Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3820/17.3T8VFX-A.L1-4
Relator: ALBERTINA PEREIRA
Descritores: MÁ-FÉ PROCESSUAL
CONDENAÇÃO EM MULTA
TRÂNSITO EM JULGADO DA DECISÃO
PROTELAMENTO SEM FUNDAMENTO SÉRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/09/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: Incorre em litigância de má-fé a parte (aqui ré), que ao longo do processo, mediante o recurso sistemático aos limites dos prazos para a prática de qualquer acto e à sistemática não autoliquidação da taxas devidas, determinou a necessidade de intervenção da secretaria com emissão de guias e o decurso dos respectivos prazos para sua emissão e o seu pagamento, tendo a mesma ré logrado com este expediente, impedir durante cerca de 4 meses o trânsito em julgado da decisão condenatória de que foi alvo, colocando assim em causa uma das finalidades do processo que é a justa e atempada resolução do litígio – com todos os prejuízos, delongas e inconvenientes daí decorrentes, não só para a contraparte (neste caso o trabalhador), como para o próprio sistema de justiça.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa

1. Relatório
1.1. Nos presentes autos em que figuram como autor AAA e como ré BBB, Lda., face ao comportamento assumido por esta nos autos e após ter-lhe sido concedido prazo para se pronunciar, veio a mesma a ser condenada como litigante de má-fé, em 12 UCS.
1.2. Inconformada com esta decisão dela recorre a ré, concluindo o seguinte:
Não se verificam os pressupostos para a aplicação do instituto da litigância de má-fé.
2- Os factos constantes da decisão não permitem a sua integração no conceito de litigância de má-fé previsto no Art.º 542º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
3- Não existe qualquer carácter doloso na actuação da recorrente, nem tal resulta do despacho recorrido.
4- A recorrente foi sancionada pecuniariamente, nos termos dos Art.º 139º, n.º 6 e 642º, n.º 1 do CPC, pelos actos processuais praticados, precisamente, dentro do enquadramento processual consagrado.
5- A recorrente não incorreu na prática de qualquer acto ilegal.
6- Não podem tais situações virem agora a constituir litigância de má-fé.
7- O facto julgado pela própria Meritíssima Juiz a quo como justo impedimento, não pode ver valorado para efeitos de litigância de má-fé.
8- Ao decidir como decidiu o Tribunal a quo violou o disposto no Art.º 542º do Código de Processo Civil.
9- Ao pretender interpretar tal preceito no sentido de integrar no mesmo a prática de actos praticados nos termos do Art.º 139º, n.º 6 e Art.º 642º, n.º 1, viola as regras constitucionais consignadas nos respectivos Art.º 19º, n.º 1 e 20º, n.º 1.
1.3. Não consta que tenham sido apresentadas contra-alegações.
1.4. O recurso foi admitido na espécie, efeito e regime de subida adequados.
1.5. Foram colhidos e vistos e realizada a conferência.
Cumpre apreciar e decidir
2. Objecto do recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso e das não apreciadas pela solução dadas a outras, ainda não decididas com trânsito em julgado - artigos 635.º, números 3 e 4, 639.º, n.º 1, 608.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil, aplicáveis “ex vi” do art.º 1.º n.º 2 al a), do Código de Processo do Trabalho.
Assim, a questão a apreciar consiste em saber se não se verificam os pressupostos da litigância de má-fé
3. Fundamentação de facto
Na primeira instância foi considerada provada a seguinte factualidade:
A. A empregadora apresentou em 17-01-2018 a motivação a que alude o art.º 98.º J do Código de Processo do Trabalho, juntando documento de liquidação de taxa de justiça de montante inferior ao valor devido.
B. Tal determinou que a secretaria desse cumprimento ao disposto no art.º 570.º n.º 4 do Código de Processo Civil, com a emissão de guia para pagamento até 1-02-2018,tendo a mesma sido paga em 26-01-2018.
C. Proferida sentença em 13-08-2018 e notificada a mesma em 17-08-2018, a empregadora veio interpor recurso.
D. Quando em 24-09-2018 apresentou a sua alegação de recurso a empregadora fê-lo no prazo previsto no art.º 139.º n.º 5 do Código de Processo Civil, mas não procedeu de imediato ao pagamento da multa respectiva.
 E. O que determinou que a secretaria desse cumprimento ao disposto no art.º 139.º n.º 6 do Código de Processo Civil.
F. Não tendo procedido ao pagamento da guia enviada no prazo desta, ou seja até 11-10-2018, a empregadora veio em 14-10-2018 alegar justo impedimento.
