Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8854/2004-6
Relator: PEREIRA RODRIGUES
Descritores: PROCEDIMENTOS CAUTELARES
CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/11/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Sumário: Para a providência cautelar de entrega judicial e cancelamento de registo, prevista no artigo 21º do Dec.-Lei nº 149/95, de 24-6, não é necessária a alegação e prova dos requisitos legalmente exigidos para as providências cautelares não especificadas reguladas no CPC.
O locador que tenha resolvido o contrato de locação financeira por incumprimento do locatário tem a faculdade de requerer a providência cautelar, a fim de obter decisão judicial restrita ao cancelamento do registo de locação financeira quando, apesar de ter havido entrega do bem, haja oposição do locatário ao reconhecimento da resolução do contrato e/ou ao cancelamento do registo da locação financeira.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

I. OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A SOLUCIONAR.
No Tribunal Judicial da Comarca de Oeiras, A interpôs, como preliminar de acção, contra B, Procedimento Cautelar ao abrigo do regime previsto no art. 21° do DL n.° 149/95, de 24/5, alegando, em síntese, que:
A Requerente celebrou com a Requerida contrato de locação financeira, que tinha como objecto o veículo automóvel de marca Chrysler Voyager 2.5 TD, com a matrícula …, que lhe foi entregue.
A Requerida não pagou algumas das rendas mensais que foram convencionadas, sendo que estas, acrescidas das despesas da cobrança e devolução, totalizam € 2.419,97.
A Requerente, invocando a mora da Requerida, resolveu o contrato de locação financeira, tendo a requerida entregue à Requerente o veículo locado, mas não os documentos, mantendo-se o veículo onerado com o ónus da locação financeira, sem que a Requerente dele possa dispor, com todos os prejuízos daí decorrentes.
Pediu que fosse ordenado o cancelamento do ónus de locação financeira e entregue, para tais efeitos, certidão da decisão que nos autos seja proferida.
Sendo apresentada a providência desde logo foi indeferida, por douto despacho liminar proferido nos autos, com o fundamento de não se ter alegado e demonstrado o “periculum in mora”.
Inconformada com a decisão, veio a requerente interpor recurso para este Tribunal da Relação, apresentando doutas alegações, com as seguintes, sintetizadas, CONCLUSÕES:
(…)
A questão a resolver é a de saber se para a procedência na providência requerida se exige a alegação e prova do periculum in mora.
II.   FUNDAMENTOS DE FACTO.
Consideram-se provados os seguintes factos:
1 - No âmbito da sua actividade, a Requerente celebrou com a Requerida, em 18.5.01, contrato de locação financeira, cuja cópia junta aos autos a fls. 11/12.
2 - O qual tinha por objecto o veículo de marca Chrysler Voyager 2.5 TD, com a matrícula …, cuja propriedade se encontra registada a favor da Requerente, na Conservatória do Registo de automóveis de Lisboa, nos termos do documento junto aos autos a fls. 18.
3 - Que lhe foi entregue, na data e nos termos descritos em Auto de Recepção de Equipamento, cuja cópia está junta aos autos a fls. 14.
4 - Pelo referido contrato ficou convencionado o pagamento de 60 rendas, pelo montante de € 548,94 cada uma, com IVA incluído.
5 - Tendo o prazo da locação ficado estabelecido em 60 meses.
6 - A Requerida não pagou as rendas que se venceram de 15.01.03 a 15.04.03.
7 - Por carta registada com A/R, datada de 30.4.03 a Requerente comunicou à Requerida a resolução do contrato, nos termos da cópia junta aos autos a fls. 16, tendo a Requerida entregue a à Requerente o veículo locado, mas não os documentos, mantendo-se o veículo onerado com o ónus da locação financeira.
