá-los, quando: (a) a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfizer as quantias em dívida (...); e (b) o menor não tiver rendimento ilíquido superior ao indexante dos apoios sociais (IAS) nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre – art. 3º.1.b do DL 164/99. Considera-se que é assim quando a capitação dos rendimentos do respetivo agregado social não for superior ao valor do IAS – art. 3º.2 atualizado.



O Instituto da Segurança Social procedeu ao inquérito previsto no art. 4º.1 do DL 164/99 e apresentou o respetivo relatório – fls. 48-52.
Dele não resultaram elementos que tornem o menor (ou a requerente, sua mãe) inelegível para receber aquela pensão de alimentos. Pelo contrário, o relatório concluiu expressamente que “A requerente reúne as condições de recursos à prestação social em apreço, em conformidade com o supra citado diploma legal”  – fls. 49.

Examinemos a tramitação seguida.
Após várias tentativas para determinar o paradeiro do requerido, a mãe do menor veio dizer que desconhece o paradeiro deste, sabendo por terceiros que o mesmo está “em Inglaterra e nada mais” – fls. 58.
Com base apenas nesta suposição, o Tribunal recorrido apressou-se a endossar às autoridades do Reino Unido um pedido internacional de cobrança de alimentos no estrangeiro.
O pedido seguiu e as autoridades daquele país limitaram-se a informar que o tinham transmitido à entidade administrativa competente –fls.93.
Com base nisto, e não tendo sido obtida qualquer informação útil sobre o requerido nas bases de dados da Segurança Social, o MºPº promoveu “o arquivamento dos presentes autos”.
Notificada, a requerente respondeu: “venho mostrar o meu desagrado de arquivação do meu processo de incumprimento. Tenho andado de um lado para o outro. Gastei o que não tinha em certidão de nascimento e num contabilista para me fazer a conta da dívida, Fui à segurança social e me foi negado o Fundo de garantia. Por favor, digam o que mais poderei fazer para resolverem o meu problema” – fls. 95.
O pai GA está judicialmente obrigado à prestação de alimentos, conforme resulta da sentença que regulou o exercício das responsabilidades parentais, e da decisão acima referida que constatou o incumprimento do pai.
A isto, o MºPº objeta que foram acionados os meios com vista à cobrança dos alimentos no estrangeiro, tendo o respetivo pedido sido apresentado às autoridades do Reino Unido, que o encaminharam para a sua South East Regional Reciprocal Enforcement Unit. E que a mãe não apresentou queixa-crime por incumprimento do dever de alimentos.
Isso é verdade. Mas não é menos verdade que é desconhecido o paradeiro do requerido em Inglaterra, e o próprio requerido comunicou ao Tribunal que se encontra a trabalhar em África.  E, enquanto a South East Regional Reciprocal Enforcement Unit anda em Londres à procura do “homem das …”, o menor HR precisa de comer, vestir, calçar e estudar.  Sendo até possível que daqui a alguns anos o serviço de Sua Majestade Britânica venha lamentar muito diplomaticamente que afinal, depois de muitos esforços ...não encontrou o procurado.
E mesmo que o encontre, não está garantido que lhe consiga cobrar a dívida, atenta a mobilidade de mão-de-obra estrangeira, que circula facilmente em toda a Commonwealth. Foi o que já aconteceu em Portugal.
Seja como for, se a dívida for cobrada ao pai, a Segurança Social em nada fica prejudicada, pois a mãe terá de repor as importâncias recebidas em duplicado – art. 5º do DL 164/99, garantias de reembolso.



Enfim, quanto à queixa-crime por incumprimento do dever de alimentos, desconhecendo-se o paradeiro do pai, ela ia ter decerto o mesmo destino deste incidente de incumprimento. Além de que não é obrigação da mãe apresentar queixa-crime contra o pai do seu filho. Nem pode ser sancionada por isso.
Não é altura para arquivar os autos. O tribunal deve continuar a acompanhar o incidente até haver resposta das autoridades estrangeiras, devendo continuar a fazer diligências para localizar o pai do menor, nomeadamente através do endereço eletrónico que agora obteve, …@hotmail.com, pedindo ao respetivo operador informação sobre o local/país de onde foi enviada aquela mensagem eletrónica, se veio de África ou não. Também pode pedir informação (não obrigatória) ao respetivo Advogado.