G. Designado em 22-10-2018 o dia 5-11-2018 para a inquirição das testemunhas indicadas, veio a empregadora em 30-10-2018 requerer a alteração da data por impedimento do seu mandatário o qual propôs como datas alternativas os dias 14, 20 e 23 de Novembro.
H. Na sequencia deste requerimento foi designado o dia 07-11-2018 para a inquirição de testemunhas sendo nesta data reconhecido o justo impedimento e determinada a emissão de nova guia para a prática imediata do acto (data limite da guia 08-11-2018).
I. A empregadora procedeu ao pagamento da multa, mas não procedeu ao pagamento da taxa de justiça devida pela interposição do recurso pelo que a secretaria em 12-11-2018, notificou-a nos termos do art.º 642.º n.º 1 do Código de Processo Civil.
J. Em 23-11-2018, uma sexta-feira, a três dias do limite do prazo para o pagamento deste última guia (26-11-201), a empregadora veio invocar o facto de existir um valor que não havia sido atendido – o valor de taxa pago com a apresentação do articulado do art.º 98.º-J do Código de Processo do Trabalho em Janeiro de 2018, requerendo que o valor da guia emitida nos termos do art.º 642.º n.º 1 do Código de Processo Civil fosse deduzido daquele outro, sendo emitida nova guia com tal dedução.
K. Desatendida a sua pretensão e determinada a emissão de nova guia para pagamento imediato, veio novamente a empregadora em 12-12-2018 apresentar requerimento sustentando que, na última guia emitida, não lhe foi concedido o prazo de dez dias para pagamento previsto no art.º 642.º do Código de Processo Civil, e requerendo a emissão de nova guia na qual lhe fosse facultado o exercício da totalidade do prazo legal previsto.
L. Esta sua pretensão foi desatendida em despacho que não foi colocado em crise, sendo no mesmo determinado o desentranhamento das suas alegações de recurso o que já teve lugar.
4. Fundamentação de Direito
Da não verificação dos pressupostos da litigância de má-fé
Nos termos do art.º 542.º do Código de Processo Civil,
“ 1 - Tendo litigado de má-fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
2 - Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
(…) ”.
Como resulta do teor da aludida norma legal, será condenado como litigante de má-fé, quem tendo agido segundo o previsto nalguma das alíneas do n.º 2, o tenha feito com dolo ou culpa grave. As alíneas a) e b), reportam-se à chamada má-fé material substancial, directa ou indirecta, e as alíneas c) e d), têm a ver com a designada má-fé processual/instrumental das partes litigantes.
Desta feita, a litigância de má-fé pressupõe uma actuação dolosa ou com negligência grave - em termos da intervenção na lide -, consubstanciada, objectivamente, através da ocorrência de alguma das situações previstas numa daquelas alíneas do referido normativo legal (Vd., designadamente, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28-05-2019, proc. 2592/17.6T8VIS-A.C1, em www.dgsi.pt).
A propósito da má-fé, escrevia Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, II Vol, Coimbra, pág. 259, que “todos os homens, pelo simples facto de serem sujeitos de direitos, têm o poder abstracto de recorrer aos tribunais para obterem a tutela jurisdicional; mas se num caso concreto exercerem esse poder, apesar de saberem perfeitamente que o põem ao serviço de pretensão ilegal, praticam um acto ilícito, que se traduz no abuso do direito de accionar ou de contestar. O que inquina o facto da parte, o que lhe imprime mancha ou o vício, o que transforma de facto lícito em facto ilícito é justamente o dolo ou a culpa com que ela se conduziu em juízo (…). ”
Sucede que desde a reforma processual civil de 1995, para além do dolo, consoante acima referido, pode também integrar a litigância de má-fé a negligencia grave. Passou a sancionar-se não apenas o comportamento intencional, mas também aquele que, de modo gravemente negligente, não obedece aos deveres de cuidado impostos pelo dever de correção e cooperação processuais, alargando-se assim o âmbito do instituto. 
Importa ainda salientar que, nos termos prescritos no art.º 7.º n.º 1 do Código de Processo Civil, na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio. Determinando o art.º 8.º do mesmo diploma, expressamente, que as partes devem agir de boa-fé e observar os deveres de cooperação resultantes do preceituado no artigo anterior.
Não devendo, outrossim, olvidar-se que o instituto da má-fé, visa acautelar o interesse público do respeito pelo uso dos procedimentos judiciais (Cfr., entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-05-2014, proc. 3387/10.0YPRT.L1.S1 e o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 13-06-2012, proc. 2906/08.0PCCBR.C1, ambos in www.dgsi.pt).