III.  FUNDAMENTOS DE DIREITO.
O diploma regulador do contrato de locação financeira (leasing), o DL 149/95, de 24 de Junho[1],  prevê, no seu art. 21º, a providência cautelar de entrega judicial do bem locado e cancelamento de registo, estabelecendo-se no n.º 1 deste preceito que “se, findo o contrato por resolução ou pelo decurso do prazo sem ter sido exercido o direito de compra, o locatário não proceder à restituição do bem ao locador, pode este requerer ao tribunal providência cautelar consistente na sua entrega imediata ao requerente e no cancelamento do respectivo registo de locação financeira, caso se trate de bem sujeito a registo”.
O n.º 4 do preceito em análise esclarece que “o tribunal ordenará a providência requerida se a prova produzida revelar a probabilidade séria da verificação dos requisitos referidos no n.° 1, podendo, no entanto, exigir que o locador preste caução adequada”.
E o n.º 7 acrescenta que “são subsidiariamente aplicáveis a esta providência as disposições gerais sobre providências cautelares, previstas no Código de Processo Civil, em tudo o que não estiver especialmente regulado no presente diploma”.
Tendo por objectivo o adimplemento da obrigação do locatário de proceder à entrega do bem locado, em consequência da extinção do contrato de locação financeira decorrente da caducidade ou da resolução do mesmo, o legislador instituiu pelo DL 149/95, no mencionado art. 21º, a denominada providência cautelar de entrega judicial e cancelamento do registo, inicialmente circunscrita aos bens móveis, mas posteriormente, pelo DL nº 265/97, de 2/10, tornada extensível aos bens imóveis.
Assim, por força do regime constante do citado diploma, uma vez resolvido do contrato, deve o locatário restituir o bem locado ao locador, uma vez que este mantém o direito de propriedade sobre aquele bem durante o prazo do contrato de locação financeira. Caso o não faça, pode o locador requerer ao tribunal a sobredita providência cautelar especificada para a entrega imediata do bem e para cancelamento do respectivo registo, caso se trate de bem a ele sujeito. E o tribunal deverá ordenar a providência requerida se a prova produzida revelar probabilidade séria da verificação dos requisitos enunciados no preceito mencionado, isto é, ter o contrato de locação financeira sido extinto por resolução ou pelo decurso do prazo sem ter sido exercido, pelo locatário, o direito de compra e não ter o locatário procedido à restituição do bem ao locador e/ou ainda não se mostrar cancelado o respectivo registo de locação financeira.
Deste modo, se se concluir, indiciariamente, pela séria probabilidade de verificação daqueles requisitos, nada mais se exige para que o tribunal decrete a providência. O periculum in mora, o justificado receio de que a demora na resolução do litígio cause lesão grave e dificilmente reparável do direito do locador, a lei presume-o jure et de jure do facto de ter sido operada a resolução do contrato e de não ter havido, a exigível, restituição do bem e /ou de não ter sido cancelado o registo. Não parece dubitável que o legislador, nos contratos de locação financeira quis colocar à disposição do locador um meio expedito de reclamar a entrega imediata do bem para o recolocar no mercado, evitando-se dessa forma não só a degradação e desvalorização inerentes ao uso e decurso do tempo.
Daí que, contrariamente ao defendido despacho recorrido, o locador não careça de alegar, nem de provar, o justificado receio de lesão do seu direito[2]. Esse receio é presumido pela lei, pois que, por exemplo, no caso da continuação do uso do bem locado, móvel ou imóvel, tal determina necessariamente, pelo menos o seu desgaste, com o inerente prejuízo para o locador, seu proprietário.
É patente que no art. 21º do DL 149/95, de 24/6, o legislador quis estabelecer um regime próprio de providências cautelares originadas em incumprimento de contratos de locação financeira, ainda que prevendo a aplicação subsidiária a tal regime das providências cautelares reguladas no Código de Processo Civil. Porém, é necessário não esquecer que havendo norma na lei especial é ela que deve ser aplicada em detrimento da norma da lei geral subsidiária, à qual, no fim de contas, só há que recorrer em face de omissão ou lacuna da lei especial.