É razoável o pedido de € 180,00 provisoriamente a cargo do FGA
É verdade que a 1ª instância reduziu a pensão do pai de € 180,00 para € 50,00.  Mas isso aconteceu num momento em que o pai do menor se encontrava desempregado.  Neste momento, encontra-se a trabalhar no estrangeiro (de outro modo, decerto teria já regressado a Portugal, onde tinha autorização de residência e estava até inscrito na segurança social). A pensão de € 180,00 é pois razoável, adequada às condições do pai e às necessidades do menor. De qualquer modo, não excede o montante de 1 IAS, conforme estabelecido no art. 3º.5 do DL 164/99 atualizado.
Esta pensão só é devida pela Segurança Social a partir do 1º dia do mês seguinte à presente decisão, “não havendo lugar ao pagamento de prestações vencidas” – assim dispõe o art. 4º.4/5 do mesmo decreto-lei.



Conclusões do reclamante
O reclamante observa o seguinte (conclusões):
(…)

Conclusões da reclamada

Mas a reclamada objeta o seguinte:

(…)

O FGADM não tinha de ser notificado da interposição de recurso

O FGADM, Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, foi regulamentado pelo DL 70/2010, de 16 de junho, e L 64/2012, de 20 de dezembro. Institui-se aí um Fundo, gerido em conta especial pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social – art. 2º.1.  Esperava-se que os tribunais mandassem fazer as diligências de prova, oficiosamente ou a requerimento do MºPº, para apurar o montante das prestações de alimentos que o Estado iria assegurar suipletivamente, quando a pessoa judicialmente obrigada não satisfizesse as quantias em dívida. Era uma iniciativa legislativa generosa, assente no direito constitucional que as crianças têm à proteção da sociedade e do Estado – art. 69.1/2 da CRP.

Mas, como já disse Roscoe Pound, uma coisa é a law in the books, e outra coisa é a law in action

E o IGFSS vem agora dizer (law in action) que o Fundo devia ter sido notificado do recurso, do despacho de admissão do recurso, das alegações e das contra-alegações. Que, se lhe assiste o direito de recorrer  das decisões, terá, por maioria de razão, o direito de contra-alegar nos recursos interpostos pelos requerentes... (conclusão L).

Em manifesta contradição com o espírito e a letra da lei, que apenas manda notificar a decisão do tribunal ao MºPº, ao representante legal do menor e ao IGFSS (naturalmente, para cumprir a decisão do Tribunal) – art. 4.3 do DL 164/99.

Tal notificação para alegações de recurso também não está estabelecida nos arts. 181 e 189 da OTM.

Até à decisão que fixa a pensão, o IGFSS não é parte no processo. A sua intervenção é meramente acidental. Só estabelecida pela lei depois da decisão que mandou pagar a pensão (art. 4.3 referido), se discordar dela. Nunca antes. É o que resulta  do Ac.STJ 12/2009 (uniformizador de jurisprudência), publicado no DR, I Série, de 5 de agosto de 2009, p. 5084: a obrigação do Fundo só é exigível no mês seguinte à notificação da decisão do tribunal que fixa a pensão.

O IGFSS foi notificado quando devia. Antes da decisão do recurso só tinha havido uma decisão de primeira instância mandando arquivar o processo, decisão que em nada afetava os seus interesses.

Só a decisão do Relator o podia afetar. E por isso foi dela notificado no momento oportuno, como determina o art. 4.3 do DL 164/99.

Admitamos que, para defesa desses interesses (financeiros/orçamentais), possa agora reclamar para a Conferência quando é notificado da decisão do Relator. Está muito a tempo de defendê-los, não beneficiando do disposto nos arts. 195, 197 e 223 do CPC.

Assim, não ocorreu qualquer nulidade, improcedendo esta arguição.

A prestação de alimentos do Fundo tem caráter social

O IGFSS engana-se redondamente quando alega que o pagamento da pensão pelo Fundo pressupõe a impossibilidade de cobrança dos alimentos no estrangeiro quando o obrigado aí reside.

Desde logo, porque não se apurou sequer que o pai do menor esteja a viver no estrangeiro, em Inglaterra ou em África. Apenas se suspeita, sem haver a certeza, que ele não estará em Portugal.

Podem continuar as diligências para a localização do obrigado a alimentos; mas, até lá, o menor HR precisa de comer, vestir, calçar e estudar. Não vai pedir esmola para a porta do Fundo nem para a porta do IGFSS. A lei previu, como é próprio de um Estado social, que o Estado lhe adiante uma pensão fixada justamente pelo Tribunal. Seguimos aqui o que é o entendimento generalizado da doutrina e da jurisprudência (do mais elementar bom-senso):  esperar por uma investigação internacional que não se sabe quando acabará, seria condenar o menor a passar dificuldades inadmissíveis e recusar-lhe a proteção a que ele tem direito, em violação expressa do direito consagrado no art. 69.2 da Constituição.   