Através da litigância de má-fé a lei pune a instrumentalização do direito processual em diversas vertentes, quer ela se apresente como uma forma de conseguir um objectivo considerado ilegítimo pelo direito substantivo, quer como um meio de impedir a descoberta da verdade, quer ainda como forma de emperrar a máquina judiciária, com a colocação de obstáculos ou com a promoção de expedientes meramente dilatórios, quer ainda, mais concretamente, como forma de impedir o trânsito em julgado da decisão e, deste modo, prejudicar a parte na tutela ou na realização do direito substantivo que através da decisão lhe seja reconhecido (Cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 12-01-2017, proc. 59970/12.8YIPRT.E1.S1 e do Tribunal da Relação de Lisboa de 10-05-2005, proc. 05A879, in www.dgsi.pt). Itálicos nossos.
É ainda de referir que o direito de acção judicial, como qualquer outro direito subjectivo, não é um direito absoluto, impondo-se, pelo contrário, ao seu titular um conjunto de deveres, de onde se destaca o dever de boa-fé processual.
“A boa-fé processual não impõe apenas uma obrigação de abstenção de comportamentos desleais, mas ainda determinados deveres de atuação, sendo inegável a existência de um sentido positivo da boa-fé processual. (…) abusar-se-á do processo sempre que este, globalmente considerado ou qualquer outro mecanismo processual, seja dirigido à prossecução de interesse diverso daquele que lhe é imanente, e que justificou a concessão da situação subjetiva aos litigantes. (…) a utilização do processo visa verdadeiramente a resolução de um conflito entre as partes e, portanto, apresenta-se congruente com os interesses de pacificação social e justa resolução do litígio, porém, no curso do mesmo, os litigantes recorrem à utilização reprovável de mecanismos processuais postos à sua disposição (Vd. Marta Alexandra Frias Borges, “Algumas reflexões em matéria de litigância de má-fé”, pág. 67, Coimbra 2012, estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/28438/1/Algumas%20reflexoes%20em%20materia%20de%20litigancia%20de%20ma-fe.pdf.). Itálicos e sublinhados nossos.
 Ora, no presente caso, decorre da factualidade apurada ter a ré assumido ao longo dos autos uma postura patentemente dilatória e obstaculizadora da acção da justiça, que se traduziu, no sistemático recurso aos limites dos prazos para a prática de qualquer acto e à sistemática não autoliquidação da taxas devidas, o que determinou a necessidade de intervenção da secretaria com emissão de guias e o decurso dos respectivos prazos para sua emissão e o seu pagamento.
Com este expediente, logrou a ré impedir durante cerca de 4 meses o trânsito em julgado da decisão condenatória de que foi alvo, colocando assim em causa uma das finalidades do processo que é a justa e atempada resolução do litígio – com todos os prejuízos, delongas e inconvenientes daí decorrentes, não só para a contraparte (neste caso o trabalhador), como para o próprio sistema de justiça, frisando-se ainda que, tendo a ré interposto recurso da decisão, não procedeu ao pagamento atempado da taxa de justiça e multa decorrente do art.º 642.º n.º 1 do Código de Processo Civil, o que originou tivesse sido ordenado o desentranhamento das suas alegações.
A reiteração e o tipo de conduta perpetrada pela ré, revela ter sido seu propósito “protelar sem fundamento sério o trânsito em julgado da decisão”, sendo, por isso, aplicável o citado art.º 542.º n.º 2 do Código de Processo Civil.
E, uma vez que a multa aplicável à má-fé se situa entre 2 e 100 UCS (art.º 27.º n.º 3 do Regulamento das Custas Processuais), ponderando a descrita conduta, afigura-se-nos adequada a multa de 12 UCS arbitrada na sentença recorrida.  
Ao contrário do aduzido pela ré, com essa condenação não se vislumbra ter ocorrido violação dos artigos 19.º e 20.º da Constituição da República Portuguesa. Com efeito, não se prefigura qualquer suspensão dos direitos da ré (que os exerceu, como bem entendeu), nem a violação do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva (a ré acedeu aos tribunais, teve oportunidade de se defender e de exercer o contraditório ao longo do processo), baseando-se, antes, tal condenação num juízo de censura incidente num comportamento adoptado pela ré que se mostra perfeitamente inadequado à ideia de um processo justo e leal, que constitui emanação do princípio do Estado de Direito (Vide, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23-09-2003, proc. 03B1736 e o Acórdão do TRL de 27-05-2004, proc. 3304/2004-6, ambos in, www.dgsi.pt).
Improcede, por conseguinte, e sem mais considerações, a presente questão.
5. Decisão
Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a decisão recorrida.
Custas pela ré.

Lisboa, 2019-10-09

Albertina Pereira
Leopoldo Soares
Eduardo Sapateiro