Assim, não há qualquer exigência legal da existência do periculum in mora ou da probabilidade do dano irreparável ou de difícil reparação porque o legislador considerou que nos casos de locação financeira o perigo e o dano se encontram implícitos na relação jurídica em causa, designadamente no uso inadequado do bem locado por quem não é o seu dono nem o pagou, na eventual má manutenção do mesmo, no risco de ocorrência que lhe destrua ou diminua o valor. Bem como no facto de o cancelamento do ónus de locação financeira na Conservatória competente se não mostrar efectuado, com o impedimento de o locador não poder de imediato dispor do bem.
Aliás, a jurisprudência tem sido convincente no entendimento de que para a providência cautelar de entrega judicial e cancelamento de registo, prevista no artigo 21º do Decreto-Lei 149/95, de 24/6, não é necessária a alegação e prova dos requisitos legalmente exigidos para as providências cautelares não especificadas, reguladas no Código de Processo Civil, uma vez que o receio de lesão grave e dificilmente reparável, bem como o "periculum in mora" não constituem requisitos legais da providência prevista naquele preceito[3].
Note-se que o facto de o bem (veículo) locado já ter regressado à posse da locadora não impede o recurso por parte desta à presente providência. Como bem salienta a Agravante, apesar de ter entrado na posse do bem, não pode dispor do mesmo, não pode vendê-lo ou alugá-lo de novo para minorar os prejuízos do incumprimento contratual, enquanto não lograr obter a extinção do registo da locação financeira, prejuízos que aumentam à medida que o tempo passa pela natural desvalorização do bem pelo simples decurso do tempo.
Daí que também neste caso, não obstante obtida a recuperação do bem, seja legítimo o recurso a esta providência cautelar para obter o cancelamento do ónus de locação financeira, como meio legalmente previsto para cancelamento do registo, e assim permitir que a locadora possa finalmente dispor do bem, que é de sua propriedade.
Também nesta vertente da providência cautelar se tem pronunciado a jurisprudência no sentido claro de que nada impede o accionamento da providência prevista no art. 21º do Dec. Lei 149/95, de 24/10, apenas para obter o cancelamento do registo de locação financeira quando o bem já foi entregue ao locador[4]. Desta forma, o locador que tenha resolvido o contrato de locação financeira por incumprimento do locatário, tem a faculdade de requerer a providência cautelar em causa, com o fim de obter decisão judicial restrita ao cancelamento do registo de locação financeira quando, tendo havido entrega ou restituição do bem, haja oposição do locatário ao reconhecimento da resolução do contrato e/ou ao aludido cancelamento.
Do que se conclui que para a procedência da providência requerida se não exige a alegação e prova do periculum in mora, pelo que o Agravo merece provimento.
Procedem, por isso, as conclusões do recurso, sendo de revogar a decisão recorrida.
IV.  DECISÃO:
Em conformidade com os fundamentos expostos, concede-se provimento ao agravo e revoga-se a decisão recorrida, que deve ser substituída por outra a admitir a providência requerida.
Custas pelo agravante, nos termos do art. 453º, n.º 1  do CPC.

Lisboa, 11-11-04. 

FERNANDO PEREIRA RODRIGUES
FERNANDA ISABEL PEREIRA
MARIA MANUELA GOMES

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[1] com as alterações introduzidas pelo DL 265/97, de 2/10.
[2] Vd. neste sentido António Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, IV volume, p. 309 e Ac.s da RL de 28.01.99, in CJ, 1999, tomo 1, p. 97 e de 6.11.2003, in WWW.dgsi.pt.
[3]  Vd. Ac da RP de 17.11.97; Ac da RL de 4.11.98 e Ac da RL de 27.06.2002, todos in WWW.dgsi.pt.
[4] Vd.  Ac da RL de 8.7.1999 e Ac da RL de 23.3.2001, in WWW.dgsi.pt.