Por todos, basta citar, neste sentido, o Ac. TRL de 2013.04.11 (Rel. Magda Geraldes), DGSI.

Se tem caráter social, pode ser superior à fixada ao obrigado a alimentos
Ao FGADM não cabe legalmente substituir definitivamente uma obrigação de alimentos devida ao menor. Essa obrigação é do pai, conforme fixado na sentença de regulação de responsabilidades parentais, e o Fundo só intervém como instituição da segurança social, enquanto não for possível obter a pensão de quem está obrigado a cumpri-la.
Mas, quando não é possível obter do pai o pagamento da sua parte no sustento dos filhos, designadamente por se desconhecerem os seus rendimentos, o Fundo intervém, para lhes garantir  condições mínimas de sobrevivência e bem-estar, nos termos do art. 69.1 da Constituição, art. 2º.2 da Lei 75/98 e art. 3º.4 do DL 164/99.
Trata-se de uma prestação de segurança social diferente da mera pensão de alimentos a cargo do pai. E tanto assim que o respetivo montante é fixado pelo tribunal atendendo “à capacidade económica do agregado familiar, ao montante da prestação de  alimentos fixada e às necessidades específicas do menor” – art. 2º.2 da Lei 75/98 e art. 3º.5 do DL 164/99 (art. 17 da Lei 64/2012, de 20 de dezembro). Não só atendendo ao montante da prestação de alimentos fixada.
Na verdade, o montante dos alimentos fixados é somente uma das variáveis a que o tribunal tem aqui de atender, e o tribunal não pode deixar de ter em consideração também as outras. A lei só estabelece aqui um limite máximo: as prestações a fixar pelo tribunal não podem exceder mensalmente por cada devedor o montante de 1 IAS  – art. 2º.1 da Lei 75/98 (art. 183 a Lei 66-B/2012, de 31 de dezembro).
A prestação total fixada ao Fundo (180,00 euros) é inferior a 1 IAS. O Relator teve em conta todas aquelas considerações legais.
E o facto de continuarem as diligências no estrangeiro para localização e tentativa de cobrança da pensão ao pai (diligências sempre morosas, e que não devem paralisar o pagamento pelo Fundo, conforme decidiu o Ac. TRL já citado) não impede que se fixe provisoriamente uma pensão a cargo do Fundo, que será devidamente reembolsado quando for possível cobrá-las ao pai. Outra solução seria, além de burocrática e formalista, inconstitucional.

Estas considerações em nada são afetadas pelo facto de as autoridades do Reino Unido terem  enviado, em 18 de fevereiro último, o pedido de cobrança da pensão ao Lincoln Family Proceedings Court (fls. 221-223). Até agora, nada foi recebido. Mas se o tribunal britânico conseguir cobrar aquela importância, tanto melhor: a intervenção do Fundo deixará de ser necessária e será devidamente reembolsado. Desejemos-lhe melhor sorte do que a que tiveram os tribunais portugueses.
Assim, a reclamação é improcedente. Pelo que a confirmamos totalmente.

Em suma:
1. O montante da prestação de alimentos assegurada pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, nos termos da Lei  75/98, de 19 de novembro, e  DL 164/99, de 13 de maio, é determinado tendo em conta todos os fatores expressos no art. 2º.2 daquela Lei, e não apenas atendendo à pensão de alimentos já fixada pelo Tribunal.
2. Assim, é legal fixar um montante superior àquela pensão, desde que atendendo àqueles fatores e dentro do limite de 1 IAS, conforme estabelecido no art. 2º.1 da mesma Lei.
3. Esta pensão é paga provisoriamente pelo Fundo ainda que estejam a decorrer diligências no estrangeiro para sua cobrança ao legalmente obrigado, nos termos da Convenção sobre a Cobrança de Alimentos no Estrangeiro, Nova Iorque 20 de junho de 1956.



Decisão

Assim, e pelo exposto, considerando improcedente a reclamação, confirmamos a decisão reclamada.
Sem custas – art. 4.1.v do Regulamento das Custas Processuais, com a redação do art. 185 da Lei do Orçamento do Estado para 2013, Lei 66-B/2012, de 1 de dezembro.

Processado e revisto

Lisboa, 2014.07.09

João Ramos de Sousa

Manuel Marques

Pedro Brighton